Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/12.0GBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTS. 286.º, 287.º E 308.º, DO CPP
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 286.º, 287.º E 308.º, DO CPP
Sumário: I - A fase processual da instrução compreende a prática dos actos necessários à recolha dos indícios suficientes da prática, pelo agente, de factos geradores da aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança e culmina com a decisão instrutória.

II - Sendo que a prolação de despacho de pronúncia dependerá do juízo a fazer sobre a probabilidade de condenação resultante da submissão da causa a julgamento: em caso de probabilidade razoável de condenação o juiz pronunciará o arguido; caso contrário, profere despacho de não pronúncia - art. 308.º, n.º 1, do C.P.P.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO
1.

O Ministério Público deduziu acusação contra A..., B..., C... e D... imputando ao primeiro a prática de um crime de injúria agravada, dos art. 184º e 132º, nº 2, al. l), do Código Penal e a todos a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, do art. 145º, nº 1, al. a), e 2 do Código Penal.

Realizada a instrução a requerimento dos arguidos a final foi proferida decisão de não pronúncia do arguido A... pelo crime de injúria agravada e dos arguidos B..., C... e D... pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.


2.

Inconformado, o assistente E...s recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«1ª - A decisão recorrida incorre em erro notório na apreciação da prova.

2ª - Deu exclusiva importância a duas testemunhas na instrução que só viram o que quiseram e nada ouviram.

3ª - Esqueceu os depoimentos do ofendido e testemunhos que tudo presenciaram.

4ª - Os indícios que o Ministério Público encontrou para acusar são mais do que vastos; são avassaladores.

5ª - Os docs. de fls 10 e 11 e o Relatório do INML de fls. 18 indiciam uma brutalidade coletiva e não uns agarrões entre duas pessoas.

6ª - Os depoimentos de L... fls. 31, de M... - fls. 35, de N... - fls. 38, de O...- fls. 43 e de P... - fls. 46 são absolutamente convincentes.

7ª - Quer individualmente quem em relação com os outros, demonstraram inequivocamente a prática dos crimes por que vinham acusados os arguidos.

8ª - A decisão recorrida não pode ser mantida, pois existe erro notório na apreciação da prova indiciária - 410º-2-c) do CPP».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Nos mesmos termos se pronunciou o Exmº P.G.A.

Refere que não estando indiciados os pressupostos dos crimes imputados a condenação dos arguidos em julgamento era muito improvável pelo que, nos termos da lei, a não pronúncia se impunha.

Cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P. o assistente reafirmou a tese do recurso.

4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

6.

            Dos autos resultam os seguintes elementos, relevantes à decisão:

– o assistente, militar da GNR, elaborou auto de notícia onde relata os seguintes factos:

  • em 24-6-2012 estava no Largo de Santo Amaro, Soito, onde decorria um baile mas não estava de serviço;
  • cerca das 4h00 foi abordado pelo arguido A... que, sem motivo, em tom elevado e ameaçador lhe disse «já ouvi dizer que és um filho da puta, que não vales nada, andas para aí a multar pessoas, és um cabrão de merda»;
  • o assistente disse-lhe para se acalmar e se afastar mas ele continuou a dizer «és um cabrão de merda, um filho da puta, tenho muitos conhecimentos e vou-te foder a vida, vou-te meter a trabalhar em madeira»;
  • o assistente disse-lhe, de novo, que moderasse o comportamento e este respondeu «tas fodido» e depois sentou-se num banco e ficou a olhar provocadoramente fazendo um sorriso irónico;
  • depois disse de novo «és um palhaço, um grande filho da puta», ao mesmo tempo que se lhe dirigiu com uma garrafa de cerveja na mão;
  • quando chegou junto do assistente o arguido fez um movimento com a mão que tinha a garrafa com intenção de agredir;
  • o assistente tentou defender-se das repetidas tentativas de murros e pontapés por parte do arguido mas foi agarrado pelos arguidos B..., C... e D... e estes e o arguido A... deram-lhe socos e murros na cabeça;
  • depois todos os arguidos o derrubaram e quando estava no chão deram-lhe pontapés;
  • D... pôs o joelho em cima do rosto do assistente, fazendo força contra o chão;
  • em resultado das agressões sofreu hematomas no rosto, hematomas e escoriações no braço esquerdo e escoriações no pescoço e braço direito;
  • os arguidos sabiam que o assistente era militar da GNR e que prestava serviço no posto da Vila do Soito;

