Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/15.4T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 610º DO CC E 127º DO CIRE
Sumário: O CIRE não admite a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Massa Insolvente de A..., S.A., representada pela administradora da insolvência, propôs acção declarativa contra: 1) A... S.A., com sede na rua (...) , Coimbra; 2) B..., Lda, com sede na rua (...) , Coimbra; 3) C.... e mulher D... , residentes na (...) , Coimbra, pedindo:
1. Se declarasse a nulidade da compra e venda celebrada em 14 de Fevereiro de 2012, no Cartório Notarial sito na Avenida Fernão de Magalhães, Coimbra, através da qual foi declarado pela 1.ª outorgante (1.ª ré) que vendia à aí segunda outorgante (2.ª ré), pelo preço de € 100 000,00, o prédio urbano, casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro, sito na Rua (...) , freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrito na matriz sob o artigo 9 (...) , com o VPT de € 16 100,00,descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (...) /St.º António dos Olivais e registado definitivamente a favor da sociedade vendedora, pela Ap. 13, de 19 de Agosto de 2008, e se ordenasse o cancelamento do respectivo registo predial do mesmo acto e de todos os que lhe foram subsequentes, nesse prédio aí melhor descrito, registado na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob a descrição (...) /St.º António dos Olivais;
2. No caso de assim se não entender ou se não provar, se declarassem ineficazes em relação à autora os mesmos actos notariais e se ordenasse, da mesma forma, o cancelamento de todos os registos prediais averbados na ficha da Conservatória do Registo Predial de Coimbra desse mesmo prédio sob a descrição (...) /St.º António dos Olivais, subsequentes a esta compra e venda efectuada entre estes réus, bem como o cancelamento de quaisquer outros que pudessem impedir ou simplesmente prejudicar a concretização e efectivação do ora pedido, para que o mesmo prédio pudesse ser objecto de liquidação da execução universal da liquidação do activo no âmbito da insolvência da primeira ré;
3. Se reconhecesse à autora o direito de apreender, executar e vender o dito prédio, desonerado de todos os ónus, para satisfação integral ou apenas parcial dos créditos reclamados na acção de insolvência, e se reconhecesse à autora o direito de, sobre os mesmos bens, praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial previstos e consentidos na lei.

A Meritíssima juíza do tribunal a quo declarou a autora parte ilegítima para deduzir o pedido subsidiário de impugnação pauliana.

O tribunal a quo justificou a decisão dizendo, em síntese, o seguinte:
1. Após a entrada em vigor do CIRE, aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir;
2. A impugnação pauliana colectiva, ou seja, em benefício da massa insolvente, foi suprimida pelo CIRE, sendo que os actos presumidamente celebrados de má-fé pelos seus participantes, para efeito de impugnação pauliana colectiva – pois era nesse domínio que eles relevavam (artigo 158º do CPEREF) – são agora incluídos no leque dos actos resolúveis incondicionalmente (artigo 121º do CIRE), ganhando-se, assim, em eficácia e em celeridade;
3. Admite-se apenas a impugnação pauliana singular;
4. O regime consagrado no CIRE confere prevalência à actuação do administrador da insolvência na resolução de actos do insolvente sobre a impugnação pauliana a exercer pelos credores, retirando-se a estes a possibilidade de, a título individual, recorrer a esta no caso de prévia resolução do ato, radicando o fundamento da prevalência da resolução em benefício da massa insolvente, no benefício em favor de todos os credores, em que esta se traduz, por contraste com a impugnação pauliana, que apenas aproveita ao credor que dela lança mão, ficando no regime consagrado no CIRE, a impugnação pauliana confinada aos casos especiais referidos no seu artigo 127º, podendo, assim, concluir-se que o recurso à impugnação pauliana foi quase vedado – mais não é do que uma possibilidade residual – dando-se prevalência à resolução em benefício da massa insolvente que, assim, sai reforçada no regime adoptado no CIRE;
5. A Autora, Massa Insolvente de “ A... , S.A.”, representada pela Sra. Administradora da Insolvência não é, por um lado, credor da obrigação civil prejudicado pelo ato impugnado; por outro lado, não existe norma (especial) que preveja a sua legitimidade para deduzir pedido de impugnação pauliana.

