Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
247/09.4GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
RECURSO
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 71.º E SGS., E 401.º, N.º 1, AL. C), DO CPP
Sumário: Não sendo conferida ao demandado cível a possibilidade de impugnar, por via de recurso, a vertente penal da sentença do tribunal da 1.ª instância, isso corresponde à impossibilidade, injustificada, de o mesmo contrariar, pela mesma via, a existência de todos os pressupostos do direito à indemnização.
Decisão Texto Integral:
Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

RELATÓRIO

1- No 1.º juízo criminal do Tribunal Judicial da Viseu, no processo acima referido, foi o arguido A... julgado em processo comum singular, tendo sido a final proferida a decisão seguinte:

Operando a alteração substancial dos factos descritos na acusação, condenado o arguido A...:

- pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. a), do C.P em concurso aparente com um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelo art. 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do C.P, na pena de doze meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir por doze meses;

- pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo art. 148.º, n.º 1, do C.P, na pessoa de D..., na pena de dez meses de prisão;

- pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. pelo art.         148.º, n.º 1, do C.P, na pessoa de B..., na pena de sete meses de prisão;

- pela prática de um crime de omissão de auxílio, p.p. pelo art. 200.º do Código Penal, na pena de dez meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, condeno o arguido na pena de um ano e dez meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

- julgada prescrita a contra-ordenação p.p. pelo art. 146.º, al. q) e 89.º, n.º 4, do C.E. imputada ao arguido;

- julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por B... e, em consequência, condenar a demandada C... – Companhia de Seguros S.A., a pagar-lhe: - a quantia de 2.000,00 €, a título de danos morais, acrescida de juros de mora desde a presente data até integral e efectivo pagamento; - a quantia de 1.039,00€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a prática do ato ilícito, até integral e efectivo pagamento.

No demais, julgado improcedente o pedido, dele absolvendo a demandada.

- julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado por D... e, em consequência, condenar a demandada C... – Companhia de Seguros S.A., a pagar-lhe: - a quantia de 40.000,00€, a título de danos morais, acrescida de juros de mora desde a presente data até integral e efectivo pagamento; - a quantia de 415,00€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a data da respectiva verificação, até integral pagamento.

No demais, julgado improcedente o pedido, dele absolvendo a demandada.

2 - Inconformada, recorreu a demandada cível “ C...- Companhia de Seguros “, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte:

- Deve o n.º 19 dos Factos Provados ser dado como provado nos seguintes termos: “e mais à frente e à sua esquerda caminhava D..., ademais com um casaco preto e calças azuis;

- Deve o nº 20 dos factos provados ser dado como provado nos seguintes termos: “nesta sua marcha ocuparam uma distância não concretamente determinada, mas nunca inferior a 1m do limite direito da via, relativamente ao ofendido D... e entre 0,50m e 1m relativamente ao ofendido B..., computando-se estas distâncias do limite do asfalto com a valeta do lado direito”;

- Deve o nº 23 dos factos provados ser dado como provado apenas no que tange ao seguinte segmento: “o arguido avistou os peões a 50m do local do embate”.

– Deve o nº 24 dos factos provados ser dado ser dado como provado nos seguintes termos: “por isso, ao aproximar-se deles e por que o B... tivesse caminhado para o interior da hemifaixa de rodagem por onde o arguido fazia circular a viatura que conduzia, embateu com a região lombar no espelho retrovisor direito daquela viatura”.

– Deve o nº 25 dos factos provados ser dado como provado nos seguintes termos: “por que o D... tivesse caminhado para o interior da hemifaixa de rodagem por onde o arguido fazia circular a viatura que conduzia, embateu com as suas pernas na parte frontal direita daquela viatura”.

- Deve o facto dado como não provado na al. kk) ser dado como provado nos seguintes termos: “tendo, a dada altura, e imediatamente antes da outra viatura ter por eles cruzado, o B... e o D... decidido atravessar a via, de modo a passarem a circular no passeio que a margina do lado esquerdo a via”.

– Deve o facto dado como não provado na al. nn) ser dado como provado nos seguintes termos: “No seguimento, iniciaram a referida manobra de atravessamento da via em plena reta, em local onde não havia passadeira destinada a esse fim”.

- Deve o facto dado como não provado na al. oo) ser dado como provado nos seguintes termos: “Não tendo, antes de iniciarem tal manobra, parado e olhado para o seu lado esquerdo”.

- Deve o facto dado como não provado na al. pp) ser dado como provado nos seguintes termos: “Quando lançaram o seu corpo para essa manobra, não viram que imediatamente atrás deles seguia o veículo conduzido pelo Arguido, veículo esse que eles, se tivessem olhado, para o seu lado esquerdo, lhes era totalmente visível”.

– Deve a culpa pelo eclodir do acidente ser imputável em exclusividade aos ofendidos, absolvendo-se, desta sorte, a recorrente dos pedidos de indemnização cível por eles contra ela deduzidos. Se assim se não entender, então, subsidiariamente,

– Deve a culpa no eclodir do acidente ser imputável aos ofendidos e à recorrente, na proporção de 1/3 para cada um deles, ou na proporção ou percentagem que o Tribunal venha a reputar mais adequada, condenando-se e absolvendo-se a Recorrente em conformidade e nesses precisos termos.

– Deve o valor da indemnização devida ao ofendido D..., para compensação dos danos não patrimoniais que lhe advieram do acidente dos autos ser fixada em 20.000,00 €.

– Deve o valor da indemnização devida ao ofendido B..., para compensação dos danos não patrimoniais que lhe advieram do acidente dos autos ser fixada em 1.000,00 €.

– Deve a data para início do vencimento dos juros moratórios devidos aos ofendidos, relativamente ao dano que cada um deles sofreu em sede da citação da recorrente para estes autos.

– Declarar-se nula a sentença na parte em que condenou a Recorrente a pagar ao ofendido D... juros moratórios, uma vez que, nesse segmento, o Mmº Juiz “a quo” conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, condenado em quantia superior ao do pedido.

- O Mmº Juiz “a quo” ao decidir nos termos que fez violou o disposto nos art.s 99º, 100º e 101º do CE, nos art.s 483º, 487º, 496º, 562º, 563º, 564º, 570º, 805º e 806º do CC e nos art.s 379º do CPP e 615º do CPC, por deles não ter feito a interpretação defendida neste Recurso.

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a sentença em reapreciação e absolvendo-se ou condenando-se a recorrente nos termos acima peticionados,

3- Nesta Relação, o Emo PGA, acompanhando o MP da 1.ª instância pronuncia-se pela ilegitimidade da recorrente no que toca à matéria de facto criminal. 

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência .

                                                  

5- Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos :

1. No dia 20 de Dezembro de 2009, cerca das 00h20m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Opel, modelo Astra, de cor preta, matrícula (...)RJ, com uma taxa de alcoolemia no sangue de 2,00 gr/litro

2. Fazia-o pela Rua Principal, no Bairro da Amizade, em Rio de Loba desta comarca de Viseu, a uma velocidade que, em concreto, não foi possível apurar,

3. com as luzes médias acesas,

4. pela via da direita, atento o sentido em que seguia: Viseu - Barbeita.

5. A rua constituía-se por estrada em alcatrão, em regular estado de conservação,

6. com uma via de trânsito em cada sentido,

7. pese embora no local do embate não existisse qualquer sinalização horizontal ou vertical.

8. O alcatrão estava seco, pese embora fosse visível gelo em alguns pontos da berma, do lado esquerdo atento o sentido de marcha do arguido.

9. A rua apresentava-se em traçado recto em mais de 150 metros de extensão,

10. e tinha perfil ligeiramente descendente, atento o sentido de marcha do arguido.