- indicou como testemunhas L..., O...e P...;

- submetido a exame médico em 26-6-2012 o assistente apresentava as seguintes lesões:

  • face – escoriação com 2 x 2 cm na região frontal à esquerda junto da arcada supra ciliar; escoriação com 2 x 1 cm na arcada supra ciliar esquerda; equimose palpebral superior e inferior à esquerda; pequena escoriação na região zigomática esquerda; escoriação no sentido transversal com 1 cm na região frontal direita;
  • membro superior direito – escoriação com 1 cm no sentido transversal no 1/3 inferior e interno do braço;
  • membro superior esquerdo – 4 equimoses confluentes entre si numa área de 9 x 2,5 cm no sentido longitudinal no 1/3 médio na face Antero interna do braço; escoriação no sentido transversal com 7 cm de comprimento no 1/3 superior do antebraço junto à flexura do cotovelo; equimose com 2 cm de diâmetro na face supero externa do ombro;

- quando foi ouvido L... declarou:
  • ser militar da GNR e prestar serviço no posto do Soito;
  • esteve de serviço no dia 23 com o E..., até às 24 h;
  • naquele fim de semana estavam os seus amigos N... e M...;
  • depois do trabalho foi com o E... e os amigos a um bar do Soito, onde já estavam os colegas O...e P...;
  • na festa cerca das 4 h o E... disse-lhe que A..., que não conhecia de lado nenhum, o estava a injuriar e ameaçar;
  • entretanto o referido indivíduo aproximou-se do E... com uma garrafa de cerveja na mão com o intuito de o agredir, o que não conseguiu;
  • gerou-se confusão e o E... é agarrado pelos arguidos B..., C... e D...;
  • o depoente tentou intervir mas foi afastado por C..., que lhe disse “deixa estar que eles resolvem o assunto”;
  • afastou-se uns metros e quando se aproximou de novo viu o E... no chão a ser agredido com socos, murros e pontapés na cabeça pelos arguidos: o B... dava-lhe pontapés na cabeça, o D... estava com o joelho em cima do seu rosto, o C...segurava-o e o A... estava em cima do E... a agredi-lo;
  • quando chegou ele e os amigos tiraram os arguidos de cima do E...;
  • declarou que conhecia os arguidos por serem bombeiros voluntários no Soito;
  • declarou que todos sabiam a profissão do depoente, do assistente e de O...e P...;
  • o D... era o mordomo da festa;

- M... foi ouvido em inquérito e declarou:
  • ser amigo de L... e de N... desde criança;
  • como há muito tempo que não estavam junto combinou com o N... encontrarem-se com o L...depois deste sair de serviço;
  • às 0h15 do dia 24 encontraram-se e com o L... ia um colega, de nome E...;
  • foram a um bar do Soito e lá estavam mais dois colegas deles da GNR;
  • estavam na festa e por volta das 3h o depoente, o N... e o L...abeiraram-se do E... para se despedirem e este disse “aquele indivíduo está só a insultar-me”;
  • quando o E... indicou ao L... quem era o indivíduo este levantou-se e dirigiu-se ao David com uma garrafa de cerveja na mão direita, com o intuito de o agredir;
  • o E... defendeu-se e envolveram-se os dois;
  • o depoente e os amigos tentaram separá-los mas chegaram mais indivíduos e um deles, que vestia uma farda de bombeiro, empurrou o depoente e disse “sai daqui senão também levas”;
  • o depoente afastou-se e os referidos indivíduos atiraram o E... ao chão e deram-lhe murros e pontapés na cabeça;
  • um dos indivíduos, que tinha visto a ajudar na organização da festa, tinha a cabeça do E... entre as pernas enquanto o indivíduo que começou a briga lhe batia;
  • viu baterem no E... o indivíduo que começou a briga e aquele que antes tinha visto nos grelhadores a assar carne;
  • ficou com a noção que os indivíduos sabiam que o E... era da GNR;

