Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
559/19.9T8GRD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ALEGAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 83, 186, 235, 238, 239 CIRE
Sumário: 1 – A exoneração do passivo restante não é para ser concedida ad libitum, o que significa que não devem ser proferidas decisões sem reunir/averiguar/ponderar os concretos elementos factuais relevantes, uma vez que, sem elementos factuais, não há sequer como apreciar juridicamente o preenchimento (ou não) de qualquer uma das alíneas do art. 238.º/1 do CIRE.

2 – Sendo a insolvência declarada a requerimento dum credor, ascendendo a lista provisória de créditos a € 10.456.950,41 e não dando o devedor, no pedido de exoneração, uma qualquer explicação sobre o que lhe “correu mal” para ter caído em tal situação de incumprimento e de insolvência, não pode o tribunal deixar de interpelar-se e de interpelar o requerente sobre o modo como foi acumulado um tal volume de dívida, não podendo proferir o despacho liminar sem previamente averiguar as datas de constituição dos créditos que perfazem tais € 10.456.950,41 e as respectivas datas de incumprimento, para, a partir daí, estar em condições de produzir as pertinentes apreciações jurídicas impostas pelo art. 238.º/1/d) e e) do CIRE.

Decisão Texto Integral:













Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

C (…) SA, com sede em (...) , intentou acção especial de insolvência contra A (…), com residência (…) (...) , pedindo que se decretasse a sua insolvência.

Citado, veio o A (…) requerer a “exoneração do passivo restante”, ao abrigo dos art. 235.º e ss. do CIRE; mais exactamente, apresentou requerimento com o seguinte teor (transcrição integral): “Para o efeito, vem expressamente declarar que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos constantes do Capítulo I, Título XII, do CIRE”.

Tendo sido declarado insolvente por sentença proferida em 14/05/2019, transitada em julgado, e prosseguindo os autos, tendo em vista a requerida exoneração do passivo restante, foi o requerente (na exoneração) convidado a juntar o seu CRC (o que fez) e a pronunciar-se quanto às despesas mensais, tendo este dito que “vive em casa da filha (…), [com quem] divide as despesas de água e saneamento, energia eléctrica e gás, contribuindo com € 150,00 mensais para o efeito. Com alimentação, higiene e limpeza, gasta aproximadamente € 250,00. Tem ainda a sua participação na manutenção da filha mais nova, com a qual participa com a ex-mulher em € 400,00. Tais valores ultrapassam o seu rendimento actual, contando o insolvente com a ajuda da sua progenitora para viver (…). Pensa-se que, pela exposição supra, fica demonstrado que, neste momento, não tem rendimento disponível para entregar ao Sr. Fiduciário (…)”

Entretanto, o AI, no Relatório do art. 155.º do CIRE, havia referido que o requerente “exerce funções de gerente na empresa Têxtil M (…) SA, auferindo o vencimento mensal líquido de € 601,00”, “que o agregado familiar é composto pelo próprio e uma filha, S (…) estudante de direito em (...) ”, que “as causas para a situação de insolvência emergem das responsabilidades que assumiu como avalista de vários financiamentos concedidos a empresas de que era sócio-gerente”, que, “no que se reporta a despesas, o insolvente encontra-se a morar numa casa de família, (…) e indicou de despesas o montante de € 800,00, a saber: alimentação, 250,00; água, gás e electricidade, € 150,00; e despesas com os estudos da filha, € 400,00”; e que, “no que concerne à exoneração do passivo restante, cumpre dizer que, dos elementos disponibilizados, não foram encontrados quaisquer indícios de que a ora insolvente pretendesse prejudicar os credores, não havendo assim nada a opor ao pedido”; tendo anexado o inventário e a lista provisória de credores, segundo a qual o total de créditos ascende a € 10.456.950,41.

Após o que, na Assembleia de Apreciação do Relatório, o M P, em representação da Autoridade Tributária, declarou nada ter a opor ao pedido de exoneração do passivo restante; a credora I (…)(mãe do devedor) votou a favor; o credor N (…) votou contra; e a Segurança Social absteve-se.

