Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/14.4TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: ADVOGADO-ESTAGIÁRIO
CONFISSÃO DE DÍVIDA
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZOS CÍVEIS DE COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 363º, Nº 3 DO C.CIVIL; 38º DO D.L. Nº 76-A/2006, DE 29/03.
Sumário: I – O artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29/03, indica de modo taxativo as entidades que podem, no respeito pelas leis notariais, reconhecer assinaturas, autenticar documentos particulares e traduções.

II - É inaplicável o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 189º do EOA na medida em que a prática dos actos, por advogado–estagiário, que a lei acomete aos solicitadores, é supervisionada e orientada pelo respectivo patrono.

III - A autenticação de documento de confissão de dívida feita por advogado–estagiário viola o disposto no artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3, e o nº 3 do artigo 363º do CC, este na interpretação de que para além dos Notários as entidades taxativamente enunciadas naquele decreto-lei têm idênticas competências em sede de reconhecimentos e autenticação no respeito pelas leis notariais.

Decisão Texto Integral:                 Acordam os Juízes que integram a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.


                1. Relatório
                No âmbito do processo executivo supra identificado foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do artigo 10.º, n.º 5 do Código de Processo Civil “toda a execução tem por base um título executivo, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”, isto é, o tipo de ação, o seu objeto e a legitimidade ativa e passiva para a mesma. Atento o disposto no artigo 703.º n.º 1 alínea b) do citado diploma, podem servir de base à execução os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação. O exequente junta como título executivo uma fotocópia autenticada por advogado–estagiário, de uma confissão de dívida, na qual o devedor reconhece que deve a quantia exequenda ao primeiro e onde é visível carimbo e rubrica do devedor. Ora, não obstante reconhecer-se ao advogado-estagiário a competência para autenticar fotocópias de documentos, nos termos do disposto no artigo 38.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março (com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/2012, de 23/11) e artigo 1.º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 28/2000, de13 de Março, desde logo, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 189.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que equipara a competência do advogado–estagiário para todos os actos da competência dos solicitadores, sucede que a referida confissão de dívida não pode ser havida como documento autenticado, de acordo com a noção de documento autenticado estipulada no n.º 3 do artigo 363.º do Código Civil. Desde logo, não resulta do teor da confissão de dívida junta que tivessem as partes efetuado a confirmação do mesmo, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais. Nestes termos, a confissão de dívida junta aos autos não pode servir de título executivo à presente execução sumária para pagamento de quantia certa, um vez que não se enquadra no estipulado na alínea b) do n.º1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, constatando-se assim a manifesta falta de título executivo para servir de base à presente execução.
Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento executivo, de harmonia com o estatuído no artigo 726.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil.”.
*
                Notificada a exequente interpôs recurso que instruiu com as suas doutas alegações que a final sintetizou nas seguintes conclusões:

                Não contra alegaram.
                Por despacho de folhas 28, o recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos e ao qual foi fixado o efeito devolutivo.
2. Delimitação do objecto do recurso
A questão a decidir na apelação e em função da qual se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 608º e artigos 635º, nº 4 e 639º, todos do Código de Processo Civil, é a seguinte:
· Autenticação de documento particular por advogado-estagiário. Artigo 363º, nº 3 do CC.
                3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se
Ao ler-se o despacho recorrido verificamos que o Tribunal a quo não coloca em causa as competências que a lei reconhece aos advogados–estagiários, ao invés delas dá a devida conta no despacho recorrido ao escrever e citamos: não obstante reconhecer-se ao advogado-estagiário a competência para autenticar fotocópias de documentos, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março (com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/2012, de 23/11) e artigo 1.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 28/2000, de13 de Março, desde logo, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 189.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que equipara a competência do advogado-estagiário para todos os actos da competência dos solicitadores, sucede que, a referida confissão de dívida não pode ser havida como documento autenticado, de acordo com a noção de documento autenticado estipulada no n.º 3 do artigo 363.º do Código Civil.
                Ou seja, o que o Sr. Dr. Juiz refere é que o Ilustre advogado–estagiário não tem competência para autenticar uma «confissão de dívida», já que a isso se opõe o nº 3 do artigo 363º do CC.
                Será de acolher este entendimento?
                Os artigos 1º e 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3 – as alterações introduzidas pelo DL nº 250/2012, de 23.11, não incidiram sobre aqueles artigos – visam a simplificação e eliminação de actos e procedimentos registrais e notariais, permitindo a alínea f) daquele nº 1 o alargamento das entidades que podem reconhecer assinaturas em documentos, autenticar e traduzir documentos, permitindo que tanto os notários, como os advogados, os solicitadores, as câmaras de comércio e industria e as conservatórias possam fazê-lo.
                Por sua vez, o nº 1 do artigo 38º daquele diploma legal – DL nº 76-A/2006, de 29.3 – prescreve:
                Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-lei nº 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial.
                Não se questiona que o quadro legal enunciado no DL nº 76-A/2006, de 29.3, visou facilitar e desburocratizar um conjunto de actos relacionados com a vida das sociedades e dos cidadãos em geral, vincando o legislador no ponto 5º do preâmbulo esta mesma ideia ao afirmar e citamos: «actua-se no domínio da autenticação e do reconhecimento presencial de assinaturas em documentos, permitindo que tanto os notários como os advogados, os solicitadores, as câmaras de comércio e industria e as conservatórias passem a poder fazê-las. Trata-se de facilitar a cidadãos e às empresas a prática destes actos junto de entidades que se encontram aptas para o fazer, tanto por serem entidades de natureza pública ou com especiais deveres de prossecução de fins de utilidade pública como por já hoje poderem fazer reconhecimentos com menções especiais por semelhança e certificar ou fazer certificar traduções de documentos».
                Esta solução legislativa levou à alteração de um conjunto bastante alargado de normas – Código das Sociedades Comerciais, Código do Registo Comercial, Código Comercial, Agrupamentos Complementares de Empresas, Lei Orgânica dos Serviços dos Registos e do Notariado; Regime Jurídico das Cooperativas; Das Régies Corporativas, Estabelecimento Individual de Responsabilidade Lda. Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola, Regime de Competências atribuídas aos Notários nos processos de constituição de Sociedades Comerciais, Regime de Habitação Periódica, Regime que permite a constituição e manutenção de Sociedades por quotas e anónimas licenciadas para operar na zona franca da Madeira, alteração ao Código de Notariado, incluindo a revogação de algumas disposições, alteração ao Código Cooperativo, alteração ao regime jurídico das Sociedades Desportivas, alteração ao regime de acesso e exercício da actividade das agências de viagem e turismo, alteração das condições de acesso e de exercício da actividade seguradora e resseguradora no território da Comunidade Europeia, alteração ao Regime Nacional de Pessoas Colectivas, alteração às leis das Empresas Municipais alteração ao regime dos Serviços da Direcção-geral dos Registos e do Notariado, alteração à Lei Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, alteração ao regime jurídico das cooperativas de habitação e construção, alteração do regime jurídico das cooperativas de comercialização, alteração da Lei Orgânica da Direcção-geral dos Registos e do Notariado, alteração ao Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado, alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, alteração ao regime jurídico das Sociedades Anónimas Europeias, alteração ao regime especial de constituição imediata de sociedades, revogação do artigo 1479º do CPC, revogação do Regulamento do Registo Comercial e aprovação do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais (…) – que emperravam o normal desenvolvimento da vida económica e social, tal era a teia legal em que se viam envolvidos, obrigando-os a gastar tempo e dinheiro na prática de actos que tal como este diploma veio demonstrar podiam/podem ser praticados por um quadro alargado de profissões e câmaras de comércio e indústria.