- N... foi ouvido e declarou:
  • ser amigo de infância de L... e M...;
  • combinou com os amigos encontrarem-se depois do L... sair do serviço;
  • pelas 0h15 do dia 24 os três e um amigo do L..., de nome E... que conheceu nessa noite, foram a um bar no Soito onde estavam mais dois colegas da GNR;
  • cerca das 3h o depoente, o M... e o L... foram-se despedir do E... e este disse, indicando, “aquele indivíduo está só a insultar-me”;
  • nesse momento o indivíduo em causa dirige-se ao E... com uma garrafa de cerveja na mão para o agredir;
  • o E... defendeu-se e os dois envolveram-se;
  • apareceram mais indivíduos que atiraram o E... ao chão;
  • quando o E... estava no chão um indivíduo que tinha visto antes a ajudar na organização da festa, a grelhar carne, tinha a cabeça do E... entre as pernas e aquele que tinha começado a briga estava a bater-lhe;
  • um indivíduo que tinha uma farde de bombeiro estava a impedir as pessoas de se aproximarem e acabarem com a briga;
  • ficou com a noção que os indivíduos sabiam que o E... era da GNR;

- O...declarou:
  • é militar da GNR e presta serviço no Posto do Soito desde 2011;
  • cerca das 23h30 do dia 23-6-2012 encontrou-se com o colega P... no bar “ X...”, sito no Soito;
  • pelas 0h30 do dia 24 chegaram os colegas E... e L...e mais dois amigos do L...;
  • depois foram todos para o baile e aí esteve quase sempre com o P...;
  • cerca das 4h30 apercebeu-se de uma briga;
  • dirigiram-se para o local com intenção de separar os indivíduos e foi quando se apercebeu que se tratava do E... e do A...;
  • o L... estava a tentar separá-los e depois de o ter conseguido intervieram o B..., o C... e o D... que, juntamente com o A..., derrubaram o E...;
  • quando estava no chão o E... foi agredido com socos e murros pelo A..., que estava em cima dele, enquanto o D... tinha um joelho em cima da cabeça do E... para o segurar;
  • viu o B... desferir dois pontapés no E..., na zona do tronco;
  • não viu o C... bater;
  • reparou nisso porque ele tinha vestida a farda de bombeiro;
  • ele e os colegas intervieram e separaram os indivíduos;
  • é natural do Soito, conhece todos os arguidos;

- P... foi ouvido e disse:
  • é militar da GNR e exerce funções no posto do Soito;
  • às 23h30 do dia 23 encontrou-se com o colega O...no bar “ X...”, do Soito;
  • pelas 0h30 do dia 24 chegaram os colegas E... e L..., mais dois amigos deste;
  • pouco depois foram todos para o baile que decorria no Largo do Santo Amaro;
  • esteve sempre com o P... mas por volta das 4h30 aperceberam-se de uma briga;
  • dirigiram-se para o local para separarem as pessoas e quando chegaram viram que se tratava do E... e do A...;
  • o L... e outras pessoas já estavam a tentar separá-los;
  • após terem conseguido o B..., C... e D... intervieram e agarraram o E... para ele ser mais facilmente agredido;
  • as agressões recomeçaram e os quatro arguidos derrubaram o E...;
  • ficou a agarrar o C... e quando se voltou viu o E... no chão e viu o B... dar-lhe dois pontapés, no tronco ou na cabeça;
  • não conhecia o A... e os outros são bombeiros voluntários no Soito

- A..., B..., C... e D... foram constituídos arguidos em 6-12-2012 e nessa mesma data interrogados, tendo todos eles declarado não prestar declarações sobre os factos;

- em 19-12-2012 A... apresentou queixa contra E...pelos seguintes factos:

  • cerca das 4h do dia 24-12-2012, lhe ter dado murros, socos e pontapés;
  • soube no momento da apresentação da queixa que o denunciado era soldado da GNR, que não estava fardado nem em serviço;
  • foi socorrido pelos bombeiros B..., C... e D..., porque o denunciado continuava a bater-lhe de forma violenta;
  • o denunciado disse, depois, que os ia foder a todos quando os apanhasse na estrada;
  • indicou como testemunhas D..., Q..., C..., R... e B...;