11. A rua era iluminada por candeeiros colocados no lado esquerdo, atento o sentido de marcha do arguido.

12. Àquela hora, a iluminação dada pelos candeeiros permitia a visualização da rua a, pelo menos, 100 metros de distância, quer atendo o sentido de marcha do arguido, quer em sentido oposto,

13. apesar de existirem, do lado direito da rua, atento o mesmo sentido de marcha do arguido e entre a luz projetada pelo candeeiros, zonas de penumbra.

14. A rua era ladeada de um e outro lado por casas de habitação.

15. No mesmo dia e hora seguiam a pé, caminhando na rua, no mesmo sentido Viseu - Barbeita, G..., B..., nascido no dia 17/08/1993, e D..., nascido no dia 30/08/1994.

16. Faziam-no também no lado direito da rua, pelo alcatrão, e considerando o sentido de marcha que o arguido levava.

17. G... trazia consigo duas fitas circulares colocadas uma no braço esquerdo, outra na perna esquerda, fitas essas refletoras, dotadas de “led’s” e que circundavam os membros onde estavam colocadas, emitindo luzes de cor vermelha, quer para trás, quer para a frente, considerando o seu sentido de marcha.

18. À sua frente, a distância não concretamente apurada, mas entre 1 a 2 metros, caminhava B...,

19. e, um pouco mais à sua frente, embora quase junto a si e ligeiramente à sua esquerda, caminhava D... vestido, ademais, com um casaco preto e calças azuis.

20. Nesta sua marcha ocupavam cerca de 50 cm da rua, computados estes desde o limite do asfalto com a berma, ao seu lado direito.

21. Também nesse mesmo dia e hora, mas no sentido Barbeita Viseu, oposto aquele em que seguiam o arguido e os peões, seguia H..., que conduzia o seu veículo automóvel, com as luzes de médios acesas.

22. O arguido, ao aproximar-se do local onde seguiam os peões, por um breve lapso de tempo, deixou de atentar em toda a largura e extensão da estrada que ficava à sua frente,

23. não calculando adequadamente o tempo da aproximação aos peões e o espaço que estes ocupavam na via para poder por eles passar sem neles embater e apesar de já os ter visualizado, pelo menos, 50 metros antes.

24. Por isso, ao aproximar-se deles fez embater o espelho retrovisor direito do veículo por si conduzido na região lombar esquerda de B...,

25. E a parte frontal direita do mesmo veículo nas pernas de D....

26. À aproximação dos peões o arguido não accionou o sistema de travagem do veículo, não o fez imobilizar nem o fez virar / guinar para a esquerda, atento o seu sentido de marcha.

27. Só após o embate nos peões o arguido fez virar o veículo para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadindo a faixa de rodagem contrária e obrigando H... a fazer uma manobra evasiva, guinando o veículo por si conduzido para a direita, atendo o seu sentido de marcha.

28. O arguido fez o veículo por si conduzido retomar o trajecto originário que trazia e prosseguiu a marcha.

29. Contudo, o arguido veio a perder o controle sobre o veículo, deixando que este saísse da faixa de rodagem e caísse para um lameiro, onde se imobilizou, a cerca de 217 metros do local onde havia embatido nos peões.

30. O arguido abandonou o veículo e seguiu a sua marcha a pé, sem que indagasse do estado físico dos peões embatidos, sem que lhes prestasse socorro ou accionasse os meios de socorro,

31. Não obstante saber que, pela forma como neles fez embater o veículo por si conduzido lhes poderia ter provocado lesões ou mesmo a morte e que lhes devia prestar auxílio.

32. No local onde o embate nos peões ocorreu, o pavimento em alcatrão terminava, lateralmente, do lado direito, atento o sentido de marcha do arguido e dos referidos B... e D..., numa valeta com 0,83m de largura por 0,15m de profundidade,

33. valeta esta sobre a qual existiam passadiços em cimento destinados ao acesso às habitações que desse lado marginavam com rua.

34. Já do lado esquerdo, o pavimento de alcatrão terminava num passeio em cubos de pedra com l,86m de largura, delimitado por um lancil de cimento,

35. passeio este que, à data, se encontrava livre e desimpedido.

36. O pavimento da rua em alcatrão, desde a valeta do lado direito até ao lancil de cimento, do lado esquerdo, tinha uma largura de 7,80m.

37. Com o embate, B... foi projetado para o lado direito, atento o seu sentido de marcha e o sentido de marcha do arguido, vindo a cair para a valeta.

38. Por sua vez, D... tombou sobre o capô e pára-brisas dianteiro do veículo, vindo a parti-lo, e foi por este transportado ao longo de 21 metros, acabando por vir a cair no alcatrão, onde ficou, a cerca de 2,70m da berma direita, atento o sentido de marcha do arguido.

39. B... foi transportado para o Hospital de São Teotónio de Viseu, onde foi submetido a exames de diagnóstico, tendo-se constatado a existência de traumatismo esplénico e de uma pequena quantidade de líquido peri-esplénico.

40. Estas lesões foram causadas pelo embate.

41. Determinaram a B... 8 dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

42. B... teve alta com indicação de repouso, toma de analgésicos em SOS e vigilância do traumatismo abdominal, o que cumpriu durante cerca de 10 dias.

43. Até à cura, B... sentiu dores.

44. D... foi também transportado para o hospital de Viseu, onde esteve internado durante 8 dias .

45. Aí, constatou-se em D... a existência de amnésia circunstancial, suspeita de traumatismo espelénico, com posterior verificação de pequena lâmina de derrame peri-esplénico, contusão opercular direita, e membros inferiores, EG 14, ferimento no couro cabeludo, com subsequente internamento no serviço de Pediatria – Cirurgia 2, tudo o que foi fruto do acidente.

46. Teve alta em 25-12-2009.

47. Após a alta, usou canadianas durante cerca de 15 dias.

48. No exame médico de 26.7.2010, apresentava cicatrizes de ferida, escoriações na região médio dorsal, terço inferior, numa extensão de dezassete por onze centímetros, fruto do acidente.

49. Em 14-1-2013 estava queixoso por dor localizada ao joelho direito, apresentava marcha normal, sem apoio nem claudicação, discreta crepitação do joelho direito, sem limitações articulares e sem amiotrofia da coxa.

50. Em ressonância magnética ao joelho direito, em 7.2.2013, verificou-se existir uma rotura praticamente total (de 75%) ligamento cruzado anterior e rotura da ponta posterior e porção posterior do corpo do menisco interno, o que foi também fruto do acidente.

51. O deficit funcional temporário, correspondente ao período durante o qual D... viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da sua vida diária, familiar e social foi total durante 6 dias e parcial durante 189 dias.

52. A repercussão temporária na actividade profissional, correspondente ao período durante o qual D... viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua actividade profissional habitual foi total durante 6 dias e parcial durante 189 dias.

53. O quantum doloris, correspondente ao sofrimento físico e psíquico vivenciado desde o acidente até à consolidação das lesões é fixável em grau 4, numa escala crescente de 7 graus

54. Ainda em consequência do acidente, D... ficou a padecer de défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica, correspondendo à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, de 9 pontos, em 100, sendo de admitir a existência de sequelas futuras.

55. Tendo em conta as sequelas descritas, já constatadas, estas são compatíveis com o exercício habitual de actividade profissional, mas implicam esforços suplementares.

56. Finalmente, a repercussão permanente das sequelas descritas, já constatadas, nas actividades desportivas e de lazer é fixável em grau 5, numa escala crescente de 7 graus.

57. Actuando da forma descrita, o arguido agiu com falta de cuidado, que podia e devia ter observado, omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis para quem conduz veículos automóveis, assim vindo a causar, por inconsideração, um resultado que podia e devia prever.

58. Devido à presença de álcool no sangue o arguido não dispunha de capacidades para, com segurança, conduzir veículos nas vias públicas.

59. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra integridade física dos peões que circulassem na rua.

