Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/13.0TBCDN-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: FACTORING.
SUBEMPREITADA.
TÍTULO EXECUTIVO – DOCUMENTOS PARTICULARES
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE COIMBRA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1213º DO C. CIVIL; 46º, Nº 1, AL. C) DO CPC; 7º DO DECRETO-LEI N.º 171/95, DE 18 DE JULHO.
Sumário: I – O contrato de subempreitada é o contrato através do qual alguém – subempreiteiro – assume a obrigação de realizar a obra ou parte da obra que o empreiteiro se comprometeu a executar pela celebração de um contrato de empreitada com o dono da obra, mediante o pagamento de um preço a pagar pelo empreiteiro – art.º 1213º, n.º 1, do C. Civil.
II – Sendo o contrato de subempreitada um contrato em que se acorda a realização de uma obra, mediante o pagamento de um preço, são-lhe aplicáveis, em princípio, as regras especialmente previstas para o contrato de empreitada, assumindo o empreiteiro a posição de dono da obra e o subempreiteiro a posição de empreiteiro.
III – Tendo o requerimento executivo sido apresentado em 18.1.2013 é-lhe aplicável o disposto no anterior C. P. Civil, o qual admitia no art.º 46, n.º 1, c), como títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
IV – A promoção pelo legislador dos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, traduziu um reconhecimento que tais documentos pela força probatória potencial que lhes era atribuída por lei revelavam uma forte probabilidade do crédito exequendo existir.
V - Um documento particular, em princípio, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, estando apenas dependente da sua autenticidade e da veracidade da letra e assinatura, assim como se consideram plenamente provados os factos compreendidos na declaração se forem contrários aos interesses do declarante e a declaração for dirigida à parte contrária ou a quem a represente – art.º 376º, n.º 1 e 2, e 358.º, n.º 2, do C. Civil -, pelo que se entendeu que o reconhecimento de um crédito em declaração dirigida ao credor, indicia suficientemente a existência desse crédito, tendo-se, por isso, permitido o acesso imediato à instância executiva com a simples apresentação desse documento.
VI – O factoring é um contrato nominado, reconhecido e assim denominado pelo legislador no art.º 7º do Decreto-Lei n.º 171/95, de 18 de Julho, estando minimamente regulado neste diploma, hoje na redacção que lhe conferiu o Decreto-Lei n.º 100/2015, de 2 de Junho, o qual envolve uma operação de cessão de créditos pelo aderente ao factor, aplicando-se a esta transmissão as normas do Código Civil previstas nos art.º 577º e seguintes.
VII – Por esse contrato o aderente compromete-se a ceder ao factor os créditos provenientes de contratos celebrados com terceiros, obrigando-se a factor a proceder à antecipação de fundos, quando solicitada, e a gerir e cobrar os créditos que lhe foram cedidos.
VIII – se a Exequente, através de um contrato de factoring, cedeu a uma instituição bancária os créditos que detinha sobre a Executada, relativos ao pagamento de trabalhos incluídos no contrato de subempreitada que com esta havia celebrado, não tendo essa instituição logrado cobrar todos os créditos cedidos, são-lhe retransmitidos aqueles direitos de crédito na parte não cobrada.
IX – O reconhecimento da existência de créditos feito pela Executada-devedora perante o então credor, em que manifesta o conhecimento do contrato de factoring, em documento particular, juntamente com as facturas a que se reportava esse reconhecimento, tem força executiva, nos termos do art.º 46º, n.º 1, c), do C. P. Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.
X – Se o aparecimento de defeitos em data posterior à emissão dos documentos que foram apresentados com o requerimento executivo em que se solicita a cobrança de parte do preço da obra realizada pelo Exequente poderia vir a extinguir os créditos exequendos, permitindo a dedução de oposição com esse fundamento, nos termos do art.º 816.º do C. P. Civil de 1961, tal facto em nada belisca a força executiva dos documentos apresentados, os quais não deixam de conter o reconhecimento pela Executada da existência desses créditos.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Exequente deduziu execução para pagamento de quantia certa contra a Executada, reclamando o pagamento de €270.754,72, relativos a parte do preço de um contrato de subempreitada que havia celebrado com a Executada.