- em 28-12-2012 B... apresentou queixa contra E...pelos seguintes factos:
  • cerca das 4h do dia 24-12-2012 estava na festa do Soito e presenciou o E... a agredir o A...;
  • separou-os e depois disso o E... deu-lhe um murro na face e disse a todos os presentes que os ia foder quando os apanhasse na estrada porque era GNR;
  • indicou como testemunhas D..., Q..., C..., R... e A...;

- A... e B... prestaram declarações sobre a queixa que apresentaram;

- Q... foi ouvido e declarou:
· na festa de S. João apercebeu-se de uma confusão, virou-se e viu várias pessoas a tentar separar o assistente e o A...;
· não viu quem começou;
· o assistente libertou-se, foi por trás do A... e deu-lhe um murro na face direita;
· voltaram a agarrar-se e o assistente caiu no chão, juntamente com outras pessoas que lhe caíram em cima;
· nenhum dos outros arguidos agrediu ou agarrou o assistente;

- R... declarou:

  • na festa de S. João, por volta das 3h00, ouviu o A... dizer “já me deu, já me deu”;
  • virou-se e viu várias pessoas a separarem o A... de um indivíduo que depois veio a saber era o assistente;
  • este conseguiu libertar-se e agarrou nos cabelos do A... e começou a puxá-los, mas não o viu dar murros;
  • não o largava e foi difícil separá-los;
  • não viu quem começou a briga;
  • nenhum dos outros arguidos agarrou ou agrediu o assistente;
  • a briga foi apenas entre o A... e o assistente;

- findo o inquérito o Ministério Público arquivou as queixas apresentadas por A... e B... contra E...e deduziu acusação contra  A..., B..., C... e D... imputando a todos a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e a A... mais o crime de injúrias agravadas;

- os arguidos requereram a abertura de instrução e requereram a audição das testemunhas F..., G..., entretanto prescindida, H...e J...;

- F..., H...e J... foram ouvidos em 8-4-2014 e declararam:

F...:

  • é do Soito e não conhece o assistente;
  • durante a festa de 2012 por volta das 2h/2h30 da manhã entraram os elementos da GNR e pediram cerveja;
  • estavam embriagados;
  • não os ouviu conversar com os arguidos;
  • depois retirou-se e não viu mais nada;

G...:
  • é natural do Soito, onde se desloca quase todos os fins de semana, reside na Guarda e conhece o assistente;
  • esteve na festa do S. Jão em Junho de 2012 e os arguidos também lá estavam;
  • estava com o A...e de repente, sem mais nem menos, um GNR, que estava à civil e que sabia que fazia serviço no Soito, agrediu-o por trás;
  • depois enrolaram-se os dois;
  • o indivíduo ficou por cima, estava muito alterado, o depoente tentou separá-los mas até ficou com medo dele;
  • tentou tirá-lo de cima do A...e não conseguiu, depois veio o C... também não conseguiu, depois veio o B... e também não conseguiu e depois veio o D... e conseguiu;
  • ele estava com amigos e estavam todos completamente alcoolizados;
  • ninguém dirigiu aos tais indivíduos expressão alguma;

J...:
  • na noite da festa conheceu o assistente, porque ele estava lá;
  • os arguidos também lá estavam;
  • o A...estava ao balcão, o assistente veio por trás e deu-lhe um murro;
  • o A...virou-se e o outro agarrou-se logo a ele e não o largou mais;
  • não viu nada que justificasse aquela atitude;
  • o A...tentou livrar-se dele e não conseguia e enquanto    tentava também batia;
  • o assistente e os amigos beberam muito.

