Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
413/07.7TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DESPACHO A DESIGNAR DIA PARA JULGAMENTO
Data do Acordão: 08/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ÍLHAVO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 311º, 358º E 379º CPP
Sumário: 1.- O juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311º CPP, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos
2.- O despacho que procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos (agravando), sofre de irregularidade, a qual afecta a total validade do mesmo, importando a sua invalidade.
3.- Entendendo o tribunal, em audiência de julgamento, que há efectivamente lugar a essa alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, tem de o comunicar ao arguido, nos termos e para os efeitos do artº 358º nºs 1 e 3 CPP, sendo que a omissão desse procedimento constitui nulidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido acórdão que julgou procedente a acusação deduzida pelo Magistrado do Mº Pº contra o arguido:
JP..., casado, comerciante internacional, residente em …, presentemente em situação de prisão preventiva à ordem dos presentes autos.
Sendo decidido:
- Condenar o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.s 21, n.º 1, e 24, al. c), do DL n.º 15/93, de 22/02, na pena de 13 (treze) anos de prisão.
***
Inconformado, da sentença interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões na motivação do mesmo:
1.A sentença de que se recorre está ferida de múltiplas nulidades e, assim, desde logo, a sentença é nula pois que condena o arguido por um crime de tráfico de estupefacientes agravado quando na acusação lhe é imputado um crime de tráfico de estupefacientes simples. Ao verificar-se assim uma alteração não substancial dos factos, sem que fosse dada a oportunidade ao arguido de se pronunciar nos termos do artigo 358 nºs 1 e 3 do CPP, violou-se o princípio do contraditório e o direito de defesa do arguido, pelo que a sentença é nula.
2.Do mesmo modo, o despacho a que alude o art. 313 do CPP é nulo pois que produziu uma alteração não substancial dos factos ao aplicar ao arguido um crime agravado com uma moldura penal mais grave que da acusação. Ora, tal viola o art. 358 n.º 3 do CPC, para além de se verificar uma posição de acusação por parte do tribunal, ainda antes de ter exercido funções de julgador.
3.A sentença é também nula uma vez que existem factos constantes da acusação sobre os quais não foi proferido qualquer juízo decisório, não sendo dados como provados ou como não provados. Tal viola os artigos 374 n.º 2 e art. 379 n.º 1 aI. a) do CPP, levando à nulidade insanável da sentença;
4.Do mesmo modo, ainda que não se entenda que o alegado em 4. não configura uma nulidade, sempre se terá de entender que estamos perante um vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410 n.º 2 aI. b) do CPP. Com efeito, ao não se pronunciar sobre todos os factos levados até si não estava o tribunal munido de todos os factos relevantes para a decisão de direito.
5.É ainda a sentença nula pois que condena por factos que não constam e são diversos da acusação, ocorrendo assim uma alteração não substancial dos factos, sem que o tribunal tenha respeitado o previsto no artigo 379, n.º 1, aI. b) e art. 358 n.º 1 do CPP. Ora, tal compromete o princípio de defesa do arguido e do contraditório.
6.O Acórdão de que se recorre padece de nulidade por falta (deficiência e omissão) de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, nos termos do art. 374, n.º 2, do CPP.
7.O arguido negou peremptoriamente a sua participação nos factos narrados pela acusação, sendo que as suas explicações não foram consideradas credíveis, os inspectores da P.J. nada esclareceram relativamente a esta participação do arguido JP… pelo que dar como provada a sua participação nos factos relativos ao tráfico de droga, sem a referida fundamentação, viola o art. 374, n.º 2, do CPP e acarreta a nulidade da Sentença (art. 379, n.º 1, aI. e), do CPP). - nesse sentido Cfr. o Ac. do Trib. da ReI. de Guimarães (proc. 389/06-1):
8.O Acórdão de que ora se recorre sofre de falta de fundamentação e vai contra a prova produzida, sem justificar a valoração de exclusão dessa prova, pelo que o colectivo condena com base em convicções relativamente a factos dados como provados, contradição entre provados e não provados e que não resistem a uma análise racional e objectiva, não cumprindo assim os requisitos do n.º 2 do artigo 374, do CPP, padecendo por isso de nulidade nos termos do artigo 379, n.º 1 do mesmo diploma legal.
9.O Acórdão recorrido chega aos factos que dá como provados e que estão sob julgamento sem fazer as três operações que explana, ou seja: - “A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento" (André Marieta, La prueba en Processo Penal, pág. 59, citado pelo Acórdão recorrido).
10.O Acórdão recorrido não aplica no raciocínio dos julgadores, ao facto base, uma regra de experiência, pelo que não pode dar como provado os factos 1, 5, 6,15,16,17,18,21,24,30,31 (no modo como está escrito), 34, 36, 37, 38 e 39, dados como provados no Acórdão, dado que não existe nenhuma regra da experiência ou ciência que aplicada ao facto base permita inferir e dar como provados tais factos.
11.O Tribunal começa logo por enumerar como sendo um dos "abundantes indícios objectivos" o facto de o arguido ser o proprietário da embarcação."
12.O raciocínio do Tribunal é falível e irracional, na medida em que do facto conhecido "ser proprietário" extrai a conclusão desconhecida - porque resulta de prova indirecta - de que necessariamente tinha que conhecer o que se fazia na embarcação limitando-se a escrever "que não é razoável" sem escrever em que regras de experiência se fundamenta.
13.Acresce que a decisão recorrida não escreve porque não valora os seguintes factos assentes por prova directa (documentos do Hospital juntos no julgamento, testemunhos e declarações do arguido):
a) O arguido por ter tido um acidente abandonou a tripulação da embarcação em Novembro de 2005,
b) Desde Novembro de 2005 até Setembro de 2006 o arguido não fez parte da tripulação.
c) Neste período o arguido fez uma única viagem de lazer com convidados (A... e B... que a confirmaram nos autos) e com a tripulação de Lisboa para Cadiz (102 dias).
14.De nenhum dos documentos juntos aos autos e que constituem prova directa destes factos, em conjunto ou separado pode retirar o facto de que foi o arguido que quis comercializar a droga, e deu ordens para a comprar, transportar e acomodar na embarcação, dado que não tem regras de experiência, critérios lógicos em que se fosse fundamentar.
15.O Tribunal NÃO EXPLICA, NÃO fundamenta, para que se torne racional e objectivável, a opção de afirmar que pelo simples facto de se ser proprietário se tem o controlo absoluto da embarcação.
16.Acresce ainda o SABER QUEM TOMAVA DECISÕES QUANTO AO RUMO QUE A EMBARCAÇÃO DEVERIA TOMAR.
17.Também neste particular não fundamentou o Tribunal a quo porque não valorou as declarações do arguido - e o Tribunal tem de o fazer facto a facto e não genericamente - quando, DE FORMA EXPLICITA E CLARA, esclareceu que apesar das ORDENS QUE DERA AO CAPITÃO C… ESTE TOMAVA AS SUAS PRÓRPIAS DECISÕES.
18.Resulta por isso claro que o Tribunal a quo validou uma tese, que à luz da prova produzida e das regras da experiência e da vida, in casu, não é lógico. EM FACE DA PROVA QUE SE OUVIU OUTRA EXPLICAÇÃO PARA OS FACTOS SERIA TÃO MAIS VÁLIDA QUE A TESE DEFENDIDA PELO COLECTIVO, QUE NÃO EXPLICOU PORQUE DESVALOROU O QUE OUVIU NESTE MATÉRIA.
19.Inexiste, ainda, prova e fundamentação (exame crítico da prova) para que a responsabilidade do momento da carga e a responsabilidade pelo carregamento da droga seja imputada ao arguido.
20.O Tribunal não dá como provado quando foi a operação de carregamento, LOGO, não tem facto base para poder aplicar regra de experiência e saber se o arguido ou o comandante (c/ ou s/ Tripulação) é que programaram a operação de carregamento.
21.A Possibilidade dos factos da acusação serem praticados pelo comandante e tripulação sem conhecimento do arguido não é inverosímil, pelo que necessariamente tem que ser considerada por este Tribunal no exame crítico da prova.
22.A fim de fundamentar a sua decisão o Tribunal a quo considerou relevante o seguinte:" particularmente no que concerne ao facto de essa operação ser comandada pelo arguido, que contratou os membros da tripulação para o efeito, derivou basicamente de aquele ter a disponibilidade da embarcação e de ter suportado todas as despesas, quer com as reparações da mesma, quer com os próprios tripulantes, nomeadamente com o necessário alojamento e com transportes em táxi. Em suma, o arguido protagonizou sempre comportamentos apenas compatíveis com a qualidade de "dono do negócio" de transporte da droga." - cfr. Fundamentação da decisão (sublinhado e negritos nossos).
23.Apesar de este raciocínio carecer de qualquer objectividade, o Tribunal a quo não explica como o alcança. O Tribunal não refere como destes factos infere o facto provado de que o arguido é dono do negócio de tráfico de droga.
24.O Tribunal a quo fundamenta ainda a sua decisão no facto de "pelo menos a partir de 22 de Setembro de 2006, o arguido manteve-se em território português, primeiramente na Horta, depois em Ponta Delgada e, a partir de dia 27 em Cascais, o que é compatível com o exercício de um controlo, a uma distância relativamente próxima, da operação de transporte em questão."
25.Não pode concluir-se pelo facto de o arguido ter estado em Portugal dias antes da apreensão (o que também aconteceu noutras tantas ocasiões durante o ano de 2006) que, por esse facto é o dono do negócio do tráfico.
26.Competia ao Tribunal a quo fundamentar, O QUE NÃO FEZ, de forma critica, racional e objectivável porque optou por esta interpretação dos factos e desvalorizou outras teses para o mesmo facto tão, ou mais, válidas.
27.MAIS AINDA, segundo a tese do Acórdão de que se recorre o controle feito por terra pelo arguido era levado a cabo via telemóvel.
28.A pergunta que assola um espírito crítico é se o controlo é feito por telefone porque fazê-lo desde um território onde tem a cabeça a prémio? Porque fazê-lo desde um território onde sabe que pode ser "apanhado" pelas autoridades a qualquer momento, sendo certo que poderia fazer esse controlo desde qualquer parte do mundo. A ESTA PERGUNTA O TRIBUNAL A QUO NÃO RESPONDE, NEM TÃO POUCO FUNDAMENTA A OPÇÃO QUE FAZ NESTE PARTICULAR.
29.Neste particular e na fundamentação do Acórdão podemos ler "Outro relevante indicio da participação do arguido nos factos deriva da circunstância de nos dias que antecederam a intercepção da embarcação (a 29 de Setembro de 2006), terem sido efectuadas várias chamadas telefónicas para o seu telemóvel (com o n.º …), a partir de telefones satélite existentes na embarcação e do telemóvel de C.... ( ... ) E, no dia 29 de Setembro, pelas 03h25m, ou seja, poucas horas antes da operação de intercepção da embarcação, foi estabelecida uma comunicação telefónica com o arguido, desta feita a partir do telemóvel de C.... Ora, sobretudo esta última chamada, pela hora a que foi feita (de madrugada) e pela proximidade temporal com a abordagem do iate pelas autoridades policiais junto à costa de Portugal continental, aponta inequivocamente no sentido de o arguido estar a par e a acompanhar a operação de transporte de droga."
30.Analisando criticamente esta posição, diremos que estranho seria se não existissem contactos telefónicos entre a tripulação e o dono do barco.