A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se anulasse e se substituísse a decisão recorrida por outra que considerasse a recorrente como parte legítima para mover e discutir nos presentes autos no âmbito do instituto jurídico da impugnação pauliana, conforme aos artigos 610.º e seguintes do Código Civil.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O actual regime do CIRE não veda à recorrente a possibilidade de lançar mão da impugnação pauliana, conforme ao instituto geral de garantia das obrigações, como está previsto nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil;
2. O regime que foi suprimido da actual legislação da insolvência não foi aquele na anteriormente referida norma, mas antes outro, com desenho jurídico diferente que, desde logo, invertia o ónus da prova a favor da massa insolvente e já no decurso dessa anterior lei falimentar se entendia que a massa, quando figurava como autora na acção pauliana, para beneficiar dessa inversão do ónus da prova tinha o ónus de alegar que essa acção era proposta nesses termos especiais e não nos termos gerais do Código Civil, sendo, por isso, obrigatória a conclusão que poderia usar um ou outro regime (especial ou geral – caso o dissesse expressamente ou não);
3. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 9.º, 10.º e 11.º do Código Civil, caso o instituto jurídico previsto no artigo 610.º e seguintes do mesmo Código estivesse vedado à massa, haveria o legislador de ter consagrado a solução mais coerente e acertada – in casu, e por obrigação decorrente destas normas, considerando a força normativa do Código Civil, seria o facto de estar obrigado à previsão legal desta proibição.
4. Isto é, haveria o legislador de ter esclarecido de forma expressa (e no próprio CIRE) que a garantia geral das obrigações prevista no artigo 610.º e seguintes do Código Civil estava vedado à massa insolvente. Ao não tê-lo feito, e de acordo com as mesmas regras supra citadas, estas impõem que o intérprete conclua que o mesmo legislador, (por força de lei dotado de um pensamento adequado e coerente) o não quis.
5. Estamos em face de dois institutos completamente diferentes – a resolução do negócio e a impugnação pauliana – quer quanto à sua natureza, quer quanto aos requisitos objectivos e subjectivos e quanto aos efeitos que produzem.
6. A ser assim, o regime do artigo 610.º do C.C. haverá de aproveitar a todos os que não estejam expressamente inibidos de o fazer e que reúnam os requisitos legais aí previstos para o accionar em seu proveito.
7. O instituto da resolução previsto no CIRE está balizado temporalmente e desde logo sindicado ao conhecimento pelo administrador da insolvência de factos concretos e determinados para o efeito. Salvo o devido respeito, seria, ainda, de uma violência interpretativa inusitada entender-se que, nos casos em que o administrador da insolvência venha a conhecer deles fora dessa baliza temporal também não possa lançar mão do predito meio geral civilístico de garantia das obrigações e deixe completamente de poder acuar em benefício dos credores (como representante que é de todos os créditos reclamados e aglutinando em si própria a totalidade do activo líquido e ilíquido da insolvente), nos termos da lei geral… isto é, como qualquer credor ou entidade civil (singular ou colectiva).
8. A ser assim, nesses casos, forçados seremos a concluir que a massa insolvente está dotada de menos garantias patrimoniais gerais que uma qualquer outra entidade – esta, sim, não se afigurando uma solução lógica e coerente face ao ordenamento jurídico vigente.
9. A recorrente entende que o legislador com o instituto da resolução dos negócios jurídicos (nas duas vertentes, condicional e incondicional) quis, efectivamente, oferecer às massas um meio efectivo e célere de garantir os créditos e de liquidação do património – mas apenas nos casos em que o administrador de insolvência possa agir dentro dessa baliza temporal, designadamente porque, dentro desse período de tempo, logrou reunir conhecimento suficiente para o efeito.
10.Mas fora desses casos, dessa baliza temporal, nada poderá impedir o administrador de insolvência de lançar mão dos meios de garantias gerais como previstos na lei geral civil, no Código Civil, designadamente o instituto dos artigos 610.ºe seguintes dessa codificação.
11.Pelo exposto entende a recorrente que os artigos 9.º, 10.º e 11.º, 610.º e seguintes do Código Civil, 121.º e seguintes do CIRE se encontram violados na decisão recorrida.

Não houve resposta ao recurso.

Chegados aqui importa precisar a questão suscitada pelo recurso.

À primeira vista, a questão suscitada pelo recurso é a de saber se a autora goza de legitimidade para deduzir o pedido subsidiário de impugnação pauliana. Com efeito, a decisão recorrida interpretou o pedido subsidiário – pedido enunciado acima sob os números 2 e 3 – como um pedido característico das acções de impugnação pauliana e entendeu que a autora não gozava de legitimidade para deduzir tal pedido. A recorrente impugna tal decisão e pede, em sede de recurso, se julgue que ela é parte legítima para deduzir tal pedido.

No entender deste tribunal, a verdadeira questão suscitada pelo recurso não é a da legitimidade da autora para deduzir o pedido subsidiário. Se bem se atentar, na base da decisão recorrida está o entendimento de que o CIRE não admite a impugnação pauliana colectiva, ou seja, a impugnação em benefício da massa insolvente. Assim, pelas razões exposta à frente com mais desenvolvimento, a verdadeira questão suscitada pelo recurso é a de saber se, no domínio do CIRE, é admissível a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente. 

Os factos que iremos tomar em consideração na resolução desta questão são os constantes deste relatório.


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Posto isto, apreciemos os fundamentos do recurso.

A recorrente começa por contestar a decisão recorrida com a alegação de que O CIRE não vedava à massa insolvente a impugnação dos actos que lhe fossem prejudiciais, “conforme ao instituto geral da garantia das obrigações, como está previsto nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil”. Na base desta alegação está a seguinte linha argumentativa: resulta da conjugação dos artigos 9.º, 10.º e 11.º do Código Civil que, quando quer proibir uma determinada solução, o legislador expressa essa vontade; quando a não expressar, então tal solução deverá considerar-se admissível. Nesta linha de raciocínio remata a recorrente: como o CIRE não proíbe expressamente à massa insolvente a acção de impugnação nos termos do artigo 610.º, então ter-se-á de considerar que ela é admissível.

Esta argumentação não tem amparo na lei.

Em primeiro lugar, não resulta de nenhum dos preceitos indicados pela recorrente a regra segundo a qual “o que não é proibido pela lei é permitido”.

O artigo 9.º dispõe sobre a interpretação da lei; o artigo 10.º sobre a integração das lacunas; o artigo 11.º sobre a aplicação das normas excepcionais. Nenhum destes preceitos contém a afirmação expressa ou implícita de que o que não é proibido pela lei é permitido. De resto, contendo os preceitos em causa várias prescrições, a recorrente não indica em qual delas é que se apoiava para concluir que quando a vontade do legislador fosse a de proibir uma determinada solução, ele afirmava-o expressamente e que, quando tal não sucedesse, tal significava que o legislador permitia tal solução.

Em segundo lugar, o pedido subsidiário não corresponde ao exercício da acção pauliana conforme o instituto que está previsto nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil. Vejamos.

O exercício da acção pauliana, conforme está previsto nos artigos 610.º e seguintes, caracteriza-se, em síntese, pelo seguinte:
1. Impugnação por um credor de actos do devedor que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal (n.º 1 do artigo 610.º);
2. Os efeitos da impugnação – definidos no n.º 1 do artigo 616.º - aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido [n.º 4 do artigo 616.º do Código Civil].     

Segue-se do exposto que a acção pauliana, tal como está configurada no Código Civil, é um meio individual de conservação da garantia patrimonial. Só o credor que tiver exercido a acção pauliana é que está em condições de aproveitar dos seus efeitos, consistentes, de acordo com o n.º 1 do artigo 616.º, no direito à restituição dos bens na medida do interesse do credor, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Sucede que não foi com esta configuração que a autora impugnou a venda do imóvel.

Em primeiro lugar, a autora não impugnou a venda como credora da vendedora. 

Em segundo lugar, o pedido por si deduzido só em parte coincide com o pedido que é característico da acção de impugnação pauliana.

Assim, o pedido coincide na parte em que a ora recorrente pediu se declarasse ineficaz a venda do imóvel. Já diverge, no entanto, na parte em que pede que o prédio seja vendido na insolvência para satisfação integral ou parcial dos créditos reclamados na insolvência ineficácia. Na verdade, nesta última parte, a ora recorrente, afastando-se do n.º 4 do artigo 616.º do C.C., pretende que os efeitos da impugnação aproveitem a todos os credores. Ora, não é esta a configuração da impugnação pauliana prevista no Código Civil, pois neste diploma os efeitos da impugnação não são colectivizados.

