Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
988/12.9TMCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ARROLAMENTO
CÔNJUGE
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
CONTRATO DE TRABALHO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA TRIBUNAL FAMÍLIA E MENORES - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1577, 1722 Nº1 C), 1789 CC, 258, 340, 349, 372, 391, 396 C TRABALHO, 516 CPC
Sumário: 1.- Tendo A trabalhado numa empresa entre 1991 e 2011 e casado em 2004, sob o regime de comunhão de adquiridos, a quantia recebida por A, durante a vigência do casamento, a título de compensação por revogação consensual do seu contrato de trabalho, assume a qualidade de bem próprio, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil, relativamente à fracção da compensação que é proporcional ao tempo correspondente ao período em que a relação laboral decorreu antes de A ter casado e comum na parte restante.

2.- Tendo A pedido o levantamento do arrolamento, relativamente a certos bens, sob o argumento de serem bens próprios, mas não se sabendo se foram adquiridos com dinheiro próprio ou com dinheiro comum, o arrolamento deve manter-se, porque a dúvida, por força da regra constante do artigo 516.º do Código de Processo Civil, resolve-se contra a parte a quem aproveitava o facto demonstrativo de terem sido adquiridos com dinheiro próprio.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) O presente recurso insere-se num procedimento cautelar de arrolamento instaurado pela recorrida P (…) contra o recorrente R (…) no qual a requerente mulher pediu o arrolamento de alguns bens (…), bens que foram efectivamente arrolados sem prévia audiência do requerido.

Na oposição ao arrolamento decretado o recorrido sustentou que o arrolamento devia ser levantado porque os bens foram adquiridos com dinheiro próprio do recorrente após a separação de facto do casal, com dinheiro que recebeu a título de indemnização por cessação do seu contrato de trabalho, cessação que também ocorreu após a separação de facto.

Na sentença decidiu-se que a quantia recebida a título de indemnização era bem comum do casal e, por essa razão, a oposição foi julgada improcedente.

b) É desta decisão que vem interposto o recurso, pretendendo com ele obter o levantamento do arrolamento dos bens referidos nos n.º 10 a 15, inclusive, dos factos provados abaixo indicados no ponto «III», com fundamento nas seguintes conclusões:

«a) Deverá ser considerado bem próprio o montante correspondente à indemnização recebida pelo Recorrente por cessação do contrato de trabalho, celebrado antes do seu casamento com a recorrida ocorrido após a separação dos cônjuges;

b) Deverá ser considerado bem próprio a indemnização em apreço, ao menos na medida em que, para o seu cálculo, foi levado em contra um período anterior à celebração do casamento já que, por definição, nenhuma participação no esforço conjunto de formação do rendimento pode ser reconhecido à recorrida;

c) Ao menos, por aplicação de regras de proporcionalidade deverá ser subtraído ao montante global da indemnização recebida por cessação do contrato de trabalho, o valor correspondente aos 14 anos, que corresponde a um valor ilíquido de 116.457,00 €, em que o Recorrente não teve qualquer relacionamento com a Requerente;

d) Deverão ser considerados bens próprios: o veículo BMW Z 4 2.2 de matricula 77-22-XG, a moto Ducati Monster S2R 800 com a matricula 22-EG-09, o veículo Jaguar S-Type 2.7 DSL Executive com a matricula 46-22-ZQ, um Televisor LCD Samsung 22 B2230HD, uma impressora Multifunções Epson Stylus SX420W, um computador Packard Bell, One Two, MA5011 PO, por sub-rogação, porque, comprados com o montante da indemnização correspondente aos 14 anos anteriores ao casamento com a requerente.

e) Deverá ser levantado o arrolamento decretado pelo douto Despacho do Juiz a quo em relação aos bens referidos em c).

Termos em que, revogando o douto Despacho no que concerne ao valor considerado bem comum, e concomitantemente, ordenando o levantamento do arrolamento em relação aos bens adquiridos por sub-rogação, …»

c) A recorrida contra-alegou, concluindo desta forma:

«a) Inconformada com a decisão que julgou improcedente a oposição formulada aqui recorrente veio o mesmo dela interpor recurso de Apelação, colocando-a em causa, em síntese, quanto aos seguintes aspetos:

- que deverá ser considerado bem próprio o montante correspondente à indemnização recebida pelo Recorrente, por cessação do contrato de trabalho, celebrado antes do seu casamento com a recorrida, ocorrido após a separação dos cônjuges;

- que deverá ser considerado bem próprio a indemnização em apreço, ao menos na medida em que, para o seu cálculo, foi levado em conta um período anterior à celebração do casamento, já que, por definição, nenhuma participação no esforço conjunto de formação do rendimento pode ser reconhecido à recorrida;

- que deverão ser considerados bens próprios o veículo BMW Z4  2.2 matrícula 77-22-XG, a moto Ducati Monter S2R 800, com a matrícula 22-EG-09, o veículo Jaguar SType 2.7 DSL Executive, com a matrícula 46-22-ZQ, um televisor LCD Samsung 22 B2230 HD, uma impressora Multifunções Epson Stulus SX420W, um computador Packard Bell, One Two, MA5011 PO, sub sub-rogação, porque, comprados com o montante da indemnização correspondente aos 14 anos anteriores ao casamento com a requerente;

- que deverá ser levantado o arrolamento decretado pelo douto despacho do Juiz a quo em relação aos bens supra referidos.

b) Como resulta indiciariamente provado na decisão recorrida, a Recorrida instaurou ação de divórcio litigioso, sem consentimento do outro cônjuge em 27.12.2012, sendo que Recorrente e Recorrida se encontram divorciados desde 06.03.2013, por sentença já transitada em julgado, após convolação dos autos para mútuo consentimento.