- a final foi proferida a seguinte decisão instrutória:

«O ofendido E...apresentou queixa contra o arguido A...por no dia 24 de Junho de 2012, no largo de Santo Amaro no Soito, quando decorria um baile tradicional, por volta das 04h00, ter sido abordado pelo arguido o qual, com voz elevada e ameaçadora lhe dirigiu as expressões: “já ouvi dizer que és um filho da puta, que não vales nada, andas aí multar as pessoas, és um cabrão de merda”, tendo perante tal atitude tentado serenar os ânimos, uma vez que não o conhecia de lado nenhum e não entendia o facto daquilo estar a acontecer, tendo posteriormente o arguido dirigido as expressões “és um cabrão de merda, um filho da puta, tenho muitos conhecimentos e vou-te foder a vida, vou-te meter a trabalhar na Madeira”, “tás fodido”, “és um palhaço, um grande filho da puta”, ao mesmo tempo que se dirigia ao ofendido, com uma garrafa, com intenção de o agredir, tentando o mesmo repelir a agressão, com movimento dos braços, não deixando concretizar a mesma.

Mais refere o ofendido que nesse instante tentou defender-se das repetidas tentativas de socos e pontapés, por parte do arguido A..., e que pouco depois o ofendido foi afastado por B..., C... e D..., parecendo-lhe no início que estavam a evitar os confrontos, porém, os mesmos encontravam-se com a intenção de o agarrar, para assim ser facilmente agredido, tendo sido agredido com socos e murros na cabeça por parte dos mesmos, que o derrubaram para o chão, tendo sido agredido por todos os arguidos com socos e pontapés.

Mais referiu que após ter passado algum tempo no solo, as pessoas que o acompanhavam conseguiram impedir que as agressões continuassem.

Acrescentou que nunca tinha visto o arguido A..., nem tinha tido qualquer situação com o mesmo, mas que este demonstrou que sabia perfeitamente qual a sua profissão e que os outros arguidos tinham perfeito conhecimento do seu estatuto porque prestam serviço nos Bombeiros Voluntários do Soito, instituição com quem interage por motivos profissionais.

Inquirido em sede de inquérito o ofendido reiterou o que havia declarado aquando da apresentação da queixa, especificando os ferimentos sofridos, bem como a necessidade de receber tratamento médico.

Em sede de inquérito foram inquiridas acerca dos factos, as testemunhas L...(guarda da GNR, no Posto Territorial do Soito), M... (Técnico de manutenção Industrial, amigo das testemunhas L...e N...), N... (fisioterapeuta, amigo das testemunhas L...e M...), O...(guarda da GNR, no Posto Territorial do Soito), P... (guarda da GNR, no Posto Territorial do Soito), Q... (Técnico Superior na CM do Sabugal) e R... (Industrial de hotelaria).

As testemunhas L..., O...e P... (todos militares da GNR) prestaram declarações idênticas entre si e em consonância com os factos relatados pelos ofendido, no que diz respeito às agressões de que o ofendido foi alvo e quanto ao facto dos arguidos saberem que o ofendido era guarda da GNR.

Já no que respeita às expressões que o ofendido imputa ao arguido A...nada disseram.

As testemunhas M... e N... prestaram depoimento idêntico entre si e em consonância também com o depoimento do ofendido, no que respeita às agressões sofridas pelo mesmo. Quanto ao facto dos arguidos saberem que o ofendido era militar da GNR, referiram que consideram que os arguidos tinham conhecimento de tal facto, desconhecendo se foi por causa do mesmo que praticaram os factos. Já relativamente às expressões dirigidas ao ofendido a nada assistiram.

Foram ainda inquiridas em sede de inquérito as testemunhas Q... e R....

A primeira referiu que no dia, hora e local em causa nos autos, também se encontrava nas festas de São João, no Soito, tendo visto, por volta das 04h00, várias pessoas a separarem o arguido A...e o guarda E..., que se encontrava fora de serviço. Referiu ainda que o guarda E... se conseguiu libertar e foi pela parte de trás do arguido A...desferiu-lhe um murro e voltaram a agarrar-se mutuamente, tendo o guarda E... caído ao chão juntamente com outras pessoas, verificando-se uma confusão muito grande, encontrando-se o arguido A...e o guarda E... bastantes exaltados, tendo sido necessária a intervenção de diversas pessoas para os separar novamente.

Mais declarou que a briga foi só entre o ofendido e o arguido A..., não tendo visto quem começou a mesma e que todos os outros intervenientes se limitaram a a separa-los e a terminar a confusão.

