Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/17.0PTLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
ENTREGA DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
PRAZO
Data do Acordão: 12/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 20.º, N.º 4, DA CRP; ARTS. 69.º E 500.º DO CPP
Sumário: I – O arguido, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não pode/deve ser prejudicado quando entregou no tribunal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a sua licença de condução, a qual foi recebida por funcionário judicial.

II – A tanto obsta o princípio da confiança e lealdade, previsto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.

III – Encontrar nos artigos 69.º e 500.º do CPP motivo para divergir deste entendimento, fazendo depender, naquele circunstancialismo, o início da proibição do exercício da condução do trânsito em julgado da sentença, comportaria violação directa do disposto no dito normativo constitucional e negação da validade da necessária interpretação sistemática – que tem como elemento primário e primordial a Constituição – dos indicados preceitos da lei adjectiva penal.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo abreviado 37/17.0PTLRA da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 3, o arguido A. foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 69º, nº 1, alínea a) e 292º, nº 1 do Código Penal na pena principal de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, por sentença de 10.9.2018, transitada em julgado em 10.10.2018.

Foi o arguido advertido na sentença de que tinha o prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença para entregar a carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial.

Antes do trânsito em julgado da sentença, em 19.9.2108, o arguido entregou a carta de condução no Tribunal, o que foi aceite.

Em 23.10. 2018 a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

Vi a liquidação da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 [três] meses aplicada ao arguido A. nestes autos e que faz fls. 76, e discordo da mesma.

Com efeito, dispõe o artigo 69°, do Código Penal, que:

"1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:             I

a) Por crimes (…) previstos no artigo  (.) 292º;

(. . .)

2. A proibição produz efeitos partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.

3. No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquele, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.

(. . .)" - negrito nossos.

Quanto à execução da proibição de condução, estabelece o artigo 500°, do Código de Processo Penal:

"1. A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à DGV

2. No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendia no processo.

3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

4. A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período, a licença é devolvida ao titular." - negrito nossos.

Decorre da conjugação das disposições legais supra transcritas - a nosso ver, de forma inequívoca - que a do trânsito em julgado da decisão. Quisesse o legislador atribuir efeitos a uma Decisão não transitada, seguramente tê-lo-ia dito, face à excepcionalidade de uma tal solução - o, que decididamente, não fez. 

Nem se diga que, entender de outro modo, seria defraudar a expectativas do condenado, posto que o mesmo foi expressamente advertido em audiência de julgamento, além do mais, dos termos em que se processaria a execução da pena acessória de proibição e conduzir, em conformidade com o regime legal transcrito - cfr. acta que faz fls. 69 a 73 dos autos.

Face a todo o exposto, e tendo presente que a Decisão condenatória proferida nestes autos transitou em julgado em 10.10.2018, determino que a pena acessória de proibição de conduzir aplicada ao arguido nestes autos seja computada com referência à mencionada data, projectando-se o seu cumprimento para 11.01.2019 (dia seguinte ao termo do período de proibição de conduzir).

Notifique.

Inconformado com o teor do transcrito despacho, dele recorreu o Ministério Público, condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões:

1. Por Douta sentença de 1 0.09.2018, transitada em julgado em 10.10.2018, A. foi condenado, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1 al. a) do Código penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 meses.

2. A decisão transitou em julgado em 10.10.2018.

3. O arguido entregou a sua carta de condução, em 19.09.2018, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado.

4. O início de contagem do cumprimento sanção acessória de inibição ocorreu em 19.09.2018,

5. A referida sanção acessória de inibição de conduzir tem-se por cumprida em 19.12.2018.

 

6. Não é a data do trânsito em julgado da sentença- 10.10.2018 -, que determina o início da execução da sanção acessória de inibição de conduzir.

7. É a data da entrega da carta de condução pelo arguido nos autos que determina o início

da execução da sanção acessória de inibição de conduzir.

8. A sanção acessória tem-se por cumprida em 19.12.2018 e não em 11.01.2019.

9. Outra interpretação é violadora do processo equitativo.

10. Outra interpretação é violadora do princípio da confiança.

11. Entendemos assim que o Tribunal a quo não apreciou bem o direito impondo-se, pois, outra decisão conforme à Lei e à Constituição, no sentido em que a execução I da sanção acessória por 3 meses se iniciou em 19.09.2018, mostrando-se cumprida em 19.12.2018.