60. O arguido conhecia o efeito da ingestão de bebidas alcoólicas sobre a condução de veículos, e o perigo que daí advinha para terceiros, não se tendo abstido, ainda assim de, sob o seu efeito, conduzir veículo automóvel.

61. O arguido sabia que a quantidade de bebidas alcoólicas que havia ingerido poderia determinar uma taxa de álcool superior a 1,2 g/l de álcool no sangue e, não obstante, decidiu conduzir

62. O arguido sabia que estava obrigado a prestar auxílio aos peões em que embateu e, não obstante, decidiu abandonar o local, só regressando depois de ter sido prestado auxílio pelo INEM que foi chamado por outrem ao local.

63. O arguido sabia que estas suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que o faziam incorrer em responsabilidade criminal.

64. Por contrato de seguro titulado pela apólice número 004239369 o Arguido transferiu para a Demandada a responsabilidade civil automóvel referente à circulação veículo Opel Astra matrícula (...)RJ.

65. Nos dias subsequentes ao acidente, já em casa, B... teve dificuldade em dormir e era assolado por pesadelos com acidente

66. O casaco e calças que B... vestia ficaram raspadas e rasgadas, tendo as calças custado um valor situado entre os 20,00€ e os 30,00€ e o casaco custado 100,00€.

67. Também a carteira de B..., no valor situado entre os 15,00€ e os 20€, desapareceu no acidente com todos os elementos de identificação, tendo sido obrigado a tirar o Cartão do Cidadão e os outros documentos, o que importou um custo que valor que, em concreto não se logrou apurar.

68. B... tinha consigo um telemóvel iPhone novo, que lhe havia sido oferecido, como prenda, pela sua tia, no dia anterior, no valor situado entre 650,00€ e 700,00€ e um telemóvel LG, que era o seu telemóvel de uso pessoal, que lhe havia custado 204€,

69. O iPhone ficou quebrado e o telemóvel LG desapareceu.

70. D... Sofreu dores, quer no momento do embate, quer nos dias que se seguiram.

71. Ainda actualmente D... sente ocasionalmente dores na perna direita.

72. Nos dias subsequentes ao acidente, depois de regressar a casa, D... teve dificuldades em dormir e acordava sobressaltado.

73. D... praticava a modalidade de futebol amador.

74. E fazia passeios de bicicleta BTT e corridas com os colegas.

75. D... deslocou-se ao centro de saúde familiar de Viseu no pretérito dia 13.12.2011 para consulta com médico especialista, para observação do joelho da perna direita.

76. Para pagamento daquela consulta, D... despendeu a quantia de 75,00 €.

77. D... deslocou-se ainda a um outro médico especialista, da especialidade de ortopedia, para observação do joelho da perna direita, o que fez no dia 19.12.2011, tendo-lhe sido emitido o relatório médico de fls. 407.

78. Para pagamento dessa consulta D... teve que despender a quantia de 120,00 €.

79. Na decorrência das diligências para a realização do exame pericial de fls. 651 a 655, D... fui sujeito a exame de Ressonância Magnética e a dois exames de Raio X.

80. Para pagamento desses exames, despendeu a quantia global de 220,00€ euros.

81. Nas análises laboratoriais a que foi submetido, constatou-se que D... tinham 0,03gr/l, no sangue, de álcool e etílico.

82. B... e D... tinham estado num jantar de natal do Rancho Folclórico do Caçador.

83. Foram deixados na EN16, por um veículo que os transportou, tendo depois virado e percorrido uma rua que dá acesso à Rua Principal do Bairro da Amizade, Rua esta (a Rua Principal) situada à esquerda daquela de onde B... e D... provinham.

84. O arguido não tem antecedentes criminais.

85. O arguido trabalha por conta de outrem, auferindo salário mensal de 800,00€ mensais.

86. O arguido vive com uma filha, desempregada, em casa própria.

87. Para além das despesas mensais em bens essenciais de valor que, em concreto, não se logrou apurar, o arguido paga mensalmente a quantia de 120,00€ pelo reembolso de um crédito pessoal e a quantia de 20,00 para o Lar de S. Caetano, onde a mãe está acolhida.

88. O arguido completou a 4.ª classe e, já enquanto trabalhador e no âmbito da sua actividade profissional, fez formação profissional que lhe deu formação equivalente ao 12 ano de escolaridade.

89. O arguido não conduz habitualmente veículos automóveis.

E deu-se como não provado :

a. O arguido só se viria a aperceber da presença dos peões à sua frente quando deles se encontrava a distância não concretamente apurada, não conseguindo evitar embater nos peões D... e B....

b. O arguido perspectivou a possibilidade de, da sua conduta, poder resultar lesão grave da integridade física dos peões D... e B...e mesmo a sua morte, o que só não aconteceu por circunstâncias independentes da sua vontade, conformando-se com tal resultado e possibilidade.

c. Nas análises laboratoriais a que foi submetido, constatou-se que o B... tinham 0,03gr/l, no sangue, de álcool etílico.

d. O jantar onde B... e D... haviam estado ocorreu no "Milho Rei", sito em Rio de Loba.

e. B... foi informado no Hospital de que decorrido que fosse algum tempo depois do acidente teria de ser sujeito a mais exames, a fim de averiguar da necessidade de lhe ser removido o baço, encontrando-se ainda a aguardar ser chamado pelo Hospital para a realização dos exames.

f. Por via das dores que sentia e da necessidade de permanecer em repouso B... passou o Natal de 2009 e a Passagem do Ano na cama, isolado do convívio com familiares e amigos, e carecia do auxílio da sua mãe para as mais básicas tarefas.

g. B... teve e ainda hoje tem receio de ter de ser submetido a operação cirúrgica de remoção do baço, o que lhe provoca angústia e nervosismo.

h. Até à data do acidente, B... sempre havia sido um jovem alegre, bem-disposto e divertido, tendo-se tornado depois deste, e por causa deste, sisudo e receoso, tendo medo de andar a pé perto de estradas, e medo de veículos automóveis

i. Deixou de passar no local do acidente e, sempre que tem de circular a pé próximo de veículos automóveis fica nervoso, agitado, angustiado.

j. Recorda constantemente com dor e angústia o momento do acidente e o facto de ter sido deixado ao abandono, sem auxílio.

k. D... apresenta, ainda agora, dificuldades de flexão da perna direita.

l. D... desde o acidente que se encontra impossibilitado de correr, andar de bicicleta, jogar futebol ou dançar e outras atividades que impliquem esforço físico nas pernas.

m. D... fazia com muita frequência passeios de BTT.

n. D... desde o acidente nunca mais pôde praticar aquelas atividades.

o. D... era irreverente, extrovertido, brincalhão e alegre, características que perdeu por via do acidente.

p. Perdeu igualmente alegria, felicidade e entusiasmo.

q. Agora, D... encontra-se quase sempre triste, não tem vontade de sair de casa e de estar com os amigo, porque não pode praticar com eles grande parte das actividades que era habitual praticarem.

r. As lesões sofridas no joelho direito ainda não estão curadas.

s. É previsível que D... tenha de ser operado ao joelho direito

t. Depois de terem sido deixados pela carrinha do rancho em Fragosela e de D... ter ido a casa dele buscar um casaco, resolveram ir até ao "Café Fontes", sito em Barbeita, para carregarem os telemóveis.

u. O aludido café estiva fechado pelo que, em vez de voltarem para casa, retornando por onde tinham ido, decidiram continuar Rua do bairro da Amizade.

v. As fitas que G... trazia apenas emitiam uma luz vermelha intermitente para a sua frente e possuíam tiras reflectores na parte de trás.

w. O arguido conduzisse o seu veículo a velocidade não superior a 50 km/h

x. Desde a EN n.º 16 até entrarem na Rua Principal do Bairro da Amizade, B... e D... tenham percorrido 120 metros.