Esta deduziu oposição mediante embargos alegando, em síntese, a inexistência de título executivo, o cumprimento defeituoso dos trabalhos do contrato de subempreitada pela Exequente e a recusa desta em eliminá-los, o que determinou que tivesse que contratar a sua reparação de terceiros, invocando a compensação de um crédito no valor de €301.333,08, titulado pela nota de débito n.º ... e pela factura n.º ...
A Exequente contestou, defendendo a existência de título executivo, impugnando os documentos apresentados, a inadmissibilidade da compensação bem como o contra crédito invocado, alegando ter executado pontual e integralmente todos os trabalhos que lhe foram adjudicados pela executada e que os defeitos que a camada de desgaste veio a apresentar derivaram da sua aplicação em condições climatéricas desfavoráveis e por exigência da executada.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
No despacho saneador foi julgada improcedente a arguida inexistência de título executivo.
Veio a ser proferida sentença que julgou os embargos procedentes, julgando extinta a execução.
A Exequente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
A Embargante respondeu, pugnando pela confirmação da decisão proferida e interpôs recurso subordinado (subsidiário), contendo as seguintes conclusões:
...
A Embargante apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.
9. Do objecto dos recursos
No recurso que interpõe a Exequente coloca em causa a admissibilidade da invocação da compensação como fundamento da dedução de oposição à execução, em que o contra-crédito não esteja reconhecido judicialmente, concluindo que, em face do princípio da economia processual, os embargos deveriam ter sido julgados imediatamente improcedentes.
Ora, independentemente da bondade do fundamento invocado, o certo é que a decisão implícita de não julgar imediatamente a causa – seja no despacho liminar quando a ele houver lugar, seja no despacho saneador – não é recorrível, razão pela qual não se conhecerá desta questão.
Por outro lado, a Executada deduziu recurso subordinado, cujo conhecimento seria condicionado à procedência do recurso interposto pela Exequente.
Conforme resulta do disposto no art.º 633º, n.º 1, do C. P. Civil, o recurso subordinado só é admitido a quem fique vencido na decisão.
A Executada só ficou vencida relativamente ao decidido no despacho saneador proferido em 8.8.2014, na parte em que julgou improcedente a excepção da falta de título executivo, pelo que apenas se conhecerá do recurso subordinado nessa parte.
Assim, considerando que o objecto do recurso interposto é delimitado pelas respectivas conclusões cumpre conhecer as seguintes questões:
a) Deve ser alterada a decisão da matéria de facto?
b) A existência de defeitos na obra, só por si, não exime a Executada da obrigação de pagar o preço acordado para a sua realização?
c) Os documentos apresentados com o requerimento de execução não têm força executiva?
2. Dos factos
A Exequente, discordando do julgamento da matéria de facto impugna os seguintes factos provados:
...
Assim, mantém-se inalterada a matéria de facto.
Os factos julgados provados são, pois, os seguintes:
...
3. Do direito aplicável
3.1. Do recurso interposto pela Exequente
O principal fundamento do recurso interposto pela Exequente, na parte em que deve ser conhecido, reside em não lhe serem imputáveis os defeitos da obra por si realizada e cuja existência, na fundamentação da decisão recorrida, conduziu à procedência da oposição deduzida pela Executada.
A procedência deste fundamento, nas alegações da Exequente, dependia de uma substancial alteração do conteúdo da matéria de facto julgada provada.
Não tendo ocorrido essa alteração, em virtude de ter improcedido a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida por esta Recorrente, fica prejudicado o conhecimento deste fundamento do recurso.
Resta, pois, apreciar a alegação de que não tendo sido admitida a compensação de créditos pela sentença recorrida, a oposição teria necessariamente que improceder, uma vez que ficou provada a dívida invocada pela Exequente.
A Exequente apresentou requerimento executivo, pedindo o pagamento de parte do preço acordado em contrato de subempreitada celebrado com a Executada. Juntou as facturas respeitantes a trabalhos dessa obras que na sua versão não foram integralmente pagos e declarações da Executada reconhecendo ser devedora do valor dessas facturas.
