Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
726/11.3TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
Data do Acordão: 02/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ART. 344.º DO CPP
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 344.º DO CPP
Sumário: I - Não existe dispositivo legal que atribua força probatória plena às declarações do arguido, muito menos quando se trata de “confissão” de factos que lhes são favoráveis e não têm apoio em qualquer outro meio probatório, estando as suas declarações sujeitas ao critério geral da apreciação livre e motivada.

II - Não existe norma ou princípio que imponha a aceitação das declarações do arguido em bloco ou em todas as afirmações que profira, mormente na parte em que constituem puro subjectivismo e são infirmadas por outros meios de prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 726/11.3TACBR, do extinto 2º Juízo Criminal de Coimbra, realizado o julgamento, foi proferida a sentença de fls. 333 a 345 com o dispositivo seguinte:

«Por tudo quanto ficou exposto, o Tribunal:

1.Condena o arguido A... como autor material um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo artº 360º nºs 1 do Cod. Penal, na pena de 4 mês de prisão.

2.Condena o arguido B... como autor material um crime de falsidade de testemunho, p.p. pelo artº 360º nºs 1 do Cod. Penal, na pena de 4 mês de prisão.

3.Condena igualmente os arguidos em 2 UCs de taxa de justiça: cfr. art. 512º nº1, 513º nº1 do C.P.P., art. 8º nº9 do R.C.J e Tabela III anexa ao RCJ.

4. Notifique e deposite (artigo 372º, nº 5 do Código de Processo Penal).»

2. Inconformado, o arguido B... veio interpor recurso da sentença, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«Conclusão Um. Julgou mal o douto Tribunal recorrido, quanto à matéria factual.

Conclusão Dois. O douto Tribunal recorrido deveria ter dado como provado que o Arguido B... prestou falso testemunho em audiência final, tolhido por medo motivado por ameaças de morte, que sofreu.

Conclusão Três. Devem ser aditados ao elenco dos factos provados os seguintes pontos:

15 – O Arguido B... , antes de prestar falso testemunho, recebeu ameaças de morte.

16 - O Arguido B... teve medo.

17 - O Arguido B... prestou falso testemunho devido ao medo que sofria, criado por tais ameaças de morte.

Conclusão Quatro. O falso testemunho prestado é lícito, ao abrigo do art. 34º, do Código Penal, pois o perigo era actual, ameaçava a vida do aqui Arguido B... , vida que é um interesse juridicamente protegido, não foi voluntariamente provocada pelo aqui Arguido B... a situação de perigo, o direito à vida é manifestamente superior ao interesse na realização da justiça (interesse protegido pela norma pela qual o Arguido foi condenado), e é razoavelmente de impor ao Estado o sacrifício do seu interesse na realização da justiça em função do direito à vida do Arguido B... ;

Conclusão Cinco. Deve ser revogada a sentença em crise e ser substituída por uma outra que absolva o Arguido, ao abrigo do art. 34º, do Código Penal, que o douto Tribunal recorrido ao não aplicar violou.

Com o que o douto Tribunal fará Justiça.»

3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), concordando com a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                                      *

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida.

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«No dia 17 de Dezembro de 2009, pelas 14 horas e 30 minutos, o arguido A... foi ouvido como testemunha no Gabinete de Investigação Criminal da PSP de Coimbra, no âmbito do processo 32/09.3TACBR, em que eram arguidos D... e E... , este último também conhecido por “ DD... ”.

Ali, após ser devidamente advertido do dever que lhe incumbia de responder com verdade, prestou o depoimento que se encontra a fls. 3 destes autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido, declarando designadamente que:

“(…) deslocava-se com alguma frequência a casa do D... , a quem vendia também com alguma frequência artigos provenientes de furtos no interior de viaturas que praticava. Pretende esclarecer que mantinha com o mesmo uma relação de “amizade”, uma vez que ele lhe dava com alguma assiduidade comida e bebida.

Relativamente ao relatório de vigilância de fls. 88, confirma que nessa data tinha guardado um computador portátil, que furtara de uma viatura, no interior da fábrica ideal. Contactou então com o D... , através do telemóvel, combinando a venda do computador. Deslocaram-se os dois para o fim da Rua Simões de Castro, onde após o ter ido buscar, o entregou ao D... e recebeu a quantia de 100 euros.