Por fim, referiu que sabia que o ofendido era guarda da GNR do Soito, contudo nunca o tinha visto em cafés ou bares antes do sucedido.

A testemunha R... referiu que no dia e local em causa nos autos, também se encontrava nas festas de São João, no Soito, tendo visto, várias pessoas a separarem o arguido A...e outro individuo que desconhecia, tendo este conseguido libertar-se e agarrado o arguido.

Referiu que a briga foi só entre o arguido A...e uma pessoa de nome E..., não tendo visto quem começou, tendo a intervenção dos outros arguidos sido apenas de separar aqueles e terminar a confusão.

Consta ainda nos autos relatório de exame realizado ao ofendido de onde constam as lesões apresentadas pelo mesmo (fls.18 e seguintes).

Os arguidos em sede de inquérito declararam não desejarem prestar declarações.

Este é o quadro probatório constante nos autos relativamente aos factos em análise, até ser proferido despacho de acusação.

Cumpre, então, apurar se os indícios existentes que conduziram à acusação foram afastados pela prova produzida em instrução.

*

Em sede de instrução foram inquiridas as testemunhas F... (Sargento da Guarda Fiscal, reformado), H...(empresário na área do turismo) e J... (empresário), todos conhecidos e amigos dos arguidos e residentes ou naturais do Soito.

Estes são, assim, os elementos probatórios dos autos.

*

Procedamos, então à análise critica de tais elementos probatórios, nomeadamente dos depoimentos testemunhais prestados em sede de instrução.

Em sede de instrução prestou depoimento a testemunha F..., a qual, declarou claramente que não assistiu aos factos, referindo que apenas presenciou que por volta das 02h30 o ofendido e os seus colegas entraram na festa de São João que decorria no Soito, dando nas vistas, por pedirem logo uma grade de cervejas, tendo demonstrado um comportamento fora do comum, não tendo assistido a qualquer facto em causa nos autos, por ter saído do local antes dos mesmos ocorrerem.

Já a testemunha H...prestou um depoimento claro e detalhado, referindo que é natural do Soito, deslocando-se a tal localidade com frequência, tendo estado presente na festa de São João em 2012, como sempre assiste a todas as festas.

Referiu detalhadamente que estava com o arguido A..., que pediu uma rodada, quando apareceu um indivíduo à civil (que mais tarde soube que era o guarda E...) o qual agrediu o arguido A.... Esclareceu que depois enrolaram-se os dois, tentou separa-los sem sucesso, pelo que teve o auxílio dos arguidos C..., B... e D....

Esclareceu ainda que antes da referida situação o ofendido e as pessoas que o acompanhavam fizeram “palhaçadas”, nomeadamente, deitaram-se numa banheira que se encontrava no recinto, manifestando um comportamento pouco normal, pelo que tanto ele como o arguido A...se riram da situação. Esclareceu ainda de forma clara e coerente que esteve sempre perto do arguido A...e que o mesmo apenas se riu não tendo dirigido qualquer expressão ao ofendido.

Referiu ainda que no meio da confusão é possível que o A...tivesse dado pontapés ao ofendido.

Já a testemunha J... referiu ser mordomo da festa em causa nos autos, declarando de forma clara e coerente que os factos se passaram como referido pela anterior testemunha.

Disse que o ofendido e os colegas já tinham bebido bastantes, mas como organizador da festa o que queria era que bebessem bastante.

Procedamos, então à análise critica de tais elementos probatórios.

Do confronto da prova existente nos autos, relativamente ao crime de injuria temos apenas as declarações do ofendido, as quais não são corroboradas por qualquer outro meio de prova produzida quer em sede de inquérito, quer sem sede de instrução, sendo inclusivamente contrariadas pela testemunha H...que prestou um depoimento claro e coerente.

Quanto ao crime de ofensa à integridade física imputadas aos arguidos B..., C... e D... resultou que os depoimentos prestados pelo ofendido e as testemunhas por si arroladas e o depoimentos das restantes testemunhas inquiridas em sede de inquérito e em sede de instrução são completamente contraditórios não existindo, quer em sede de inquérito, quer agora em sede de instrução, qualquer outra prova credível, de que os factos tenham ocorrido conforme qualquer uma das versões.