Segue-se daqui, como já escrevemos acima, que a verdadeira questão suscitada pelo recurso não era a de saber se o CIRE admitia a impugnação de actos do devedor em conformidade com o disposto nos artigos 610.º a 618.º do Código Civil.

A questão que o pedido subsidiário e o recurso suscitam é a de saber se é admissível a impugnação pauliana em benefício de todos os credores, a pedido da massa, representada pelo administrador da insolvência. Por outras palavras, a questão suscitada é a de saber se o direito, que o artigo 610.º do Código Civil confere aos credores individualmente, pode ser exercido, no âmbito da insolvência, pelo administrador da insolvência, em nome dos credores, e no interesse colectivo deles, ou seja, se julgada procedente, os efeitos da impugnação aproveitam a todos os credores.

A resposta a esta questão é negativa.

A pretensão da recorrente, como já vimos, não tem amparo no artigo 610.º e no n.º 4 do artigo 616.º, ambos do Código Civil. Pelas razões a seguir expostas também não tem amparo no CIRE.

O CIRE não prevê a impugnação em benefício da massa insolvente dos actos do devedor/insolvente que prejudicaram a garantia patrimonial dos credores.

Considerando os antecedentes legislativos do CIRE, em matéria de falência e de insolvência, respectivamente, o Código de Processo Civil de 1961 e o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência [CPEREF], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e a exposição de motivos da lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, a conclusão a que se chega é a de que a vontade do legislador foi a de que o meio colectivo de defesa contra os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência seja constituído exclusivamente pela resolução de tais actos em benefício da massa insolvente, nos termos previstos nos artigos 120.ºa 127.º do CIRE.

Comecemos por ver o elemento histórico.

O Código de Processo Civil de 1961 previa dois meios colectivos de defesa contra actos prejudiciais à massa insolvente: a resolução em benefício da massa (artigo 1200º) e a impugnação dos actos nos casos dos artigos 610.º e seguintes (artigo 1201.º).

Centrando a nossa atenção no regime da impugnação, o CPC estabelecia o seguinte.

Em matéria de legitimidade, estabelecia que a impugnação podia ser exercida pelo administrador, com autorização do síndico, ou por qualquer credor (n.º 1 do artigo 1204.º).

Em sede de efeitos, estabelecia que, uma vez julgada procedente, implicava a reversão dos respectivos valores para a massa falida (n.º 1 do artigo 1203.º).

O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência [CPEREF], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril - que revogou, entre outros, os artigos 1135.º a 1325.º do CPC, que respeitavam à falência – continuou a prever dois meios colectivos de defesa contra actos prejudiciais à massa insolvente: a resolução em benefício da massa (artigo 156.º) e a impugnação pauliana (artigo 157.º).

Centrando, agora, a nossa atenção no regime da impugnação, o CPEREF estabelecia o seguinte.  

Em matéria de legitimidade, estabelecia que a impugnação podia ser proposta pelo liquidatário judicial ou por qualquer credor cujo crédito se encontrasse já reconhecido (n.º 1 do artigo 160.º).

Em sede de efeitos, estabelecia que, uma vez julgada procedente, os bens ou os valores correspondentes revertiam para a massa falida (n.º 1 do artigo 159.º).

O CIRE, aprovado pela Lei n.º 53/2004, de 18 de Março - que revogou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/93, de 23 de Abril – rompeu com a tradição e deixou de prever a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente. 

Esta ruptura foi explicada no ponto n.º 41 da exposição de motivos da Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, nos seguintes termos: “No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má-fé do terceiro quanto a algum deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a «resolução em benefício da massa insolvente» - que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”.

Respondendo, assim, à questão suscitada pelo recurso, pode afirmar-se que o direito que o artigo 610.º do Código Civil confere aos credores individualmente, não pode ser exercido, no âmbito da insolvência, pelo administrador da insolvência, em nome dos credores, e no interesse colectivo deles. Por outras palavras, o CIRE não admite a impugnação pauliana “em benefício da massa insolvente”.

Observe-se, no entanto, que se destacou “em benefício da massa insolvente” porquanto o CIRE não retirou aos credores os meios individuais de conservação da garantia patrimonial. Porém, estes só são admitidos no caso de a resolução em benefício da massa insolvente (meio colectivos de reconstituição da garantia patrimonial dos credores) não ser exercido ou não ser exercido com êxito.

O CIRE não retirou aos credores os meios individuais de garantia patrimonial porquanto o artigo 127.º prevê a impugnação pauliana em benefício do credor que a tenha requerido. É o que resulta do n.º 3 do artigo 127.º ao dispor que, julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 610.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos.

A feição individual da impugnação pauliana resulta ainda do n.º 2 na parte em que estabelece que “as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apenas ao processo de insolvência”.

Com efeito, as acções não são apensadas ao processo de insolvência porque o CIRE não atribuiu carácter colectivo a tais acções. Quando a acção impugnação tinha feição colectiva, como sucedia no domínio do Código de Processo Civil de 1961 e no domínio do CPEREF, a acção de impugnação pauliana corria por apenso ao processo de insolvência. É o que estava afirmado no n.º 1 do artigo 1204.º e no n.º 1 do artigo 160.º do CPEREF.

Porém, como se escreveu acima, a impugnação pauliana (individual) só é admitida no caso de a resolução em benefício da massa insolvente (meio colectivo de reconstituição da garantia patrimonial dos credores) não ser exercida ou não ser exercida com êxito. É o que resulta do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 127.º ao dispor:
1. Que “é vedado aos credores da insolvência a instauração de novas acções de impugnação pauliana de actos pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência;
2. Que “as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não são apenas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas acções quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior”;

Em síntese: no domínio do CIRE não é admissível a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente, quer a impugnação seja deduzida pelo administrador da insolvência, quer seja deduzida por qualquer credor. O CIRE admite a impugnação pauliana de actos que tenham envolvida a diminuição da garantia patrimonial de algum credor, verificados os requisitos previstos no artigo 610.º do Código Civil, mas a impugnação pauliana aproveita apenas ao credor que a tenha requerido.

Por outro lado, este meio individual de garantia patrimonial está subordinado à resolução em benefício da massa insolvente – que é um meio colectivo de conservação da garantia patrimonial – nos termos definidos pelo artigo 127.º do CIRE.

A favor deste entendimento citam-se na jurisprudência:
1. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de Março de 2014, processo n.º 32/12.6TBSRT, publicado em www.dgsi.pt;
2. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 10 de Julho de 2014, processo n.º 1012/12.PBPMS, www.dgsi.pt;
3. O acórdão do tribunal da Relação de Coimbra e 22-09-2015, proferido no processo n.º 2587/13.9TBFIG, www.dgsi.pt;
4. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12 de Janeiro de 2016, na apelação n.º 632/15.2t8CBR, no qual o ora relator foi 2.º adjunto;
5. O acórdão do tribunal da Relação de Évora, proferido em 25-06-2015, no processo n.º 600/13.9TBRMR, www.dgsi.pt;
6. O acórdão do tribunal da Relação de Évora proferido em 3-12-2015, no processo n.º 1089/11.2TBVNO, www.dgsi.pt.

Na doutrina citam-se, a título de exemplo:
1. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, páginas 262 e 263;
2. Luís Carvalho Fernandes, João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, página 45;
3. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.ª Edição, Almedina, página 223;
4. Fernando de Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, página 197.

Segue-se do exposto que também não vale contra a sentença o outro fundamento de recurso, constituído pela alegação de que a massa deve lançar mão da resolução em benefício da massa insolvente nos casos em que o administrador possa agir dentro da baliza temporal definida pela lei [a recorrente refere-se ao período previsto no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE – actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência] e que, fora dessa baliza temporal, nada poderá impedir o administrador da insolvência de lançar mão dos meios de garantias reais, como estão previstos na lei civil, designadamente no artigo 610.º do Código Civil.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

As custas serão suportadas pela massa insolvente.   

Relator:

Emidio Francisco Santos

Adjuntos:

1º - Catarina Gonçalves

2º - Nunes Ribeiro