Relativamente à certidão constante e fls. 316, confirma que efetivamente nessa data, após ter retirado um computador portátil do interior de uma viatura, da qual não se recorda de características, ligou para o telemóvel de um indivíduo seu conhecido de nome E... , que tem a alcunha de “ DD... ”, com quem combinou a venda do computador. Combinaram então o encontro junto ao “pingo doce”, na baixa de Coimbra, tendo-se posteriormente deslocado para junto da viatura do DD... , que se encontrava estacionada na Rua Simões de Castro, local onde procederam à troca, pela quantia de 120 € (…)

O produto desses furtos era quase na sua totalidade vendido ou ao D... ou a DD... , consoante quem estava disponível (…)”.

Por sua vez, o arguido B... foi ouvido no âmbito do mesmo processo, também na qualidade de testemunha, no dia 2 de Abril de 2009, pelas 11 horas e 20 minutos, no Gabinete de Investigação Criminal da PSP de Coimbra, tendo prestado o depoimento junto a fls. 22 destes autos, após ter sido advertido do dever que lhe incumbia de responder com verdade, esclarecendo designadamente que:

“(…)Relativamente ao “ D... ”, conforme já referiu, as transações eram inicialmente combinadas pelo telefone, e normalmente eram efetuadas no patamar do prédio que indicou nas diligências externas que efetuou com a Policia, no ... – Coimbra.

O “ D... ” apenas comprava computadores portáteis, telemóveis e máquinas fotográficas, pagando cerca de 100 € (cem Euros) por cada computador, e entre os 30 € (trinta Euros) e os 50 € (cinquenta Euros) por cada máquina fotográfica ou telemóvel. (…)

Pretende acrescentar que, em data que não se recorda em concreto, também vendeu ao “ D... ” uma arma de fogo, de pequeno calibre, presume ser uma 6,35 da qual desconhece a marca e modelo, e que apenas descreve como sendo toda preta, pelo valor de 80 € (oitenta Euros) e que tinha retirado do interior de uma residência na Zona de S. Martinho do Bispo – Coimbra.

(…)

Relativamente ao “ DD... ”, acrescenta que o mesmo, na altura em que lhe vendia artigos, residia no edifício que indicou à Polícia, na zona da “ ... ” (…)

O “ DD... ” também costumava ficar apenas com os computadores portáteis, telemóveis e máquinas fotográficas digitais e pelos quais pagava sensivelmente os mesmos valores que o “ D... ”.

(…)

Nos contactos telefónicos que mantinha tanto com o “ DD... ” como com o “ D... ”, informava-os apenas que tinha artigos para vender, não discriminando quais e quantos, sendo então marcada uma hora para se deslocar aos dois locais acima referidos, para efetuarem a transação. (…)”

Acontece que, no dia 11 de Março de 2011, após as 14h40m, no Palácio da Justiça desta cidade, os arguidos A... e B... foram ouvidos na qualidade de testemunhas na audiência de julgamento realizada no âmbito do referido processo nº 32/09.3TACBR, que correu termos na 2ª Secção da Vara de Competência Mista de Coimbra, na qual se encontravam a ser julgados D... e E... .

Nessa sessão os arguidos, após terem sido previamente advertidos pelo Meritíssimo Juiz das consequências penais em que incorreriam caso faltassem à verdade e após prestarem juramento legal, afirmando que juravam por sua honra responder com verdade ao que lhe fosse perguntado, prestaram o depoimento que se encontra transcrito a fls. 96 ss. destes autos, quanto ao arguido A... , e a fls. 74 ss. destes autos, quanto ao arguido B... , cujo teor se dá aqui por reproduzido.

Nesse dia, o arguido A... negou que alguma vez tivesse tido algum negócio com D... e E... e que nunca entregou um computador a este último.

Efetivamente, este arguido disse, designadamente, o seguinte:

“Procurador: Então, alguma vez teve algum relacionamento de negócios com algum dos Arguidos?

A... : Não.

Procurador: (…) Está aqui referenciado como tendo uma vez vendido um computador ali ao Arguido E... (…)

A... : Não, isso é mentira, eu nunca lhe vendi nada.

(…)

Procurador: Sabe quem é o senhor E... ?

A... : Não estou a ver.

Procurador: Está ai atrás de si! Ó homem

A... : É ele?

Procurador: Sim.