c) Ao contrário do que o Recorrente quer dar a entender, na decisão proferida no processo de divórcio a que os presentes autos se encontram apensos, não foi fixada qualquer data de separação de facto entre Recorrente e Recorrido, o que nem sequer seria possível, uma vez que a data do início da separação de facto tem de ser fixada, imperativamente, na sentença proferida no âmbito do processo de divórcio na sua modalidade sem consentimento do outro cônjuge (Veja-se neste sentido os Acs. do STJ, de 22.01.1997, de 16.03.2011 e de 22.05.2012 in www.dgsi.pt, ps. 96A567, 261-C/2001.L1.S1 e 601/2002.C1.S1.)

d) Por outro lado, esquece-se o Recorrente que a prova produzida nos presentes autos, que constituem um procedimento cautelar de arrolamento, designadamente no que respeita à data da separação de facto entre os então cônjuges, é meramente indiciária!

e) Assim, pese embora se tenha indiciariamente provado nos presentes autos que, tendo-se o Recorrente desentendido com a Recorrida, em 01.08.2010 passou a viver em Cernache, tal prova é ineficaz/irrelevante, não sendo possível, com base na mesma, retroagir a tal data os efeitos do divórcio decretado nos autos principais a que estes se encontram apensos.

f) Pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao ter considerado irrelevante, para a decisão a proferir quanto a oposição deduzida pelo Recorrente, que na data de aquisição dos bens aqui em causa, o Recorrente e a Recorrida estivessem separados de facto, atento do disposto no n.º 2 do art. 1789.º do C.C., decisão esta que deverá ser mantida para todos os efeitos legais.

g) Alega ainda o Recorrente que, a considerar-se a indemnização recebida pelo mesmo, por acordo de revogação de contrato de trabalho, como bem comum do ex casal, então a mesma deverá ser proporcionalmente reduzida ao tempo em que vigorou, em simultâneo, o seu vínculo laboral com a sua ex-entidade patronal e o seu casamento com a aqui Recorrida.

h) Alegando, em consequência, que deverá ser levantado o arrolamento dos bens arrolados nos presentes autos, por os mesmos terem sido adquiridos com a parte da indemnização referente ao período de vínculo laboral anterior ao seu casamento com a ora Recorrida!!!!!

i) Porém, não se mostra provado nos presentes autos, com que parte da indemnização foram adquiridos os bens cujo arrolamento o Recorrente pretende ver levantado, nem sequer tal foi alegado pelo mesmo na sua oposição!!!

j) Pelo que, não se vê como se poderá levantar o arrolamento dos bens aqui em causa, com base na sub-rogação, na hipótese de a indemnização do Recorrido ser considerada, simultaneamente bem comum (na parte referente ao tempo em que vigorou, em simultâneo, o seu vínculo laboral com a sua ex-entidade patronal e o seu casamento com a aqui Recorrida) e bem próprio (na parte referente ao tempo em que vigorou o seu vinculo laboral com a sua ex-entidade patronal até ao seu casamento com a aqui Recorrida)!!

k) Por outro lado, resulta dos presentes autos, que o regime de casamento que vigorava entre os então cônjuges era o regime da comunhão de adquiridos e que a indemnização auferida pelo Recorrido, em virtude da revogação do seu contrato de trabalho, foi auferida na constância do casamento com a aqui Recorrida, bem como que foi com a mesma que foram adquiridos os bens arrolados e aqui em causa.

l) Nos termos do disposto na alínea a) do art. 1724.º do C.C., no regime da comunhão de adquiridos, o produto do trabalho dos cônjuges faz parte da comunhão.

m) Porém, o “produto do trabalho” não é constituído apenas pela retribuição, tal como se encontra prevista no art. 349.º do C.T. de 2003, tendo a doutrina maioritária vindo a entender que as indemnizações recebidas por acidente de trabalho, doenças profissionais, reforma antecipada e despedimento têm qualidade de bens comuns, entendimento que tem sido sufragado pela maioria da jurisprudência (veja-se neste sentido Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4.ª ed., pág. 538)

n) No caso vertido nos presentes autos, o Recorrido recebeu a título de compensação pecuniária de natureza global a quantia de 166.367,00, aquando da revogação do seu contrato de trabalho com a sua ex-entidade patronal, a qual não visou a proteção da pessoa do Recorrido, constituindo, antes, uma compensação pela perda dos proventos que o mesmo deixou de auferir a partir de tal cessação.

o) Pelo que, como aliás refere o Recorrente nas suas Alegações, o direito a tal indemnização/compensação nasce no momento em que ocorre a cessação do contrato de trabalho. (Veja-se neste sentido, para além da jurisprudência citada na douta decisão recorrida, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25.10.2011 e de 22.01.2008 e o Acórdão da Relação do Porto, de 22.01.1996, todos publicados in www.dgsi.pt.)

p) Pelo que, atento o momento do nascimento do direito à compensação recebida pelo Recorrente, que ocorreu na constância do seu casamento com a aqui Recorrida, é irrelevante que a mesma tenha ou não em consideração o número de anos que o Recorrente trabalhou para a sua ex-entidade patronal.

q) Assim, dúvidas não restam que, tendo em conta tudo o supra exposto, a resposta a dar a todas as hipóteses colocadas pelo Recorrente terá de ser a mesma: a compensação auferida pelo Recorrente é bem comum do casal, integrando os bens arrolados nos presentes autos o património comum do Recorrente e da Recorrida, em consequência e via por de sub-rogação.

r) Assim, bem andou o Tribunal a quo ao ter julgado improcedente a oposição deduzida pelo Recorrente, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura, a qual deverá ser mantida, com as legais consequências.

Assim decidindo, farão …».

II. Objecto do recurso.

A primeira questão que se coloca consiste em saber se (I) vigorando entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos, (II) tendo o recorrente trabalhado numa empresa entre 1991 e 2011 e (III) tendo o mesmo recebido, durante a vigência do casamento, uma indemnização por cessação do contrato de trabalho, a quantia indemnizatória será um bem comum, um bem próprio ou será parcialmente bem próprio e parcialmente bem comum, de acordo com o estado de «não-casado» ou de «casado» que o recorrente possuiu durante o período de vigência do contrato de trabalho.