y. Quando o veículo conduzido pelo arguido estava a cerca de 100 m do local onde se situava o objecto que reflectia luz apercebeu-se do veículo conduzido por H...

z. As duas viaturas, a conduzida pelo arguido e a conduzida por H... estivessem, sensivelmente, à mesma distância dos peões e circulando à mesma velocidade,

aa. O veículo conduzido por H... seguia a uma velocidade aproximada à do conduzido pelo arguido.

bb.     Por via disso, a aproximação aos peões foi feita em simultâneo.

cc. O arguido, a 50 metros do local do embate, não se tivesse ainda apercebido que eram peões que circulavam na via, por causa da distância a que estava, do local onde seguia o objecto que reflectia as luzes do seu carro e da deficiente iluminação do local

dd. Ao aproximar-se do objecto na via, que reflectia luz,, por uma questão de cautela desviou-se um pouco mais para o eixo da via e abrandou um pouco a velocidade a que seguia,

ee. G... B... se fizessem vestir de roupa escura.

ff.      Como a aproximação aos peões foi feita em simultâneo com a do carro          conduzido               por H..., a iluminação deste carro acabasse por ir sucessivamente anulando, para o arguido, a visualização do efeito reflector das luzes do seu carro no objecto que visualizara, bem assim, impedindo ou dificultando sobremaneira a visualização do espaço imediatamente a seguir, situado entre ele e a outra dita viatura. Isto é, a certa altura, por efeito das luzes das viaturas na vista humana, entre as duas viaturas houve um espaço de penumbra quase total para o arguido.

hh. O arguido não viu que à sua frente seguiam os três peões.

ii. Para agravar a situação, os peões seguiam em alegre, divertida e desinibida conversação sobre "miúdas" e, quiçá por isso, pela idade deles, tudo isto associado aos efeitos do álcool que haviam consumido, à atenção que terão passado a dar ao carro que se lhes apresentava pela frente, ao efeito que as luzes e o ruído desta viatura tiveram na anulação do ruído e das luzes do RJ e à descontracção, desconcentração, e alheamento que tinham relativamente ao trânsito que por aquela via e no mesmo sentido em que eles vinham, se fazia sentir,

jj. Mantiveram-se posicionados na via não se inibindo de assim prosseguir a sua marcha e sem terem a percepção de que atrás deles se aproximava o RJ,

kk. Tendo, a dada altura, e imediatamente antes da outra viatura ter com eles cruzado, o B... e o D... decido atravessar a via, de modo a passarem a circular no passeio que a margina do lado esquerdo a via.

ll. Para tanto calcularam que poderiam atravessar a via até, sensivelmente, ao seu eixo, momento em que, quando lá chegassem, a outra viatura ou já por eles teria passado ou estaria a passar.

mm. Pelo que, se necessário fosse, aguardariam perto do aludido eixo da via que a outra viatura por eles passasse para que eles, após isso, pudessem terminar a manobra que tinham iniciado, chegando ao referido passeio situado no limite esquerdo da estrada.

nn. No seguimento, iniciaram a referida manobra de atravessamento da via em plena recta, em local onde não há passadeira destinada a esse fim, e de forma oblíqua relativamente ao traçado da via.

oo. Não tendo, antes de iniciarem tal manobra, parado e olhado para o seu lado esquerdo.

pp. Quando lançaram o seu corpo para essa manobra não viram que imediatamente atrás dele seguia o veículo conduzido pelo arguido, veículo esse que, se eles tivessem olhado para o seu lado esquerdo, lhes era totalmente visível.

qq. Por causa do posicionamento que o B... e o D... tinham na via , o arguido não os viu,

rr.      Tendo tido apenas a percepção de que tinha embatido em algo.

ss. Exactamente porque não teve a percepção de que o B... e o D... seguiam na via é que o arguido não se desviou deles, travou, imobilizou ou fez qualquer sinal de luzes ou sonoro avisador da sua presença.

tt.      Que o embate do veículo conduzido pelo arguido em D... deu-se num ponto situado a cerca de 1m do limite direito da via atento o sentido de marcha do arguido.

uu. Na altura do acidente B... vestia um casaco de cabedal preto, uma camisola de lã e umas calças de ganga,

vv. Nos dias que se seguiram ao acidente D... teve muita dificuldade em alimentar-se.

ww. Não conseguia descansar,

xx. Encontrava-se num estado constante de sobressalto,

yy. Tinha e ainda tem pesadelos por causado acidente

zz.      e sentiu revolta.

aaa. Após a data do acidente e durante o ano escolar então em curso, D... não conseguia concentra-se nos estudos por via das dores, e por parte do seu tempo ter sido passado a ser ocupado com sessões de fisioterapia e consultas médicas.

                                                   +

FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação apresentada, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.

Questão prévia : da ilegitimidade da recorrente.

Quer o MP na 1.ª instância quer o Exmo PGA sustentam que a recorrente não tem legitimidade para impugnar a matéria de facto relativa aos crimes, devendo o recurso ser confinado à matéria de natureza cível.

Dispõe o artigo 401.º do CódProcPenal : «Legitimidade e interesse em agir : 1 - Têm legitimidade para recorrer: (…) ; c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas.  2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».

Assim, em sede de recursos, a legitimidade pressupõe por parte do recorrente um interesse directo na impugnação do acto, concebendo-se tal pressuposto processual como uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através da via recursória.

Ora a verdade é que na grande parte dos casos os fundamentos objectivos da acção penal e dos pedidos cíveis coincidem, pois que a realização dos pressupostos da responsabilidade civil, nos termos do art. 483.º-1 do CódCivil ((1) a existência de um facto voluntário, (2) a ilicitude da conduta, (3) a imputação subjectiva do facto ao agente e (4) a existência de um dano, (5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano) pressupõem que se faça a prova dos elementos constitutivos do crime, ou seja, a acção típica e ilícita, a culpa (sentido lato) e o nexo causal.

Sustentar que o demandado cível não pode pôr em causa no recurso a parte penal da decisão, pedindo, por exemplo a alteração da matéria de facto, é esquecer que além de que essa limitação não está expressa em nenhuma norma legal (vg o art. 401.º do CodProcPenal e o art. 73.º do mesmo diploma), ela é contrária aos interesse e direitos dos intervenientes e à realização da justiça, e não tem qualquer justificação do ponto de vista da economia processual. Ou seja, não se dando ao demandado cível a possibilidade de impugnar a parte penal, está-se a proibir que ele possa contrariar a existência de alguns pressupostos do direito à indemnização e a tratá-lo de forma diferente caso ele tivesse sido demandado apenas pela acção civil, em que aí lhe seria reconhecido o direito de recorrer. De outro modo : o direito ao recurso, apesar de consagrado na lei, de pouco valeria se não fosse permitido ao lesado, nos casos de admissibilidade de recurso, discutir perante o tribunal superior a decisão do tribunal de 1.ª instância, isso equivaleria a negar-lhe a possibilidade de contrariar o pedido civil.       Para melhor ilustrar as incongruências a que pode levar a tese da ilegitimidade, pense-se, por exemplo, que A vai a conduzir um veículo com excesso de álcool, cometendo o crime do n.º1-a) do art 69.º do CódPenal, mas respeitando todas as regras de condução estradal (velocidade, posição na estrada, etc) ; a dado momento e por algum motivo, um carro que vem em sentido contrário ao do veículo de A sai da sua faixa de rodagem e vem embater no carro de A, daí resultando mortos ou/e feridos ; se porventura A for condenado pela prática dos crimes de ofensa à integridade física por negligência e/ou de homicídio negligente, e resultar da própria sentença ou da prova produzida que não foi a conduta de A que provocou o acidente, e se este A não recorre, temos então que a seguradora do veículo de A não pode questionar a inexistência da responsabilidade penal de A e de assim conseguir excluir a sua própria responsabilidade civil, ao arrepio aliás do disposto no artº 402º, nº 2, alínea b), do CódProcPenal, que estabelece que o recurso interposto pelo responsável civil «aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais».