A... : Não sei. A ele nunca lhe entreguei nada.

Procurador: Ele diz que sim.

A... : Eu não.

(…)

A... : Eu nunca vendi nada aqueles senhores, nem a um nem a outro! (…)”

Por sua vez, o arguido B... declarou em sede de audiência de julgamento que conhecia D... apenas de vista e que nem sequer conhecia E... .

O referido arguido disse, designadamente:

“(…)

Procurador: E o… o…, o senhor D... também… então era seu vizinho, que ele vive ali na zona, no ... ?

B... : É o que eu estou a dizer, eu conheço de vista, mas não o conheço pessoalmente.

(…)

Procurador: O senhor terá vendido ao senhor D... .

B... : Ah, não, não, não!

Procurador: Não?

B... : Não

Procurador: Diz-se aqui que pelo menos que vendeu três computadores portáteis daqueles que o senhor tinha furtado em residências.

B... : Ah, não, não é, não.

(…)

Procurador: E uma arma, uma arma…

B... : Também não…

(…)

Procurador: O senhor E... , também não conhece, o outro Arguido?

B... : Não.

Procurador: Também não conhece?

B... : Não, não.

Procurador: Nunca esteve com ele?

B... : Não.

(…)”

Os depoimentos prestados por cada um dos arguidos em sede de inquérito e depois em sede de audiência de julgamento são contraditórios entre si, sendo que um deles se mostra desconforme com a realidade.

Ao apresentarem, em sede de audiência de julgamento, uma versão dos factos diferente daquela que relataram aquando da sua inquirição pela PSP, os arguidos atuaram com o propósito de – numa das ocasiões - faltar à verdade e assim obviar à boa administração da justiça.

Os arguidos estavam cientes de que atuavam na qualidade de testemunha e que ao prestarem juramento estavam obrigados a responder com verdade aos factos sobre os quais iam depor, tendo sido advertidos dessa obrigatoriedade.

Mais estavam cientes das consequências penais da sua conduta e, não obstante, quiseram omitir a versão correta dos factos que efetivamente ocorreram.

Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as respetivas condutas eram proibidas e penalmente punidas.

Mais se provou que:

O arguido A... foi condenado:

1- por sentença transitada em julgado a 18/05/2000, pela prática, em 3/10/1998, de um crime de furto, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 100.000$00.

Foi perdoada a prisão subsidiária.

2- por sentença transitada em julgado a 21/10/2002, pela prática, em 3/05/2000, de um crime de furto, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de €:5,00.

3- por sentença transitada em julgado a 21/01/2003, pela prática, em 10/01/2000, de crime de falsificação de documento e de um crime de furto, na pena única de 190 dias de multa, à taxa diária de €:4,00, pena esta extinta pelo cumprimento.

4- por sentença transitada em julgado a 29/05/2006, pela prática, em 30/03/2004, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210 do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos.

5- por sentença transitada em julgado a 6/03/2009, pela prática, em 1/06/2004, de um crime de furto na forma tentada, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos.

A suspensão foi revogada.

6- por sentença transitada em julgado a 30/3/2009, pela prática, em 4/2008, de um crime de roubo e de um crime de falsidade de depoimento, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

7- por sentença transitada em julgado a 26/10/2009, pela prática, em 26/03/2009, de um crime de furto qualificado, na pena de 6 meses de prisão efetiva.

Esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento.

8- por sentença transitada em julgado a 2/02/2009, pela prática, em 22/05/2009, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão, suspensa por 1 ano, sob condição do arguido se submeter a um tratamento médico de desintoxicação relativamente ao consumo de estupefacientes.

9- por sentença transitada em julgado a 5/05/2010, pela prática, em 26/05/2009, de um crime de furto qualificado, na pena de 30 períodos de prisão.

10- por sentença transitada em julgado a 6/05/2010, pela prática, em 14/07/2009, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão efetiva.

11- por sentença proferida no Proc. n.º 680/09.1PBCBR 3º Juízo Criminal de Coimbra pela prática, como autor material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 202.º/b); e) 203º/1, 204.º n.º1 al. b) do C.P., na pena de 18 meses de prisão.

12 – por acórdão cumulatório proferido a 02.03.2012 (transito de 22.03.2012) neste último proc. o arguido foi condenado na pena única de 4 anos de prisão .