Conclusos os autos, a Exma. Juíza considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar de tal pretensão do devedor/insolvente e, entre outras coisas, veio a determinar que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível – tudo o que o devedor aufira e que exceda por mês o valor correspondente à remuneração mínima garantida em Portugal – se considera cedido ao fiduciário nomeado (o AI).

Inconformada com tal decisão, de admissão liminar do pedido exoneração do passivo restante, interpõe a credora S (…)SA, com os sinais dos autos, o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outro que indefira liminarmente o pedido de exoneração.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram produzidas quaisquer contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II – Fundamentação

Não será supérfluo começar por referir que o instituto, inovador, da “exoneração do passivo restante” significa a extinção de todas as obrigações do insolvente (que seja pessoa singular) que não logrem ser integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento[1].

“Depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor são afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por esta via, durante tal período”[2].

Antevendo-se o “sobressalto” que uma tal causa extintiva de obrigações produz sobre a liberdade contratual e a força vinculativa dos contratos[3], não pode a “exoneração” ser concedida ad libitum; devendo antes a sua concessão estar dependente da verificação de requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém[4].

Diz-se a tal propósito, no preambulo do CIRE, que “ (…) o código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. (…) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica. (…)”.

Tem pois o instituto em causa como escopo a extinção das dívidas e a libertação do devedor e como ratio a ideia de não inibir todos aqueles – honestos, de boa-fé e a quem as coisas correram mal – “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores[5].

É pois uma medida (de protecção do devedor) que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor do devedor para se desresponsabilizar, uma medida cuja força atractiva/tentadora para o devedor não pode conduzir a “abusos de exoneração”; sendo antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar ou que, pelo menos, não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor.

Ou seja:

A exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade[6].

A “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, que se depreende que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era relativamente “fácil” obter um financiamento, que se recusaram a “fazer contas” e a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair sucessiva e continuamente; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas[7], se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar[8].

Em poucas palavras, a “exoneração” não é certamente para quem e de quem, sem embargo das coisas lhe poderem ter objectivamente corrido mal, se sabia e diria, à partida, num juízo de prognose póstuma, que as coisas iriam, em face do montante de endividamento contraído e dos rendimentos disponíveis, segura, forçosa e inevitavelmente correr mal; assim como não é para quem, vendo as coisas a correr mal, procurou esconder/camuflar o património que lhe restava e assim evitar que tal património, porventura já insuficiente para responder pela totalidade das suas dívidas, proporcionasse qualquer pagamento, ainda que parcial, aos seus credores.

É que é a rectidão, a honestidade, a transparência e a boa fé dos devedores a quem, não intencional ou deliberadamente, as coisas correram mal que aqui, na exoneração do passivo restante, é relevado e que justifica a “medida de protecção”.

Isto dito, revertendo ao caso sob análise, diremos, antecipando a solução, que, embora por razões diversas das constantes da alegação recursiva, não podemos confirmar a decisão recorrida; o que também não significa que substituamos esta por decisão a indeferir liminarmente o pedido de exoneração.

Expliquemo-nos.

A generalidade dos raciocínios e percursos jurídicos que alicerçam e justificam as decisões judiciais são efectuados a partir de factos – de factos jurídicos, isto é, com relevo/ressonância jurídica – e, no caso, não foram reunidos/averiguados factos que permitam, com um mínimo de consistência, deferir ou indeferir o pedido de exoneração.

E quando dizemos que não foram reunidos/averiguados factos não estamos a referir-nos à circunstância da decisão recorrida não conter uma parte, autónoma, com a respectiva fundamentação de facto, nulidade esta que, estivessem todos os factos relevantes reunidos/averiguados nos autos, agora supriríamos, aplicando a regra da substituição constante do art. 665.º do CPC e alinhando o que, em termos factuais, se devia considerar como provado.

Diz-se, em termos factuais, a dado passo da sentença recorrida que o requerente “exerce funções de gerente na empresa têxtil M (…), S.A, auferindo o vencimento mensal líquido de 601,00€”; e que, “para além das despesas regulares para prover ao seu sustento, o devedor alega que participa com a sua ex-esposa no sustento da sua filha mais nova em 400,00 €”; mas não se diz/discorre, em passo algum da sentença recorrida, sobre a soma da lista provisória dos seus credores, que ascende a € 10.456.950,41[9].