Em segundo lugar, cumpre verificar se a natureza comum ou própria da quantia compensatória poderá ser afastada pela circunstância da cessação do contrato ter ocorrido depois do casal estar separado de facto.

Em terceiro lugar, tendo os bens arrolados sido adquiridos com a quantia recebida a título de compensação e respondendo-se à primeira questão no sentido da indemnização assumir uma natureza mista, coloca-se a questão de saber se será possível determinar se os bens foram adquiridos com a parte que é «bem próprio» ou com a parte que é «bem comum do casal» e respectivas consequências.

III. Fundamentação.

a) Matéria de facto provada.

1- Requerente e requerido casaram um com o outro em 7 de Fevereiro de 2004, sem convenção antenupcial, encontrando-se já divorciados por sentença transitada de 6 de Março de 2013, após convolação dos autos para mútuo consentimento.

2 - A acção de divórcio foi proposta em 27 de Dezembro de 2012.

3 - Requerido o arrolamento de bens comuns do casal em 26 de Novembro de 2012, foi tal providência decretada sem prévia notificação ou audição do mesmo, por decisão de 28 de Novembro de 2012, nos bens indicados, à excepção de 1 por reconhecidamente já ter sido vendido, isto é: saldo dos depósitos de contas bancárias tituladas pelo requerido no Montepio Geral, 3 automóveis, 2 motos, 4 televisores, 3 computadores, 2 impressoras e 2 bicicletas.

4 - Em 30 de Novembro de 2012, foi efectuado o arrolamento de 4 televisores, 3 computadores e 2 impressoras.

5 - Em 29 de Novembro de 2012 foi efectuado o registo do arrolamento de 3 automóveis e 2 motos.

6 - Tendo-se desentendido com a requerente, com início em 1 de Agosto de 2010, o requerido celebrou contrato de arrendamento de um apartamento parcialmente equipado em Cernache, para onde se mudou, aí passando a viver.

7 - O requerido integrou os quadros dos X..., Lda. entre 2 de Janeiro de 1991 e 30 de Novembro de 2010, desempenhando aí as funções de Delegado de Informação Médica.

8 - Por acordo de revogação do contrato de trabalho celebrado em 10 de Novembro de 2010 entre o requerido e os X..., Lda., e com efeitos a partir de 30 de Novembro de 2010, aquele recebe a título de compensação, a quantia ilíquida de impostos e taxas de €166.367,00 euros.

9 - Quantia líquida de €149.580,61 euros que é creditada em 24 de Novembro de 2010 na conta indicada de que era titular no Santander Totta, conta essa conjunta do casal e onde já recebia os seus ordenados.

10 - Em 18 de Fevereiro de 2011, o requerido adquiriu, em 2ª mão, o veículo BMW Z4 2.2 de matrícula 77-23-XG por €22.000,00 euros, que se encontra arrolado.

11 - Em 29 de Janeiro de 2011, o requerido adquiriu a moto usada Ducati Monster S2R 800 de matrícula 22-EG-09 por €6.860,01euros, que se encontra arrolado.

12 - Em 8 de Fevereiro de 2011, o requerido adquiriu, em 2.ª mão, o veículo Jaguar S-TYPE 2.7 DSL EXECUTIVE de matrícula 46-22-ZQ por €25.500,00 euros, que se encontra arrolado.

13 - Em 5 de Novembro de 2010, o requerido adquiriu um televisor LCD Samsung 22 B2230HD por € 249,90 euros, que se encontra arrolado (verba 2).

14 - Em 9 de Novembro de 2010, o requerido adquiriu uma impressora multifunções EPSON STYLUS SX420W por €79,00 euros, que se encontra arrolado (verba 8).

15 - Em 3 de Dezembro de 2010, o requerido adquiriu um computador Packard BELL, ONE TWO, MA5011 PO por €737,05 euros, que se encontra arrolado (verba 9).

b) Apreciação das questões objecto do recurso.

Primeira1. Sendo o casamento uma comunhão de vida, como se diz no artigo 1577.º do Código Civil, então tal comunhão tenderá a estender-se à comunhão dos bens adquiridos na constância do matrimónio com a colaboração, a cooperação e o esforço de ambos os cônjuges.

Nos regimes de comunhão de bens é esta a regra e a aquisição de bens próprios durante o casamento a excepção.

Sendo assim, a excepção fundamenta-se em razões ou motivos com valor substantivo suficiente para neutralizar as razões que justificam a regra.

Vejamos, então, que bens são próprios e a razão por que o são, no regime de comunhão de adquiridos, que é o caso dos autos

Para o caso que agora interessa, são bens próprios dos cônjuges, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º, do Código Civil, «Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior».

Referindo-se a estes bens, os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, notam que «… estes bens não resultam do esforço conjunto do casal, e portanto devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os faz entrar para o casamento» ([1]).

Verifica-se, por conseguinte, que o esforço conjunto do casal é a pedra de toque que nos auxiliará na identificação e separação dos bens que são comuns, daqueles que não o são.

Daí que, existindo antes do casamento a situação factual e jurídica que conduzirá, no futuro, à aquisição do bem, não se possa concluir e afirmar que tal bem resulta do esforço conjunto do casal.

O n.º 2 do mencionado artigo 1722.º do Código Civil, indica algumas situações que preenchem o conceito de «direito próprio anterior».

Como estas situações preenchem o conceito de direito próprio anterior justificador, para o legislador, na natureza própria do bem, em vez de comum, cumpre, por isso, examiná-las, com o fim de verificar que características estes exemplos têm em comum, de forma a chegar ao conteúdo que define o conceito «direito próprio anterior».