Perante a análise de toda a prova constante nos autos, fica a dúvida inultrapassável acerca da verificação dos factos, ou seja, acerca da prática dos mesmos por parte dos arguidos B..., C... e D..., dúvida que não permite formular um juízo de indiciação suficiente da prática pelos mesmos de um crime de ofensa à integridade física.

Assim, atento o princípio in dubio pro reo, emanação do princípio da presunção da inocência, aplicável não apenas na fase de julgamento, mas também nesta fase de instrução, a dúvida inultrapassável tem que ser valorada a favor dos arguidos.

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No que respeita ao crime de injúria agravada imputado ao arguido A...tendo em consideração o atrás referido, consideramos não existirem indícios suficientes do mesmo ter praticado factualidade susceptível de consubstanciar o referido ilícito criminal.

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No que respeita ao crime de ofensa à integridade física imputado ao arguido A...consideramos que a prova produzida, agora, em sede de instrução, atrás melhor explicitada, não permite abalar os indícios que existiam na fase de inquérito, pelo que deve o mesmo ser pronunciado.

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Em face do exposto, julgo parcialmente procedente o requerimento de abertura de instrução e:

- decido não pronunciar o arguido A..., pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo art.184.º do Código Penal.

- decido não pronunciar os arguidos B..., C... e D..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.145.º, n.º1, a) e n.º2 do Código Penal.

- decido pronunciar para julgamento, em processo comum com intervenção de Tribunal Singular, o arguido A..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art.145.º, n.º1, a) e n.º2 do CP, pelos factos constantes da acusação pública de fls.212 a 219».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação resulta que a questão a decidir respeita à existência ou inexistência de indícios dos crimes imputados aos arguidos na acusação.


*

            Nos termos dos art. 286º, nº 1, e 287º, nº 1, al. b), e nº 2, do C.P.P. «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Portanto, a instrução destina-se:

a) ou à comprovação, judicial, da decisão de deduzir acusação;

b) ou ao controlo, judicial, da decisão de arquivamento tomada pelo Ministério Público.

Esta fase processual compreende a prática dos actos necessários à recolha dos indícios suficientes da prática, pelo agente, de factos geradores da aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança e culmina com a decisão instrutória, sendo que a prolação de despacho de pronúncia dependerá do juízo a fazer sobre a probabilidade de condenação resultante da submissão da causa a julgamento: em caso de probabilidade razoável de condenação o juiz pronunciará o arguido; caso contrário, profere despacho de não pronúncia - art. 308º, nº 1, do C.P.P.

            Vejamos, então.

            A decisão recorrida pronunciou, apenas, o arguido A... pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, do art.145º, nº 1, a), e 2 do Código Penal, pelos factos constantes da acusação pública decidindo, quanto ao mais, não haver indícios da prática do crime de injúria.

            Relativamente a B..., C... e D... lê-se na decisão que da prova resultou uma dúvida inultrapassável acerca da prática dos factos imputados a estes arguidos pelo que, e em respeito pelo princípio in dubio pro reo, não foram os mesmos pronunciados.

            Da prova produzida, que nos dispensamos de repetir, de facto há uma tese segundo a qual os arguidos praticaram determinados factos que, depois, o Ministério Público acolheu na acusação que lhes moveu.

            Contrariamente uma outra tese, acolhida na decisão recorrida, relevou a insegurança da prova produzida, que gerou a incerteza da prática dos factos e, por via disso, a não pronúncia.

            Como diz a lei a decisão de pronunciar assenta na circunstância de, perante as provas, a condenação ser mais provável do que a absolvição.

Esta conclusão derivará do conhecimento das provas e, naturalmente, da sua análise e valoração, análise que se faz, também, a luz do art. 127º do C.P.P., que diz que excepto quando a lei disser o contrário «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

            Significa isto, como repetidamente afirmamos, que na actividade de apreciação da prova o juiz está liberto das amarras que a prova tarifada impõe e executa essa tarefa fazendo apelo à sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

Sendo certo que a reconstituição exacta dos factos é impossível, porque o juiz não lhes acede – veja-se este caso paradigmático, onde todas as testemunhas, jurando falar verdade, apresentam “verdades” incompatíveis -, o processo também não se basta com a verdade formal, apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem.