Mas, para levar mais longe o absurdo daquela tese, pense-se que A recorre e tem ganho de causa. Nos termos do art. 402.º-2-b) do CódProcPenal, a seguradora tem de ser absolvida da demanda cível. Mas então a seguradora não pode aderir ao recurso de A ou intentar um recurso autónomo, tendente a excluir aquela responsabilidade?

No caso que nos ocupa, a demandada seguradora pretende que o seu segurado não praticou as acções integrantes do crime de ofensa à integridade física, ou que pelo menos a culpa do seu segurado é menor, e que até há concorrência de culpas, com evidente reflexo na responsabilidade civil, seja por exclusão da obrigação de indemnizar, seja por redução quantitativa daquela obrigação, e não se vê como o possa fazer se não puder impugnar a matéria de facto na parte criminal.

Pelo que é parte legítima.

Porque vem questionada a matéria de facto e o juízo que levou à respectiva fixação, importa começar por deixar expostos os meios de prova e as razões de convicção do tribunal convicção, em resumo e com interesse:

« (...) o arguido, que prestou declarações sobre os factos que se lhe imputavam na acusação, declarações essas nas quais admitiu alguns dos factos imputados, não questionou a ocorrência de outros – com isso se interpretando que os tidos por verdadeiros - e, na parte mais relevante, deu a sua explicação para o embate nos peões, explicação essa que afastaria a sua culpa pelo embate – em suma, que os peões atravessaram a via inadvertidamente, no preciso momento em que nela circulava, tornando impossível evitar o embate e, nessa medida, dando-lhe causa; ainda, e concomitantemente, justificou o seu comportamento posterior – fuga do local – com o estado de pânico em que entrou

Foram também ouvidos os ofendidos D... e B..., merecendo nota que, na sua globalidade, o que disseram afigurou-se verosímil e isento, havendo de fazer-se duas ressalvas: a primeira a de que o ofendido D... não tinha qualquer memória do embate em si, por via da amnésia dele decorrente; a segunda, a de que não se afigurou verosímil – sem que isso turvasse o demais dito – que os peões seguissem em perfeita fila indiana, quer porque a dinâmica do embate aponta em sentido diverso – só dois foram atingidos e de formas diversas – quer porque o depoimento da testemunha H... resultou que os peões circulavam nos termos provados.

Das testemunhas ouvidas apresentaram-se com conhecimento presencial do embate em si, o peão não embatido, G... e a referida testemunha H..., não tendo existido razões para duvidar das suas razões de ciência.

O depoimento de H... foi essencial para o apuramento da dinâmica do acidente, tendo sido absolutamente credível, fiável e parte fundamental – para além dos dados documentais – na infirmação da versão do arguido.

Contudo, o mesmo não sucedeu com o depoimento da testemunha G..., o peão que não foi embatido, tendo apresentado em julgamento uma versão diversa daquela que relatou no inquérito, o que se constatou pela confrontação com as declarações então prestadas, declarações essas lidas no julgamento a requerimento do próprio arguido. Quanto a esta testemunha tal discrepância foi o bastante para se desconsiderar o seu depoimento na sustentação da concreta dinâmica do embate – embora noutros aspectos credível e fiável porque consonante com os demais meios de prova - e com fundamento na sua falta de fiabilidade e credibilidade: quer porque não pode haver duas versões sobre a ocorrência do mesmo facto, quer porque, apesar de ter estado no local, ficou patente que esta testemunha não reteve na sua memória aquilo que eventualmente terá presenciado. Antes decorreu, quer do que disse em julgamento e pela forma como o disse, quer do que disse em inquérito, e também pela forma como o disse, que é uma pessoa com pouca ou nenhuma memória visual, facilmente sugestionável (uma pessoa que, no dizer popular “diz com todos” ) e com poucas capacidades intelectuais, mesmo ao nível da memória. Numa análise detalhada do seu depoimento, em inquérito, impressionou que esta testemunha não fosse sequer capaz de assinar o seu nome de forma adequada (sem ser lapso de escrita, como se alcança de fls. 203, escrevendo “Jorrege” em vez de “Jorge”) tendo que repetir a escrita do 2.º nome próprio, algo que qualquer aluno normal faz, no final da primeira classe; impressionou que, simultaneamente, tivesse tanto detalhe e a precisão na afirmação de distâncias (cf. fls. 201 e 202), o que não poderia ter, seguramente, quer pelo caráter inesperado e traumático do evento, quer pela idade que tinha à data dos factos, sendo esse detalhe sugestivo, antes, de indução na resposta, porventura inconsciente, do inquiridor; impressionou ainda o facto de ter dito que o D..., quando colhido “ia mais ou menos a meio da via”, quando se encontrava a atravessar, mas na imagem que lhe foi presente, a fls. 203, assinalou uma posição diversa, diversidade essa que, nem de perto nem de longe, coloca D... no meio da via, antes e porventura (e a olho nu) a cerca de um metro da berma direita e nem sequer no meio da hemi-faixa direita. Daqui não resulta que esta testemunha tenha, conscientemente, faltado à verdade porque fica em aberto a possibilidade de, pelas suas fracas capacidades rememorativas, ter preenchido as omissões da sua memória1 com suposições ou conclusões que retirou de pequenos trechos ouvidos, de imagens ou mesmo de sugestões inconscientemente assimiladas. Contudo, não explicou no inquérito porque é que não atravessaram todos juntos e ao mesmo tempo, se todos vinham juntos. E tanto assim é, que nenhuma outra razão poderia haver para dizer o que disse em inquérito, quando do depoimento da testemunha H... resultou inequivocamente, e por afirmação expressa, que os peões iam a caminhar normalmente e que, de todo, não iam a atravessar a estrada para o outro lado!

Fechado este parêntesis, pese embora o desaproveitamento do que disse na sustentação da concreta dinâmica do embate, a demais prova produzida permitiu a afirmação dos factos provados e, em simultâneo, infirmar - porque, por natureza, incompatível - a versão do arguido e a versão da contestação cível, esta, amiúde, feita de meras conjunturas e suposições.

(…) foi incontroverso no julgamento o dia, hora e local do embate, o veículo interveniente, a pessoa do condutor, a identidade dos peões embatidos e o sentido que levava, não se podendo saber embora qual a velocidade a que o arguido seguia por via da falta de registo idóneo e fiável para tanto, sendo insuficiente a afirmação do arguido, que se bastou por dizer, mais conjeturando do que afirmando, que ia a 30 ou 40 km/h - ou seja, o próprio não estava certo da velocidade a que seguia - e sendo nada fiável a percepção da própria velocidade por via do estado de influência alcoólica em que se encontrava e dos efeitos sensoriais que esta provoca, com a taxa como aquela que o arguido seguia. E, quanto a esta, resultou expressa, sem que fosse questionada, do talão de controle de fls. 6.

(…) Foi pacífico também o sentido de marcha dos peões, e lugar por onde o faziam antes do embate nos termos provados (em 15. e 16.) – todos os afirmaram bem assim como o arguido - pese embora a controvérsia sobre as respectivas posições na via. Ainda quanto a esta matéria, as respectivas idades dos ofendidos resultaram dos elementos de identificação e dados clínicos juntos aos autos.

As características do local do embate - este que se julgou ser aquele provado por via das indicações dadas pelo ofendido B..., das testemunhas G... e H..., consonantes com o que se fez constar no croquis da participação do acidente de viação, de fls. 88 - estão documentadas por via do aludido croquis e por via dos já referidos documentos de fls. 265 a 279, o que permitiu a afirmação do que se veio a provar em 32., 33, 34, 35 e 36, características essas que também não foram objeto de controvérsia.