Refere-se neste n.º 2 o seguinte:

«Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:

a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;

b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;

c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;

d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento».

Na al. a) alude-se a bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele, como é o caso, por exemplo, da herança indivisa atribuída antes do casamento, mas partilhada depois dele.

Nas palavras dos Prof. Pires de Lima/Antunes Varela, «Trata-se, aliás, de solução que rigorosamente se coaduna com a retroactividade da partilha, prescrita no artigo 2119.º» ([2]).

Constam desta alínea direitos que, uma vez exercidos, conduzem à aquisição de bens, fazendo retroagir os efeitos da aquisição a um momento temporal pretérito anterior ao casamento.

O que significa, então, que se trata de direitos totalmente gerados e formados antes do casamento, mas que, por qualquer razão particular, apenas se exercem já durante o casamento.

A al. b) refere-se a bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento.

Neste caso, tratando-se de um direito que surgem apenas de forma completa no final de um período longo e bem sucedido de formação, se o termo do prazo ocorre na constância do casamento, cumpre ter em atenção que, por força do disposto nos artigos 1288.º e 1317.º, al. c), ambos do Código Civil, os efeitos dos actos de posse que conduzem à aquisição da propriedade por usucapião, retroagem à data do início da posse, portanto, a uma época em que não existia ainda casamento.

Sendo assim, retroagindo os efeitos dos actos de posse a uma altura em que não existia casamento, é lógico, por isso, que a consequência destes efeitos, ou seja, a aquisição do direito sobre o bem, seja excluído do património comum, que nesse tempo não existia ([3]).

A al. c) trata dos bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade.

Nestes casos, o direito de propriedade sobre a coisa fica sujeito a condição suspensiva, mas, se chegar a concretizar-se a condição, os seus efeitos também retroagem, como dispõe o artigo 276.º do Código Civil, à data da conclusão do negócio.

Também aqui os efeitos do negócio se estendem a um momento temporal em que não existia casamento, pelo que, tais efeitos não devem integrar o património comum ([4]), que nessa data não existia.

É clara a razão que leva o legislador a considerar tais bens como próprios.

Na al. d) prevêem-se os casos em que o bem é adquirido no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.

Cumpre distinguir aqui entre o momento em que se constituiu o quadro factual que vai originar o direito de preferência e o momento do nascimento efectivo deste direito.

Com efeito, seguindo as palavras de Agostinho Cardoso Guedes, «O direito de preferência nasce em momento posterior à constituição da relação de preferência, apenas no momento em que se verificam um conjunto de pressupostos previstos na lei ou no pacto, sendo condicionado apenas no sentido em que o seu nascimento não é certo e imediato, mas apenas eventual e futuro, não existindo sequer uma expectativa jurídica nesse sentido.

O que se passa é que o direito assim constituído não é um direito de crédito, mas sim um direito potestativo constitutivo de um direito de crédito» ([5]).

Por exemplo: numa situação de contrato de arrendamento, só na altura em que o senhorio decidiu alienar a outrem o local arrendado, em certas condições, é que se constitui um direito de preferência para o seu inquilino ([6]).

Alude-se aqui:

À existência de um direito de preferência que se exerce; e

À situação que suporta a relação de preferência como já existente à data do casamento.

Nada se diz sobre se o direito de preferência se formou antes ou depois do casamento, apenas se exige que a situação factual, quer seja juridicamente qualificável como pacto de preferência, compropriedade, arrendamento para o exercício de comércio ou indústria ([7]), em que ele se funda a relação de preferência, esteja formada antes do casamento.

Procurando descortinar a ratio legis presente em todos os exemplos acabados de mencionar, constata-se o seguinte:

Nos casos das alíneas b) e c) – posse e da reserva de propriedade – estamos perante situações em que os direitos se vão formando por etapas, progressivamente, ocorrendo na constância do casamento o último acto, mas os efeitos retroagem, por força da lei, à data do primeiro acto.

No caso da alínea a) – direitos sobre patrimónios ilíquidos –, os direitos estão formados antes do casamento, mas só são materializados em bens concretos depois do casamento.

No caso da alínea d) – direito de preferência –, a situação base, factual e jurídica, de onde emerge, mais tarde, o direito, já existe antes do casamento, mas o direito, consoante os casos, pode ter nascido antes ou durante o casamento (pense-se no caso do senhorio ter alienado antes do casamento do inquilino o local arrendado e de este exercer o direito depois de ter casado ou no caso em que o inquilino é exclusivo titular do contrato de arrendamento e a venda ocorre durante o casamento).

Parece resultar destes exemplos, que, apesar da diversidade das situações enumeradas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, em todos os casos apontados a situação de facto fundamental geradora do direito próprio do cônjuge está constituída antes do casamento e, por isso, mesmo, não é, nem pode ser, fruto do esforço conjunto do casal.

Isto é, a situação factual e jurídica que coloca em marcha a futura e eventual aquisição do direito há-de ter-se constituído antes do casamento.

Com efeito, nos casos da posse e da reserva de propriedade é a lei que dá relevo fundamental ao início do processo fazendo regredir os efeitos a esta data.

No caso dos direitos sobre patrimónios ilíquidos o acto determinante ocorreu antes do casamento, só o exercício ocorre durante o casamento.

 No caso do direito de preferência, a situação base, factual e jurídica, de onde emerge mais tarde o direito, já existe antes do casamento, podendo o direito nascer, porém, durante o casamento.

No caso da preferência, durante o casamento, apenas ocorre um facto, também estranho ao labor do casal, que é a alienação da coisa por parte do titular do bem que está obrigado a dar preferência.

Ou seja, o esforço conjunto do casal no surgimento do direito de preferência é nulo, mas já não é assim quando se trata de o exercer, pois neste momento há que investir meios financeiros na aquisição do bem, que poderão ser comuns.

Afigura-se, por conseguinte, ser este exemplo relativo ao direito de preferência um modelo útil para verificar quando estaremos perante um «direito próprio anterior», para efeitos do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil.