E ao omitir-se tal elemento factual – e porventura ao não se reflectir sobre os seus possíveis significados e ilações – pôde afirmar-se:

“ (…) No que concerne à al. d), há que referir que não resultam apurados elementos que permitam concluir que o insolvente não se apresentou à insolvência, com prejuízo para os credores e sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, nos 6 meses após ter verificado a situação de insolvência.

Finalmente, no que respeita à situação contemplada na alínea e) do mencionado normativo, adiantamos desde já que também não existem elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do C.I.R.E.

Destarte, não se verificando qualquer uma das circunstâncias previstas no artigo 238º nº 1 do C.I.R.E., que impõem o indeferimento liminar, entendemos que se mostram reunidas as condições mínimas para aceitar o requerimento de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente. (…)”

Afirmações estas que, partindo apenas do que em termos factuais é aflorado na decisão, não são incorrectas, ou seja, não há na decisão elementos que indiciem (ou chamem a atenção para) um possível preenchimento das referidas alíneas d) e e) do art. 238.º/1 do CIRE.

A questão é que, sem elementos factuais, sem eles serem devidamente reunidos/averiguados, nunca haverá indícios do preenchimento de qualquer uma das alíneas do art. 238.º/1.

Como supra se referiu, a “exoneração” não é para ser concedida ad libitum – devendo antes a sua concessão estar dependente da verificação de requisitos que, em geral, “são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém[10] - o que significa que não devem ser proferidas decisões sem reunir/averiguar/ponderar os concretos elementos factuais relevantes; especialmente, quando, como é o caso, há circunstâncias factuais que interpelam a tal reunião/averiguação/ponderação.

Na esmagadora maioria dos casos[11], os requerimentos de exoneração caracterizam-se pela invocação dum conjunto de generalidades: é tudo dito de modo totalmente vago e impreciso, sem se situar nada no tempo[12]; raramente é dito o que é que correu mal, que fugiu ao controlo do devedor, e que o fez cair na situação de incumprimento e de insolvência; raramente é referida a dada da constituição de cada uma das suas dívidas e a data em que se entrou em incumprimento em cada uma delas.

O caso do requerimento de exoneração dos autos é a vacuidade e generalidade no seu auge: como se referiu no relatório inicial, o requerente limitou-se a dizer que “para o efeito, vem expressamente declarar que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos constantes do Capítulo I, Título XII, do CIRE”.

É certamente discutível que tal seja suficiente para basear um requerimento de exoneração, uma vez que esta é, repete-se, para quem, sem culpa, caiu na situação de insolvência; é para quem contraiu dívidas que era suposto e previsível – num plano de normalidade, razoabilidade, honestidade, prudência, num pensar de bonus pater familias, com os elementos e as circunstâncias (rendimentos/possibilidades) à época da contracção das dívidas – poder vir a pagá-las; pelo que um requerente, no pedido de exoneração, tem que explicitar minimamente o que é que lhe “correu mal”.

Como já escrevemos noutros acórdãos, “para haver exoneração tem que ter acontecido alguma coisa – que fuja de algum modo ao controlo do devedor, que ele não domine – que o tenha feito cair na situação de incumprimento e de insolvência.

E essa “alguma coisa” é do ónus da alegação do requerente; essa “alguma coisa” tem, no pedido de exoneração, que ser factualmente explicitada, não bastando meras referências vagas, genéricas e conclusivas; para que, evidentemente, possa haver algum controlo e para que o tribunal possa efectuar alguma apreciação jurídica.

E caso tal “alguma coisa” seja uma diminuição de rendimentos e/ou um aumento de encargos, têm que ser factualmente alegadas pelo requerente da exoneração; uma vez que é fazendo a conexão/encadeamento entre o concreto “antes” e o concreto “depois”[13] que o tribunal pode constatar e confirmar o que seria suposto e previsível à época da contracção das dívidas e o que, em face e por causa da alteração das circunstâncias, deixou de o ser.”

Ora, no caso, para além do requerente não dar uma única explicação, ainda que breve e vaga, sobre o que lhe “correu mal”, a sua insolvência foi declarada a requerimento dum credor e, como já se referiu, a soma da lista provisória dos seus credores ascende a € 10.456.950,41.

Até se percebe, em face do montante em causa, que o requerente pretenda ser o menos loquaz possível, mas, como é evidente, atenta a ratio do instituto da exoneração – não inibir todos aqueles, honestos, de boa-fé e a quem as coisas correram mal, “aprendida a lição”, a começar de novo sem fardos e pesos estranguladores – não pode o tribunal deixar de interpelar-se e de interpelar o requerente (o próprio AI e os seus credores) sobre o modo como, ao longo do tempo, foi acumulando um tal volume de dívida; tanto mais que o requerente diz auferir, no momento actual, o vencimento mensal líquido de apenas 601,00 €.

As suspeitas podem ser totalmente infundadas, porém, o primeiro raciocínio que vem à ideia – e que tem que ser desfeito ou confirmado – é o de que o requerente, com um tal volume de dívida, estaria por certo há muito em situação de insolvência – de incumprimento da generalidade das suas dívidas vencidas – pelo que, nunca se tendo apresentando à insolvência e caso haja continuado a assumir dívidas[14], é bem provável que haja preenchido a alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE.

Debruçando-nos sobre tal alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE, já escrevemos noutros acórdãos:

Tal alínea vem causando algum debate e “divisão” na Jurisprudência.

Dispõe-se na mesma que o pedido de exoneração deve ser liminarmente indeferido se:

 - For incumprido o dever de apresentação atempada à insolvência;

 - Com prejuízo para os credores; e

 - Sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.

Girando a controvérsia jurisprudencial à volta da articulação de tais requisitos, procurando encontrar-se, para cada um deles, um conteúdo útil próprio e autónomo; e estabelecer-se fronteiras entre eles.

Começou assim por dizer-se que o “prejuízo para os credores” é de presumir sempre que o devedor haja incumprido o dever de apresentação à insolvência, uma vez que a escassez de bens permite antever a dissipação de património e o subsequente desrespeito pela regra da igualdade entre os credores.

Ao que de imediato se objectou que, se é verdade que o atraso na apresentação à insolvência pode conduzir à desvalorização do activo e ao aumento do passivo, pelo curso dos juros, é também verdade que, assim, o “prejuízo para os credores” não é mais do que um efeito necessário – de nada servindo a sua autónoma alusão legal – da não apresentação oportuna à insolvência.

E, nesta linha de raciocínio, passou a entender-se[15] que a lei, ao exigir o “prejuízo para os credores”, visa os comportamentos do devedor geradores de novos débitos, os comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé; não integrando o conceito normativo de “prejuízo para os credores” o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo mero vencimento e acumular de juros.

Sem prejuízo, apesar dos esforços, das fronteiras dos requisitos do art. 238.º/1, d) do CIRE, continuarem necessariamente incertas, concorda-se inteiramente quanto aos juros; isto é, concorda-se que não integra o requisito do “prejuízo para os credores” o mero curso de juros em obrigações constituídas em data anterior à situação de insolvência[16].

Mas também se entende que, não fazendo a letra da alínea d) qualquer restrição ao alcance da expressão “prejuízo para os credores”, qualquer prejuízo causado aos direitos dos credores pelo não cumprimento do dever de apresentação ou pela apresentação tardia à insolvência é susceptível de obstar à concessão da exoneração do passivo restante.

Na verdade[17], “havendo um conflito de interesses entre o devedor (interessado em libertar-se das dívidas) e os credores (interessados em verem satisfeitos os seus direitos), a prevalência do interesse daquele (aqui representada pela exoneração do passivo restantes) só é digna de ser atendida se lhe não for possível apontar nenhum comportamento que tenha prejudicado os interesses destes últimos.

Em todo o caso – afigura-se-nos indiscutível – “o prejuízo para os credores” (com o incumprimento do dever de apresentação, com o atraso na apresentação à insolvência), ainda que de pequena monta ou expressão, é algo que tem que ficar “identificado/demonstrado” nos autos.

É para isto – para esta análise jurídica poder ser feita – que têm que ser recolhidos/averiguados os factos.

Tem que se averiguar a data de constituição de cada um dos 12 créditos (que perfazem a referida soma de € 10.456.950,41) e a data de incumprimento em cada um deles e, a partir daqui, há que estabelecer a data de verificação da situação de insolvência (ou seja, desde que o devedor deixou de cumprir as suas obrigações vencidas - art. 3.º/1 do CIRE) e concluir (ou não) sobre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência no prazo de 6 meses a que alude a alínea d) do art. 238.º/1 do CIRE.

De seguida, quanto ao prejuízo para os credores, estando as dívidas e os incumprimentos situados temporalmente, dará para perceber se, estando já em situação de insolvência, continuou o requerente a gerar novos débitos, assim preenchendo tal requisito.

Finalmente, quanto a saber ou não poder ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica, atender-se-á ao que o requerente possa vir a invocar para reverter a sua situação económica; atender-se-á ao que o requerente explicite sobre o que lhe “correu mal”, sobre os rendimentos que teve (ao longo dos anos de constituição da dívida) ou que aspirava a ter e que lhe iriam permitir fazer face, num plano de normalidade, a uma dívida de mais de 10 milhões de euros.

Tudo isto a propósito da alínea d) do art. 238.º do CIRE – que no fundo sanciona condutas ocorridas “depois” da verificação da situação de insolvência – mas sem prejuízo de, das circunstâncias factuais apuradas, poderem irradiar elementos para a apreciação da alínea e) do art. 238.º do CIRE; efectivamente, a análise do “depois” desvenda não raras vezes o “antes”, o que conduziu à situação de insolvência e remete para a alínea e) e para a existência de “elementos que indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência[18].

Em conclusão, não tendo sido apurados elementos factuais indispensáveis à decisão (ou seja, à devida análise jurídica das alíneas d) e e) do art. 238.º/1 do CIRE), anula-se a decisão recorrida, para que tais elementos factuais sejam apurados, para o que, designadamente, deve o devedor/requerente ser convidado a explicitar o que aconteceu – que fugiu ao seu controlo – que o fez acumular uma dívida de mais de 10 milhões de euros e cair na situação de incumprimento e de insolvência; a detalhar as datas de constituição de cada uma das suas dívidas e as datas de entrada em incumprimento; e a informar sobre os rendimentos auferidos e sobre o património detido nos anos de constituição e manutenção das suas dívidas; convite este (para explicitar, detalhar e informar) com a advertência de que, não o satisfazendo, será a sua recusa apreciada livremente pelo tribunal (cfr. art. 83.º/3/1.ª parte do CIRE)[19].


*

Para terminar, duas breves notas sobre a alegação recursiva:

Uma primeira, sobre as razões constantes da alegação recursiva:

O que se refere nas conclusões II, III, IV e V (supra transcritas) não é pertinente, como se pretende, para o indeferimento da exoneração[20]: não é por o devedor ter mais rendimentos do que aqueles que diz ter que a exoneração não deve ser concedida; o que sucederá, isso sim, é que, vindo tal a demonstrar-se, se verificará a violação da obrigação imposta pelo art. 239.º/4/a) do CIRE.

O que se refere na conclusão VI, poderá ser, a confirmar-se com precisão factual[21] o que se refere nos arts. 14.º e 22.º, pertinente[22], porém, não é assim, de modo vago e genérico, que as coisas/questões são suscitadas num processo e, muito menos, podem ser suscitadas, pela primeira vez[23], num recurso[24].

Uma segunda, sobre os documentos juntos:

Junta a apelante, com a alegação recursiva, o documento da partilha do património conjugal do irmão F (...) e o documento da liquidação do consequente Imp. de Selo, em linha, com a ideia acabada de referir, de se comportar como se estivesse num articulado processual apresentado em 1.ª Instância, dizendo coisas que nunca disse e que nunca foram ditas/discutidas nos autos; e, claro está, não vendo qualquer limite no que pode dizer/invocar, também junta documentos[25].

Pois bem:

As alegações recursivas (e a instância recursiva) não são o momento processual apropriado para a junção de documentos; é certo que esta é uma regra que, como quase todas, comporta excepções, porém, não estamos perante uma de tais excepções.

Pelo seguinte:

O oferecimento, produção e assunção das provas ocorre, segundo o regime normal, durante a instrução do processo (art. 410.º do CPC).

A prova documental, porém, obedece a um regime diferente.

Os documentos – de acordo com o art. 423.º/1 do C. P. Civil – devem ser apresentados na fase inicial dos articulados; devem ser oferecidos com o articulado a que se referem, seja como fundamento da acção, seja como fundamento da defesa.

Excepcionalmente, porém, podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado – cfr. 423.º/2 do CPC.

Mais excepcionalmente, ainda, podem os documentos ser juntos após o encerramento da discussão em 1.ª Instância em duas circunstâncias:

1.º - Em qualquer estado do processo, quando os documentos se referem a factos posteriores aos articulados ou quando se trate de documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior – cfr. 651.º/1/2.ª parte do CPC.

2.º - Havendo recurso da decisão proferida e tratando-se de documentos cujo oferecimento não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância – cfr. 425.º e 651.º/1/1.ª parte do C. P. C. Todavia, para que haja tal impossibilidade de oferecimento, até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância, é necessário que a parte ignore a existência do documento ou que à parte não fosse viável (dentro do limite temporal do encerramento da discussão em 1.º Instância) a posse do mesmo, cabendo-lhe, todavia, a prova de tal impossibilidade.

Daí o disposto no actual 651.º/1 do actual CPC (correspondente aos anteriores 706.º/1 e 693.º-B) segundo o qual “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância (…)”

Continuando a valer, em relação a esta última parte, a seguinte e pertinente observação do Prof. Antunes Varela[26]: “É evidente que, na última parte, a lei não abrange a hipótese de a parte (…) pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª Instância”.

Em todo o caso, tudo isto – haver hipóteses, excepcionais, em que se podem juntar documentos em recurso – tem sempre como pressuposto, como toda e qualquer junção de documentos, que se trate de documentos relevantes para o desfecho dos autos/recurso, o que, com todo o respeito e como já se deu a entender, não é o documento da partilha do património conjugal do irmão F (...) e o documento da liquidação do consequente Imp. de Selo.

Por consequência, não se pode autorizar/admitir a pretendida junção de documentos; ordenando-se, após o trânsito, o seu desentranhamento e restituição.


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III – Decisão

Nos termos expostos, decide-se anular a decisão recorrida, para que sejam apurados os elementos factuais indispensáveis à decisão (designadamente, as datas de constituição de cada um dos créditos que perfazem os € 10.456.950,41 e as datas de incumprimento de cada um de tais créditos), para o que deve o devedor/requerente ser convidado a explicitar o que aconteceu – que fugiu ao seu controlo – que o fez acumular uma dívida de mais de 10 milhões de euros e cair na situação de incumprimento e de insolvência; a detalhar as datas de constituição de cada uma das suas dívidas e as datas de entrada em incumprimento; e a informar sobre os rendimentos auferidos e sobre o património detido nos anos de constituição e manutenção das suas dívidas; convite este (para explicitar, detalhar e informar) com a advertência de que, não o satisfazendo, será a sua recusa apreciada livremente pelo tribunal (cfr. art. 83.º/3/1.ª parte do CIRE).


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Ordena-se, após o trânsito, o desentranhamento e restituição à apelante dos documentos juntos com a alegação recursiva.

Custas do incidente a seu cargo, fixando-se a TJ em 1 UC.


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Sem custas.

Coimbra, 13/11/2019

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Segue-se de perto o que já escrevemos, a propósito do instituto da “exoneração do passivo restante”, em inúmeros acórdãos, designadamente nos proferidos nas apelações n.º 131/11.1T2AVR-D, n.º 776/10 7BLSA, n.º 4316/11 2TBLRA-B.C1, n.º 918/11 5T2AVR-C.C1 e n.º 706/11.9TBCNT-B.C1.
[2] Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133
[3] Tendo presente o que no C. Civil se dispõe sobre as “causas” que podem extinguir obrigações.
[4] Carvalho Fernandes, Estudos sobre a Insolvência, pág. 276.
[5]A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. “Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 4.ª ed., pág. 133.
[6] Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[7] Em relação ao rendimento e património de quem contrai tais dívidas.

[8] A exoneração não pode representar um incentivo a uma actuação descuidada; o que acontecerá se, passado algum tempo, quem assim procedeu tiver como certa a extinção das suas dívidas. Como se escreveu no Acórdão desta Relação, proferido no Proc. nº 575/10.6TBSRT-E.C1, “aquele que sabe não estar integralmente exposto a todas as consequências desvaliosas de um risco decorrente do incumprimento contratual não interioriza os valores virtuosos – porque expressam valores eticamente relevantes – associados ao cumprimento das suas obrigações e, mais do que isso, não adopta, em muitos casos, uma atitude cautelosa e diligente na gestão da sua vida patrimonial, podendo interiorizar a perspectiva do incumprimento e de uma insolvência, a partir de determinado momento, como “custos” ainda assim suportáveis”..
[9] Entre os quais se conta um crédito da sua própria mãe de € 1.662.956,31, sendo € 875.686,32 de capital e € 787.278,99 de juros.
[10] Carvalho Fernandes, Estudos sobre a Insolvência, pág. 276.
[11] Para não dizer, “sempre”.
[12] Como se um facto, para ser concreto, não tivesse que ser referenciado temporalmente.

[13] Até porque, como é evidente, pode haver diminuição de rendimentos e aumento de encargos e, ainda assim, ser ab initio imprudente e irrazoável contrair determinado e concreto nível de endividamento; hipótese em que a alteração de circunstâncias apenas poderá precipitar/antecipar uma situação, certa, de insolvência.
[14] Prestar avales e fianças também é assumir dívidas.

[15] Cfr. v. g. Ac Relação do Porto de 7/10/2010 e de 21/10/2010, in CJ Online, Ref. 5911/2010 e 7270/2010.

[16] Aliás, pode/deve até dizer-se que o atraso na apresentação à insolvência não causa sequer qualquer aumento no montante dos juros; uma vez que, com a apresentação, continuam a vencer-se juros, sendo tais juros, vencidos/constituídos após a declaração de insolvência, considerados créditos subordinados (cfr. artigo 48º, alínea b), do CIRE).
[17] Como se defendeu no Ac. desta Relação de 04/10/2011, proferido no recurso n.º 1784/10.

[18] Efectivamente, podem as circunstâncias factuais apuradas revelar uma dissipação de património causadora dum agravamento da situação de insolvência.

[19] Após o que deverão ser ouvidos os credores e o AI, podendo/devendo dar os pertinentes contributos factuais (e a propósito dos créditos – da sua constituição e incumprimento – situando sempre os elementos factuais no tempo).

[20] O que se refere na conclusão V é mesmo bastante inusitado: o primeiro efeito duma declaração de insolvência é a privação dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º/1 do CIRE), pelo que as rendas do imóvel referido deixaram de ser um rendimento do devedor/insolvente.
[21] Precisão factual que a apelante poderá/deverá efectuar, quando, após a satisfação do convite por parte do devedor/insolvente, for notificada para exercer o contraditório.

[22] Como é evidente, o que irmão F (...) fez ou faz (e referido nos arts. 12.º e 13.º) não vem ao caso.
[23] A apelante não esteve sequer presente na Assembleia para apreciação do Relatório e nunca antes se havia pronunciado dobre o pedido de exoneração do devedor/requerente.

[24] É sabido que, no direito português, os recursos ordinários são de reponderação, visando a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento – o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
[25] No final do art. 21.º até sugere que se solicite à Seg. Social um comprovativo das remunerações do insolvente desde 2010 até à presente data.
[26] In Manual de Processo, pág. 517, 1.ª ed..