A forma como G... trazia colocadas as fitas, foi afirmado pelo próprio, nos termos provados, não se tendo visto razão para desacreditar no que disse, nesse particular. A forma de funcionamento, essa veio a ser constatada na observação de fls. 228, confirmada em julgamento pela testemunha I..., que relatou o seu funcionamento, nomeadamente no particular aspecto da emissão de luz e nos termos em que a mesma ocorria.

O ponto fulcral da dissidência probatória, e sobre ele versou parte essencial do julgamento, teve a ver sobre a exata posição dos peões na via.

Quanto a esta matéria, o contributo do arguido para a solução foi nulo. Nulo também foi, pelas razões já expandidas, o depoimento da testemunha G.... Em D... encontrou-se a limitação da amnésia e no depoimento de B..., a fraca credibilidade quanto à posição na via: é pouco credível, e pouco consonante com as regras da experiência, que à hora dos factos, com o trânsito reduzido ou quase nulo, três jovens vindos de um jantar, seguissem em perfeita fila indiana, em silêncio. O natural é que viessem a conversar e, apesar de seguirem uns à frente dos outros, não viessem em fila indiana perfeita e que porventura, ainda que ocasionalmente se ladeassem para conversar, mesmo que, se necessário, atempadamente e à aproximação de veículos, se repusessem em fila indiana. Por isso, foi decisiva quer a forma como o embate ocorreu, patente nas lesões provadas, quer o depoimento da testemunha H.... Neste particular, é iconográfico que o peão G... não tivesse sido embatido, que B... viesse a ser atingido apenas lateralmente e que D... viesse a ser totalmente atingido. Isto indicia que não seguiam em perfeita fila indiana; antes, que seguiam nos termos provados, sendo certo que nada aponta no sentido que o arguido seguisse uma trajetória diagonal, caso em que, seguramente, teria seguido para a valeta, o que não foi o caso.

Por outro lado, e se isto não bastasse, H..., com fiável razão de ciência, foi peremptório em afirmar que, no sentido em que vinha, com luzes ligadas, como se provou em 21., e por via da iluminação da Rua, não só viu o carro do arguido, com luzes ligadas, como os peões, isto a cerca de 100 metros de distância, como identificou as respectivas posições, tudo nos termos provados em 17., 18. 19. e 20. Mais ainda, não teve dúvidas em afirmar que o arguido seguia “a direito”.Acrescendo, e aqui já consonante com as declarações de B..., foi também peremptório em afirmar que os peões não só não vinham na brincadeira, como não iam a atravessar a via, o que contraria de forma irrefutável a versão do arguido. Por outro lado, foi também peremptório em dizer que o arguido não guinou para a esquerda antes do embate; ao invés, que embateu e só depois veio a guinar à esquerda, também nos termos provados e pela forma provada em 27 e subsequente continuação da marcha nos termos provados em 28., no que encontrou coincidência na afirmação do peão G....

Aliás, e ainda neste particular, o próprio arguido afirmou que não travou antes do embate e, naturalmente, também não parou o veículo, como se provou em 26., pese embora, na sua versão, por razões diferentes das provadas.

A versão do arguido, portanto, que resultou não provada, saiu irremediavelmente prejudicada por força destes meios de prova. Aliás, acrescenta-se, se os peões se encontrassem a atravessar, como é que D... não teve lesões na perna esquerda? Porque não havia identidade de lesões nos peões atravessantes? Porquê haveriam de atravessar quando vinha um carro em sentido contrário, para parar, eventualmente no eixo da via?

A dinâmica do embate, por isso, considerando que o arguido admitiu que viu os peões a pelo menos 50 metros de distância, como se provou, só se compreende por via das razões provadas em 22 e 23, que são as que se prefiguram como lógicas e porque inexistem outras que o justifiquem: o pavimento estava em estado regular, como resulta documentalmente dos referidos documentos de fls. 265 a 279, o veículo do arguido estava em regular estado de funcionamento, aliás certificado quer pela ficha de homologação quer pela ficha de inspeção, de fls. 110 e 111, o tempo bom, como resulto testemunhalmente e documentalmente – das testemunhas H... e dos peões, constatado no auto de notícia e participação de acidente de viação de fls. 84 a 89 - o arguido não invocou a existência de problemas de travagem ou de falta de aderência do piso, o que torna irrelevante a existência de gelo ou outras substâncias perturbadoras da aderência.

Concomitantemente, o arguido conduzia com a taxa de álcool no sangue muito elevada esta que, como resulta da prova pericial, de fls. 681 a 683 - e já mesmo do conhecimento comum2, tal a massificação na divulgação das consequências da ingestão de bebidas alcoólicas - provoca uma diminuição das capacidades psicomotoras, nomeadamente do tempo de reflexo da atenção e da percepção, o que justifica o seu comportamento na condução: se, como disse, viu os peões atempadamente, e não foi capaz de se desviar, de travar, ou de passar por eles sem lhes embater – fazendo-se notar que, se a via tinha 7,80m no lugar do embate, o arguido tinha disponíveis para circular, na sua hemi-faixa de rodagem, 3,90m e mesmo que os peões ocupassem 1m da via, tinha ainda disponíveis 2,90 metros para passar com o seu carro sem invadir a hemi-faixa contrária, carro esse que, segundo a ficha de homologação(cf. fls 110), tem apenas 1,71 metros de largura, sobrando ainda, portanto, 1,19m - a única explicação possível só pode ser aquela que se provou.

Aliás, foi também por via dos efeitos do álcool no sangue que se concluiu, nos termos provados em 58, a falta de condições de segurança para a condução, sendo certo que o arguido revelou ser conhecedor daqueles efeitos e do perigo da condução nessas circunstâncias, tal como se provou em 60, efeitos esse que também se podem considerar do conhecimento comum, pelas mesas ante expostas.

Ainda que o arguido não soubesse qual a concreta taxa de álcool, o que se compreende, é certo que o arguido declarou que no dia dos factos bebeu mais que o habitual e que tinha noção, não só disso, como que já não devia conduzir, tendo sido imprudente, como também disse, pela confiança, errada, de que nada iria acontecer, até porque estava perto de casa. Ora, sabendo o que bebeu, ao ponto de ter a taxa que tinha, muito elevada, conhecidas que são as consequências da ingestão de bebidas alcoólicas, o arguido não poderia deixar de sentir as alterações sensoriais respectivas – que ademais justificam o embate – e, por isso, deixar de saber que a taxa de álcool poderia ser igual ou superior a 1,2 g/l., revelando o seu comportamento a opção voluntarista pela condução. Daí o que se veio a provar em 61.

(…) o arguido contou que tivesse atropelado os peões, do que só se veio a aperceber apenas quando foi com o pai ao local onde o carro deste se tinha despistado, e quando teve contacto com os elementos da GNR aí presentes. E, como ficou claro das suas declarações, esta testemunha e o arguido apenas regressaram ao local do despiste para verificarem onde e como estava o carro do arguido, sem que este lhe tivesse manifestasse qualquer intenção de ir prestar socorro aos peões, ou qualquer arrependimento por ter deixado o local. E tudo o demais que relatou, não foi senão a sua convicção e a interpretação dos factos de que teve conhecimento, sem que tal convicção servisse para o que quer que fosse, porque afinal não é nenhuma perita e tão pouco depôs sobre questões que versassem conhecimentos técnico-ciêntificos.