31.Mais uma vez o tribunal a quo não explica como atinge este seu raciocínio de que porque houveram telefonemas entre a tripulação e o arguido tal SÓ poderia significar que o arguido estava a par e a acompanhar a operação de transporte de droga.
32.Diz ainda o Acórdão ora em crise que sintomático do envolvimento do arguido nos factos em análise foi o contacto feito desde o telemóvel do C... para o telemóvel do arguido no dia 29 de Setembro as 03h25min
33. Da prova carreada para os autos e analisada em Julgamento resulta que o arguido NEGOU que tenha recebido tal chamada;
34. Dos autos não consta qualquer documento que comprove que a chamada aconteceu;
35. A testemunha D..., inspectora da PJ que encabeçou a investigação e que foi umas das pessoas que esteve no dia da abordagem à embarcação em alto mar, PERGUNTADA SE OS TELEMÓVEIS FUNCIONAM EM ALTO MAR, respondeu: " Não. Perdem rede. Os telemóveis perdem rede em alto mar.. mas os telefones satélite são exactamente para essas circunstâncias em que não têm rede com telemóveis poderem efectuar telefonemas." (minuto 00:30:20 do depoimento da testemunha com a duração total de 1 horas 39 min 24 seg, constante do CD áudio de gravação da prova em audiência de julgamento através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo, única especificação constante da acta de audiência de julgamento datada de 23/11/2010, sendo que, doravante, por uma questão de economia de meios e de tempo, apenas se fará menção aos minutos do depoimento da testemunha).
36.Ora, mais uma vez, o Tribunal a quo não explica a sua tese e mais, não explica a sua tese e porque não deu credibilidade a estes meios de prova, nomeadamente, à inspectora da PJ e às (não) informações da Vodafone.
37.Quanto a este facto escreve o Tribunal a quo na sua fundamentação: "por outro lado, ficou demonstrado que esta alteração foi feita posteriormente à aquisição do iate pelo arguido. Com efeito, a testemunha F..., agente da Policia Judiciária que participou na investigação, esclareceu que, na sequência de informação obtida junto do anterior proprietário da embarcação, acedeu ao site da internet onde a mesma esteve à venda, de onde retirou a primeira fotografia junto a fls. 1018, relativa a uma das cabines. E, confrontando tal fotografia com aquela que, posteriormente à apreensão do iate, foi retirada à mesma cabine, constata-se que o espaço existente entre a escotilha da parte lateral e a parede frontal da cabine é maior na primeira fotografia, donde se conclui pela construção, em momento posterior à aquisição do barco, da referida parede falsa. ( ... ) Ora, o arguido negou que tivesse levado a cabo qualquer tipo de intervenção nas cabines da embarcação. Acresce que, conforme referido pelos agentes da polícia judiciária F... e E..., embora a parede frontal das cabines estivesse revestida por um papel de parede de padrão igual ao das restantes, notava-se uma diferença de tonalidade tendo, aliás, sido encontrado no iate um rolo desse papel, o que nos permite inferir pela realização de uma intervenção relativamente recente em tais paredes".
38.Da fundamentação APENAS resulta que o Tribunal a quo INFERE, do facto de existirem duas fotografias nos autos distintas e do facto de ter sido encontrado um rolo de papel no iate, QUE FOI REALIZADA UMA INTERVENÇÃO RELATIVAMENTE RECENTE EM TAIS PAREDES.
39.Ferida de nulidade fica a fundamentação quando esta serve para dar como provado o facto n.º 5 dos factos provados, em que se atribui ao arguido, em condições e tempo desconhecidos, a autoria dessas alterações.
40.Da fundamentação não se pode, jamais, inferir o facto que foi dado como provado e identificado sob o n.º 5 dos factos provados, sendo por isso nula a fundamentação.
41.Diz o Tribunal a quo na sua fundamentação que: "E também não é credível que aquela iniciativa de transportar a droga tivesse surgido posteriormente a o arguido ter abandonado o iate (Outubro de 2005), uma vez que não podia ser súbita, por exigir toda a referida programação."
42.Esta conclusão que o Tribunal a quo não se coaduna com a alteração de capitão que ocorreu e está assente nos factos provados e bem assim também não se coaduna com o desenrolar dos factos também dados como provados pelo Colectivo, sendo certo que o Tribunal a quo não explica porque negligenciou esses mesmos factos e caminhou noutro sentido.
43.Na fundamentação do Acórdão, e no que a este aspecto diz respeito lê-se: "era portador de um bilhete de avião utilizável até ao dia 19 de Novembro de 2006. Ademais, a própria aquisição de um bilhete com estas características, embora possa ter naturalmente outras explicações, também é sugestiva da preocupação de acautelar um regresso a qualquer momento (...) - cfr. Fundamentação da Decisão (sublinhado e negrito nossos).
44.Diz o Tribunal que o facto de o arguido ter um bilhete de avião que lhe permitia viajar a qualquer momento dentro de determinado período de tempo, PODE TER NATURALMENTE OUTRAS EXPLICAÇÕES, MAS O CERTO É QUE APENAS VALIDA UMA E NÃO EXPLICA, FUNDAMENTADAMENTE, PORQUE NÃO ACEITA AS OUTRAS. Mais uma vez somos obrigados a concluir que carece a fundamentação, a olhos vistos, de uma análise crítica e racional da prova.
45.Neste particular resulta de Fundamentação que: "De outro modo, fica por explicar, o que o arguido não logrou fazer cabalmente, a antecipação da sua saída do hotel e o regresso ao Canadá" (...) - cfr. Fundamentação da Decisão (sublinhado e negrito nossos)
46.O que resulta deste trecho da fundamentação é que O ARGUIDO NÃO CONSEGUIU EXPLICAR PORQUE ANTECIPOU A SUA VIAGEM E DAÍ O TRIBUNAL INFERE O FACTO DE QUE ELE ERA O DONO DO NEGÓCIO DO TRÁFICO, inferência essa que afecta os básicos princípios atinentes à obtenção da prova e à sua apreciação em processo penal.
47.Tal explicação, mais uma vez carece de qualquer racionalidade e resulta de critérios puramente subjectivos e convencimento pessoal que o Colectivo criou dos factos, sem qualquer fundamentação válida à luz do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127 do CPP.
48.Destarte, o Acórdão de que ora se recorre, deverá ser considerada nula por violação do disposto no art. 374, n.º 2, por remissão do art.379, n.º 2, todos do CPP, com as legais consequências.
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E PEDIDO DE ALTERAÇÃO DOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS
49.Os Pontos 1, 5, 6,15,16,17,18, 21, 24, 30, 31, 34, 36, 37, 38 e 39 da matéria de facto provada foram incorrectamente dados como provados, pelo que, procedendo-se à sua alteração deverão passar a ser considerados como factos NÃO PROVADOS, JÁ QUE TAL RESULTA DA PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO.
FACTO PROVADO 1. "EM DATA NÃO CONCRETAMENTE APURADA, O ARGUIDO JP..., FORMULOU O PROPÓSITO DE COMERCIALIZAR UMA GRANDE QUANTIDADE DE COCAÍNA, COM O INTUITO DE, ASSIM, OBTER UM AVULTADO LUCRO".
50.O arguido, nas declarações que prestou negou qualquer envolvimento nos factos, os Inspectores da Policia judiciária nada adiantaram validamente quanto a esta matéria, nada sabendo dizer, a testemunha C..., nada disse, sendo que mais nenhuma outra testemunha ou a análise de um qualquer documento em Audiência permitem de si retirar este facto como provado.
51.O Tribunal a quo deu como provado este facto com base naquilo a que chamou "abundante prova indiciária", mas, como também já dissemos e rebatemos, essa prova indiciária é manifestamente insuficiente para dela inferir este facto, pelo que o mesmo deverá ser dado como não provado .
• FACTO PROVADO 5. "POSTERIORMENTE Á REFERIDA AQUISiÇÃO, NO INTUITO DE MELHOR OCULTAR O PRODUTO ESTUPEFACIENTE NO INTERIOR DA EMBARCAÇÃO, O ARGUIDO, EM DATA, LOCAL E CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO FOI POSSIVEL APURAR, MANDOU CONSTRUIR EM CADA UMA DAS CABINAS DE BOMBORDO E DE ESTIBORDO UMA PAREDE FALSA, ATRÁS DAS QUAIS PASSOU A EXISTIR UM ESPAÇO FECHADO, APENAS ACESSÍVEL POR UMA PEQUENA ABERTURA PERFEITAMENTE DISSIMULADA".
52.A prova produzida em julgamento foi exactamente no sentido oposto ao da Decisão. Na verdade, o arguido negou que soubesse ou que tivesse mandado fazer as alterações. Sendo ainda certo que o Inspector da PJ, D… referiu que tais alterações poderiam perfeitamente ter sido feitas em alto mar, tendo ainda referido que atento o passado criminal dos tripulantes G... e H... (ligados ao trafico via marítima) para eles tal tarefa seria simples. A ESTES FACTOS ASSIM APURADOS HÁ QUE JUNTAR AS DECLARAÇÕES DO ARGUIDO que explicou que não conhecia estes tripulantes, sendo que ambos foram escolhas do comandante, que os contratou e até pagou ao H… pelos seus serviços.
53.Estes depoimentos, conjugados necessariamente com as regras da experiência, DEVERIAM TER LEVADO O COLECTIVO A CONLCUIR QUE O ARGUIDO DESCONHECIA QUE HAVIAM PROCEDIDO ÀS ALTERAÇÕES NA EMBARCAÇÃO.
54.Nunca com estes depoimentos, associado ao facto de ter sido encontrado NO BARCO O ROLO DE PAPEL QUE SERVIU PARA DISSIMULAR AS ALTERAÇÕES, poderia o Colectivo concluir que o arguido foi quem mandou proceder à construção da parede falsa e sua dissimulação a fim de lá esconder a droga.
55.Assim este facto deverá passar a ter a seguinte redacção: "O XX... em cada uma das cabinas de bombordo e de estibordo tinha, em 3 de Outubro de 2007, uma parede falsa, atrás das quais passou a existir um espaço fechado, apenas acessível por uma pequena abertura perfeitamente dissimulada."
• FACTO PROVADO 6. "PARA CONCRETIZAR O REFERIDO PROPÓSITO DE COMERCIALIZAR GRANDE QUANTIDADE DE COCAÍNA, E TAMBÉM DE FORMA A SALVAGUARDAR-SE DE QUALQUER IMPREVISTO E MINIMIZAR O RISCO DE SER INTERCEPTADO PELAS AUTORIDADES POLICIAIS, EM DATA E EM CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO FOI POSSIVEL APURAR, O ARGUIDO CONTRATOU PESSOAS PARA A TRIPULAÇÃO DA EMBARCAÇÃO".
56.- O arguido explicou ao Tribunal que não conhecia G... nem H..., que foram contratados por C..., explicando ainda que não foi ele quem pagou ao H..., mas que o Comandante C… lhe disse que ele próprio pagaria. Por outro lado, a testemunha C... não prestou depoimento quanto a esta matéria, nenhuma outra testemunha inquirida RESPONDEU ACERCA DAS RELAÇÕES ENTRE O ARGUIDO E A TRIPULAÇÃO, OU SEQUER ALGUMA TESTEMUNHA CONTRARIOU O QUE O ARGUIDO DISSE.
Acresce que nenhum documento nos autos existe acerca deste facto e que também contrarie a posição assumida pelo arguido.