O arguido B... foi condenado:

1- por sentença transitada em julgado a 02/02/2004, pela prática, em 2003, de um crime de furto, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 3,00.

2- por acórdão transitado em julgado a 11/02/2004, pela prática, em 2003, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa por 4 ano com regime de prova.

3- por sentença transitada em julgado a 24/11/2004, pela prática, em 2003, de um crime de furto qualificado, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 3 anos.

4 - por acórdão transitado em julgado a 07/01/2008, pela prática, em 2006, de 16 crimes de furto qualificado, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por 5 anos.

5- por sentença transitada em julgado a 23/6/2008, pela prática, em 2006, de um crime de furto qualificado, na pena de 30 meses de prisão, suspensa por 30 meses.

6 - por acórdão transitado em julgado a 14/07/2008, pela prática, em 2006, de 1 crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão efetiva.

7 - por acórdão cumulatório transitado em julgado a 15/01/2009, na pena de 7 anos de prisão efetiva.

8 - por acórdão transitado em julgado a 19/06/2009, pela prática, em 2008, de 2 crimes de furto qualificado, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão efetiva.

9 - por acórdão transitado em julgado a 29/10/2009, pela prática, em 2008, de 1 crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de 12 meses de prisão efetiva.

10- por sentença transitada em julgado a 2/11/2009, pela prática, em 2008, de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por 3 anos e 6 meses.

11- por acórdão cumulatório transitado em julgado a 29/06/2010, na pena de 5 anos de prisão efetiva.

12- por sentença transitada em julgado a 04/10/2010, pela prática, em 2008, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão,

13- por acórdão cumulatório transitado em julgado a 15/06/2011, na pena de 6 anos de prisão efetiva.

14- por sentença transitada em julgado a 05/12/2011, pela prática, em 2010, de um crime de ameaça agravada, na pena de 3 meses de prisão,

O arguido A... encontra-se preso desde 04.11.2009; trabalha no E.P. onde se encontra detido; manifestou arrependimento pelos factos praticados no passado.

O arguido B... encontra-se preso desde 2008; trabalha no E.P. onde se encontra detido; manifestou arrependimento pelos factos praticados no passado.

Os arguidos não têm rendimentos.»
*

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida(transcrição):

«Não se provaram outros factos para além dos descritos ou com estes em contradição sendo que se provaram, no essencial, os factos descritos na acusação.»

                                                                        *

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«Na determinação da factualidade dada como provada, o Tribunal formou a sua convicção no teor dos documentos juntos aos autos (certidões das declarações, atas, e sentença) e da prova produzida em julgamento, analisada à luz das regras da experiência e da lógica.

Como assim, apesar de os arguidos terem apresentado versões desculpabilizantes sobre os factos (o arguido A... referiu não se recordar do que assinou, de não ter lido as declarações prestadas no Gabinete de Investigação Criminal da PSP e de só ter assinado o que eles escreveram; referindo ainda o arguido B... que “só conhecia o M ... de vista” ) a verdade é que o depoimento de Renato C... , agente principal, a prestar serviço na PSP de Coimbra, foi claro e inequívoco, no sentido de referir que os arguidos haviam afirmado o que ficou a constar dos autos, sendo que lhes lera em voz alta as suas declarações, declarações essas que os mesmos assinaram perfeitamente cientes do conteúdo das mesmas.

Mais referiu que os arguidos, à data já estavam presos e que não estavam sob o efeito de drogas (conforme alegado por um destes).

Sendo seguro que não vislumbramos quaisquer razões para que esta testemunha faltasse à verdade (ao contrário do que, em boa verdade, sucedida com os arguidos) o tribunal teve como boas e credíveis as suas declarações.

Tivemos ainda em consideração a declarações dos arguidos sobre as suas condições pessoais e a sua postura em julgamento.

Em linha de conta foram tidas ainda as certidões de fls. 2 a 12, 19 a 33 e 163 a 176 e as transcrições que constam de fls. 74 a 115 destes autos e do apenso.

O dolo extraímos dos elementos objetivos e como sua consequência lógica.»
*

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- impugnação da matéria de facto;

- direito de necessidade.

2.1. Da impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação dos recorrentes.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([4]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([5]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([6]).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([7]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([8]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto.

