Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMIDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA IMPUGNAÇÃO PAULIANA BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE | ||
Data do Acordão: | 03/01/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 610º DO CC E 127º DO CIRE | ||
Sumário: | O CIRE não admite a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Massa Insolvente de A..., S.A., representada pela administradora da insolvência, propôs acção declarativa contra: 1) A... S.A., com sede na rua (...) , Coimbra; 2) B..., Lda, com sede na rua (...) , Coimbra; 3) C.... e mulher D... , residentes na (...) , Coimbra, pedindo: A Meritíssima juíza do tribunal a quo declarou a autora parte ilegítima para deduzir o pedido subsidiário de impugnação pauliana. O tribunal a quo justificou a decisão dizendo, em síntese, o seguinte: A autora não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se anulasse e se substituísse a decisão recorrida por outra que considerasse a recorrente como parte legítima para mover e discutir nos presentes autos no âmbito do instituto jurídico da impugnação pauliana, conforme aos artigos 610.º e seguintes do Código Civil. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: Não houve resposta ao recurso. Chegados aqui importa precisar a questão suscitada pelo recurso. À primeira vista, a questão suscitada pelo recurso é a de saber se a autora goza de legitimidade para deduzir o pedido subsidiário de impugnação pauliana. Com efeito, a decisão recorrida interpretou o pedido subsidiário – pedido enunciado acima sob os números 2 e 3 – como um pedido característico das acções de impugnação pauliana e entendeu que a autora não gozava de legitimidade para deduzir tal pedido. A recorrente impugna tal decisão e pede, em sede de recurso, se julgue que ela é parte legítima para deduzir tal pedido. No entender deste tribunal, a verdadeira questão suscitada pelo recurso não é a da legitimidade da autora para deduzir o pedido subsidiário. Se bem se atentar, na base da decisão recorrida está o entendimento de que o CIRE não admite a impugnação pauliana colectiva, ou seja, a impugnação em benefício da massa insolvente. Assim, pelas razões exposta à frente com mais desenvolvimento, a verdadeira questão suscitada pelo recurso é a de saber se, no domínio do CIRE, é admissível a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente. Os factos que iremos tomar em consideração na resolução desta questão são os constantes deste relatório. * Posto isto, apreciemos os fundamentos do recurso. A recorrente começa por contestar a decisão recorrida com a alegação de que O CIRE não vedava à massa insolvente a impugnação dos actos que lhe fossem prejudiciais, “conforme ao instituto geral da garantia das obrigações, como está previsto nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil”. Na base desta alegação está a seguinte linha argumentativa: resulta da conjugação dos artigos 9.º, 10.º e 11.º do Código Civil que, quando quer proibir uma determinada solução, o legislador expressa essa vontade; quando a não expressar, então tal solução deverá considerar-se admissível. Nesta linha de raciocínio remata a recorrente: como o CIRE não proíbe expressamente à massa insolvente a acção de impugnação nos termos do artigo 610.º, então ter-se-á de considerar que ela é admissível. Esta argumentação não tem amparo na lei. Em primeiro lugar, não resulta de nenhum dos preceitos indicados pela recorrente a regra segundo a qual “o que não é proibido pela lei é permitido”. O artigo 9.º dispõe sobre a interpretação da lei; o artigo 10.º sobre a integração das lacunas; o artigo 11.º sobre a aplicação das normas excepcionais. Nenhum destes preceitos contém a afirmação expressa ou implícita de que o que não é proibido pela lei é permitido. De resto, contendo os preceitos em causa várias prescrições, a recorrente não indica em qual delas é que se apoiava para concluir que quando a vontade do legislador fosse a de proibir uma determinada solução, ele afirmava-o expressamente e que, quando tal não sucedesse, tal significava que o legislador permitia tal solução. Em segundo lugar, o pedido subsidiário não corresponde ao exercício da acção pauliana conforme o instituto que está previsto nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil. Vejamos. O exercício da acção pauliana, conforme está previsto nos artigos 610.