57.Tão pouco resulta provado que o arguido (como supra se disse e com o mesmos argumentos) tenha tido qualquer intuito de comercializar grandes quantidades de droga e que tenha contratado a tripulação para minimizar o risco de ser interceptado pelas autoridades.
58.Tal ausência de prova resulta do facto de a prova indiciária trazida à colação pelo Colectivo ser manifestamente insuficiente por a sua avaliação resultar de critérios puramente subjectivos e que apenas dizem respeito à realidade de que o Tribunal a quo se convenceu e não dos factos concretos que resultaram da lide, e que se reconduzem, neste particular, às declarações do arguido.
59.Assim o facto n.º 6 deve ser dado com não provado e deve passar a ter a seguinte redacção: "O arguido contratou o capitão C... para o comando da embarcação".
- FACTO PROVADO 15. "EM MOMENTO NÃO APURADO O ARGUIDO INFORMOU C... DO SEU PROPÓSITO DE COMERCIALIZAR O REFERIDO PRODUTO ESTUPEFACIENTE, BEM COMO DOS PROCEDIMENTOS NECESSÁRIOS PARA EFECTUAR O RESPECTIVO TRANSPORTE NA EMBARCAÇÃO "XX..." E A QUEM PAGOU, COMO CONTRAPARTIDA PELOS SEUS SERVIÇOS, UMA QUANTIA NÃO CONCRETAMENTE APURADA, PARA ALÉM DE TAMBÉM SUPORTAR AS DESPESAS DO MESMO".
60.Inexiste prova alguma que leve À conclusão que o arguido INFORMOU o C... de uma qualquer intenção de comercializar cocaína: o arguido não confessou tais factos, antes os negou peremptoriamente, a testemunha C... não prestou depoimento;
61. Não existem registos de mensagens escritas nos telemóveis apreendidos a fls. dos autos que nos levem a concluir que houve essa comunicação; Não existem e-mails trocados entre o arguido e C... que tenham sido interceptados e que resultem da peritagem de que foram alvo os computadores pessoais da tripulação; Não existem registos de chamadas e seu conteúdo que comprovem a existência EFECTIVA de conversas telefónicas entre o arguido e C... (de referir que a informação inserta a fls dos autos e enviada pela VODAFONE apenas refere os números que foram marcados desde os telemóveis da tripulação e NÃO REFERE A DURAÇÃO DESSAS CHAMADAS E SE AS MESMAS ACONTECERAM SEQUER!) e inexistem outras provas e/ou factos que permitam, ainda que indiciariamente, concluir que o arguido procedeu à dita informação, pelo que tal facto deverá passar a ter, tão só, a seguinte redacção:
62."O arguido contratou C... a quem pagou como contrapartida pelos seus serviços uma quantia acordada para atravessar o Atlântico de dez mil dólares, para além de também suportar as despesas do mesmo."
- FACTO PROVADO 16. "POR SEU LADO O ARGUIDO EM TERRA SUPERVISIONARIA A OPERAÇÃO"
63.O arguido negou qualquer envolvimento no tráfico do produto estupefaciente que foi encontrado no barco, nenhum membro da tripulação foi ouvido que tenha dito ao Tribunal que efectivamente o arguido contactava com o barco a fim de "orientar uma qualquer operação de tráfico de cocaína".
64.Aliás, e como já se disse a propósito da nulidade por falta de apreciação crítica da prova, estranho seria que não existissem contactos entre o barco e o seu proprietário para os mais diversos fins. AGORA, o que não é possível, como supra se explanou, é retirar deste facto base (que apenas se deu como provado porque o arguido referiu que efectivamente era contactado pelo barco, com excepção de alguns contactos com os quais foi confrontado em audiência) é que esses contactos serviam para o arguido supervisionar a operação de tráfico de droga, pelo que, e na falta de prova que o sustente tal facto deverá ser dado como não provado.
- FACTO PROVADO 17. "MEDIANTE A ANUÊNCIA DO ARGUIDO, C... CONTACTOU UM SEU FAMILIAR - H... - PARA INTEGRAR A TRIPULAÇÃO, AO QUE ESTE ACEDEU E TAMBÉM VIAJOU DO CANADÁ PARA PORTUGAL, TENDO CHEGADO À ILHA DO FAIAL, EM FINAIS DE JULHO DE 2006"
65.Da prova analisada em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, analisada ela mesma à luz das regras da experiência comum, não resulta que o arguido tenha consentido (ou não consentido) na contratação do H....
66. Da prova analisada em audiência, mormente das declarações do arguido, resulta claro que a decisão de contratar o H… foi do Comandante C…, que lhe pagou, sendo que o arguido se limitou a aceitar tal decisão do Capitão que, diga-se, à luz das regras da experiência comum é perfeitamente aceitável, já que, como já supra dissemos o normal é que seja um Comandante a decidir quem quer para sua tripulação e em quem confia. Essa decisão não caberia nunca ao arguido e tal não resultou da prova em audiência apreciada, pelo que terá este facto também que sucumbir e apenas ser dado como provado o seguinte:
67."C... contactou um seu familiar - H... - para integrar a tripulação, ao que este acedeu e também viajou do Canadá para Portugal, tendo chegado à Ilha do Faial, em finais de Julho de 2006."
- FACTO PROVADO 18. "ENTRETANTO, ANTONIO G... PASSOU TAMBÉM A INTEGRAR A TRIPULAÇÃO DA EMBARCAÇÃO "XX...", SENDO QUE ELE, J... E H… IGUALMENTE TOMARAM CONHECIMENTO DO REFERIDO PROPÓSITO DO ARGUIDO DE COMERCIALIZAR O MENCIONADO PRODUTO ESTUPEFACIENTE."
68.O arguido em momento algum referiu ter feito tal comunicação à tripulação, ninguém da tripulação depôs no sentido de referir SE e QUANDO tomaram conhecimento de tal propósito, nada existe nos autos quanto a telecomunicações ou e-mails que provem tal facto, nada há nos autos que nos leve a concluir que a tripulação tenha tomado conhecimento de qualquer propósito do arguido, que não fosse o de levar o barco até Espanha onde era suposto ser vendido, o que nos leva a concluir que também o facto 18 dos factos provados terá que passar a ter a seguinte redacção:
69."ENTRETANTO, G... PASSOU TAMBÉM A INTEGRAR A TRIPULAÇÃO DA EMBARCAÇÃO "XX...", COM J... E H…"
FACTO PROVADO 21: "O ARGUIDO, PRECAVENDO-SE DE QUALQUER IMPREVISTO, NÃO SEGUIU NA EMBARCAÇÃO, MAS MANTEVE-SE EM CONTACTO COM C..., ATRAVÉS DOS TELEFONES SATÉLITE INSTALADOS NA MESMA (UM NA CABINA OCUPADA PELO C... E OUTRO NA PONTE DE COMANDO) E UTILIZANDO PARA O EFEITO O SEU TELEMÓVEL COM O N.º …".
70.O Tribunal a quo dá como provado que o arguido NÃO SEGUIU NA EMBARCAÇÃO PARA PRECAVER IMPREVISTOS, MAS, Fundamenta a Decisão REFERINDO QUE FOI UMA SITUAÇÃO IMPREVISTAS (A FRATURA DO BRAÇO) QUE OBRIGOU O ARGUIDO A SAIR DO IATE
71.A utilização da palavra "obrigou", vista à luz do contexto da Decisão, mais não significa que na visão que o Colectivo tem dos factos, a intenção do arguido era manter-se a bordo até porque o carregamento de cocaína já vinha no barco desde a Florida (na versão do Colectivo, com a qual não concordamos, como é evidente), pelo que, E BASTANDO ESTE ARGUMENTO, não poderá este facto ser dado como provado atenta a fundamentação da Decisão.
72.Devendo ter tão só a seguinte redacção: "A embarcação tinha dois telefones satélites instalados e o arguido utilizou em Portugal o número …"
FACTO PROVADO N.º 24: "DAÍ VIAJOU DE AVIÃO ATÉ LISBOA E, EM 27 DE SETEMBRO DE 2006, INSTALOU-SE NA "ESTALAGEM VILLA ZZ...", EM CASCAIS, MARCANDO A SUA ESTADIA ATÉ 03 DE OUTUBRO DE 2006."
73.Dos documentos de fls 582 e 583, como já se referiu na secção anterior, unicamente permitem concluir que o arguido "mostrou desejo de se hospedar até ao dia 3 de Outubro", sendo que nenhum documento está assinado pelo arguido e são meros documentos internos do Hotel ZZ..., pelo que, entre mostrar desejo e sondar o Hotel para ficar até 3 de Outubro e marcar quarto paté dia 3 de Outubro vai uma grande diferença, pelo que este facto não pode ser dado como provado nos termos que consta do Acórdão
74. Acresce que, a explicação do arguido que a saída do hotel dependia de marcação de voo para regresso ao Canadá é perfeitamente verosímil, dado que é do conhecimento comum que ninguém consegue marcar voo a não ser com alguma antecedência.
75.Assim, o facto n.º 24 deve ser alterado a sua redacção, substituindo a expressão "marcando a sua estadia" por "o arguido mostrou desejo de poder ficar até 3 de Outubro de 2006 se não conseguisse voo em data anterior".
FACTO PROVADO N.º 30: "NO DIA 30-09-2006, LOGO QUE SE APERCEBEU QUE ALGO IMPREVISTO TINHA SUCEDIDO E TEMENDO SER DETIDO PELAS AUTORIDADES PORTUGUESAS, O ARGUIDO ABANDONOU O HOTEL ONDE ESTAVA HOSPEDADO E VIAJOU DE AVIÃO PARA MONTREAL, NO CANADÁ, ONDE CHEGOU PELAS 15H E 30M DO DIA 01-10-2006 (HORA LOCAL), APESAR DE O BILHETE DE AVIÃO QUE TINHA PREVIAMENTE COMPRADO LHE PERMITIR REGRESSAR AO CANADÁ EM QUALQUER DATA ATÉ AO DIA 19-11-2006."
76.Na fundamentação o Tribunal não leva em linha de conta os depoimentos das testemunhas em sede de Discussão e Julgamento que, efectivamente caminharam no sentido contrário ao do facto provado, seja dizer, no SENTIDO DE EXPLICAR QUE EM ALTO MAR OS TELEMÓVEIS NÃO FUNCIONAM, PELO QUE, SERIA IMPOSSIVEL OCORREREM CHAMADAS TELEFÓNICAS ENTRE O C… E O ARGUIDO ATRAVÉS DE TELEMÓVEIS.
77.Na verdade assim depôs a testemunha D..., inspectora da Policia Judiciária que explicou com clareza ao Tribunal que em alto mar os telemóveis não funcionam, pelo que, estando provado que no dia 29 de Setembro de 2006, pelas 03h25min o barco se encontrava no alto mar (isto porque já vinha sendo seguido pela marinha de guerra) era impossível C... ter conseguido falar com o arguido.
78.Sendo ainda certo que o arguido negou ter recebido qualquer chamada do barco nessa noite e madrugada.
79.Dá ainda, erradamente, como provado o Tribunal que o arguido saiu do país com medo de ser detido pelas autoridades portuguesas.
80.Na verdade, Logo que o arguido soube da apreensão do seu barco ENTROU EM CONTACTO COM A POLICIA CANADIANA em 5 de Outubro de 2006 - cfr. Fls 421 a 425 dos autos - disponibilizando-se para participar e colaborar com a investigação, da qual consta a sua morada e na qual reclama que lhe seja entregue o seu barco.