Concluindo, dir-se-á, que se nos afigura que deve ser dado provimento ao presente alterando-se o despacho recorrida, que não viole nem posterga qualquer princípio ou norma jurídica, nomeadamente as invocadas pela recorrente.

Aguardamos a decisão de V. Exas. que é, de certo, a mais Justa!

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O arguido não respondeu ao recurso

.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo ocorrido resposta.

 

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.

Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.


***

II. Apreciação do Recurso

            Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).

            Vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em saber se entregue e aceite pelo tribunal a licença de condução para cumprimento de pena acessória de proibição de conduzir antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, deve o cumprimento ser contado a partir do momento da entrega.

           

            Apreciando:

            Como já se deixou consignado, o arguido procedeu à entrega da sua carta de condução para cumprimento da proibição de conduzir em que foi condenado antes do trânsito em julgado da sentença, discutindo-se se é a partir do momento da entrega que deve ser contado o período de proibição ou apenas após o trânsito em julgado, como defende a decisão recorrida.

            É indubitável que o artigo 69º, nº 2 do Código Penal estipula que a proibição de conduzir produz efeito após o trânsito em julgado da decisão, o que tem o sentido de consignar que essa pena (como, aliás, todas) só deve ser cumprida depois de a decisão transitar em julgado posto que só a partir desse evento se torna definitiva, estipulando o nº 3 do mesmo artigo e o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal que a licença de condução deve ser entregue para cumprimento da pena acessória no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado.

            Não será por acaso que o artigo 9º, nº 1 do Código Civil estipula em matéria de interpretação da lei que esta “não deve cingir-se à letra lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…).

            No vértice da pirâmide legislativa encontra-se a constituição que define os princípios básicos do estado de direito, devendo toda a lei ordinária subordinar-se a tais princípios e merecer interpretação que se compagine com os mesmos.

            Se assim é, a conclusão de interpretação literal no sentido de que a proibição de conduzir só pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão condenatória e só pode ser imputado no seu cumprimento o tempo em que o condenado esteve privado da licença de condução depois do trânsito em julgado, tem, obviamente, que passar pelo crivo do disposto no artigo 20º, nº 4 da CRP que contempla um princípio estruturante de qualquer procedimento judicial e mormente do processo penal; o princípio do processo equitativo que implica, antes de mais, que em todos os termos do processo as partes sejam tratadas com lealdade e possam confiar na inexistência de decisões que as possam surpreender. O tratamento leal e a confiança na clareza dos procedimentos judiciais são, aliás, a base para a possibilidade de um processo equitativo com os derivados princípios do contraditório e da igualdade de armas que geralmente são salientados, mas que admite várias outras derivações, entre as quais o direito a um processo orientado para a justiça material “sem demasiadas peias formalísticas” no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua CRP anotada, em comentário ao referido artigo.  

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 345/99, publicado em www.tribunalconstitucional.pt qualquer processo e mormente processo de natureza sancionatória está sujeito à exigência constitucional (artigo 20º, nº 4) de ser um processo equitativo (due process of law – conceito importado para o nosso ordenamento jurídico através da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) o que supõe, para além do mais, que todos os intervenientes do processo, incluindo o tribunal, se movam dentro de valores como a lealdade e a confiança. E não basta que estas existam é ainda necessário que transpareçam do processo.

            O princípio da confiança tem diversos afloramentos na lei ordinária, como seja o caso do artigo 157º, nº 6 do Código de Processo Civil actual (161º, nº 6 do anterior) prevendo que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem em qualquer caso prejudicar as partes.

            Ora, também por decorrência deste preceito, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do respectivo código, não pode o arguido ser prejudicado quando entregou no tribunal a licença de condução e tal foi aceite pelo funcionário que a recebeu. O princípio da confiança e lealdade impede que seja defraudada a legitima expectativa do arguido no sentido de que a partir desse momento se iniciou o cumprimento da proibição de conduzir.

            Encontrar nos artigos 69º do Código Penal e 500º do Código de Processo Penal motivo para divergir do exposto seria violar directamente o disposto no preceito acabado de referir e negar a validade da necessária interpretação sistemática que tem como elemento primário e primordial a Constituição.

            Por consequência merece provimento o recurso.


***

            III. Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e declarando que o termo da sanção acessório de proibição de conduzir teve o seu termo em 19 de Dezembro de 2018.

Não há lugar a tributação do recurso.


***

Coimbra, 4 de Dezembro de 2019
Texto processado e revisto pela relatora

Maria Pilar de Oliveira (relatora)

José Eduardo Martins (adjunto)