Repetindo, neste caso, verificamos que o esforço conjunto do casal na aquisição do direito é nulo ou desprezível.

O que nos leva a considerar, dada a coerência valorativa do ordenamento jurídico, que as demais situações tidas em vista pelo legislador serão semelhantes, no mínimo a esta, já que as anteriores não suscitam tantas dúvidas.

Resumindo: apesar da diversidade das situações enumeradas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, em todos os casos apontados, a origem genética do direito que se exerce durante o casamento situa-se antes do casamento.

2. Vejamos agora o caso concreto, para averiguar se a origem genética do direito a compensação pela cessação do contrato de trabalho se situa antes ou no decurso do casamento.

Nos termos cláusula 3.ª do contrato de revogação do contrato, o bem adquirido consiste numa quantia em dinheiro entregue pela entidade patronal ao recorrente «…a título de compensação pecuniária global» – n.º 1 da cláusula – a que «…apenas acresce o montante dos créditos salariais devidos pela cessação do contrato de trabalho…» – n.º 3 da cláusula.

Nos termos da cláusula 2.º do mesmo contrato, a causa do surgimento desta compensação surgiu porque «As partes revogam o contrato de trabalho entre ambas vigente, com efeitos em 30 de Novembro de 2010».

Trata-se, portanto, de uma prestação que a entidade patronal e o trabalhador acordaram como contrapartida por aquilo que ambas denominaram como «revogação do contrato de trabalho».

Qual a natureza deste bem, desta quantia compensatória? Compensa o quê?

Vejamos.

Nos termos do artigo 340.º do Código do Trabalho, o contrato de trabalho, para além de outras modalidades legalmente previstas, pode cessar por: «a) Caducidade; b) Revogação; c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador; d) Despedimento colectivo; e) Despedimento por extinção de posto de trabalho; f) Despedimento por inadaptação; g) Resolução pelo trabalhador; h) Denúncia pelo trabalhador» (norma correspondente ao artigo 384.º do Código de Trabalho de 2003 – Lei 99/2003, de 27 de Agosto).

A revogação do contrato de trabalho por mútuo acordo encontra-se prevista no artigo 349.º do Código do Trabalho, referindo-se no respectivo n.º 1 que «O empregador e o trabalhador podem fazer cessar o contrato de trabalho por acordo» (norma correspondente ao artigo 393.º do Código de Trabalho de 2003).

E no n.º 5 deste artigo estipula-se que: «Se, no acordo ou conjuntamente com este, as partes estabelecerem uma compensação pecuniária global para o trabalhador, presume-se que esta inclui os créditos vencidos à data da cessação do contrato ou exigíveis em virtude desta» (norma correspondente ao n.º 4 do artigo 394.º do Código de Trabalho de 2003).

Por conseguinte, nos casos de revogação por mútuo acordo, pode haver, ou não, uma compensação pecuniária global atribuída ao trabalhador, mas se existir, ela fica a dever-se, na medida em que não se vislumbra outra causa justificativa, à própria existência da relação laboral que então cessa e a todas as contingências positivas e negativas que ela gerou no passado e que projecta aida no momento actual e no futuro do trabalhador.

Verifica-se que esta compensação está prevista noutras normas laborais e aparece unida solidariamente à antiguidade do trabalhador.

Com efeito, no Código do Trabalho surpreendem-se diversas normas que prevêem uma compensação devida ao trabalhador quando cessa a relação laboral e o respectivo quantitativo é indexado à respectiva antiguidade.

Verifica-se esta situação, por exemplo, nos casos de despedimento colectivo.

Com efeito, no n.º 1 do artigo 366.º do Código do Trabalho prevê-se: «Em caso de despedimento colectivo, o trabalhador tem direito a compensação correspondente a um mês de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade» (norma correspondente ao n.º 1 do artigo 401.º do Código de Trabalho de 2003).

No caso de despedimento por extinção de posto de trabalho, a lei também prevê, no artigo 372.º, o seguinte: «Ao trabalhador despedido por extinção de posto de trabalho aplica -se o disposto no n.º 4 do artigo 363.º e nos artigos 364.º a 366.º» (norma correspondente ao artigo 404.º do Código de Trabalho de 2003).

E no caso do despedimento do trabalhador por inadaptação a lei também determina, no artigo 379.º do Código do Trabalho, o seguinte: «Ao trabalhador despedido por inadaptação aplica -se o disposto no n.º 4 do artigo 363.º e nos artigos 364.º a 366.º» (norma correspondente ao artigo 409.º do Código de Trabalho de 2003).

E nos casos de processo de despedimento que não conduzam à cessação do contrato de trabalho, mas à reintegração do trabalhador, o Código do Trabalho prevê, no n.º 1 do artigo 391.º, que «Em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, cabendo ao tribunal determinar o seu montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381.º» (norma correspondente ao n.º1 do artigo 439.º do Código de Trabalho de 2003).

O mesmo ocorre quando a resolução do contrato ocorre por iniciativa do trabalhador e com base em justa causa.

Nestes casos, o n.º 1, do artigo 396.º, do Código do Trabalho, prevê a atribuição de uma indemnização ao trabalhador «…a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau da ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades» (norma correspondente ao n.º 1 do artigo 443.º do Código de Trabalho de 2003).

Retira-se destas normas que a antiguidade da relação laboral é relevante para determinar o montante da indemnização atribuída nestas normas quando cessa a relação laboral.

Segundo Monteiro Fernandes, a antiguidade do ponto de vista do trabalhador relaciona-se «…intimamente com o risco de ruptura: quanto maior a duração do contrato, mais profunda a integração psicológica do trabalhador na empresa, mais indesejável ou perturbadora, portanto, a possibilidade de cessação do contrato. Assim, a antiguidade cria e vai acrescendo uma expectativa de segurança no trabalhador» ([8]).