A Executada deduziu oposição, alegando ser credora de um crédito sobre a Exequente no valor de €301.333,08 e que fez operar a compensação da dívida exequenda com esse crédito, extinguindo essa dívida. Esse crédito respeitava a um direito de indemnização pela reparação à sua custa de defeitos da obra realizada pela Exequente no cumprimento de contrato de subempreitada.
A sentença recorrida, apesar de ter entendido que o crédito cuja compensação vinha invocado não se demonstrou, nem se encontrava judicialmente reconhecido, não acolhendo o fundamento da oposição deduzida, concluiu que o valor peticionado na execução não é devido dado que se reporta ao contrato de subempreitada que as partes celebraram entre si e que foi cumprido defeituosamente pela exequente/subempreiteira.
Previamente cumpre salientar que este tribunal de recurso não pode reapreciar se a reparação desses defeitos pela Executada originou um crédito indemnizatório sobre a Exequente que possa ser compensado com o crédito relativo à parte do preço que não foi paga pela Executada, uma vez que esta, nas contra-alegações apresentadas, não ampliou o âmbito do recurso a este fundamento da oposição por si apresentada e que viu decair na sentença recorrida, atento o disposto no art.º 636º, n.º 1, do C. P. Civil.
Ora, o simples facto da obra realizada padecer de defeitos que a subempreiteira se recusou a reparar, sem mais, não é suficiente para se poder concluir que a obrigação de pagamento do preço da subempreitada não subsiste. Vejamos.
Exequente e Executada celebraram um contrato de subempreitada, tendo por objecto os trabalhos incluídos na denominação “Arranjos Exteriores” constante do contrato de empreitada geral do “C...”, da qual a Exequente era adjudicatária.
Provou-se a existência de anomalias no trabalho de aplicação do pavimento betuminoso que havia sido realizado pela Exequente, no cumprimento daquele contrato, uma vez que o pavimento betuminoso ficou em estado de desagregação acelerada, com os elementos que o compunham soltos e a desfazer-se, pondo em perigo a circulação rodoviária.
Também se provou que a Exequente se recusou a efectuar trabalhos de reparação desta deficiência, pelo que a Executada, atenta a urgência na realização dos trabalhos de reparação, mandou efectuar as obras de reparação necessárias por terceiro.
O contrato de subempreitada é o contrato através do qual alguém – subempreiteiro – assume a obrigação de realizar a obra ou parte da obra que o empreiteiro se comprometeu a executar pela celebração de um contrato de empreitada com o dono da obra, mediante o pagamento de um preço a pagar pelo empreiteiro – art.º 1213º, n.º 1, do C. Civil.
Sendo o contrato de subempreitada um contrato em que se acorda a realização de uma obra, mediante o pagamento de um preço, são-lhe aplicáveis, em princípio, as regras especialmente previstas para o contrato de empreitada, assumindo o empreiteiro a posição de dono da obra e o subempreiteiro a posição de empreiteiro.
Assim, no presente caso, tendo-se provado a existência de vícios na obra realizada pelo Exequente – subempreiteiro -, sem que se mostre ilidida a presunção de culpa constante do art.º 799º, n.º 1, do C. Civil, este último é responsável pela existência desses defeitos, tendo o legislador conferido ao dono da obra – aqui a Executada – a titularidade de diferentes direitos que lhe permitem efectivar essa responsabilidade e que constam dos art.º 1221.º a 1225.º do C. Civil.
Da matéria de facto provada resulta que a Executada, após ter inicialmente exercido extrajudicialmente o direito à eliminação dos defeitos – art.º 1221º do C. Civil -, perante a recusa da Exequente em proceder às obras de reparação solicitadas, contratou com terceiro a realização destas, e invocou na oposição aqui em julgamento a compensação do direito de crédito da Exequente, relativo ao pagamento da parte do preço em falta, com o direito de indemnização relativo ao custo das obras de reparação.