                Todo este arrazoado não tem outra finalidade que não seja afirmar o entendimento que a lei possibilita às entidades taxativamente indicadas no artigo 38º, nº 1 do DL nº 76-A/2006, de 29.3, o reconhecimento de assinaturas e autenticação de documentos «cabendo-lhes observar não apenas as disposições legais constantes dos artigos 150º a 152º do Código do Notariado, como também todas aquelas a que o Notário estaria obrigado a observar se a sua participação fosse pretendida pelas partes para o mesmo efeito[1]» reconhecimentos e autenticações cuja validade fica dependente de serem levados ao registo em sistema informático como determina a Portaria nº 657-B/2006, de 29.6.
                Embora o legislador não tenha alterado o nº 3 do artigo 363º do CC – os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante o notário, nos termos prescritos pelas leis notariais – é sustentável que as entidades enunciadas no artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3, possam praticar os actos nele descritos desde que respeitem as leis notariais.
O que é discutível é se um advogado–estagiário pode proceder a «reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares e certificar ou fazer certificar traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial».
                Defende a apelante que a alínea a) do nº 1 do artigo 189º do EOA – uma vez obtida a cédula profissional como advogado estagiário, este pode autonomamente, mas sempre sob orientação do patrono, praticar (…) todos os actos da competência dos solicitadores – permite aos advogados–estagiários reconhecer assinaturas, autenticar documentos e traduções.
                Em nosso modesto ver, a autenticação de documento – cf. folhas 4 a 8 – de confissão de dívida feita por advogado–estagiário viola o disposto no artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3 e o nº 3 do artigo 363º do CC, este na interpretação de que para além dos Notários as entidades taxativamente enunciadas naquele decreto-lei têm idênticas competências em sede de reconhecimentos e autenticação no respeito pelas leis notariais. É certo que o EOA confere ao advogado–estagiário a possibilidade de praticar todos os actos que a lei permite aos solicitadores e daí que a apelante interprete esta norma no sentido de lhe estender as competências que aquele artigo 38º confere às entidades neles indicadas e nas quais se incluem os solicitadores. Todavia, a apelante esquece-se que a competência a que faz referência a alínea a) do nº 1 do artigo 189º do EOA não é autónoma mas antes se trata da possibilidade que a lei confere ao advogado–estagiário de praticar os actos que o Estatuto da Câmara dos Solicitadores possibilita aos solicitadores, mas tal prática não pode deixar de ser supervisionada, acompanhada e orientada pelo seu patrono, o que no limite significa que o patrono é o responsável pelos actos que o seu advogado-estagiário pratique.
                Salvo melhor opinião, entendemos que o artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3, indica de modo taxativo quais as entidades que possam usar daquelas competências e se o legislador não incluiu os advogados–estagiários foi justamente por considerar a sua falta de autonomia para a prática de actos – nº 1 do artigo 189º do EOA – e daí não o ter integrado na lista das entidades que quis taxativamente indicar naquele norma – artigo 9º do CC.
                Que o advogado–estagiário possa, orientado pelo seu patrono, praticar os actos da competência dos solicitadores não se discute, mas que possa estender-se tal regime – alínea a) do nº 1 do artigo 189º do EOA – ao artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3, não é suportado por qualquer norma – artigo 10º do CC – nem foi essa a intenção do legislador que quis de forma expressa indicar taxativamente quem podia reconhecer assinaturas e autenticar documentos particulares, não cabendo na sua previsão o advogado–estagiário por se encontrar numa fase da sua vida profissional tutelada por um advogado/a que assume a posição de «patrono», ou seja, a de alguém que o vai orientar e ajudar a dar, em segurança, os primeiros passos numa carreira profissional ética e profissionalmente muito exigente.
                Assim e embora com fundamentos distintos, consideramos que a confissão de dívida não serve de título à execução, por não respeitar as exigências vazadas na alínea b) do nº 1 do artigo 703º do CC.
                Sumariando:
i. O artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.3, indica de modo taxativo as entidades que podem, no respeito pelas leis notariais, reconhecer assinaturas, autenticar documentos particulares e traduções.
ii. É inaplicável o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 189º do EOA na medida em que a prática dos actos, por advogado–estagiário, que a lei acomete aos solicitadores, é supervisionada e orientada pelo respectivo patrono.
Decisão
                Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em julgar o recurso improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida, embora com distinta fundamentação jurídica.
                Custas pela apelante.
Coimbra, 27 de Maio de 2014

Jacinto Meca (Relator)
Falcão de Magalhães
Silvia Pires