Resulta do exposto o seguinte:

Quando cessa o contrato de trabalho e a cessação não ocorre por mútuo acordo, denúncia do trabalhador ou justa causa invocada pela entidade patronal, a lei atribui ao trabalhador uma quantia em dinheiro, atendendo à antiguidade da relação laboral, visando com isso compensá-lo da ruptura dessa relação e da instabilidade que, em regra, se seguirá durante algum tempo na vida quotidiana do trabalhador.

Nos casos de mútuo acordo, como se viu, a compensação não é imposta pela lei e fica, naturalmente, dependente da vontade das partes, mas, claro está, se existir, o fundamento da mesma consistirá, igualmente, na antiguidade do trabalhador e na situação gerada pela ruptura da relação laboral ([9]).

Pergunta-se, pois: esta quantia destinada a compensar o trabalhador pela cessação do contrato de trabalho é adquirida por virtude de direito próprio existente já à data do casamento, ou é um direito que surge apenas durante o casamento?

Esta questão não se coloca nos casos em que a relação laboral se inicia durante o casamento, pois neste caso não haverá dúvida de que não se trata de um direito surgido antes do casamento.

Mas coloca-se nos casos em que a relação laboral se inicia antes do casamento, como é o caso dos autos, caso este em que a relação laboral se iniciou em 2 de Janeiro de 1991 e o casamento só ocorreu em 7 de Fevereiro de 2004.

Afigura-se que para a situação em que a relação laboral se inicia antes do casamento e a lei já prevê, nessa altura, a indemnização por cessação do contrato de trabalho indexada à antiguidade do trabalhador, a resposta é a seguinte:

A compensação devida ao trabalhador causada pela cessação do contrato de trabalho ocorrida na constância do casamento, resulta de um direito cuja vida se iniciou antes do casamento e continuou durante o casamento, sendo a sua expressão quantitativa final o resultado de todo o tempo de duração do contrato (antiguidade). Sendo assim, a compensação reveste uma natureza mista de bem próprio até ao casamento e comum no decurso do casamento.

Os fundamentos são os seguintes:

(I) À data do casamento, em 7 de Fevereiro de 2004, a lei já previa as indemnizações que ficaram acima referidas para os diversos casos de cessação do contrato de trabalho, incluindo a indemnização que foi atribuída ao recorrente.

(II) A compensação atribuída ao recorrente não é uma quantia susceptível de integrar o conceito de retribuição ou o conceito de «produto do trabalho dos cônjuges» a que alude a al. b), do artigo 1724.º, do Código Civil.

Como se disse, esta compensação devida pela cessação do contrato de trabalho tem como matriz geradora a relação laboral iniciada e mantida ao longo de um certo período de tempo entre o trabalhador e a entidade patronal e exprime-se quantitativamente através da antiguidade da relação laboral.

Vejamos o que vem regulado na lei laboral sobre estas matérias (retribuição e produto do trabalho).

Quanto ao conceito de retribuição.

Nos termos dos n.º 1 e 2 do artigo 258.º do Código do Trabalho, «Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho» e «A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie».

Como diz Monteiro Fernandes, a noção de retribuição consiste no «…conjunto dos valores (pecuniários ou não) que a entidade patronal está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desempenhada (ou, mais rigorosamente, da disponibilidade de força do trabalho por ele oferecida)» ([10]).

Verifica-se que a mencionada compensação por revogação do contrato de trabalho é uma prestação única e não desempenha a função da retribuição, o que se facilmente se compreende, se, por exemplo, todas as retribuições estiverem pagas no momento da cessação do contrato.

Neste caso, com efeito, a mencionada compensação não pode ser uma retribuição, pois nada é devido a este título nesse momento, ou seja, não retribui o que quer que seja.

Quanto ao «produto do trabalho dos cônjuges».

Este conceito confunde-se com o conceito de «retribuição» utilizado no direito laboral ou seja, o produto do trabalho é tudo aquilo que constituir correspectivo da actividade desempenhada pelo cônjuge trabalhador.

Mas não é o caso, como se disse, da mencionada compensação por cessação do contrato de trabalho, a qual até pode nem existir, ao passo que a retribuição ou «produto do trabalho» existe sempre, se tiver existido prestação por parte do trabalhador.

Assim como não é «produto do trabalho» uma indemnização por incapacidade resultante de um acidente laboral, pois não se trata de uma prestação resultante do contrato de trabalho, prevista como correspectivo de uma actividade laboral, mas sim de uma indemnização prevista na lei destinada a repor a situação que existiria caso o acidente não tivesse ocorrido.

 (III) A compensação pela cessação do contrato de trabalho destina-se, sob o aspecto funcional, a prover ao sustento do trabalhador após a cessação da relação laboral.

Por isso, esta compensação está voltada para o futuro, ao invés da prestação devida ou auferida como «produto do trabalho» que pressupõe trabalho prestado previamente.

(IV) A quantia compensatória existe porque existiu uma relação laboral contínua ao longo de anos (antiguidade) e encontra-se prevista com carácter de obrigatoriedade na lei nos casos em que não ocorra cessação por mútuo acordo, denúncia do trabalhador ou justa causa invocada pela entidade patronal.

Situação que mostra que o facto de existir uma contrato de trabalho com duração igual ou superior a um ano pode gerar um direito de compensação no futuro se verificadas certas condições.

Por conseguinte, este direito a uma compensação pecuniária é um direito que, nos casos em que chega a formar-se completamente, tem raízes no acto de celebração do contrato e, a partir daí, nos casos em que vem a ter êxito, como no caso dos autos, vai-se formando progressivamente ao longo da relação laboral e a sua expressão quantitativa está conexionada à duração da relação.

Por isso, se o contrato de trabalho foi celebrado antes do casamento a compensação que venha a ocorrer quando o contrato cessa, resulta deste direito que nasce duma situação de facto e jurídica gerada antes do casamento e que durante o casamento se desenvolve e completa.