81.Continuou com a sua vida normal, fazendo inúmeras viagens de lazer e trabalho entre o Canadá, os EUA, a República Dominicana, etc - cfr. Fls dos autos - facto que contraria a tese de que temia ser detido.
82.Se tal facto fosse verdade o arguido teria "fugido" para o Canadá e não teria saído deste país que NÃO TEM ACORDO DE EXTRADIÇÃO COM PORTUGAL, e não viajaria inúmeras vezes para a Florida, EUA, como fez e consta do seu passaporte junto aos autos.
83.Assim, e no seguimento do que vai dito deverá o facto passar a ter a seguinte redacção: "NO DIA 30-09-2006, O ARGUIDO ABANDONOU O HOTEL ONDE ESTAVA HOSPEDADO E VIAJOU DE AVIÃO PARA MONTREAL, NO CANADÁ, ONDE CHEGOU PELAS 15H E 30M DO DIA 01-10-2006 (HORA LOCAL), USANDO O BILHETE DE AVIÃO QUE TINHA PREVIAMENTE COMPRADO E LHE PERMITIR REGRESSAR AO CANADÁ EM QUALQUER DATA ATÉ AO DIA 19-11-2006."
FACTO PROVADO N.º 31: "AO CHEGAR AO AEROPORTO INTERNACIONAL DE MONTREAL, O ARGUIDO DESFEZ-SE, ATIRANDO-OS PARA UM CAIXOTE DE LIXO, DO REFERIDO BILHETE DE AVIÃO MONTREAL ZURIQUE - LISBOA COM SAÍDA DE MONTREAL EM 20-09-2006 E REGRESSO PELO CAMINHO INVERSO, UTILIZÁVEL ATÉ AO DIA 19-11-2006, E DE UM CARTÃO DE CARREGAMENTO DA VODAFONE COM O N.º …, DOCUMENTOS ESSES QUE VIERAM A SER RECOLHIDOS PELA ROYAL CANADIAN MOUNTED POLlCE GENDARMERIE ROYALE DU CANADA, QUE ESTAVA DE SOBREAVISO POR TER SIDO ALERTADA PELAS AUTORIDADES PORTUGUESAS".
84. NÃO poderia o Tribunal a quo ter dado como provado este facto da forma que o fez. É que, o arguido deitou FORA MUITOS OUTROS PAPEIS AO LIXO QUE NÃO FORAM VALORADOS PELO TRIBUNAL A QUO E QUE, ANALISADOS À LUZ DAS REGRAS DA EXPERIÊNCIA TORNARIAM TAL FACTO IRRELEVANTE.
85. Na verdade a informação da polícia do Canadá ultrapassa o que o Tribunal deu como provado, na medida em que informa que o arguido deitou para o lixo tantos outros papéis referentes à sua estadia em Portugal, facto esse que o Tribunal não valorou, nem fundamentou porque o negligenciou.
86.Efectivamente se o objectivo do arguido fosse fugir e ocultar meios de prova teria deitado fora o telemóvel português e o cartão (com identificação via IMEI), O QUE NÃO FEZ, limitando-se a deitar fora um cartão de carregamentos, que tão só é um papel com códigos para carregar o telemóvel que no Canadá seria inútil e em Portugal tem uma duração limitada.
87.Cai por terra a fundamentação do Acórdão quando diz que o normal seria o arguido ter guardado o cartão de carregamento pois, como o próprio dizia pretendia voltar a Portugal e poderia vir a utilizá-lo.
88.Atento o exposto deve ser dado como provado tudo o que consta do facto 31 e ainda tudo o que consta de fls 403 a 405 dos autos.
FACTO PROVADO 34: "TODOS OS PACOTES DE COCAÍNA SE ENCONTRAVAM OCULTADOS NOS ESPAÇOS DEIXADOS PELAS ALUDIDAS PAREDES FALSAS QUE O ARGUIDO HAVIA MANDADO CONSTRUIR NAS DITAS CABINES."
89.Como supra se disse, e dando por reproduzido tudo o já escrito quanto a esta matéria, inexiste prova - ainda que indiciária - que o arguido tenha mandado construir paredes falsas, pelo que o facto deverá passar a ter a seguinte redacção:
90."TODOS OS PACOTES DE COCAÍNA SE ENCONTRAVAM OCULTADOS NOS ESPAÇOS DEIXADOS PELAS ALUDIDAS PAREDES FALSAS"
FACTO PROVADO 36: "TODO O REFERIDO PRODUTO ESTUPEFACIENTE ENCONTRADO NA EMBARCAÇÃO, QUER NO COMPARTIMENTO EXISTENTE NA PONTE ALTA, NA PROA, QUER NOS ESPAÇOS DEIXADOS PELA CONSTRUÇÃO DAS PAREDES FALSAS DAS CABINES, HAVIA AÍ SIDO ESCONDIDO EM DATA E EM CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO FOI POSSÍVEL APURAR, POR DECISÃO DO ARGUIDO E NA EXECUÇÃO DO SEU REFERIDO PROPÓSITO DE COMERCIALIZAR GRANDE QUANTIDADE DE COCAÍNA.
91.Damos por reproduzido tudo o já alegado supra e atinente à inexistência de prova quanto aos propósitos do arguido, pelo que este facto terá necessariamente que passar a ter a seguinte redacção:
92.TODO O REFERIDO PRODUTO ESTUPEFACIENTE ENCONTRADO NA EMBARCAÇÃO, QUER NO COMPARTIMENTO EXISTENTE NA PONTE ALTA, NA PROA, QUER NOS ESPAÇOS DEIXADOS PELA CONSTRUÇÃO DAS PAREDES FALSAS DAS CABINES, HAVIA AÍ SIDO ESCONDIDO EM DATA E EM CIRCUNSTÂNCIAS QUE NÃO FOI POSSÍVEL APURAR."
FACTO PROVADO 37: "O ARGUIDO CONHECIA A NATUREZA E AS CARACTERÍSTICAS ESTUPEFACIENTES DESSE PRODUTO."
93. Logo no inicio do seu depoimento o arguido NEGOU que soubesse que o seu barco estivesse carregado com droga, a testemunha C... nada disse a este propósito, mais nenhuma outra testemunha referiu que o arguido soubesse que existia produto estupefaciente a bordo do barco.
94.É insuficiente para a prova deste facto dizer-se, como se diz na Decisão ora em crise, que pelo facto de o arguido ser o proprietário da embarcação tinha por obrigação saber que lá se passava.
95.Assim, deveria o facto n.º 37 ser dado como não provado em consequência dos considerandos supra.
FACTO PROVADO 38: "E AGIU DE FORMA LIVRE, VOLUNTÁRIA E CONSCIENTE, COM O PROPÓSITO DE O INTRODUZIR NOS CIRCUITOS DE COMERCIALIZAÇÃO DE DROGA, CEDENDO-O A TERCEIROS INDIVÍDUOS NÃO IDENTIFICADOS, MEDIANTE CONTRAPARTIDAS DE NATUREZA ECONÓMICA, INDIVÍDUOS ESTES QUE POSTERIORMENTE A REVENDERIAM A OUTROS, ATÉ ASSIM CHEGAR AOS CONSUMIDORES DE ESTUPEFACIENTES, BEM SABENDO QUE A DETENÇÃO E CEDÊNCIA A TERCEIROS DE SUBSTÂNCIAS DE NATUREZA ESTUPEFACIENTE É PROIBIDA E PUNIDA PELA LEI PENAL PORTUGUESA E PELA DO SEU PAÍS."
96.Nos autos inexiste prova que permita concluir da forma como concluiu o Tribunal a quo.
97.O arguido negou os factos que lhe eram imputados, nenhum membro da tripulação foi ouvido como testemunha, o capitão C… não prestou depoimento, não houve testemunha alguma que dissesse ao Tribunal se existiam contrapartidas económica se quais e se as mesmas eram para o arguido.
98.Atentas estas considerações e todas as anteriormente tecidas não poderia este facto ter sido dado como provado por total insuficiência da prova produzida em julgamento nesse sentido.
FACTO PROVADO 39: A FIM DE ALCANÇAR OS SEUS PROPÓSITOS E NO INTUITO DE MINORAR OS RISCOS DE SER INTERCEPTADO E DETIDO PELAS AUTORIDADES POLICIAIS, O ARGUIDO ADAPTOU A REFERIDA EMBARCAÇÃO E CONTRATOU OS MENCIONADOS TRIPULANTES DA MESMA, TODOS ELES COM EXPERIÊNCIA EM NAVEGAÇÃO MARÍTIMA, A QUEM INCUMBIU DE, SOB AS SUAS ORDENS, EXECUTAREM A OPERAÇÃO DE TRANSPORTE DO PRODUTO ESTUPEFACIENTE.
99.Atentos os fundamentos já cotejados no presente recurso e que aqui damos por reproduzidos deverá este facto ser dado como não provado.
100. Por fim, é o arguido condenado por um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21 n.º 1, e 24 aI. c) do DL n.º 15/93, de 22/02, quando na verdade, a existir crime, terá sempre de ser um crime de tráfico de estupefacientes na sua forma simples.
101. Com efeito, tem a agravação em causa fundamento no facto de, alegadamente o arguido ir obter uma elevada compensação remuneratória, quando dos factos dados como provados, faltam elementos que permitam verificar e caracterizar tal, não estando referidos dados que permitam avaliar a dimensão económica da actividade, os preços de aquisição ou de comercialização do produto, ou se o arguido iria obter qualquer lucro.
102. Ora sem tais elementos não está preenchido o conceito de "avulta renumeração económica", e não foi como provado o art. 34 da acusação pelo que esta circunstância agravativa cai pela base, não podendo o arguido ser condenado por um crime de tráfico de estupefacientes agravado.
103. Sem conceder e ainda que se entenda que estamos perante um rime de tráfico de estupefacientes agravado, a pena aplicada ao arguido de 13 anos de pena efectiva de prisão é manifestamente excessiva.
104. De facto, tendo em conta os critérios de prevenção geral e especial previstos no art. 71 do CP e sendo a pena máxima abstractamente aplicável de 15 anos, tem vindo a larga jurisprudência afirmar que o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade encontra-se nos 7 anos de prisão.
105. Além de que, deveria o tribunal ter tido em conta as circunstâncias atenuantes de o arguido ter 73 anos, não ter antecedentes criminais, poder não sair com vida da cadeia e ser estrangeiro nos termos do art. 72 n.º 1 CP.
106. Assim, deverá o arguido ser condenado a uma pena de prisão com o limite máximo de 5 anos, com execução suspensa.
Deve o recurso ser considerado provido.
Respondeu o Magistrado do Mº Pº, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso.
Nesta Relação, o Ex.mº PGA emitiu parecer concordante com a resposta na 1ª Instância, no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
***
São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido deu como provados e sua motivação:
A II. FUNDAMENTAÇÃO
A) - MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Resultaram provados os seguintes factos:
1. Em data não concretamente apurada, o arguido, JP..., formulou o propósito de comercializar uma grande quantidade de cocaína, com o intuito de, assim, obter um avultado lucro.
2. Em 21-10-2005, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade …, comprou à sociedade …, a embarcação de recreio denominada …, pelo preço global de USD 859,868,00.
3. Aquando desse negócio, a sociedade vendedora, por ordem do arguido, efectuou algumas reparações na embarcação (instalação de filtros, estabilizadores e parte electrónica), as quais foram supervisionadas por C…, que representava o arguido, e cujo valor já estava incluído no referido preço global.
4. Depois de adquirir a embarcação, o arguido, sempre na qualidade de legal representante da sociedade …, procedeu ao seu registo com a denominação “XX...”, com pavilhão das Ilhas Virgens Britânicas e registada no … .
5. Posteriormente à referida aquisição, no intuito de melhor ocultar o produto estupefaciente no interior da embarcação, o arguido, em data, local e circunstâncias que não foi possível apurar, mandou construir em cada uma das cabinas de bombordo e de estibordo uma parede falsa, atrás das quais passou a existir um espaço fechado, apenas acessível por uma pequena abertura perfeitamente dissimulada.
6. Para concretizar o referido propósito de comercializar grande quantidade de cocaína, e também de forma a salvaguardar-se de qualquer imprevisto e minimizar o risco de ser interceptado pelas autoridades policiais, em data e em circunstâncias que não foi possível apurar, o arguido contratou pessoas para a tripulação da embarcação.
7. Em data não concretamente apurada entre finais de 2005 e Janeiro de 2006, a embarcação “XX...”, comandada pelo referido C..., atravessou o oceano Atlântico, acabando por atracar na marina de Cascais, após o que aquele regressou ao Canadá.
8. Entre Março e Junho de 2006, como a embarcação apresentasse problemas eléctricos e no gerador, o arguido levou-a primeiro para a doca de Alcântara, em Lisboa, e depois para o Cabo da Marinha, na Amora, Seixal, onde foi reparada por A… e B…, nos estaleiros da sociedade … .
9. O arguido comprou as peças necessárias para essa reparação à sociedade …, peças essas remetidas para Portugal por intermédio da sociedade … .
10. O arguido, que sempre se apresentou como proprietário da embarcação, acompanhou atentamente os procedimentos relativos à sua reparação e à aquisição das peças necessárias, cujo pagamento efectuou em numerário.
11. Ao longo deste último período, o arguido teve ao seu serviço L…, como comandante da embarcação, e J..., como mecânico, sendo o arguido quem efectuou o pagamento da estadia de ambos no Hotel …, onde estiveram hospedados entre 5 e 10 de Abril de 2006.
12. Concluídas estas reparações, o arguido organizou uma viagem de teste mais prolongada, entre o Seixal e Cadiz, na qual participaram, além dele próprio, os referidos L..., J..., A... e B…, bem como as mulheres destes dois últimos.
13. Em data não apurada, mas sensivelmente em Junho de 2006, devido ao facto de L... ter de regressar ao Canadá, o arguido contactou novamente C... para passar a comandar a tripulação da embarcação, o qual aceitou, viajando do Canadá para Cadiz, onde passou a assumir essas funções.
14. Após, sob o comando do mesmo, a embarcação viajou até à Ilha do Faial, nos Açores.
15. Em momento não apurado, o arguido informou C... do seu propósito de comercializar o referido produto estupefaciente, bem como dos procedimentos necessários para efectuar o respectivo transporte na embarcação “XX...”, e a quem pagou, como contrapartida pelos seus serviços, uma quantia não concretamente apurada, para além de também suportar as despesas do mesmo.
16. Por seu lado, o arguido, em terra, supervisionaria a operação.
17. Mediante a anuência do arguido, C… contactou um seu familiar – H… - para integrar a tripulação, ao que este acedeu e também viajou do Canadá para Portugal, tendo chegado à Ilha do Faial, em finais de Julho de 2006.
18. Entretanto, G... passou também a integrar a tripulação da embarcação “XX...”, sendo que ele, J... e H… igualmente tomaram conhecimento do referido propósito do arguido de comercializar o mencionado produto estupefaciente.
19. Entretanto, a embarcação, que continuava atracada no Porto da Horta, na Ilha do Faial, voltou a necessitar de ser reparada, pelo que o arguido, mais uma vez, adquiriu as necessárias peças à sociedade …”, por intermédio da sociedade …, tendo também neste caso as despesas sido pagas pelo arguido.
20. No 11 de Setembro de 2006, a embarcação saiu do porto da Horta e rumou ao mar alto, comandada por C..., auxiliado pelos restantes tripulantes.
21. O arguido, precavendo-se de qualquer imprevisto, não seguiu na embarcação, mas manteve-se em contacto com C..., através dos telefones satélite instalados na mesma (um na cabina ocupada pelo C... e outro na ponte de comando) e utilizando para o efeito o seu telemóvel com o n.º ….
22. A determinada altura, a embarcação prosseguiu viagem, rumo a noroeste, na direcção do continente português.
23. No dia 22 de Setembro de 2006, o arguido encontrava-se na cidade da Horta, após o que viajou de avião até à cidade de Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel, nos Açores, onde ficou instalado no Hotel Marina Atlântico até 26 do mesmo mês.
24. Daí viajou de avião até Lisboa e, em 27 de Setembro de 2006, instalou-se na “Estalagem Villa ZZ...”, em Cascais, marcando a sua estadia até 03 de Outubro de 2006.
25. No dia 29 de Setembro de 2006, pelas 07h e 10m, a cerca de 180 milhas ao largo de Ovar, nas coordenadas 40º 54’ N e 12º 13’W, a Marinha de Guerra Portuguesa e a Polícia Judiciária interceptaram a embarcação “XX...” e efectuaram uma busca à mesma.
26. No decurso dessa busca, foram encontrados e apreendidos 84 pacotes, contendo cada um deles 10 embalagens com cocaína (cloridrato), tudo com o peso global de 996.000 gramas líquidos, que se encontravam acondicionados no compartimento existente na ponte alta, na proa da embarcação.
27. Nessas circunstâncias, foram detidos todos os tripulantes da embarcação – C…, H..., G... e J.... 28. Conduzida a embarcação para o Porto de Aveiro, em 30 de Setembro de 2006 foi realizada uma busca ao interior da mesma, no decurso da qual foram encontrados e apreendidos os seguintes objectos:
a) - No quarto a estibordo, ocupado por C...:
- um telefone satélite de marca Qualcomm GPS-1600;
- um pocket PC;
- uma máquina fotográfica digital de marca Nikon Colpix 5700;
- um IPOD da marca Apple, modelo MA002LL;
- um scanner da marca Visioneer, modelo One touch;
- uma impressora da marca Sentinel, modelo MQ60B;
- uma pen da marca Nobeltec;
- um cartão de memória da marca compactflash;
- uma carteira em pele de cor preta, contendo no seu interior 380 euros, 980 dólares canadianos, 25 libras e 900 dólares americanos;
- vários documentos e cartões bancários de crédito e débito.
b) – No quarto a bombordo, ocupado por H...:
- uma carteira em pele de cor preta contendo no seu interior 860 dólares canadianos;
- um telemóvel da marca LG 3200;
- diversos documentos e um cartão bancário.
c) - No sofá cama na zona de estar, onde pernoitava G…:
- as quantias de 2.680 euros e de 2.020 dólares canadianos;
- um telemóvel da marca Sagem MyX5-2, diversos documentos e um cartão bancário;
- um computador portátil da marca Toshiba, modelo satélite M70-258.
d) – No quarto à proa, ocupado por J...:
- as quantias de 4.820 euros e de 80 dólares canadianos;
- um telemóvel da marca LG 2.000;
- uma carteira em pele, contendo diversos documentos.
e) - Na ponte da embarcação:
- um computador portátil da marca Toshiba, modelo satélite M70-CL1;
- um telefone satélite Qualcomm GSP 1.600;
- dois GPS da marca Garmin, modelo GPSMAP76CX;
- um GPS de marca Garmin, modelo GPS72.
29. Foram ainda encontrados e apreendidos um telemóvel de marca Sharp, uma impressora de marca HP Deskjet 6840, um par de binóculos de marca Nikon, uma bússola de marca Silva, um rádio VHF de marca Icom, um rádio transmissor da marca Unidem, dois transmissores/receptores de marca Motorola, modelo T6510, dois casacos da marca West Marine próprios para navegar, cinco fatos completos de marca Pró-Ranger próprios para navegar, um rádio baliza com MMSI, um Digital Áudio/Vídeo Control Center da marca Sonny, um leitor de DVD de marca Sonny cinco colunas de marca Sonny, um plasma de 42’ da marca Z e um projector.
30. No dia 30-09-2006, logo que se apercebeu de que algo de imprevisto teria sucedido e temendo ser detido pelas autoridades portuguesas, o arguido abandonou o hotel onde estava hospedado e viajou de avião para Montreal, no Canadá, onde chegou pelas 15h e 30m do dia 01-10-2006 (hora local), apesar de o bilhete de avião que tinha previamente comprado lhe permitir regressar ao Canadá em qualquer data até ao dia 19-11-2006.
31. Ao chegar ao Aeroporto Internacional de Montreal, o arguido desfez-se, atirando-os para um caixote de lixo, do referido bilhete de avião Montreal Zurique – Lisboa com saída de Montreal em 20-09-2006 e regresso pelo caminho inverso, utilizável até ao dia 19-11-2006, e de um cartão de carregamento da Vodafone com o n.º 913580373, documentos esses que vieram a ser recolhidos pela Royal Canadian Mounted Police - Gendarmerie Royale du Canada, que estava de sobreaviso por ter sido alertada pelas autoridades portuguesas.
32. Em 05 de Outubro de 2006, o arguido dirigiu-se à Royal Canadian Mounted Police - Gendarmerie Royale du Canada, apresentando-se como proprietário da embarcação “XX...” e solicitando a sua devolução, alegando ser completamente alheio à sua utilização para transportar estupefacientes.
33. Entretanto, passado cerca de um ano, em 03 de Outubro de 2007, na sequência de insistências por parte da entidade que fornecera a informação inicial sobre a suspeita de a embarcação em apreço transportar droga, a Polícia Judiciária procedeu a nova busca ao interior da mesma, que se mantinha apreendida no Porto de Aveiro, no decurso da qual foram encontrados e apreendidos, na cabina a bombordo, 64 pacotes, contendo cada um deles 10 embalagens de cocaína (cloridrato), e na cabina a estibordo, 65 pacotes, contendo cada um deles 10 embalagens de cocaína (cloridrato), tudo com o peso global de l.497.391,900 gramas brutos.
34. Todos estes pacotes de cocaína se encontravam ocultados nos espaços deixados pelas aludidas paredes falsas que o arguido havia mandado construir nas ditas cabines.
35. Após esta última apreensão, que foi mantida em sigilo, pessoas não concretamente identificadas, introduziram-se na embarcação.
36. Todo o referido produto estupefaciente encontrado na embarcação, quer no compartimento existente na ponte alta, na proa, quer nos espaços deixados pela construção das paredes falsas nas cabines, havia aí sido escondido em data e em circunstâncias que não foi possível apurar, por decisão do arguido e na execução do seu referido propósito de comercializar grande quantidade de cocaína.
37. O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes desse produto.
38. E agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de o introduzir nos circuitos de comercialização de droga, cedendo-o a terceiros indivíduos não identificados, mediante contrapartidas de natureza económica, indivíduos estes que posteriormente a revenderiam a outros, até assim chegar aos consumidores de estupefacientes, bem sabendo que a detenção e cedência a terceiros de substâncias de natureza estupefaciente é proibida e punida pela lei penal portuguesa e pela do seu país.
39. A fim de alcançar os seus propósitos e no intuito de minorar os riscos de ser interceptado e detido pelas autoridades policiais, o arguido adaptou a referida embarcação e contratou os mencionados tripulantes da mesma, todos eles com experiência em navegação marítima, a quem incumbiu de, sob as suas ordens, executarem a operação de transporte do produto estupefaciente.