Na verdade, não se pode compreender nem justificar a conduta do arguido senão pela consciência que tinha do que havia acontecido e das potenciais consequências, aliás comuns, senão quase certas, em qualquer embate em peões. Julgou-se que o arguido não parou após o embate - como também admitiu - e saiu do local em que ele próprio veio a despistar-se mais adiante, apenas e tão só porque sabia do estado de influência alcoólica em que se encontrava e para tentar fugir às possíveis consequências, nomeadamente penais – que também justificam o que se veio a provar em 63. E para isso apontou decisivamente, para além das regras da lógica e senso comum que dizem que a normalidade das pessoas, perante um evento potencialmente catastrófico, socorrem as vítimas, a própria justificação do dada pelo arguido: na sua versão, atente-se, o arguido disse que os peões atravessaram inadvertidamente e que, por via disso o embate ocorreu. Ora, na sua versão, a culpa do embate era dos peões. E, se assim foi, que razão tinha para não parar e prestar socorro ou chamar os meios de socorro! Esta pergunta, não tem resposta possível senão aquela de que o arguido agiu nos termos provados por saber que tinha embatido nos peões, que poderiam estar feridos ou mesmo mortos e que, apesar de lhe ter de prestar auxílio, impunha-se a sua fuga para evitar as responsabilidades, desiderato que falhou em parte essencial porque o seu estado de influência alcoólica e a diminuição de capacidades era de tal ordem que não conseguiu descrever a mais simples das manobras de condução: a de descrever uma curva.

É claro que o arguido regressou ao local, como o reconheceu, e como resulta documentado nos autos pela própria identificação que então foi feita, mas já após a assistência médica, como resultou dos depoimentos das testemunhas E...e F..., ambos elementos da GNR que acorreram ao local. Daí o que se provou em também em 62.

Sendo o arguido uma pessoa habilitada para a condução, como se alcança de fls. 251, e sendo conhecedor das regras e termos do tráfego rodoviário, bem assim, dos riscos naturais da condução, não poderia deixar de prever que ao conduzir como conduziu, sob influência do álcool, poderia ter as consequências que teve, independentemente do local onde circulassem os peões, até porque a obrigatoriedade de os peões circularem pela via do lado esquerdo se destina a protege-los - porventura empreendendo ações defensivas contra condutores imprudentes que verão com mais facilidades porque lhes surgirão pela frente – e não se destina a possibilitar a circulação imprudente ou perigosa do condutor. Daí o que se veio a provar em 57 e 59.

A posição do peão B..., tal como se provou em 37. foi afirmada pelo próprio e pelas testemunhas H... e G....

Estas mesmas testemunhas afirmaram como D... foi colhido e transportado, nos termos provado em 38., tendo-se constatado pelos vestígios documentados no croquis de fls. 88.

Estão documentadas, nos exames médicos e registos clínicos, as consequências para os peões embatidos nos termos provados em 39 a 42, 44 a 56, como se alcança de fls. 34 e seguintes, 37 e seguintes, 56 e seguintes, 113 e seguintes, 560 e seguintes, 575 e seguintes e 650 e seguintes.

É, no caso dos autos, ostensiva e evidente a origem causal direta entre as lesões e o embate nos peões, nos termos provados, ainda que certificadas nos exames médico-legais, sem que nenhum dado clínico aponte para a existência de situações clínicas pré-existentes ao acidente.

(…) Quanto aos factos não provados, para além do que se já deixou dito, considerou-se que a versão provada do embate, e pelos fundamentos expostos, levou à consideração como não provada da versão alegada pela demandada, porque inconciliável – ou seria de uma ou de outra, não de ambas. Dito isto e para além disso, nenhuma prova foi produzida que permitisse a sustentação do que se não provou em a. b, d, e, f, g, t, u, x, y, z, aa, bb, cc, dd, ff, gg, hh, ii, jj, kk, ll, mm, nn, oo, pp, qq, rr e ss, e determinasse qualquer outra ponderação para além daquela que já se fez (…)».

A recorrente entende que os factos se passaram de modo diferente do relatado na decisão recorrida, de modo que a culpa pelo acontecido deve recair sobre os ofendidos ou, pelo menos que a culpa deve ser repartida pelos ofendidos e pelo arguido.

Mas a convicção do tribunal recorrido é bem oposta a esta tese e, num escrutínio fenomenológico das formas de ver e de ser, a convicção do tribunal é não só a única concordante com a prova produzida como a mais verosímil face às circunstâncias do caso. Isto porque, perante as lesões apresentadas pelos ofendidos, a circunstância de um terceiro acompanhante dos mesmos não ter sofrido qualquer beliscadura física, é difícil pensar que os ofendidos estivessem, no momento, a tentar atravessar a estrada, facto que é aliás frontalmente desmentido pelo condutor do veículo que seguia em sentido contrário ( H... ).

Diga-se aliás que o tribunal formou a sua convicção nos depoimentos desta testemunha e dos ofendidos, e ainda do outro acompanhante dos ofendidos, G..., que, com as reticências referidas na decisão em causa, confirmaram a versão apresentada na acusação pública.  

Mas diga-se ainda quanto ao facto de o tribunal não ter dado crédito à versão do arguido do acidente, que o acto de julgar tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção e tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal. 135 e ss) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte : - a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e CódProcPenal ), mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo princípio de persecução da verdade material ; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

Ora o que o recorrente pretende é que o tribunal devia ter valorado as provas de acordo com a convicção dele próprio recorrente, substituindo-se ela ao julgador, mas situações que relevam para a sentença dá-se com a produção da prova em audiência: sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal, que é livre ( art. 127.º do como se extrai do art. 127.º do CódProcPenal, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos ( carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ª instância ». Ou, consoante se escreveu no Ac. Rel. Coimbra de 3-11-2004 ( recurso penal n.º 1417/04 ) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha» (Cfr. entre outros; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos  n°s 1770/02 e 3960/03 ; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03 ; Ac de 6-3-2002, CJ, Ano XXVII, 2.º-44,  todos da Relação de Coimbra ). Este último diz : «(...)  uma incomensurável diferença entre a prova  produzida em primeira instância e a efectuada em sede de recurso com base nas transcrições dos depoimentos (...) quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação ( vg o julgador refere que os depoimentos não são convincentes num determinado sentido), o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar ao concreta de tal princípio » a não ser que « a convicção do julgador na primeira instância mostre ser contrária ás regras da experiência,  da lógica e dos conhecimentos científicos».

Da motivação de facto consta que o tribunal recorrido ponderou as declarações de todas as testemunhas e o valor probatório dos documentos (em si mesmos e conjugados com aqueles depoimentos), e nesse exercício, e fundamentando tal convicção, entendeu dar crédito às testemunhas da acusação. E é pertinente que ali se diga que não se vê qualquer interesse menos louvável ou qualquer motivação dúbia para os queixosos sustentarem a versão que apresentaram.

Embora a coerência ou consistência das declarações não constitua um critério de verdade – pela simples razão de que mesmo provas demonstrávelmente consistentes podem ser falsas –, a incoerência ou inconsistência já indicia a falsidade. O que sugere que devemos combinar as ideias de verdade e de conteúdo numa única – a ideia de um grau de melhor (ou pior) correspondência com a verdade, ou de uma maior (ou menor) semelhança ou similaridade com a verdade; ou seja, a ideia de graus de verosimilhança. E as declarações prestadas em audiência, as antes referidas, suportam bem a convicção do tribunal.

A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção — cf. o Acórdão do STJ de 30 de Janeiro de 2002, proferido no âmbito do processo n.º 3063/01, 3.a Secção, in SASTJ, n.º 57, 69 ; Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15.a ed., 2005, p. 743.

Em conclusão: em matéria da obrigação de motivação da sentença, esta, para ser legal, deve apresentar as características fundamentais da (1) “correcção”, no sentido da sua aderência aos elementos probatórios adquiridos, do (2) “completamente”, no sentido da sua extensão a todos os elementos relevantes para a formação dos juízos sectoriais conducentes ao juízo decisório, e da (3) “lógica”, no sentido da sua conformidade aos cânones que presidem às formas do raciocínio e que a este confiram a natureza de acto de demonstração da realidade.