(V) Esta situação é semelhante nos seus aspectos formais àquela que vem mencionada na al. d), do n.º 2, do artigo 1722.º do Código Civil, ou seja, ao exercício do direito de preferência durante o casamento, mas relativamente a uma situação que já se havia iniciado antes do casamento, como é o caso de um dos cônjuges ter tomado de arrendamento, ainda em solteiro, a casa onde vive o casal e o senhorio a ter colocado à venda após o casamento do arrendatário.

Verifica-se, com efeito, que, neste caso, o direito de preferência que se exerce durante o casamento tem raízes numa situação jurídica negocial ou não negocial iniciada antes do casamento.

Dir-se-á que no caso da compensação pela cessão do contrato de trabalho há um esforço comum no sentido de manter o cônjuge trabalhador em condições físicas e psíquicas como trabalhador.

Porém, o mesmo também ocorre, no caso do direito de preferência, como se pode verificar nos caso exemplificado, se se considerar que o direito de preferência também só chega a exercer-se porque o casal, através do esforço comum, angariou meios para pagar as rendas relativas ao arrendamento do imóvel.

(VI) Esta solução é a que se afigura mais proporcionada à realidade, por gerar situações menos desiguais entre si, como se constata analisando algumas hipóteses, incluindo casos extremos, como, por exemplo:

(a) Se a relação laboral começa e acaba durante o casamento, justifica-se que a compensação seja bem comum.

(b) Se a relação laboral começa durante o casamento e acaba após a dissolução do casamento, justifica-se que a compensação seja bem próprio do cônjuge titular da relação laboral, pois as relações patrimoniais resultantes do casamento entre os cônjuges já não existiam nessa altura.

(c) Mas, se após uma semana de casamento, cessa o contrato de trabalho do cônjuge A, que durava há 20 anos, e A recebe uma compensação indexada quantitativamente a essa antiguidade, o benefício de B resultante da integração de tal quantia no património comum não encontra qualquer justificação material, porque não há qualquer contribuição do esforço comum do casal para a aquisição desse bem (quantia compensatória), pois a expressão quantitativa da compensação resulta da realização e duração do contrato anteriores ao casamento.

(d) Estas situações tornam-se mais explícitas se se considerar, por exemplo, o caso de um contrato de trabalho em que A trabalha há 20 anos e, no espaço de, por exemplo, três meses, casa, cessa o contrato de trabalho e divorcia-se por mútuo consentimento.

Neste caso, inexiste qualquer contribuição significativa do esforço comum do casal para a manutenção da relação laboral.

Ou, então, o caso em que A inicia a relação laboral, casa passado uma semana e a relação laboral cessa ao fim de 20 anos de casamento, caso este em que o esforço conjunto do casal para a manutenção da relação laboral ao longo de praticamente todo o tempo se afigura justificativo no sentido de considerar esta compensação como bem comum na parte proporcional ao tempo decorrido durante o casamento.

 (VII) A solução adequada será aquela que permitir resolver com igualdade e proporcionalidade, ou seja, com justiça e coerência, todas as situações em que se coloquem as mesmas premissas, isto é, aquisição de um bem durante a vigência do casamento celebrado em regime de comunhão de adquiridos, independentemente da duração anterior do casamento e da data da sua dissolução por divórcio.

(VIII) De realçar que a situação destes autos não será semelhante à abordada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 2010 ([11]), mencionado na sentença sob recurso, onde se ponderou que «Encontrando-se os cônjuges casados aquando do recebimento, por um deles, de uma compensação pecuniária, de natureza global, referente a indemnização em substituição de créditos laborais, tal bem, ao entrar na esfera patrimonial daquele cônjuge, assumiu, imediatamente, a qualidade de bem comum do casal, passando a estar sujeito, desde a propositura da acção, ao regime da partilha dos bens comuns do casal, em consequência de divórcio» (sumário).

Efectivamente, neste caso, a compensação, nos termos do acórdão, respeita a créditos salariais ([12]), portanto a créditos que se integram no conceito de «produto do trabalho», o que não ocorre no caso dos autos, constando inclusive dos n.º 1 e 3, da cláusula 3.ª do acordo de revogação do contrato de trabalho, que a quantia em dinheiro era entregue pela entidade patronal ao recorrente «…a título de compensação pecuniária global» – n.º 1 da cláusula – a que «…apenas acresce o montante dos créditos salariais devidos pela cessação do contrato de trabalho…» – n.º 3 da cláusula.

Ou seja, se bem se compreende o teor do acordo, além da quantia acordada, o recorrente ainda seria credor de «créditos salariais devidos pela cessação do contrato de trabalho».

Ora, quanto a estes últimos, sim, integram o património comum do casal, pois são «produto do trabalho» do cônjuge, mas já não a mencionada compensação, pelas razões acima expostos (a sua origem genética situa-se em momento temporal anterior ao casamento).

É certo que Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira sustenta que «Devem considerar-se parte integrante do património comum os bens adquiridos em substituição de salários, como as pensões de reforma, os complementos de reforma resultantes de aforros de salários, por exemplo, através de planos-poupança-reforma, e as indemnizações, por qualquer causa, que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho» ([13]).

Porém, estas indemnizações que tenham na sua base uma intenção de compensar a diminuição da capacidade de ganho do trabalhador referem-se a factos que começaram e acabaram (aliás serão instantâneas ou de curta duração) durante o casamento, como é o caso de um acidente de trabalho.

A situação relativa à compensação por cessação do contrato de trabalho é diferente.

Com efeito, neste caso, estamos face a um direito que, muito embora tenha raízes na celebração do contrato de trabalho, vai-se formando, no que respeita à sua expressão quantitativa, ao longo de todo o período da relação laboral.

Por conseguinte, o esforço conjunto do casal na manutenção dessa relação laboral pode cobrir todo o tempo da relação laboral ou só parte dele.

Sendo assim, então o direito deve tutelar tal realidade e atribuir ao património comum do casal os proventos que resultam do esforço comum e este esforço apenas compreende o período em que existe ou existiu casamento.

3. Face ao exposto, conclui-se o seguinte: a compensação atribuída ao recorrente é bem próprio relativamente à fracção da compensação que é proporcional ao tempo correspondente ao período em que a relação laboral decorreu antes de ter casado e comum na parte restante.

Segunda questão – Vejamos agora se a natureza comum ou própria da quantia indemnizatória poderá ser afastada pela circunstância da cessação do contrato ter ocorrido depois do casal estar separado de facto.

A resposta é negativa.

Nos n.º 1 e 2, do artigo 1789.º, do Código Civil, dispõem-se, respectivamente, que «Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges» e que «Se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado».

No caso dos autos, verifica-se que não há no processo nada que mostre que no processo de divórcio a data da separação de facto esteja fixada e que tenha existido aí um pedido, e uma decisão em consonância, no sentido dos efeitos do divórcio retrotraírem à data da separação de facto.

Terceira questão – Tendo-se respondido à primeira questão no sentido da compensação assumir uma natureza mista, cumpre agora saber se será possível determinar se os bens, cuja exclusão do arrolamento é pedida, foram adquiridos com a parte que é «bem próprio» ou com a parte que é «bem comum do casal».

Não é possível dar uma resposta com base em argumentos retirados da realidade factual.

A relação laboral do requerente enquanto solteiro durou 157 meses e como casado 82 meses, correspondendo o primeiro período a 0,6569 da unidade e o segundo a 0,3431, o que confere relativamente à quantia ilíquida recebida uma proporção de €109 286,48 euros para o período de solteiro e €57 080,52 para o período de casado e quanto à quantia líquida as verbas, respectivamente de €98 259,50 euros e €51 320,90 euros.

O total dos bens cuja exclusão é pedida soma €55 425,06 euros, o que excede a quantia líquida de €51 320,90 euros correspondente ao período de casado, pelo que o último bem comprado, o veículo BMW, sempre teria sido, necessariamente adquirido, em parte, com dinheiro próprio, mas só em parte.

Não se sabendo, pois, que parte do dinheiro foi usada nestas aquisições, e não sendo possível excluir qualquer um dos bens da hipótese de ter sido adquirido com dinheiro comum, cumpre aplicar, então, a regra do artigo do artigo 516.º do Código de Processo Civil, ou seja, «A dúvida sobre a realidade dum facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita».

Por conseguinte, incumbindo ao recorrente, com vista a obter a exclusão dos bens do âmbito do arrolamento, provar que os bens eram próprios, por terem sido comprados com dinheiro próprio, mas não se sabendo com que dinheiro foram adquiridos, persistindo a dúvida, decide-se contra o recorrente, isto é, não se considera que foram comprados com o dinheiro comum.


*

Conclusão – Muito embora se tenha concluído que a quantia recebida a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho assume, no caso concreto, a qualidade de bem próprio até certo montante e de bem comum a partir desse montante, esta conclusão não permite proferir decisão diversa da tomada em 1.ª instância, pelas razões que acabaram de indicar, isto é, por não se saber se os bens foram adquiridos com dinheiro próprio ou dinheiro comum, pelo que a decisão tomada na 1.ª instância, embora por razões jurídicas diversas, deve manter-se.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


*
 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Curso de Direito de Família, Vol. I, 3.ª edição. Coimbra, 2003, pág. 556.
[2] Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 423, 2.ª edição.
[3] Cf. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira. Curso de Direito de Família, Vol. I, pág. 513, 2.ª Edição, Coimbra Editora /2001.
[4] («Consideram-se em terceiro lugar (na al.c)) como adquiridos por virtude de direito próprio anterior os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade por qualquer dos cônjuges… O artigo 1722.º faz retroagir os efeitos da aquisição, para o efeito da qualificação dos bens, à data da celebração do contrato» Pires de Lima/Antunes Varela. Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª edição, pág. 423.

[5] Exercício do Direito de Preferência. Porto, 2006, pág. 341.

[6] Nos termos do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil (reposto pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro - Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) - «O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos».
[7] Profs. Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., pág. 423.
[8] Direito do Trabalho, 15.ª edição. Almedina, 2010, pág. 236.
Salientando as mesmas características, Pedro Romano Martinez refere que «…a retribuição é contrapartida da actividade, assenta no carácter regular e periódico da sua realização e tem natureza patrimonial. Estes três elementos correspondem à noção legal de retribuição» - Direito do Trabalho, 4.ª edição. Almedina, 2007, pág. 573.
[9] Como refere Pedro Romano Martinez, «De facto, com alguma frequência, apesar de a revogação não implicar o pagamento de qualquer indemnização, do acordo consta a obrigação de o empregador pagar uma quantia ao trabalhador, que leva a denominar este ajuste de “despedimento negociado”; sempre que o empregador pretende fazer cessar o contrato, não tendo motivo, pode propor ao trabalhador a revogação do negócio jurídico mediante o pagamento de uma quantia, que será livremente negociada pelas partes» - ob. cit., pág. 956.
[10] Ob. cit., pág. 487.
[11] Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do S.T.J. – Ano XVIII, Tomo III , pág. 153. No mesmo sentido, ac. do Tribunal da Relação de Évora de 16-09-2009, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIV, Tomo IV, pág. 243.
[12] Com efeito, refere-se no acórdão, ob. cit., pág. 157, coluna da esquerda: «Ficou provado, neste particular, que foi paga ao interessado [A], pela [F], a quantia de €66 768,93, que aquele recebeu, em final de 2008, a título de compensação pecuniária, de natureza global alusiva a créditos salariais».
[13] Ob., cit., 2003, pág. 589.