40. C..., H..., G... e J... foram já julgados e condenados nas penas de prisão de, respectivamente, 8 anos, 6 anos e dez meses, sete anos e sete anos, pela sua intervenção nestes factos, embora apenas circunscritos à apreensão dos 996,000 gramas líquidos de cocaína encontrados no compartimento existente na ponte alta, na proa da embarcação.
41. O arguido foi detido em 13-08-2009, nos Estados Unidos da América, ao abrigo de um mandado de detenção internacional emitido no âmbito dos presentes autos.
42. Após a sua extradição, o arguido chegou a Portugal no dia 08-06-2010, onde foi submetido a primeiro interrogatório judicial no dia seguinte, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
43. O arguido é casado e possui uma licenciatura e um mestrado nas áreas de comércio e administração, respectivamente.
44. Previamente à sua detenção, dedicava-se a uma actividade em que dirigia uma empresa de fabrico de alimentos e administrava dois restaurantes, auferindo um rendimento anual aproximado de 70.000 dólares canadianos.
45. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
*
B) - MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Para além daqueles que já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, não se provaram os seguintes factos:
- O arguido comprou a embarcação … no intuito de armazenar e transportar o produto estupefaciente que decidira comercializar.
- Enquanto a embarcação “XX...” esteve a ser reparada, o arguido aproveitou para ultimar as negociações da transacção de cocaína.
- A embarcação recebeu o carregamento de droga no alto mar.
- H… era um mecânico experiente.
- Este passou a integrar a tripulação devido à embarcação ter problemas de aquecimento nos motores.
- O arguido propôs a J... que se encarregasse da manutenção da embarcação e a G... que se encarregasse das telecomunicações.
- Pelas 00 horas do dia 17 de Setembro de 2006, nas coordenadas 26° N e 45° W, a embarcação “XX...” encontrou-se com uma outra embarcação, proveniente da Guiana, procedendo-se nessa ocasião ao transbordo de cerca de 3 toneladas de cocaína desta embarcação para aquela, tendo prosseguido viagem a fim de efectuar a entrega do carregamento de cocaína.
*
C) - MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
1. No que concerne aos factos provados, o tribunal colectivo formou a sua convicção com base nos meios de prova produzidos e examinados em audiência, na medida em que, avaliados à luz das regras da experiência comum, formaram um conjunto factual lógico e coerente. Assim:
a) – Valoraram-se desde logo as declarações prestadas pelo arguido, na parte em que, globalmente e na sua essência, confirmou a factualidade relativa à aquisição da embarcação, pela empresa de que era presidente (ponto 2 da matéria provada), às reparações nela efectuadas e respectiva supervisão por C... (ponto 3), à contratação dos membros da tripulação (parte final do ponto 6), à travessia do Oceano Atlântico pela embarcação, comandada pelo referido C..., e à atracagem na marina de Cascais (ponto 7), às reparações efectuadas na embarcação (ponto 8), à aquisição das peças necessárias para o efeito (pontos 9 e 10), à contratação de L... e J... e ao pagamento da respectiva estadia (ponto 11), à viagem de teste até Cadiz e respectivos participantes (ponto 12), à necessidade de contactar novamente C... para assumir o comando da embarcação (ponto 13), à viagem até à Ilha do Faial (ponto 14), onde chegaram em Junho de 2006, à nova reparação aí efectuada e à aquisição de peças para o efeito (ponto 19), à inclusão de H... e de G... na tripulação (pontos 17 e 18), à data em que a embarcação zarpou do porto da Horta (ponto 20), à estadia do arguido nessa cidade e à viagem para S. Miguel e daí para Cascais (pontos 23 e 24), ao seu regresso ao Canadá, ao facto de o seu bilhete lhe permitir viajar até ao dia 19 de Novembro (ponto 30) e à circunstância de, no aeroporto, ter deitado para o lixo o referido bilhete e o cartão de carregamento de telemóvel (ponto 31). O arguido confirmou também a sua deslocação à autoridade policial canadiana (ponto 32), estando a respectiva data comprovada pelo documento junto a fls. 494. Foi ainda o arguido a descrever as suas condições pessoais (pontos 43 e 44), em termos que nos pareceram credíveis.
Já no que concerne à factualidade que constitui o núcleo essencial do objecto do processo, ou seja, o transporte, com vista à sua comercialização, do produto estupefacientes em apreço, o arguido sustentou ser completamente alheio a tal situação, nada tendo a ver com a droga que foi encontrada no interior da sua embarcação e desconhecendo, inclusivamente, a existência das paredes falsas nas cabines da mesma.
É certo não ter sido produzida prova directa sobre a participação do arguido nesses factos, porquanto, para além de o mesmo não se encontrar na embarcação quando esta foi interceptada pelas autoridades policiais e sujeita à busca de que resultou a apreensão da droga, o único membro da tripulação inquirido como testemunha foi o mencionado C..., o qual se recusou validamente a depor, atenta a sua qualidade de arguido pelo mesmo crime, ainda que já condenado por sentença transitada em julgado (art. 133º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Todavia, houve lugar a abundante prova indiciária que nos permitiu considerar demonstrada a participação do arguido nesses factos, nos termos constantes da matéria de facto provada. Prova essa que, apesar de meramente indirecta, pode e deve ser atendida, permitindo indubitavelmente alcançar aquela convicção sobre os factos em apreço. Vejamos como:
Entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Significa isto, por um lado, que na apreciação e valoração da prova, o juiz não deve obediência a quaisquer cânones legalmente preestabelecidos, dispondo do poder-dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente (vertente negativa daquele princípio). Por outro lado, significa que os factos são ou não dados como provados de acordo com a íntima convicção que o juiz gerar em face do material probatório validamente constante do processo (lado positivo do mesmo princípio).
Todavia, conforme refere Germano Marques da Silva ( In Direito Processual Penal, vol. II, pág. 111), “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça (Cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR de 12-01-1998, II Série).
Neste quadro pode o tribunal lançar mão da prova indiciária ou indirecta, ou seja, aquela que se refere a factos diversos do tema da prova (prova directa), mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Acompanhando o acórdão proferido sobre esta questão pela Relação de Coimbra em 09-02-2000 (Publicado na Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pág. 51), “o indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável. Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
A associação que a prova indiciará proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho (Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal).
Conforme refere André Marieta (La Prueba em Processo Penal, pág. 59) são dois os elementos da prova indiciária:
a) - Em primeiro lugar o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. (…)
O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa (v.g. prova testemunhal no sentido de que o arguido detinha em seu poder o objecto furtado ou no sentido de que no local foi deixado um rasto de travagem de dezenas de metros). O que não se pode admitir é que a demonstração do facto indício que é a base da inferência seja também ele feito através de prova indiciária, atenta a insegurança que tal provocaria.
b) - Em segundo lugar é necessária a existência da presunção, que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma premissa maior: a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum que, apoiada no indício – premissa menor - permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.
A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade.
A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova da capacidade de convicção.
Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme refere Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Porém, o facto de também relativamente à prova indirecta funcionar a regra da livre convicção não quer dizer que na prática não se definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova. Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes e concordantes entre si.
Nada impedirá, porém, que devidamente valorada, a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação (conforme Mittermaier “Tratado de Prueba em Processo Penal, pág. 389).”
Tendo presentes estas esclarecedoras considerações de ordem teórica, afigura-se-nos que no caso concreto existem abundantes indícios objectivos que, face às regras da vida e da experiência comum, nos permitem concluir com a necessária segurança pela participação do arguido nos factos em apreço nos termos dados como provados.
Vejamos, pois, quais:
Desde logo a sua condição de proprietário (ou melhor, legal representante da sociedade proprietária) da embarcação em apreço, já de bastante considerável envergadura e valor, tratando-se de um iate com cerca de 18 metros de comprimento (conforme resulta de vários documentos juntos aos autos, nomeadamente o de fls. 102 e 2433 e ss.), não sendo nada razoável que uma mera tripulação, contratada pelo arguido para fazer a travessia do Oceano Atlântico, tomasse a iniciativa de, por sua própria conta e à total reveria do dono da embarcação, transportar nela cerca de duas toneladas e meia de cocaína. Aliás, esta actividade exige necessariamente uma programação e uma organização, desde o fornecimento da droga até à respectiva entrega ao destinatário, nada compatível com a actuação de quem não tem o domínio absoluto da embarcação utilizada para o transporte. Note-se que o arguido, segundo as suas próprias declarações, também integrava a tripulação quando o iate, em Outubro de 2005, partiu da América do Norte com destino a Espanha, tendo sido uma situação imprevista (fractura de um braço a bordo durante uma tempestade) que, nas Bermudas, o obrigou a abandonar a embarcação, tendo esta prosseguido viagem com os restantes tripulantes, vindo a atracar na marina de Cascais em inícios de Janeiro de 2006. E também não é credível que aquela iniciativa de transportar a droga tivesse surgido posteriormente a o arguido ter abandonado o iate, uma vez que não podia ser súbita, por exigir toda a referida programação. E ainda que assim tivesse sucedido, não se compreenderia que a tripulação deixasse a embarcação naquela marina, como efectivamente deixou até à chegada do arguido, com a droga a bordo, em vez de ultimar a sua comercialização. É certo que, de acordo com as informações que deram origem aos presentes autos (cfr. ofício de fls. 6), tudo indica que a operação de carregamento da droga terá ocorrido em Setembro de 2006, numa altura em que a embarcação já era outra vez comandada por C..., novamente contratado pelo arguido, desta vez para a tripular desde Cadiz até às Bermudas, segundo as declarações prestadas por este último. Mas, a ter sido assim, também não faz sentido que a iniciativa de transportar a droga fosse exclusivamente da tripulação, uma vez que o arguido, nessa altura, tinha o controlo da embarcação, ainda que à distância, pois que permaneceu nas cidades da Horta e de Ponta Delgada, após o que viajou para Lisboa, ficando alojado em Cascais. Conforme o próprio arguido referiu, em 23 de Setembro de 2006, deslocou-se propositadamente do Canadá aos Açores, a fim de levar a C... € 9.000 para pagar o combustível necessário para a viagem até às Bermudas, como era seu propósito, tendo ficado a dever-se ao mau tempo a sua decisão de a fazer viajar novamente para Cascais.
Ora, neste quadro apresentado pelo arguido, nomeadamente a referida alteração de planos, não se vê como é que a iniciativa de transportar e comercializar tão elevada quantidade de cocaína pudesse partir exclusivamente dos membros da tripulação, sujeitando-se, nomeadamente, a que o arguido interviesse e pusesse em causa o sucesso da operação, tanto mais que foi necessário adaptar a embarcação para o efeito, mediante a construção das duas paredes falsas nas cabines não sendo crível que a tripulação o fizesse à revelia do dono da mesma.