º e seguintes, caracteriza-se, em síntese, pelo seguinte: Segue-se do exposto que a acção pauliana, tal como está configurada no Código Civil, é um meio individual de conservação da garantia patrimonial. Só o credor que tiver exercido a acção pauliana é que está em condições de aproveitar dos seus efeitos, consistentes, de acordo com o n.º 1 do artigo 616.º, no direito à restituição dos bens na medida do interesse do credor, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. Sucede que não foi com esta configuração que a autora impugnou a venda do imóvel. Em primeiro lugar, a autora não impugnou a venda como credora da vendedora. Em segundo lugar, o pedido por si deduzido só em parte coincide com o pedido que é característico da acção de impugnação pauliana. Assim, o pedido coincide na parte em que a ora recorrente pediu se declarasse ineficaz a venda do imóvel. Já diverge, no entanto, na parte em que pede que o prédio seja vendido na insolvência para satisfação integral ou parcial dos créditos reclamados na insolvência ineficácia. Na verdade, nesta última parte, a ora recorrente, afastando-se do n.º 4 do artigo 616.º do C.C., pretende que os efeitos da impugnação aproveitem a todos os credores. Ora, não é esta a configuração da impugnação pauliana prevista no Código Civil, pois neste diploma os efeitos da impugnação não são colectivizados. Segue-se daqui, como já escrevemos acima, que a verdadeira questão suscitada pelo recurso não era a de saber se o CIRE admitia a impugnação de actos do devedor em conformidade com o disposto nos artigos 610.º a 618.º do Código Civil. A questão que o pedido subsidiário e o recurso suscitam é a de saber se é admissível a impugnação pauliana em benefício de todos os credores, a pedido da massa, representada pelo administrador da insolvência. Por outras palavras, a questão suscitada é a de saber se o direito, que o artigo 610.º do Código Civil confere aos credores individualmente, pode ser exercido, no âmbito da insolvência, pelo administrador da insolvência, em nome dos credores, e no interesse colectivo deles, ou seja, se julgada procedente, os efeitos da impugnação aproveitam a todos os credores. A resposta a esta questão é negativa. A pretensão da recorrente, como já vimos, não tem amparo no artigo 610.º e no n.º 4 do artigo 616.º, ambos do Código Civil. Pelas razões a seguir expostas também não tem amparo no CIRE. O CIRE não prevê a impugnação em benefício da massa insolvente dos actos do devedor/insolvente que prejudicaram a garantia patrimonial dos credores. Considerando os antecedentes legislativos do CIRE, em matéria de falência e de insolvência, respectivamente, o Código de Processo Civil de 1961 e o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência [CPEREF], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e a exposição de motivos da lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, a conclusão a que se chega é a de que a vontade do legislador foi a de que o meio colectivo de defesa contra os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência seja constituído exclusivamente pela resolução de tais actos em benefício da massa insolvente, nos termos previstos nos artigos 120.ºa 127.º do CIRE. Comecemos por ver o elemento histórico. O Código de Processo Civil de 1961 previa dois meios colectivos de defesa contra actos prejudiciais à massa insolvente: a resolução em benefício da massa (artigo 1200º) e a impugnação dos actos nos casos dos artigos 610.º e seguintes (artigo 1201.º). Centrando a nossa atenção no regime da impugnação, o CPC estabelecia o seguinte. Em matéria de legitimidade, estabelecia que a impugnação podia ser exercida pelo administrador, com autorização do síndico, ou por qualquer credor (n.º 1 do artigo 1204.º). Em sede de efeitos, estabelecia que, uma vez julgada procedente, implicava a reversão dos respectivos valores para a massa falida (n.º 1 do artigo 1203.º). O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência [CPEREF], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril - que revogou, entre outros, os artigos 1135.º a 1325.º do CPC, que respeitavam à falência – continuou a prever dois meios colectivos de defesa contra actos prejudiciais à massa insolvente: a resolução em benefício da massa (artigo 156.º) e a impugnação pauliana (artigo 157.º). Centrando, agora, a nossa atenção no regime da impugnação, o CPEREF estabelecia o seguinte. Em matéria de legitimidade, estabelecia que a impugnação podia ser proposta pelo liquidatário judicial ou por qualquer credor cujo crédito se encontrasse já reconhecido (n.º 1 do artigo 160.