A sentença recorrida satisfaz estes requisitos e assim não ocorre também qualquer erro notório na apreciação da prova, que se             exprime nas seguintes situações : (1) retira-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou arbitrária, ou que não é defensável segundo as regras da experiência comum ; (2) dá-se como provado algo que não podia ter acontecido ; (3) determinado facto provado é incompatível ou contraditório com outro facto dado como provado ou não provado contido no texto da decisão recorrida ; (4) há violação das regras sobre o valor da prova vinculada, das regras da experiência ou quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

No caso em apreço, o tribunal firmou a sua convicção nos depoimentos que refere como positivamente avaliados, e não se vê aí que o tribunal tenha decidido contra a prova produzida, ou seja, que tenha acolhido uma versão que esta não comporta ou que tenha violado qualquer regra da experiência comum ao valorar os depoimentos nos termos em que o fez.

Assim, no caso presente, a fundamentação de facto é suficiente para dar como provados e não provados os factos referidos como tal na decisão recorrida, pois faz uma análise critica  e objectiva dos meios de prova, e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, e entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida .

Assim mantêm-se incólumes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida, com a acertada conclusão ali contida de que o arguido «(…) viu os peões atempadamente, e não foi capaz de se desviar, de travar, ou de passar por eles sem lhes embater – fazendo-se notar que, se a via tinha 7,80m no lugar do embate, o arguido tinha disponíveis para circular, na sua hemi-faixa de rodagem, 3,90m e mesmo que os peões ocupassem 1m da via, tinha ainda disponíveis 2,90 metros para passar com o seu carro sem invadir a hemi-faixa contrária, carro esse que, segundo a ficha de homologação(cf. fls 110), tem apenas 1,71 metros de largura, sobrando ainda, portanto, 1,19 m (…)», ou seja , que a culpa pelo acidente foi exclusiva do condutor do veículo segurado na demandada civil.

Insurge-se a recorrente contra os montantes fixados na 1.ª instância a título de danos não patrimoniais, entendo serem excessivos tais valores.

Aqui disse a decisão recorrida, com interesse:

«(…) são valorizáveis e merecedores de compensação, pelo do demandante D...: - as lesões, o período de internamento, a necessidade de uso de canadianas e os inerente incómodo e transtorno, por estar fora da rotina diária; - o período de doença, de 189 dias e, inerente afectação do bem estar; - a existência de cicatrizes; -as dores no dia do embate e nos dias subsequentes, até à data presente, e o grau de dores, de 4 em 7; - a maior dificuldade na realização de tarefas e de desenvolvimento da sua atividade profissional e inerente transtorno, de 9 em 100; - a afectação nas atividades recreativas e de laser, como o futebol amador e os passeios de BTT, e o inerente transtorno psicológico por constituírem tais atividades uma das partes essenciais do bem estar global do indivíduo; - As dificuldades em dormir nos dias subsequentes ao acidente.

São valorizáveis e merecedores de compensação, pelo demandante B...: - as lesões o período de 8 dias de doença e as dores sentidas até à cura; - a dificuldade em dormir nos dias subsequentes e o sobressalto (…)».

O art. 496.º do CódCivil consagra a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, limitando-se a indemnização àqueles casos que tenham efectiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, à liberdade pessoal, às lesões corporais e de saúde, aos demais direitos de personalidade, etc. (cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac. STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538 ; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs.), sendo ainda objecto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indirectamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que , por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos ( Vaz Serra, RLJ, ano 105.º e 108.º, p 37 sgs. e 223; Ac STJ de 27-12-69, BMJ, 141.º, 331; Ac STJ de 22-11-78, BMJ , 204.º, 262).

A gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e não à luz de factores subjectivos (como uma sensibilidade exacerbada ou requintada), e tudo segundo critérios de equidade ( cfr A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais ( Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80,  de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399 ; Ac STJ, de 25-6-2002, CJ/STJ, ano X ,t. II, p. 128 ; Ac STJ, de 6-1-2010, CJ/STJ, Ano XVIII, t. 1, p. 173 )  e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: a de compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente (cfr A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534 ; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538 ; Ac STJ, de 6-1-2010, CJ/STJ, Ano XVIII, t. 1, p. 173).

No que concerne ao ofendido B..., não se afigura que, numa apreciação de equidade, as circunstâncias referidas consintam formular um juízo tão valorativo dos danos, pois se 8 dias de doença e dores inerentes não são negligenciáveis, não há proporcionalidade entre tais danos e os montantes habitualmente fixados para casos semelhantes, tendo em conta que tais consequências não foram acompanhadas de outras circunstâncias inibidoras de movimentos, para além daquilo que é normal nestes casos. Por isso que tal indemnização será fixada em Euros 1 000.

Já no toca ao ofendido D..., o quadro clínico do mesmo em consequência do acidente é bem mais grave, como se vê dos factos, « houve afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, de 9 pontos, em 100, sendo de admitir a existência de sequelas futuras », o que significa uma menor qualidade de vida futura. Por isso bem salienta a decisão em causa que é preciso reter que o período de internamento hospitalar, as dores, as limitações de capacidade física, concretamente « a necessidade de uso de canadianas e os inerente incómodo e transtorno, por estar fora da rotina diária; - o período de doença, de 189 dias e, inerente afectação do bem estar; - a existência de cicatrizes; - as dores no dia do embate e nos dias subsequentes, até à data presente, e o grau de dores, de 4 em 7; - a maior dificuldade na realização de tarefas e de desenvolvimento da sua atividade profissional e inerente transtorno, de 9 em 100; - a afectação nas atividades recreativas e de laser».

Daí que, num mesmo juízo de equidade, se afigura razoável o montante arbitrado na 1.ª instância.

Diz a recorrente que deve a data para início do vencimento dos juros moratórios devidos aos ofendidos, relativamente aos danos que cada um deles sofreu em sede patrimonial, ser fixado no dia                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            da citação (quer decerto dizer “notificação”) da recorrente para estes autos, por na data do acidente os danos ainda não estarem determinados.

E de facto, no momento em que se verificou o acidente ainda não havia liquidez das quantias alegadas pelos demandantes cíveis, liquidez que só foi dada ao conhecimento da seguradora recorrente no momento em que esta foi notificada dos pedidos cíveis deduzidos nestes autos, pelo que só a partir de tal momento começou o vencimento de juros legais.

Finalmente, o demandante D... não peticionou juros quando deduziu o pedido cível concernente aos danos patrimoniais, pelo que a condenação ao pagamento de tais juros vai além do pedido, pelo que nessa parte a sentença é nula, nos termos do art. 615.º-1-e) do CódProcCivil, subsidiariamente aplicável.

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DECISÃO

Pelos fundamentos expostos :

I- Concede-se parcial provimento ao recurso dos arguidos e, em consequência:

        - pelo pedido de indemnização civil formulado por B..., condenar a demandada C... – Companhia de Seguros S.A., a pagar-lhe: - a quantia de 1.000,00 € ( mil euros ), a título de danos morais, acrescida de juros de mora desde a data da sentença recorrida  até integral e efectivo pagamento; - a quantia de 1.039,00€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais desde a notificação do pedido cível, até integral e efectivo pagamento.

      - pelo pedido de indemnização civil formulado por D..., condenar a demandada C... – Companhia de Seguros S.A., a pagar-lhe: - a quantia de 40.000,00€, a título de danos morais, acrescida de juros de mora desde a data da sentença recorrida até integral e efectivo pagamento;

- declara-se a nulidade parcial da sentença no que se refere à condenação de juros, nos termos acima referidos, nesta parte se absolvendo a recorrente do pedido.

II- No mais, mantém-se a decisão recorrida, incluindo quanto a custas.

III- Sem custas no recurso penal.

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Tribunal da Relação de Coimbra, 21 de Janeiro de 2015


                        

                                       


(Paulo Valério - relator)

(Frederico Cebola - adjunto)