Por outro lado, ficou demonstrado que esta alteração foi feita posteriormente à aquisição do iate pelo arguido. Com efeito, a testemunha F..., agente da Polícia Judiciária que participou na investigação, esclareceu que, na sequência de informação obtida junto do anterior proprietário da embarcação, acedeu ao site da internet onde a mesma esteve à venda, de onde retirou a primeira fotografia junta a fls. 1018, relativa a uma das cabines. E, confrontando tal fotografia com aquela que, posteriormente à apreensão do iate, foi tirada à mesma cabine (a segunda foto junta a fls. 1018), constata-se que o espaço existente entre a escotilha da parede lateral e a parede frontal da cabine é maior na primeira fotografia, donde se conclui pela construção, em momento posterior à aquisição do barco, da referida parede falsa. Ainda que em julgamento o arguido tenha atribuído essa redução de espaço ao facto de ambas as fotografias terem sido tiradas numa perspectiva ligeiramente diferente, analisando a parede frontal, designadamente o posicionamento do interruptor, inequivocamente se conclui que foram introduzidas alterações em tal parede. Ora, o arguido negou que tivesse levado a cabo qualquer tipo de intervenção nas cabines da embarcação. Acresce que, conforme referido pelos agentes da Polícia Judiciária F... e E..., embora a parede frontal das cabines estivesse revestida por um papel de parede de padrão igual ao das restantes, notava-se uma diferença de tonalidade, tendo, aliás, sido encontrado no iate um rolo desse papel, o que nos permite inferir pela realização de uma intervenção relativamente recente em tais paredes.
Outro relevante indício da participação do arguido nos factos deriva da circunstância de nos dias que antecederam a intercepção da embarcação (a 29 de Setembro de 2006), terem sido efectuadas várias chamadas telefónicas para o seu telemóvel (com o n.º …), a partir dos telefones satélite existentes na embarcação e do telemóvel de C.... Com efeito, conforme resulta do relatório do exame pericial efectuado a estes telefones, em concreto as informações constantes de fls. 607, 609 e 610, entre os dias 22 e 27 de Setembro de 2006, foram estabelecidos nove contactos telefónicos com o arguido, a partir dos referidos telefones satélite. E, no dia 29 de Setembro, pelas 03h e 25m, ou seja, poucas horas antes da operação de intercepção da embarcação, foi estabelecida uma comunicação telefónica com o arguido, desta feita a partir do telemóvel de C.... Ora, sobretudo esta última chamada, pela hora a que foi feita (de madrugada) e pela proximidade temporal com a abordagem do iate pelas autoridades policiais junto à costa de Portugal continental, aponta inequivocamente no sentido de o arguido estar a par e a acompanhar a operação de transporte de droga.
Saliente-se que, ainda que pudesse haver outras eventuais explicações para tais contactos telefónicos, designadamente relacionados com a viagem da embarcação, o certo é que o arguido começou por negar a sua existência, sustentando que não contactou nem foi contactado pelos membros da tripulação nesta altura e que a última vez que falou com os mesmos foi em S. Miguel. No entanto, em momento posterior das suas declarações, o arguido, alegando ter feito confusão (o que não deixa de ser estranho, atenta a gravidade dos factos em discussão) acabou por admitir ter havido contactos telefónicos entre si e a tripulação, mas relativos ao assunto do dinheiro necessário para pagar o combustível e para a tripulação o informar que tinham zarpado dos Açores. Todavia, pelo menos o último e mais relevante contacto telefónico, estabelecido no próprio dia da intercepção da embarcação, não encontra qualquer justificação nessas declarações do arguido.
Acresce que, pelo menos a partir de 22 de Setembro de 2006, o arguido manteve-se em território português, primeiramente na Horta, depois em Ponta Delgada e, a partir do dia 27, em Cascais, o que é compatível com o exercício de um controlo, a uma distância relativamente próxima, da operação de transporte em questão.
Por outro lado, não se compreende porque razão o arguido, depois de viajar dos Açores para Lisboa, decidiu ficar alojado durante vários dias em Cascais, em vez de regressar de imediato ao Canadá, dado que, como o próprio referiu, não tencionava aguardar pela chegada da embarcação, pois que a respectiva data era incerta e a tripulação tinha as instruções necessárias para a atracar na marina de Cascais, para além de que ele próprio tinha negócios a tratar no Canadá. E refira-se que a justificação apresentada pelo arguido para tal estadia não nos pareceu credível. Com efeito, a esse propósito, o arguido referiu que, em virtude de no ano anterior ter estado hospedado com a esposa no “Hotel ZZ...”, em Cascais, e de ela ter gostado desse hotel, foi a mesma quem lhe pediu para ficar novamente aí alojado, o que não faz muito sentido uma vez que o arguido viajava sozinho, encontrando-se a esposa no Canadá.
Mais sintomático da sua intervenção nos factos é a circunstância de o arguido, tendo reservado alojamento no hotel em Cascais até ao dia 03 de Outubro de 2006, subitamente, a 30 de Setembro, tenha abandonado esse hotel e regressado ao Canadá, conforme resulta dos documentos juntos a fls. 582 e 583 e dos esclarecimentos prestados pela testemunha M…, à data directora de alojamentos daquela unidade hoteleira. Tal circunstância, conjugada com o facto de a embarcação ter sido interceptada no dia anterior, claramente indica que o arguido se apercebeu que algo tinha corrido mal e se quis por a salvo. De outro modo fica por explicar, o que o arguido não logrou fazer cabalmente, a antecipação da sua saída do hotel e o regresso ao Canadá, tanto mais que era portador de um bilhete de avião utilizável até ao dia 19 de Novembro de 2006. Ademais, a própria aquisição de um bilhete com estas características, embora possa ter naturalmente outras explicações, também é sugestiva da preocupação de acautelar um regresso a qualquer momento, o que seria extremamente útil em caso de fracassar a operação de transporte de droga em apreço.
A propósito da antecipação do regresso ao Canadá, refira-se ainda que, apesar de o arguido ter sustentado que nunca solicitou reserva no hotel até ao dia 03 de Outubro, tal facto foi infirmado pelo teor do documento junto a fls. 583 e pelo depoimento da referida testemunha M... .
Por, fim pese embora o arguido tenha justificado a viagem da embarcação da América do Norte para a Europa com o seu propósito de a vender neste continente, invocando inclusivamente a existência de um potencial interessado, o qual acabou por se desinteressar do negócio, o certo é que não existe registo de qualquer contacto nesse sentido, como seria natural haver.
Em face de todos os apontados indícios, conjugados entre si e avaliados de acordo com as regras da experiência comum, afigura-se-nos existir fundamento para, sem margem para dúvidas, dar como provados os factos relativos à participação do arguido na operação de transporte, com vista à subsequente comercialização, do produto estupefaciente em apreço.
Particularmente no que concerne ao facto de essa operação ser comandada pelo arguido, que contratou os membros da tripulação para o efeito, derivou basicamente das circunstâncias de aquele ter a disponibilidade da embarcação (por ser o legal representante da respectiva proprietária) e de ter suportado todas as despesas, quer com as reparações da mesma, quer com os próprios tripulantes, nomeadamente com o necessário alojamento e com transportes em táxi. Em suma, o arguido protagonizou sempre comportamentos apenas compatíveis com a qualidade de “dono do negócio” de transporte da droga.
Por seu lado, os membros da tripulação tinham seguramente conhecimento desse negócio, de forma a poderem concretizar a entrega do produto estupefaciente, para além de, muito certamente, também terem participado no respectivo carregamento. Além disso, parte da droga estava guardada no compartimento existente na ponte alta, na proa do iate, onde poderia ser necessário aceder durante a viagem, por aí se encontrar a parte eléctrica da embarcação, conforme foi esclarecido pela testemunha E....
Por fim, a matéria atinente aos elementos subjectivos resultou das circunstâncias em que os factos ocorreram, avaliadas à luz das regras da experiência comum.
b) – Para além dos aspectos já mencionados, valoraram-se também os depoimentos das testemunhas:
- E... e D…, inspectores da Polícia Judiciária que, na sequência da informação obtida de que a embarcação em apreço transportaria droga, procederam à sua abordagem em alto mar e, ainda aí, efectuaram uma busca, na qual foi encontrada a cocaína escondida no compartimento situado na ponte alta, acessível a qualquer pessoa, uma vez que se destinava a alojar a parte eléctrica da embarcação. A testemunha E... participou ainda na busca realizada cerca de um ano depois, na qual foi detectada a droga escondida atrás das paredes falsas das cabines, demonstrando conhecimento dos procedimentos adoptados para ocultar o produto estupefaciente.
- F…, também inspector da Polícia Judiciária que participou na investigação, concretamente na busca feita à embarcação já no Porto de Aveiro, bem como na busca realizada cerca de um ano depois, tendo aludido à forma como o produto estupefaciente encontrado nesta última ocasião se encontrava escondido. Foi ainda esta testemunha quem procedeu às referidas diligências que permitiram estabelecer o confronto entre o aspecto da cabine da embarcação antes da compra desta pelo arguido e aquando da apreensão da mesma.
- N… e O…, ambos igualmente inspectores da Polícia Judiciária, tendo também participado nas buscas efectuadas à embarcação, aludindo, nomeadamente, aos bens nela encontrados e apreendidos.
- P…, inspector da Polícia Judiciária que chefiava a brigada encarregue da investigação, tendo, nomeadamente, aludido ao motivo para a realização da segunda busca e aos contactos do arguido com vista a reaver a sua embarcação.
- Q…, B… e A…, respectivamente dono e trabalhadores do estaleiro em que, a pedido do arguido, foi feita a reparação na embarcação no Seixal, tendo os dois últimos participado, com as respectivas mulheres, na viagem de teste efectuada até Cadiz, qualidades em que demonstraram conhecimento da respectiva factualidade.
- K…, taxista que durante dois ou três meses, com início na altura da Páscoa de 2006, efectuou vários serviços de transporte do arguido, por vezes acompanhado por mais dois indivíduos, um deles também chamado Jacques, na zona de Lisboa, designadamente a lavandarias, farmácias e lojas, sendo geralmente o arguido quem lhe pagava os serviços.
- R… e S…, respectivamente director e funcionária da empresa …, à qual o arguido recorreu para encomendar as peças necessárias para as duas reparações efectuadas na embarcação, a primeira no Seixal e a segunda na Horta, tendo sido sempre ele a fazer os respectivos pagamentos.
- M..., à data dos factos directora de alojamentos no “Hotel ZZ...”, em Cascais, qualidade em que demonstrou conhecimento dos pormenores relativos à estadia do arguido nessa unidade hoteleira, tendo explicitado os documentos juntos a fls. 583 e 586.
c) – Para além das referências já efectuadas, valoraram-se ainda os seguintes documentos, juntos a fls.:
- 733 a 796, 1010 a 108 e 1025 a 1091 (relativos ao negócio de aquisição da embarcação e, como tal, relevantes para a matéria dada como provada sob os pontos 2 e 3, sendo que para o preço exacto da aquisição se valorou particularmente o documento junto a fls. 1051).
- 101 a 103, 284 a 287 e 328 (atendidos para o registo da embarcação, aludido no ponto 4).
- 76 (relativo à saída da embarcação, em 02-12-2005, das Bermudas com destino a Lisboa, em consonância com o teor do ponto 7).
- 1018 dos presentes autos (a 2ª fotografia) e 11 a 16 do processo apenso n.º 346/07.7JELSB (fotografias relativas às cabines da embarcação, relevantes para a matéria do ponto 5).
- 433 a 435, 437 a 455, 457, 459 a 469, 477 a 482 (relativos à reparação da embarcação referida nos pontos 8, 9 e 10).
- 589 (informação relativa à estadia de L... e de J... no Hotel Vila Galé Ópera e do respectivo pagamento pelo arguido, conforme referido no ponto 11).
- 302 e 303 (registos das entradas e saídas da embarcação em Puerto Sherry, Cadiz, e na Marina da Horta, atendido, nomeadamente para a data referida no ponto 20 e para a composição da tripulação).