º). Em sede de efeitos, estabelecia que, uma vez julgada procedente, os bens ou os valores correspondentes revertiam para a massa falida (n.º 1 do artigo 159.º). O CIRE, aprovado pela Lei n.º 53/2004, de 18 de Março - que revogou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/93, de 23 de Abril – rompeu com a tradição e deixou de prever a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente. Esta ruptura foi explicada no ponto n.º 41 da exposição de motivos da Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, nos seguintes termos: “No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má-fé do terceiro quanto a algum deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a «resolução em benefício da massa insolvente» - que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”. Respondendo, assim, à questão suscitada pelo recurso, pode afirmar-se que o direito que o artigo 610.º do Código Civil confere aos credores individualmente, não pode ser exercido, no âmbito da insolvência, pelo administrador da insolvência, em nome dos credores, e no interesse colectivo deles. Por outras palavras, o CIRE não admite a impugnação pauliana “em benefício da massa insolvente”. Observe-se, no entanto, que se destacou “em benefício da massa insolvente” porquanto o CIRE não retirou aos credores os meios individuais de conservação da garantia patrimonial. Porém, estes só são admitidos no caso de a resolução em benefício da massa insolvente (meio colectivos de reconstituição da garantia patrimonial dos credores) não ser exercido ou não ser exercido com êxito. O CIRE não retirou aos credores os meios individuais de garantia patrimonial porquanto o artigo 127.º prevê a impugnação pauliana em benefício do credor que a tenha requerido. É o que resulta do n.º 3 do artigo 127.º ao dispor que, julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 610.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos. A feição individual da impugnação pauliana resulta ainda do n.º 2 na parte em que estabelece que “as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apenas ao processo de insolvência”. Com efeito, as acções não são apensadas ao processo de insolvência porque o CIRE não atribuiu carácter colectivo a tais acções. Quando a acção impugnação tinha feição colectiva, como sucedia no domínio do Código de Processo Civil de 1961 e no domínio do CPEREF, a acção de impugnação pauliana corria por apenso ao processo de insolvência. É o que estava afirmado no n.º 1 do artigo 1204.º e no n.º 1 do artigo 160.º do CPEREF. Porém, como se escreveu acima, a impugnação pauliana (individual) só é admitida no caso de a resolução em benefício da massa insolvente (meio colectivo de reconstituição da garantia patrimonial dos credores) não ser exercida ou não ser exercida com êxito. É o que resulta do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 127.º ao dispor: Em síntese: no domínio do CIRE não é admissível a impugnação pauliana em benefício da massa insolvente, quer a impugnação seja deduzida pelo administrador da insolvência, quer seja deduzida por qualquer credor. O CIRE admite a impugnação pauliana de actos que tenham envolvida a diminuição da garantia patrimonial de algum credor, verificados os requisitos previstos no artigo 610.º do Código Civil, mas a impugnação pauliana aproveita apenas ao credor que a tenha requerido. Por outro lado, este meio individual de garantia patrimonial está subordinado à resolução em benefício da massa insolvente – que é um meio colectivo de conservação da garantia patrimonial – nos termos definidos pelo artigo 127.º do CIRE. A favor deste entendimento citam-se na jurisprudência: Na doutrina citam-se, a título de exemplo: Segue-se do exposto que também não vale contra a sentença o outro fundamento de recurso, constituído pela alegação de que a massa deve lançar mão da resolução em benefício da massa insolvente nos casos em que o administrador possa agir dentro da baliza temporal definida pela lei [a recorrente refere-se ao período previsto no n.º 1 do artigo 120.º do CIRE – actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência] e que, fora dessa baliza temporal, nada poderá impedir o administrador da insolvência de lançar mão dos meios de garantias reais, como estão previstos na lei civil, designadamente no artigo 610.º do Código Civil. * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. As custas serão suportadas pela massa insolvente.
Relator: Emidio Francisco Santos Adjuntos: 1º - Catarina Gonçalves 2º - Nunes Ribeiro |