Efectivamente, tendo presente a matéria de facto provada, a Executada é titular de um direito de indemnização no valor do custo que despendeu com as obras de reparação dos defeitos da obra realizada pelo Exequente, uma vez que este ao recusar proceder à eliminação de defeito que lhe é imputável, incumpriu definitivamente essa obrigação, além da urgência que existia na realização das obras de reparação Sobre a existência deste direito de indemnização nas situações de incumprimento definitivo da obrigação de eliminação dos defeitos e de urgência na realização das obras de reparação, João Cura Mariano, em Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 6.ª ed., pág. 135 e seg., Almedina, 2015, e Pedro de Albuquerque/Miguel Assis Raimundo, em Direito das Obrigações. Contratos em especial. Vol. II, Contrato de Empreitada, pág. 432-433, Almedina, 2012, e a jurisprudência citada por estes autores.
.
Contudo, a decisão recorrida entendeu que nesta execução não podia operar a compensação do crédito exequendo com esse direito de crédito, não podendo este tribunal de recurso sindicar essa conclusão pelas razões já acima referidas (não ampliação do âmbito do recurso pela recorrida).
Se é verdade que o exercício dos direitos à redução do preço da obra e da resolução do contrato de subempreitada pela Executada, nos termos do art.º 1222º do C. Civil, em abstracto, eram susceptíveis de extinguir o direito à parte do preço da obra ainda não satisfeito, tal como a invocação da excepção de não cumprimento, prevista no art.º 428º, do C. Civil, poderia impedir temporariamente a exigibilidade dessa prestação Sobre a possibilidade do dono da obra excepcionar o cumprimento defeituoso do empreiteiro para suspender o pagamento do preço, utilizando a faculdade prevista no art.º 428º do C. Civil, por todos, João Cura Mariano, ob. cit., pág. 163 e seg. e jurisprudência aí citada., o que é certo é que não se provou que nenhum destes direito tenha sido exercido extrajudicialmente pela Executada (contrariamente ao que afirma a Executada nas contra-alegações apresentadas), nem os mesmos foram invocados na oposição deduzida à execução, exigindo o seu funcionamento uma manifestação de vontade do titular nesse sentido. A vontade expressa pela Executada na oposição à execução foi antes a de compensar o crédito da Exequente, relativo a parte do preço da subempreitada, com o crédito indemnizatório pelos defeitos não eliminados da obra realizada, o que, a proceder extinguiria o crédito exequendo.
Contudo, como já vimos, esta pretensão não foi acolhida pela decisão recorrida, não tendo tal posição sido devidamente impugnada de modo a que este tribunal de recurso a pudesse sindicar.
Não sendo suficiente o simples facto da obra realizada padecer de defeitos para se poder concluir que a obrigação de pagamento do preço da subempreitada não subsiste, deve o recurso interposto pela Exequente proceder.
3.2. Do recurso subordinado interposto pela Executada
A Executada interpôs recurso subordinado em que, na parte admitida, impugnou a decisão proferida no despacho saneador que considerou que os documentos apresentados pela Exequente juntamente com o requerimento executivo eram título executivo bastante.
Na presente execução de pagamento de quantia certa a Exequente reclamou a cobrança de €270.754,72, correspondendo €8.004,87 a juros moratórios e o restante a parte do preço da subempreitada contratada com a Executada.
Apresentou com o requerimento executivo:
- três facturas por si emitidas com os n.ºs ..., com datas de vencimento de 1.2.2011 e 1.3.2011 (as duas últimas), relativas ao preço de trabalhos efetuados em cumprimento daquele contrato;
- duas declarações emitidas em 26 de Outubro de 2010 pela Administração da Executada e dirigidas a T..., S.A., relativas àquelas facturas, com o seguinte conteúdo: ...
- uma declaração, datada de 31 de Agosto de 2012, emitida Banco S..., S.A., dirigida à Executada, com o seguinte conteúdo: ...
- uma declaração datada de 9 de Outubro de 2012 emitida pelo Banco S..., a pedido da Exequente, de onde consta o seguinte: ...
No requerimento executivo a Exequente, além do mais, alegou o seguinte:
“...
3. Em 23.9.2010, a exequente celebrou com a T..., S.A., contrato que reciprocamente denominaram de “Contrato de Factoring”.
4. Nos termos do respectivo contrato, foi prevista e ajustada a cessão financeira das facturas emitidas pela exequente à executada.
5. Em execução desse contrato, foram cedidas à T..., S.A., as referidas facturas n.º ..., tendo a referida cessão sido comunicada à executada.