- 305 a 311 (comprovativos da movimentação da embarcação no Porto da Horta).
- 599 a 613 (relatório do exame pericial efectuado aos telemóveis e aos telefones satélite apreendidos, em concreto as informações constantes de fls. 607, 609 e 610, atendidas para os contactos referidos no ponto 21, estabelecidos entre o arguido e C...).
- 623 e 624 (informação prestada pelo “Hotel Marina Atlântico”, em Ponta Delgada, relativa à estadia do arguido nessa unidade hoteleira, mencionada no ponto 23).
- 582, 583, 586 e 588 (informação prestada pelo “Hotel ZZ...”, em Cascais, relativa à estadia do arguido na “Estalagem Villa ZZ...”, mencionada no ponto 24, bem como à antecipação da sua saída, referida no ponto 230 documentos esses devidamente explicitados em audiência pela testemunha M...).
- 40 a 42, 99, 276 a 281 e 688 (auto de busca e apreensão, auto de pesagem, reportagem fotográfica e relatório do exame efectuado ao produto apreendido no compartimento da ponte alta da embarcação, atendidos para a matéria dos pontos 25, 26 e 27).
- 402 a 408 (informação prestada pela autoridade policial canadiana, referente à matéria referida na segunda parte do ponto 31 e no ponto 32).
- 187 a 189 (auto de busca e apreensão relativas aos objectos referidos nos pontos 28 e 29).
- 8 a 19 e 109 do apenso com o n.º 346/07.7JELSB (auto de busca e apreensão, respectiva reportagem fotográfica, auto de pesagem e relatório do exame efectuado ao produto estupefaciente aludido no ponto 33).
- 50 a 64 do apenso com o n.º 346/07.7JELSB (reportagem fotográfica relativa à introdução na embarcação referida no ponto 35).
- 122 a 247 do apenso com n.º 346/07.7JELSB (certidão contendo, nomeadamente, os acórdãos de primeira instância e da Relação relativos ao julgamento e às condenações referidas no ponto 40).
2. A factualidade não provada, para além do que já resulta directamente excluído em face dos factos provados e da respectiva motivação, resultou da ausência de qualquer referência probatória que a permita ter como demonstrada.
***
Conhecendo:
São os seguintes os pontos de discordância do recorrente (pelo próprio sintetizados) em relação à matéria do acórdão:
I - As NULIDADES DO ACÓRDÃO
I.1- Nulidade da sentença que condena por um crime de tráfico de estupefacientes agravado enquanto na acusação está imputado ao arguido um crime de tráfico de estupefacientes (violação dos art. 379, n.º 1, aI. b) e art. 358 e 359, do CPP).
I.2 - O despacho que designa dia para a audiência é nulo pois que violou o art. 313, n.º 1, aI. a), do CPP e produziu uma alteração substancial dos factos (art. 1 aI. f) e art. 359, n.º 1, do CPP) ao imputar ao arguido um crime agravado com uma moldura penal mais grave que da acusação.
I.3 - Nulidade do acórdão por violação dos art. 374, n.º 2 e art. 379, n.º 1, aI. a), do CPP, dado que há factos constantes da acusação que não foram dados como provados nem como não provados.
I.4- Da insuficiência para a decisão da matéria de facto com o consequente reenvio do processo para novo julgamento.
I.5 - Nulidade do acórdão, nos termos do art. 379, n.º 1, aI. c), do CPP, por os factos referidos na secção anterior não terem sido conhecidos, ou seja, dados como não provados.
I.6 - Nulidade da sentença por condenar por factos provados que não constam da acusação e são diversos da acusação, sem que o tribunal tenha procedido a qualquer notificação do arguido para operar uma alteração não substancial dos factos e sem que tais factos tenham sido alegados pela defesa (art. 379, n.º 1, aI. b) e art. 358, n.º 1, do CPP).
I.7 - A nulidade do acórdão por falta, deficiência e omissão, de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
II - IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA
Dado que o Acórdão julgou erradamente alguns factos dados como provados e não provados e extraiu dos factos indiciários outros factos e conclusões que as regras da experiência não permitem, com o consequente PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE FACTOS DADOS COMO PROVADOS E NÃO PROVADOS.
III- IMPUGNAÇÃO DO JULGAMENTO DE DIREITO, POR ESTE TER SIDO APLICADO DE MODO ILEGAL:
III.1- Na Qualificação Jurídica dos factos provados como crime de tráfico de estupefacientes agravado (art. 24, aI. c), do Decreto-Lei n.º 15/93);
III.2- Na fixação da medida da pena.
***
Nulidade do Acórdão:
Entende o recorrente que se verifica nulidade do acórdão, por condenar o arguido por um crime de tráfico de estupefacientes agravado enquanto na acusação está imputado ao arguido um crime de tráfico de estupefacientes.
Que o despacho que designa dia para a audiência é nulo pois violou o art. 313, n.º 1, aI. a), do CPP e produziu uma alteração substancial dos factos (art. 1 aI. f) e art. 359, n.º 1, do CPP) ao imputar ao arguido um crime agravado com uma moldura penal mais grave que da acusação.
Esta situação de alteração da qualificação jurídica dos factos no despacho que recebe a acusação é constatada no acórdão recorrido, mas não os efeitos (nulidade) pretendidos pelo recorrente.
No acórdão se refere: “Para tanto, foi imputada ao arguido a prática, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido (p. e p.) pelo art. 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à tabela I-B, a ele anexa, qualificação jurídica essa que, aquando do
recebimento da acusação, foi alterada para um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.s 21º, n.º 1, e 24º, al. c), do mesmo diploma”.
Na questão em apreço seguimos a orientação explanada no acórdão proferido no Proc.nº 1784/00.1TAFIG-A.C1, do 3º Juízo do Tribunal da Comarca da Figueira da Foz, em que fomos relator (recurso de 2006).
Naquele processo o despacho recorrido foi proferido no início da audiência, sendo que aqui está em causa o despacho que recebeu a acusação, introduzindo alterações.
Despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 311 do CPP.
Temos como extemporâneo o despacho que ao receber a acusação decide produzir alterações a esta.

No Ac. desta Relação, de 8-6-1994, in Col. Jurisp. tomo III, pág. 55 se entendeu que “o juiz pode, logo no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação e, em consequência, apreciar em concreto a questão da competência do tribunal”.
Entendimento que se tem mantido nomeadamente na Relação do Porto, Ac. de 16-05-2001,que entende que “o juiz, ao receber o processo para designar dia para o julgamento, se divergir da qualificação jurídica dos factos feita pelo Mº Pº na acusação, deve proceder à sua diferente qualificação jurídica”. É de ter em conta, no entanto, que neste caso a «convolação» se operou para crime menos gave.
Mas este mesmo Ac. da relação do Porto refere que se trata de questão jurídica que tem sido levantada na jurisprudência, “sendo de soluções desencontradas”.
Na Relação de Coimbra esta Jurisprudência não fez carreira, pois que a jurisprudência dominante vai em sentido contrário e, salientamos o Ac. desta Relação de 15-02-1995, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 62, “o juiz não pode, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação ou na pronúncia aos factos imputados ao arguido…”, “o despacho que assim decida sofre de irregularidade que acarreta a respectiva invalidade”.
E no mesmo sentido o Ac. de 5-01-2000, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 42, que refere, a questão não é liquida nem é nova e está directamente ligada ao conceito, equívoco, de acção penal, cujo exercício compete constitucionalmente ao Mº Pº e à estrutura do processo crime, de sistema acusatório ou inquisitório.
Aí se referindo: “Se o juiz ao proferir o despacho a que se refere o art. 311 do CPP, verificar que há um claro erro na subsunção dos factos às normas incriminadoras, deve rejeitar a acusação, permitindo ao acusador a rectificação de tal erro”, acrescentando, “mas, se o erro é apenas provável, deve designar dia para julgamento , já que não pode alterar o objecto do processo e assumir a posição de acusador, alterando a qualificação jurídica dos factos, sobretudo se esta agrava a posição do arguido” (sublinhados nossos).
Porém, ainda que pudesse haver essa alteração da qualificação, a mesma nunca poderia resultar em alteração substancial da acusação, cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 210.
E, no caso em apreço entendemos que a alteração pretendida constitui alteração substancial. Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, conforme definição do art. 1 al. f) do CPP.
E, a «convolação» operada no caso em apreço traduz-se em manifesta agravação, tratando-se de qualificação do tipo de crime.
Porém, face ao disposto no art. 358 nº 3 do CPP, entende-se que a alteração substancial resultante apenas da alteração da qualificação jurídica dos factos, para regularização basta a comunicação a efectuar nos termos do art. 358 nº 1.
O art. 358 do CPP integra-se na fase do julgamento e será determinado pelo juiz do julgamento, quando já se encontra em “pleno exercício das suas funções de julgador e essa alteração resulta como consequência directa das suas funções. A sua situação de independente das partes, até então exigida, dá lugar à sua vinculação à verdade emergente do julgamento. E mesmo então, não é livre de julgar de acordo com o que resulta do julgamento já que deve observar o disposto no nº 1, do mesmo artigo. E isto sendo alteração não substancial, porque se o for, então outra solução não resta que dar cumprimento ao art. 359, nº 1” –Ac. de 5-1-2000, citado.
E continuando a citar, “parece-nos, assim, claro que o juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos. Exige-o a estrutura acusatória do processo e a posição do juiz nesta fase processual. Nesta o juiz deve limitar-se a pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311, nº 1) e não a pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica. Tomar posição sobre ela será tomar posição como defensor ou como acusador, uma vez que ainda não exerce funções de julgador nem pode antecipar-se a elas”.
O juiz ao proferir o despacho recorrido exerceu um poder que ainda não está em posição de tomar. “Nesta fase processual o tribunal não é livre na subsunção até porque desconhece ainda se ela está efectivamente errada”.
Resta-nos concluir que nesta fase se desconhece se a qualificação jurídica dos factos efectuada na acusação está, ou não, errada.
Assim, aquele despacho que procedeu a alteração da qualificação jurídica dos factos (agravando), é ilegal, pois que viola as disposições do processo penal.
Não se trata, contudo, de nulidade como alega o recorrente, pois que só se verifica a nulidade nos casos em que a lei cominar como tal (princípio da legalidade), art. 118 do CPP, mas não sendo determinada a nulidade, o acto ilegal sofre de irregularidade, a qual afecta a total validade do mesmo, importando a sua invalidade.
Invalidade essa que implicava a prejudicialidade das decisões posteriores consequência do despacho recorrido.
Pelo que a entender-se, em julgamento, que havia lugar a alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, deveria ter sido dado cumprimento ao preceituado no art. 358 nº 1, ex vi 358 nº 3, do CPP.
Ou seja, em termos práticos, no acórdão procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, sem que tenha sido dado cumprimento ao estatuído no art. 358 do CPP, já que a alteração antes operada era inválida.
E, o art. 379 do CPP comina com a nulidade do acórdão, quando se condena por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358 e 359.
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Pelo exposto, verificando-se a nulidade por falta de cumprimento do estatuído no art. 358, julga-se procedente o recurso.
Ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal, em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido JP... e, em consequência:
a)- Anula-se o acórdão recorrido, devendo proceder-se à reabertura da audiência e dar cumprimento ao estatuído no art. 358 do CPP e, decidir em conformidade.
Sem custas.
Coimbra,
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