O que se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela e verdade material porque verdade judicial, obtida mas de forma processualmente válida [1].

Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação livre da prova.

No caso dos autos o foco de análise reside na prova por declarações, cuja valoração depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa, da motivação e do interesse de cada um nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criação de uma realidade virtual.

A convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado, não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios, não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados.

Mas a liberdade de apreciação não é arbitrariedade. O juiz terá sempre uma margem de liberdade mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo[2].

Produzidas as provas cabe, então, ao juiz apreciá-las, apreciação esta subordinada à lógica, à psicologia, às máximas da experiência, e tirar, a final, as conclusões, ou seja, formar a tal convicção de que fala a lei. 

É a qualidade da prova, em contraponto com a quantidade, que tem o papel decisivo na formação da convicção do julgador.

E trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que mais não é do que a opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir, terá ele que fazer a sua opção, de acordo com as regras enunciadas.


*

            Não ignoramos a disparidade que existe entre os depoimentos prestados ao longo do processo, assim como não ignoramos o princípio in dubio pro reo, princípio de decisão da matéria de facto que impõe a decisão favorável quando não se forme a convicção absoluta da prática dos factos desfavoráveis pelo agente.

            Em sede de instrução este princípio determina que a insegurança dos indícios, decorrente da inexistência de prova firme, levará à não pronúncia.

            Não obstante o que dissemos entendemos que o processo contém prova que indicia, com suficiência, a prática pelos arguidos B..., C... e D... dos factos imputados ao arguido A....

            E isto socorrendo-nos, precisamente, das regras da vida, da experiência, da verosimilhança.

            Passamos a explicar.

            Num primeiro momento, quando apenas corria o inquérito aberto na sequência do auto levantado pelo assistente, nenhum dos arguidos prestou declarações.

E prestar declarações não significa apenas confessar factos desfavoráveis. Significa isso, mas significa também negar, assim como significa narrar a sua versão da história, corroborada, ou não, com prova que eventualmente disponha.

Os arguidos não confessaram os factos, mas também não contaram a sua versão do sucedido e nem sequer indicaram testemunhas para que estas contassem o que se tinha passado ou, pelo menos, o que soubessem, testemunhas estas que, como se viu, existiam.

            Pode dizer-se, e bem, que esta atitude não os pode prejudicar.

            Claro que não pode prejudicar mas o que é facto é que a atitude processual mudou.

E mudou depois, meses depois dos factos, de alguns dos arguidos terem decidido apresentar queixa contra o assistente imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de configurar um crime de ofensa à integridade física.

E depois desta queixa os arguidos prestaram declarações e indicaram testemunhas que, como se viu, declararam, em síntese, que nada do que o assistente e testemunhas por ele apresentadas disseram correspondia à verdade.

Esta evolução do processo gerou em nós a firme convicção que tudo isto correspondeu a uma estratégia processual, assente na construção de uma ficção que, no início, ainda não estava suficientemente delineada. Por isso aguardaram o desenvolvimento do processo.

Não obstante foi proferida acusação.

E perante isto novas provas foram apresentadas pelos arguidos, curiosamente de conteúdo diferente das inicialmente apresentadas.

            Face ao exposto a prova apresentada pelos arguidos não nos convenceu da versão apresentada, por um lado, e por isso não conseguiu por em causa a prova que fundamentou a acusação, isto no que aos factos relativos às ofensas respeita, pois que quanto ao mais a prova produzida não foi de molde a suportar a configuração de indícios da prática, pelo arguido A..., dos factos relativos às injúrias.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a pronúncia dos arguidos B..., C... e D... pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, relativos ao crime de ofensa à integridade física qualificada, do art. 145º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal, também imputado ao arguido A....

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 28 de Janeiro de 2015

(Olga Maurício - relatora)

                              

(Luís Teixeira - adjunto)


[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.
[2] Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.