...
9. Sucede que, por falta de pagamento pontual e integral das quantias tituladas pelas referidas facturas, e dado tratar-se de contrato de factoring celebrado com recurso, a T... Crédito retransmitiu a favor da exequente os créditos titulados pelas referidas facturas.”
O regime dos títulos com força executiva, aplicável ao presente caso, é o definido pelo art.º 46º do C. P. Civil de 1961, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, uma vez que o art.º 6º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o C. P. Civil actualmente vigente, determinou que o disposto neste Código, relativamente aos títulos executivos, só se aplicava às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, o que ocorreu em 1.9.2013.
Tendo o requerimento executivo sido apresentado em 18.1.2013 é-lhe aplicável o disposto no anterior C. P. Civil, o qual admitia no art.º 46, n.º 1, c), como títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
A caracterização do título executivo como pressuposto processual específico da acção executiva merece a generalizada aceitação da jurisprudência e da doutrina. Mais do que documento comprovativo de um direito de crédito, o título executivo constitui um verdadeiro pressuposto processual sem o qual a acção executiva não pode ser instaurada ou prosseguir.
Nas palavras de Castro Mendes, o título executivo constitui a “chave que abre a porta da acção executiva”. Assim, o interessado pode ser titular de um direito de crédito, mas só a sua materialização num documento a que seja legalmente atribuída força executiva lhe permite enveredar pela acção executiva tendente ao imediato cumprimento coercivo da correspondente obrigação.
O título executivo é, por regra, auto-suficiente no que concerne à determinação do objecto e da finalidade da execução, e deve revelar por si só os sujeitos activo e passivo da relação obrigacional, correspondendo à necessidade reclamada pelo processo executivo de assegurar, com apreciável grau de certeza e de segurança, a existência e o conteúdo da obrigação exequenda. A sua análise deve demonstrar, de forma quase sempre imediata, tanto os aspectos de ordem objectiva ligados ao fim e aos limites da acção executiva (art. 45º do anterior CPC), como os de ordem subjectiva atinentes à identidade e qualificação jurídica dos sujeitos (art. 55º).
Além de ser condição necessária da acção executiva, o título é ainda, grosso modo, condição suficiente. Malgrado o sistema não estar totalmente blindado relativamente à possibilidade de serem interpostas acções executivas injustas (em que o vínculo obrigacional esteja eivado de vícios que não puderam ser imediatamente percepcionados ou sofra a influência de factores impeditivos, modificativos ou extintivos não aparentes), a apresentação de um documento que externamente reúna os requisitos da exequibilidade permite despoletar os mecanismos que levarão à consumação do objectivo da execução, se tal não for travado por alguma das formas legalmente previstas, da iniciativa do Tribunal ou do executado.
Com uma acentuada latitude no que concerne à verificação efectiva da situação jurídica nele configurada, a afirmação legal da exequibilidade de determinado documento faz presumir a existência do direito de crédito nele materializado até que por via da oposição à execução seja demonstrada a ocorrência de factos impeditivos, extintivos ou modificativos do mesmo Acórdão do S.T.J. de 3.10.2013, relatado por Abrantes Geraldes, em www.dgsi.pt, que reproduz o escrito pelo relator em Títulos executivos, em Themis, Ano IV, n.º 7, pág. 2003, pág. 35-37..
A promoção pelo legislador dos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importassem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, traduziu um reconhecimento que tais documentos pela força probatória potencial que lhes era atribuída por lei revelavam uma forte probabilidade do crédito exequendo existir. Na verdade, o documento particular, em princípio, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, estando apenas dependente da sua autenticidade e da veracidade da letra e assinatura, assim como se consideram plenamente provados os factos compreendidos na declaração se forem contrários aos interesses do declarante e a declaração for dirigida à parte contrária ou a quem a represente – art.º 376º, n.º 1 e 2 e 358.º, n.º 2, do C. Civil -, pelo que se entendeu que o reconhecimento de um crédito em declaração dirigida ao credor, indicia suficientemente a existência desse crédito, tendo-se, por isso, permitido o acesso imediato à instância executiva com a simples apresentação desse documento.