O recorrente considera que deveria ter sido dado como provado que, antes de prestar falso testemunho, recebeu ameaças de morte, que teve medo e que prestou falso testemunho devido ao medo que sofria, criado por tais ameaças de morte.

Para tanto invoca as declarações que prestou em sede de audiência de julgamento, acrescentando que nenhuma outra prova sobre a questão das ameaças foi produzida.

Ao contrário do que parece entender o recorrente, não existe dispositivo legal que atribua força probatória plena às declarações do arguido, muito menos quando se trata de “confissão” de factos que lhes são favoráveis e não têm apoio em qualquer outro meio probatório, estando as suas declarações sujeitas ao critério geral da apreciação livre e motivada.

Não existe norma ou princípio que imponha a aceitação das declarações do arguido em bloco ou em todas as afirmações que profira, mormente na parte em que constituem puro subjectivismo e são infirmadas por outros meios de prova.

Ao invés, como resulta do critério da apreciação livre e motivada, deverá ser-lhe atribuída credibilidade quando o mereçam, o mesmo é dizer quando corroboradas por outros meios de prova, pelas regras da experiência comum e da lógica.

Neste particular, o recorrente atribui às suas declarações o valor de “confissão” com força probatória plena que manifestamente não têm porque, desde logo, não se trata de factos “que lhe são imputados” como pressupõe o artigo 344.º, n.º 1, mas, pelo contrário, de factos alegados pela defesa, como tal favoráveis ao “confitente”.

E a confissão apenas releva, em conformidade com elementares regras de bom senso e da experiência comum (por princípio ninguém confessa aquilo que o prejudica, salvo se estiver convencido da existência de outras provas e pretender beneficiar da atenuação) mas ainda com o princípio geral sobre a confissão enunciado pelo artigo 353.º do Código Civil: confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

As declarações prestadas pelo arguido, segundo as quais nunca falou em detalhes e nada sabia e depois recebeu um telefonema a ameaçá-lo de morte e com medo, em julgamento, disse que não se recordava de nada, encerram uma manifesta contradição, aliás, bem evidenciada pela Mma. Juíza ao perguntar-lhe se não disse porque não sabia ou não disse porque sabia mas foi ameaçado de morte para não dizer.

Aliás, se o arguido nunca falou em detalhes e nada sabia, fica por explicar a razão de ser de tal telefonema a ameaçá-lo de morte, a qual o próprio arguido também não soube explicar.

O que é manifesto é que o arguido se contradisse nas suas próprias declarações, apresentando uma versão dos factos que o tribunal a quo considerou “desculpabilizante”, ao pretender justificar as suas declarações em audiência de julgamento com um telefonema a ameaçá-lo de morte, o que, diga-se, está em consonância com a posição assumida pelo arguido no processo ao não apresentar qualquer tipo de contestação, como seria suposto fazê-lo caso tivesse agido sob coacção, como alega.

Assim, não tendo a Mma. Juíza a quo credibilizado as declarações do arguido, cuja versão dos factos considerou como “desculpabilizante”, não vemos que mereça censura a valoração feita deste concreto meio de prova por se evidenciar que o arguido apenas prestou tais declarações por saber que lhe seriam favoráveis e como tal lhe poderiam aproveitar, não logrando convencer acerca da sua veracidade.

Sendo certo que o tribunal a quo alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica toda a prova produzida em audiência de julgamento, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento.

Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”([9]).

No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”([10]).

Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”([11]).

Conforme resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

Daí que, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura mereça o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

Improcede, portanto, a questão da impugnação da matéria de facto.

2.2. Do direito de necessidade

Alega o recorrente que o falso testemunho prestado é lícito nos termos do disposto no artigo 34.º do Código Penal mas, como liminarmente se poderá concluir, resultando improcedente o recurso quanto à impugnação da matéria de facto que se mantém intangível, o mesmo terá necessariamente de improceder também no que se refere a esta pretensão.

Como resulta do citado artigo para que o falso testemunho prestado não fosse ilícito teria, desde logo, de o arguido ter sido confrontado com uma qualquer situação de perigo que ameaçasse interesses juridicamente protegidos do próprio ou de terceiro, o que não ficou provado.

Improcede, portanto, também nesta parte, o interposto recurso.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

                                          *

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

                                          *

Coimbra, 25 de Fevereiro de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] -Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ªedição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[5] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[6] - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[7] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.
[10] - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp.
[11] - Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.