Como é óbvio, atenta a ampla latitude dos fundamentos que podem ser invocados em oposição a uma execução baseado num documento deste tipo – art.º 816º do C. P. Civil de 1961 -, o executado, além do mais, sempre pode colocar em causa a autenticidade do documento, a genuidade da sua letra e assinatura, tal como pode alegar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do crédito exequendo, ou recorrer a qualquer outro meio de defesa admitido no processo declarativo.
Neste caso, verifica-se que os documentos em que a Executada reconheceu a existência dos créditos titulados pelas faturas apresentadas pelo Exequente não foi dirigido a este, mas sim a uma entidade bancária com quem a Exequente celebrou um contrato de factoring, tendo por objecto a cobrança dos créditos onde se incluem aqueles cujo pagamento se pretende com a presente execução.
O factoring é um contrato nominado, reconhecido e assim denominado pelo legislador no art.º 7º do Decreto-Lei n.º 171/95 de 18 de Julho, estando minimamente regulado neste diploma, hoje na redacção que lhe conferiu o Decreto-Lei n.º 100/2015 de 2 de Junho, o qual envolve uma operação de cessão de créditos pelo aderente ao factor, aplicando-se a esta transmissão as normas do Código Civil previstas nos art.º 577º e seguintes Sobre o contrato de factoring, Menezes Cordeiro, em Da Cessão Financeira (Factoring), Lex, Lisboa, 1994, Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, em Dos Contratos de Cessão Financeira (Factoring), Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Rui Pinto Duarte, em Escritos sobre Leasing e Factoring, pág. 95 a 111, Principia, Cascais, 2001, Carolina Cunha, em Contrato de Factoring e Gestão do Risco: Análise de Alguns Mecanismos Jurídicos – a Renúncia a Meios de Defesa e as Cláusulas de Incedibilidade, em “O Contrato na Gestão do Risco e na Garantia da Equidade”, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2015, e António Pinto Monteiro e Carolina Cunha, em Sobre o Contrato de Cessão Financeira ou de “Factoring”, no B.F.D.U.C., volume comemorativo, pág. 509-554, Coimbra, 2003.


.
Por esse contrato o aderente compromete-se a ceder ao factor os créditos provenientes de contratos celebrados com terceiros, obrigando-se a factor a proceder à antecipação de fundos, quando solicitada, e a gerir e cobrar os créditos que lhe foram cedidos. Como escreve Carolina Cunha, o eixo e suporte destes serviços é a transmissão dos créditos para a esfera jurídica do factor, que é levada a cabo através do mecanismo jurídico da cessão de créditos. Ou seja quando exige o pagamento ao devedor-cedido o factor age em nome próprio, na qualidade de titular do novo crédito. Se tiver sucesso, e partindo do princípio que está a cobrar um crédito em relação ao qual antecipou fundos, embolsa a quantia cobrada, que abrange geralmente o valor que antecipou à empresa aderente, bem como as comissões e juros que constituem a sua própria remuneração; caso o valor do pagamento exceda esses montantes, creditará na conta-corrente a favor do aderente o remanescente. Já na hipótese de o cliente não pagar, haverá uma devolução do crédito à esfera jurídica do aderente, o qual será obrigado a restituir ao factor os fundos eventualmente antecipados Est. cit., pág. 215-216.
.
Neste caso, face ao alegado no requerimento executivo, a Exequente, através de um contrato de factoring, cedeu a uma instituição bancária os créditos que detinha sobre a Executada, relativos ao pagamento de trabalhos incluídos no contrato de subempreitada que com esta havia celebrado, não tendo essa instituição logrado cobrar todos os créditos cedidos, pelo que retransmitiu-lhe aqueles direitos de crédito na parte não cobrada.
Assim, nessa parte, tais créditos foram inicialmente titulados pela Exequente; após a celebração do contrato de factoring entre a Exequente, como aderente, e T..., S.A., como factor, por esta instituição bancária; e após a retransmissão dos créditos não cobrados, novamente pela Exequente.
Daí que o reconhecimento da existência destes créditos feito pela Executada-devedora perante o então credor, em que manifesta o conhecimento do contrato de factoring, em documento particular, juntamente com as facturas a que se reportava esse reconhecimento, tem força executiva, nos termos do art.º 46º, n.º 1, c), do C. P. Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto O S.T.J. no acórdão de 3.10.2013, acima referido na nota 4, na sua fundamentação, em caso com algumas semelhanças com a questão aqui em discussão, referiu que nas situações de factoring era correta a afirmação que “tratando-se de títulos executivos de natureza complexa, a exequibilidade seria formada pela notificação da cessão de créditos, a emissão das facturas e a comunicação efectuada pelos serviços da executada”, requisitos que se mostram preenchidos com os títulos juntos com o requerimento executivo..
E este título complexo, composto pelas declarações subscritas pela executada, conjugadas com as facturas aí mencionadas, pode ser apresentado, a suportar requerimento executivo, pelo actual credor, a Exequente, para quem esses créditos foram retransmitidos, nos termos do art.º 56º, n.º 1, do C. P. Civil.
Alega a Recorrente que, tendo esses documentos juntos com o requerimento executivo sido emitidos em datas anteriores ao aparecimento de defeitos na obra executada, não podem os mesmos ter força executiva.
Realce-se, mais uma vez, que a força executiva conferida a determinados títulos pelo legislador não significa que dos mesmos se possa extrair uma conclusão inabalável no sentido da existência do crédito titulado, mas apenas que, atentas as características do título, há fortes probabilidades do crédito em causa existir, o que pode ser infirmado em oposição deduzida com os fundamentos legalmente admitidos, designadamente pela prova de facto impeditivo, modificativo ou extintivo desse direito de crédito.
Se o aparecimento de defeitos em data posterior à emissão dos documentos que foram apresentados com o requerimento executivo em que se solicitava a cobrança de parte do preço da obra realizada pelo Exequente poderia vir a extinguir os créditos exequendos, permitindo a dedução de oposição com esse fundamento, nos termos do art.º 816.º do C. P. Civil de 1961, tal facto em nada belisca a força executiva dos documentos apresentados, os quais não deixam de conter o reconhecimento pela Executada da existência desses créditos.
A Recorrente alega ainda que o reconhecimento dos créditos exequendos por si efectuado nas declarações emitidas em 26.10.2010 foram anteriores ao vencimento dos créditos, que apenas ocorreu nas datas de 1.2.2011 e 1.3.2011.
Esta anterioridade do reconhecimento dos créditos ao seu vencimento é irrelevante para aferir da exequibilidade do documento em que esse reconhecimento foi efectuado, uma vez que não é exigível que o mesmo se reporte a créditos já vencidos, até porque também tem força executiva o documento através do qual se constitui o próprio crédito, conforme consta do artigo 46.º, n.º 1, c), do C. P. Civil.
A Recorrente alega, finalmente, que nos documentos juntos com o requerimento executivo não se encontra reconhecido um crédito certo e líquido, pelo que não podem valer como título executivo.
Nesses documentos a Executada reconheceu-se devedora dos valores titulados pelas facturas n.º..., no valor de €265.578,35, nº..., no valor de €496.625,45, e nº..., no valor de €23.774,29, pelo que o reconhecimento identificou inequivocamente créditos líquidos, revelando-se satisfeita a exigência contida na parte final da alínea c) do n.º 1 do art.º 46º do C.P.C. Se a quantia exequenda que, alegadamente, respeita à parte não paga desses créditos, corresponde ou não à soma das quantias que não foram pagas daquelas facturas, já não é um problema que afecte a exequibilidade dos títulos apresentados, mas sim uma questão que podia ter sido invocada como defesa na oposição deduzida.
Por estas razões revela-se correta a decisão recorrida que, em sede de despacho saneador julgou improcedente a defesa por excepção de falta de título executivo, improcedendo, por isso, o recurso interposto subordinadamente.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso principal e improcedente o recurso subordinado e, em consequência, mantém-se o decidido no despacho saneador e revoga-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a oposição deduzida pela Executada e ordenando-se o prosseguimento da execução.
Custas do recurso principal e do recurso subordinado pela Executada.
Coimbra, 24 de maio de 2018
Sílvia Pires
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo