Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1088/19.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA
FALTA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CABEÇA DE CASAL
AÇÃO CÍVEL APENAS PROPOSTA PELO CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 02/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2088º, 2089º E 2091º C. CIVIL.
Sumário: 1. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (ativa ou passiva) no âmbito de uma ação judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091º do CC).

2. Tendo sido proposta uma ação onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respetiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a ação, nela figurando como autora - ainda que atuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal.

3. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da ação e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros (ou verificar se ocorreu intervenção principal espontânea produzindo o mesmo efeito).

Decisão Texto Integral:






Apelação 1088/19.6T8LRA.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

               Sumário do acórdão:       

1. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça-de-casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa os direitos relativos à herança (art.ºs 2088º, 2089º e 2091 do CC).

2. Tendo sido proposta uma acção onde se identifica como autora a herança indivisa, representada pela respectiva cabeça-de-casal, nada obsta a que se considere, com base numa leitura e interpretação menos rígida e formalista (e centrada nos direitos e interesses a regular), que quem interpõe a acção, nela figurando como autora - ainda que actuando no interesse de todos os herdeiros - é a cabeça-de-casal.

3. Atendendo à filosofia subjacente ao actual Código de Processo Civil - que visa, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância - não se justificará, em tal situação, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança indivisa que, formalmente, vem indicada como sendo a autora, restando apenas saber se a cabeça-de-casal tem ou não legitimidade para a propositura da acção e, em caso negativo, providenciar pela sanação da sua eventual ilegitimidade com a intervenção dos demais herdeiros (ou verificar se ocorreu intervenção principal espontânea produzindo o mesmo efeito).

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 26.3.2019, a Herança Aberta Indivisa e Ilíquida por óbito de A..., representada pela cabeça-de-casal A..., instaurou a presente acção declarativa comum contra H... e L... (1ºs Réus) e M... e J... (2ºs Réus), pedindo: se reconheça que não foi dado à A. o direito de preferência legalmente estabelecido a seu favor no negócio celebrado entre os Réus, em 12.12.2003, formalizado na escritura que é o documento 4 da petição inicial (p. i.) (); e assim, se declare que tem a A. direito de preferir na compra e venda celebrada entre 1ºs e 2ºs Réus formalizada no referido documento e, nessa medida, que tem o direito de haver para si a propriedade do mesmo prédio, substituindo-se aos 2ºs no negócio, sendo portanto a proprietária da metade do prédio identificado em 1. da p. i.  inscrita a favor dos Réus ().

Caso assim se não entenda, em alternativa: se declare que o prédio identificado em 1. da p. i. é divisível (); se reconheça que há mais de 25 anos que o prédio se encontra materialmente dividido entre A. e Réus, de forma pública, pacífica e contínua, exercendo/praticando a A. todos os actos de posse relativos à casa e os Réus os relativos ao logradouro como se proprietários únicos fossem de cada uma dessas parcelas (); julgue que o prédio, por efeito de usucapião, se encontra dividido em dois prédios autónomos, fixando-se a parte de cada um dos consortes nos termos alegados (); em qualquer dos casos, se determine à 2ª Conservatória do Registo Predial (CRP) de Leiria a realização dos actos de registo pertinentes em face do que vier a decidir-se ().

Alegou, em síntese: é dona e legítima possuidora, na proporção de metade, do prédio urbano descrito na 2ª CRP de Leiria, freguesia de ..., sob o n.º ... , e inscrito na União de Freguesias de ... sob o art.º .., composto por uma casa de habitação de rés-do-chão, dependências e logradouros; o prédio em causa, desde tempos imemoriais, que é propriedade da família da cabeça-de-casal da A. e da 1ª Ré; em finais de Fev./2019  tomou conhecimento da escritura de compra e venda, outorgada entre os 1ºs e 2ºs Réus, em 12.12.2003, reproduzida a fls. 10 e seguintes, pela qual a metade dos 1ºs Réus foi vendida aos 2ºs Réus; nem a A., nem os antecessores A... e A... alguma vez receberam qualquer comunicação, nem sequer verbal pela qual os 1ºs Réus lhes comunicassem qualquer intenção de venda do prédio;  pretende exercer o direito de preferência que lhe assiste, de harmonia com o disposto no art.º 1410º do Código Civil (CC), tendo efectuado depósito correspondente ao preço e despesas; é dona e legítima possuidora de 1/2 do dito prédio e, não lhe sendo reconhecido o direito de propriedade sobre a outra metade por violação do direito de preferência, não quer permanecer na indivisão do prédio, que atenta a sua natureza, é susceptível de divisão em substância. 

Os 1ºs Réus contestaram, por excepção e impugnação, invocando, além do mais, a ilegitimidade da A., porquanto, atento o pedido formulado na p. i., o mesmo extravasa os poderes que legalmente são atribuídos à cabeça-de-casal - no n.º 1 do art.º 2091º do CC o legislador estabeleceu um princípio de tipicidade, para as situações em que a representação da herança pode ser levada a cabo exclusivamente pelo cabeça-de-casal, sendo que, fora desses casos, os direitos relativos à herança apenas podem ser exercidos por todos os herdeiros; in casu, a herança não se encontra validamente representada em juízo, não sendo parte legítima na presente acção, atenta a forma como a A. configurou a relação material controvertida.

Os 2ºs Réus deduziram a mesma defesa por excepção.

Na base da referida defesa concluíram os Réus pela sua absolvição da instância atenta a ilegitimidade da A..

Notificada para exercer o contraditório quanto à matéria de excepção, a A. veio dizer, nomeadamente, que a procuração junta com a p. i. (fls. 22) encontra-se subscrita apenas pela cabeça-de-casal da A., mas há acordo entre todos os interessados na mesma herança no que respeita ao pedido e causa de pedir, o que expressamente fizeram constar de procuração com ratificação do processado junta a fls. 62, qualidade de interessados que se extrai da escritura de habilitação de herdeiros de fls. 59 e seguinte, pelo que fica regularizado o processado no que respeita à legitimidade da A., representada por todos os interessados, improcedendo a excepção invocada.

Na sequência do despacho de 30.4.2020[1] a A. requereu que se considerasse suprida a excepção que pudesse conduzir à absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da Autora, e assim, regularizado o processado, prosseguindo o processo os seus normais trâmites (requerimento de 06.5.2020).[2]

Apenas se pronunciaram os 2ºs Réus, dizendo, em síntese, que «a) (…) os herdeiros são já conhecidos e já a aceitaram expressa ou tacitamente.  b) A herança em causa nos autos (…) não tem hoje, em caso algum (e não sendo jacente) nem personalidade judiciária nem legitimidade para as acções. / c) Neste caso, legitimidade tem, na hipótese dos herdeiros serem já conhecidos, todos eles, e por isso devem, todos eles, intervir nas acções, quer estas se destinem à defesa de bens da herança (portanto estando ainda indivisa) quer com a finalidade de proceder à sua divisão quer com a finalidade de liquidá-la. / d) Por isso, e dado que quem se apresentou na acção foi a herança já tacitamente aceite (art.º 2050º do CC) parece claro que tal herança não tem interesse em intervir na acção, sendo em consequência parte ilegítima; e não tendo personalidade jurídica também não tem personalidade judiciária. / e) Todavia parece que, tendo todos os interessados, conjuntamente, agora de forma expressa, ratificado o processado, já são eles verdadeiramente os legítimos interessados, partes na acção, podendo, a nosso ver, a acção ser aproveitada nessa parte (…) e se reconheça que, adquirindo os RR, por usucapião, o fraccionamento do imóvel, implícita (ou expressamente?) também se deva reconhecer que foram os mesmos os actos de posse praticados pela Adelinda (…) relativamente à herança (imóvel) dela.» [requerimento de 26.5.2020; sublinhados nossos]

Seguidamente, por saneador-sentença de 24.7.2020, a Mm.ª Juíza a quo julgou procedente a excepção de «falta de personalidade da “Herança líquida e Indivisa aberta por óbito de ...”» absolvendo «os Réus da instância» e «aquela da instância reconvencional».

Inconformada, a A. interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

...

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, se a herança ilíquida e indivisa tem ou não personalidade judiciária, verificando as consequências emergentes da eventual falta desse pressuposto (designadamente, se deve conduzir à absolvição da instância) e se existe ou não algum obstáculo legal à admissão da requerida ratificação do processado conjugada com a junção da mencionada procuração ou, de qualquer modo, se era admissível, e relevante, a intervenção (principal) dos demais herdeiros.

II. 1. A matéria fáctica e processual a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

2. Importa apreciar e decidir com a necessária concisão.

Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, n.º 1 do CPC). O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (n.º 2).

A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte (art.º 11º, n.º 1 do CPC) ou seja, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida alguma providência de tutela jurisdicional. Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária (n.º 2).

Têm ainda personalidade judiciária, nomeadamente, a herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado (art.º 12º, alínea a) do CPC, artigo que enumera as excepções ao princípio da correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária previsto no cit. art.º 11º, n.º 2).

A capacidade judiciária consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo (art.º 15º, n.º 1 do CPC).

Salvo disposição especial em contrário, os patrimónios autónomos são representados pelos seus administradores (art.º 26º, 1ª parte, do CPC).

A incapacidade judiciária e a irregularidade de representação são sanadas mediante a intervenção ou a citação do representante legítimo do incapaz (art.º 27º, n.º 1 do CPC).

O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer (art.º 30º, n.º 1 do CPC). O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (n.º 2). Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.º 3).

Se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade (art.º 33º, n.º 1 do CPC). É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (n.º 2). A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (n.º 3).

Estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objeto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º (art.º 311º do CPC).

O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa (art.º 312 do CPC).

A intervenção do litisconsorte, realizada mediante adesão aos articulados da parte com quem se associa, é admissível a todo o tempo, enquanto não estiver definitivamente julgada a causa (art.º 313º, n.º 1 do CPC). A intervenção por mera adesão é deduzida em simples requerimento, fazendo o interveniente seus os articulados do autor ou do réu (n.º 2). O interveniente sujeita-se a aceitar a causa no estado em que se encontrar, sendo considerado revel quanto aos atos e termos anteriores, gozando, porém, do estatuto de parte principal a partir do momento da sua intervenção (n.º 3). A intervenção não é admissível quando a parte contrária alegar fundadamente que o estado do processo já não lhe permite fazer valer defesa pessoal que tenha contra o interveniente (n.º 4).

Requerida a intervenção, o juiz, se não houver motivo para a rejeitar liminarmente, ordena a notificação das partes primitivas para lhe responderem, decidindo logo da admissibilidade do incidente (art.º 315º, n.º 1 do CPC).

Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária (art.º 316º, n.º 1 do CPC).

Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado, nomeadamente, a providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do art.º 6º (art.º 590º, n.º 2, alínea a) do CPC).

Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam (art.º 2024º do CC).

A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (art.º 2031º do CC).

Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CC).

O sucessível chamado à herança, se ainda a não tiver aceitado nem repudiado, não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos (art.º 2047º, n.º 1 do CPC).

O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (art.º 2050º, n.º 1 do CC). Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2).

A herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário (art.º 2052º, n.º 1 do CC).

A aceitação pode ser expressa ou tácita (art.º 2056º, n.º 1 do CC). A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2). Os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3).

Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro (art.º 2078º, n.º 1 do CC). O disposto no número anterior não prejudica o direito que assiste ao cabeça-de-casal de pedir a entrega dos bens que deva administrar, nos termos do capítulo seguinte (n.º 2).

A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (art.º 2079º do CC).

O cabeça-de-casal administra os bens próprios do falecido (art.º 2087º, n.º 1, 1ª parte, do CC).

Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art.º 2091º, n.º 1, do CC).

3. Na prática forense é frequente a intervenção (activa ou passiva) de heranças indivisas como se tivessem personalidade judiciária (v. g.: a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de A, representada pela cabeça-de-casal, B; determinada pessoa singular instaura acção declarativa comum contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de F e G, “representada por todos os seus herdeiros”, depois devidamente identificados; “Herança Indivisa aberta por óbito de A”, representada pelos seus herdeiros, aí devidamente identificados; ou ainda, numa formulação mais adequada, diversas pessoas singulares, devidamente identificadas, “por si e na qualidade de herdeiros da herança ilíquida indivisa” aberta por óbito de M, instauram acção com processo comum contra certa pessoa singular ou colectiva, pedindo que se declare o direito de propriedade dos autores por si e na qualidade de herdeiros da herança aberta, ilíquida e indivisa por óbito de M. sobre o prédio urbano identificado na petição inicial; etc.).

Resulta inequívoco da alínea a) do art.º 12º do CPC que apenas a herança jacente é dotada de personalidade judiciária, isto é, apenas a herança aberta que ainda não haja sido aceite nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CC) goza de tal atributo.

E é entendimento corrente que relativamente a conflitos relativos a herança que já haja sido aceite mas permaneça indivisa devem estar em juízo, consoante a natureza dos direitos em litígio, ou o cabeça-de-casal (art.ºs 2087, 2088º, 2089º e 2090º do CC) ou todos os herdeiros (art.º 2091º do CC).[3]

No entanto, esta questão, nas situações concretas submetidas à apreciação dos tribunais, não tem apresentado resposta única ou unânime, dando-se, nalguns casos, especial relevo à presença na lide daqueles cujo direito ou interesse importa salvaguardar, na prossecução do objectivo de regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, tanto mais que estamos hoje “sob a égide de legislação muito menos tributária de meros e rígidos conceitos formais, em detrimento e com ostracismo dos verdadeiros interesses e valores a que aqueles servem de simples indumentária jurídica”[4].

Só desta forma, cremos, se cumprirá a finalidade de todo o direito adjectivo, vendo-o, por um lado, também, como “uma responsabilizante dimensão ética do homem” e, por outro lado, e sempre, como meio e/ou solução adequados a determinada problemática.[5]

4. A herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado.[6]

Coincidindo a abertura da sucessão com o momento da morte do seu autor (art.º 2031º do CC), decorre do preceituado no art.º 2056º do mesmo Código que a aceitação pode ser expressa ou tácita, sendo a mesma havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir; a aceitação é tácita quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro.[7]

5. Na situação em análise, os autos fornecem elementos probatórios de que a herança A. foi aceite pelos respectivos herdeiros, pelo menos, de forma tácita (art.º 217º, n.º 1 do CC).

Na verdade, conjugada a habilitação de herdeiros de fls. 58 a 60 com a procuração forense a fls. 62, podemos concluir que todos as herdeiras da A. se apresentam como “únicas e universais herdeiras” de tal herança indivisa e ilíquida e, naquele instrumento, decidiram conceder à sua Exma. Mandatária poderes forenses gerais e ratificar “tudo o que processado foi e lhes respeite no âmbito da acção que corre termos (…) sob o n.º ...”.[8]

Se assim não fosse, tratar-se-ia, ainda, de herança jacente, nos termos referidos, dotada de personalidade judiciária.[9]

Propendendo-se para o entendimento de que a herança-A. não deve ser qualificada de jacente (“herança indivisa” não “jacente”), uma vez que tacitamente aceite pelos respectivos herdeiros (art.º 2046º do CC), no configurado quadro fáctico-jurídico, e convocando, principalmente, os princípios que presidiram às reformas processuais desde 1995/96 até ao presente, sempre será de concluir que, não obstante a herança-A. seja, in casu, desprovida de personalidade judiciária (apenas a herança jacente goza de personalidade judiciária, não extensiva à herança indivisa com titulares determinados)[10], com a (eventual) intervenção de todos os herdeiros, ficariam salvaguardados os interesses que estes deveriam prosseguir caso a acção tivesse sido por si instaurada; ou seja, estando em causa a protecção dos interesses dos herdeiros da A. e nenhum outro motivo obstando ao conhecimento do mérito da causa, a subsistente excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da A. não poderá/deverá determinar a absolvição da instância (art.º 278º, n.º 3 do CPC), antes devendo os autos prosseguir os seus termos para conhecimento de mérito[11] - entendimento que melhor se explicitará adiante.

6. Como vimos, a herança indivisa pode, conforme os casos, estar em juízo representada pelo cabeça-de-casal ou por todos os herdeiros (art.ºs 2088º, 2089º e 2091º, n.º 1 do CC).

Tendo a acção sido proposta em nome da herança só por um herdeiro que alegou ser o respectivo cabeça-de-casal, atento o respectivo objecto [in casu, o reconhecimento de um direito de preferência à luz da previsão do art.º 1410º do CC, sendo depois deduzido o pedido “alternativo” mencionado em “3)” e seguintes/cf. ponto I., supra], a intervenção de todos os herdeiros, face ao disposto no art.º 2091º, n.º 1 do CC (onde se preceitua que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”), assegura de forma eficaz a regularidade daquela representação.[12]

7. Esta, de resto, a solução conforme a uma leitura segundo o espírito e filosofia do nosso sistema processual civil.

Se a herança indivisa (mas não jacente) não tem personalidade judiciária e a falta de personalidade judiciária é, por regra, insanável, há que notar, contudo, que a própria lei estabelece, de modo expresso, uma situação em que esse vício pode ser sanado (cf. art.º 14º do CPC[13]).

E também na situação dos autos se poderá considerar que, em bom rigor, não está sequer em causa a sanação da falta de personalidade da herança indivisa, mas sim uma leitura e interpretação da p. i. menos formalista e da qual se poderá concluir que a parte (a autora) não será propriamente a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal, sendo que a formulação adoptada nestes autos em nada difere da comummente utilizada para identificar a pessoa que propõe ou contra quem se propõe uma acção, quando está em causa uma herança, sem que, habitualmente, se questione a falta de personalidade judiciária, por se entender que, na realidade, a parte na causa é a cabeça-de-casal ou os herdeiros que demandam ou são demandados por questões relacionadas com a herança.

O cabeça-de-casal, quando instaura uma acção por questões relacionadas com a herança (inclusive, nos casos em que a lei lhe atribui competência para o efeito), não o faz em seu próprio nome e em seu benefício exclusivo e, naturalmente, terá que fazer menção desse facto para clarificar que não é o “destinatário” (ou o único “destinatário”/”beneficiário”) da pretensão que vem exercer e que ela tem como destinatário a herança ou o conjunto dos herdeiros e, na identificação da qualidade em que propõe a acção, refere-se habitualmente, que o faz na qualidade de representante da herança.[14]

É certo que ao concretizar a qualidade em que propõe a acção, a cabeça-de-casal identifica-se como representante da Herança que surge, aparentemente, como autora na acção. Porém, essa circunstância não deverá impedir o normal prosseguimento da acção, na medida em que, em rigor, aquilo que está em causa, é uma mera incorrecção na expressão utilizada para identificar a parte e a qualidade em que interpõe a acção, devendo entender-se que a autora é a própria cabeça-de-casal e não a herança que diz representar - a herança indivisa nem sequer corresponde a uma realidade diferente do conjunto dos herdeiros; a falta de personalidade da herança não jacente decorre precisamente da circunstância de os seus titulares já estarem determinados, pelo que a herança corresponde, na prática, ao conjunto dos herdeiros, afigurando-se, por isso, excessivamente formalista a afirmação de que a acção não pode ser aproveitada e não pode prosseguir por falta de personalidade judiciária quando são os herdeiros ou a cabeça-de-casal (actuando no interesse daqueles e no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe atribui) que estão na acção (ainda que, incorrectamente, se tenham identificado como representantes de uma entidade ou realidade que não tem personalidade e cuja titularidade pertence aos herdeiros).[15]

            Ademais, reafirma-se, o espírito e a filosofia subjacentes ao actual direito adjectivo também apontam para a conveniência de interpretar a p. i. de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária, dada a circunstância de a acção ter sido intentada pela cabeça-de-casal (ainda que indevidamente se identificando como representante da herança), importando notar que, ainda que a acção exija a intervenção dos demais herdeiros, essa já é questão que se prende com a legitimidade e que facilmente poderá ser corrigida (v. g., concretizada a intervenção dos demais herdeiros).

A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, visando que o processo e a respectiva tramitação tenham a maleabilidade necessária para funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes[16], como claramente se evidencia no preâmbulo do DL n.º 329-A/95 de 12/12[17] e vemos reafirmado e até reforçado no CPC vigente.[18]

8. Concluindo.

Atendendo a tais princípios, não se justificará, assim, a absolvição da instância por falta de personalidade judiciária da herança, porquanto, com uma leitura e interpretação menos rígida e formalista da lei e da p. i. e com vista a simplificar e facilitar o exercício dos direitos das partes e sua eventual satisfação, poderemos admitir e considerar, sem grande dificuldade, que a autora não é a herança, mas sim a respectiva cabeça-de-casal (que, como tal, dispõe de personalidade jurídica e judiciária), não se justificando, no nosso entendimento, a absolvição da instância por falta de personalidade da herança, quando é certo que a acção foi interposta pela pessoa que, sendo cabeça-de-casal, é a administradora da herança em representação da qual se apresentou a litigar[19]; por outro lado, se é certo que a cabeça-de-casal, desacompanhada dos demais herdeiros, não tem legitimidade para a presente acção, a excepção de ilegitimidade da cabeça-de-casal por preterição de litisconsórcio necessário poderá/deverá ser sanada por via do adequado incidente de intervenção principal (espontânea ou provocada), sendo que nenhum obstáculo existia à admissão de incidente destinado a fazer intervir os demais herdeiros que, em relação ao objecto da causa, têm um interesse igual ao da autora (cabeça-de-casal), assim se sanando a ilegitimidade desta (com o normal prosseguimento dos autos), porquanto o direito aqui em causa apenas poderá ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros (art.ºs 33º do CPC e 2091º, n.º 1 do CC).[20]

9. Face ao que se deixa exposto, nada será de objectar à intervenção principal espontânea (dos demais herdeiros) corporizada e consubstanciada nos requerimentos da A. de 23.01.2020 (pontos 1., 2. e 3.), 24.01.2020 e 06.5.2020, conjugados, por um lado, com os documentos de fls. 58 e 62 e o despacho de 30.4.2020, e, por outro lado, com a posição expressa pelos 2ºs Réus no requerimento de 26.5.2020 (e a omissão de pronúncia dos 1ºs Réus), incidente da instância admissível nos termos e para os efeitos dos art.ºs 311º, 312º, 313º, n.ºs 1 a 3 e 315º, n.º 1 do CPC.

 Fica assim assegurada a regularidade de representação (por sucessão)[21] exigida pelo art.º 2091º, n.º 1 do CC[22], porquanto já verificada a intervenção de todos os herdeiros da herança A. indivisa (litisconsórcio activo de todos os herdeiros) - a acção foi intentada figurando como autora a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A..., representada pela cabeça-de-casal, a herdeira A... (viúva), formulação que, radicando num diferente entendimento jurídico ou numa errada acepção, é, pois, passível de ser sanada, nos termos do art.º 6º, n.º 2 do CPC, se todos os interessados no conjunto das relações jurídicas em apreço estiverem em juízo, o que resulta do atendimento/deferimento da requerida intervenção principal espontânea; a situação em análise reclamava a intervenção de todos os herdeiros da herança indivisa A., tratando-se, pois, de um caso de litisconsórcio activo de todos os herdeiros.[23]

Sendo sanável tal preterição de litisconsórcio activo, através do mencionado incidente de intervenção principal espontânea, os intervenientes são assim admitidos a intervir nos presentes autos, na qualidade de herdeiros da herança em causa, como associados da referida A..., que nestes autos se deverá entender que age igualmente na qualidade de herdeira da herança em causa[24], pelo que, se não verificada outra causa obstativa, os autos prosseguirão os seus termos.

10. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se o saneador-sentença na parte em que julgou procedente a excepção de falta de personalidade da “Herança líquida e Indivisa aberta por óbito de A...” e absolveu os Réus da instância, com os efeitos referidos em II. 9., supra.

 Custas da apelação segundo o decaimento a final.


23.02.2021

 


***

[1] Que se reproduz: «(…) Melhor analisados os autos, mormente lida com mais atenção a petição inicial, pese embora a ilegitimidade ativa invocada pelos RR, damos conta que na ação está como autora “Herança Aberta Indivisa e Ilíquida por óbito de A...”. / Ora, apenas a herança jacente tem personalidade judiciária – art.º 12º, a) do CPC –, pelo que o vício em causa não será de ilegitimidade, mas de falta de personalidade judiciária. / Assim tendo em conta o disposto nos arts. 676º, n.º 2, 577º, c), 578º e 3º, n.º 3, todos do CPC, determina-se a notificação das partes para se pronunciarem, quanto a tal questão, no prazo de 10 dias

[2] Com os seguintes fundamentos [sublinhados nossos]: «1. A presente lide foi proposta por herança que não é já jacente, e se encontra representada pela cabeça-de-casal, crendo-se que, analisada a petição inicial se concluirá que a propositura da acção se fez em benefício e prol da mesma herança. / 2. O processado, para que dúvidas se não suscitassem, veio a ser ratificado por todos os interessados na mesma herança, conforme procuração com ratificação do processado já junta ao processo. / 3. Pelo que (…), exigindo-se o litisconsórcio activo, está este devidamente observado com a junção da procuração a que se alude no precedente, donde resulta, crê-se, a regularidade no que toca à representação da Autora. / 4. Doutro modo, sempre aqui se remete para o que diz o Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 348/18.8T8FND-A.C1 (…) do qual se extrai o seguinte: “(…) Ademais, reafirma-se, o espírito e a filosofia subjacentes ao actual direito adjectivo também apontam para a conveniência de interpretar a p. i. de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária, dada a circunstância de a acção ter sido intentada pela cabeça-de-casal (ainda que indevidamente se identificando como representante da herança), importando notar que, ainda que a acção exija a intervenção dos demais herdeiros, essa já é questão que se prende com a legitimidade e que facilmente poderá ser corrigida (como foi, porquanto requerida e efectivada a intervenção dos demais herdeiros). (…)” / 5. Encontrando-se a herança já aceite, ao mesmo tempo que observado o litisconsórcio activo perante a intervenção de todos os interessados na partilha de bens que integravam a mesma herança e, sublinha-se, a intencionalidade jurídica da “(…) prevalência do fundo sobre a forma, bem como a sanação das irregularidades processuais e dos obstáculos ao normal prosseguimento da instância (…)” (…), crê-se que o processo se encontra em condições formais de se apreciar o pedido

[3] Assim, também, o seguinte excerto da decisão recorrida: «No caso de uma herança indivisa, aceite mas ainda não partilhada, não é a herança quem detém personalidade judiciária. Esta personalidade é agora do cabeça-de-casal que, enquanto administrador da herança, a representa os interesses da mesma nos termos previstos nos art.ºs 2079º, 2087º a 2090º do CC. Fora destes casos, sem prejuízo do direito de petição da herança por um só herdeiro - art.º 2078º do CC -, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos, em regra, conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, como dispõe o art.º 2091º, n.º 1, do CC
[4] Cf. o acórdão do STJ de 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[5] Vide A. Castanheira Neves, O direito como validade, in RLJ, 143º, 175.

   Na prossecução desse desiderato, vejamos, desde logo, algumas das “proclamações” do Preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12.12:

   - “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma”, entre as linhas mestras do modelo de processo perfilhado;

   - Atribuição ao processo civil de natureza “verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários”, constituindo aquele “uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”;

   - “Ter-se-á de perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo (…) que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
[6] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310, publicado no “site” da dgsi.
[7] Vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, 4ª edição, Almedina, 1990, pág. 17, nota (35).

[8] Idêntico o entendimento expresso, nesta parte, em 1ª instância, quando se refere: «(…) quem se apresenta como autora é a “Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de Avelino Alves Barbeiro”, já aceite tacitamente, nos termos antes referidos, pelos herdeiros, desde logo atenta a “procuração” de fls. 62 (…).»
[9] Cf., sobre esta matéria, os acórdãos da RP de 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1 e da RL de 18.6.2009-processo 166/09.4TBTVD-A.L1-6, publicados no “site” da dgsi.
   Relativamente aos limites da jacência da herança e à aceitação da herança, vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 71 e 78 e seguintes.

[10] Cf., neste sentido, nomeadamente, Carlos Lopes de Rego, Comentários ao CPC, Volume I, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 41 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310 e 31.01.2006-processo 05A3992 [com o seguinte sumário: «IV- A herança ilíquida e indivisa, cujos herdeiros já se encontram determinados, não tem personalidade jurídica, nem judiciária./ V- A lei apenas atribui personalidade judiciária à herança jacente e aos patrimónios autónomos semelhantes.»]; da RG de 02.6.2016-processo 72/15.3T8VPA.G1; da RP de 04.12.1998, 07.11.2006-processo 0622574, 09.5.2007-processo 0720560, 30.10.2007-processo 0721996, 09.6.2009-processo 52/03.1TBMDR-A.P1, 13.12.2011-processo 54/10.1TBBGC-H.P1 e 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1; da RC de 15.6.2010-processo 690/2002.C1 [constando do respectivo sumário: «(…) V - Não respeitando a uma herança jacente, mas antes a uma herança meramente indivisa, já aceite expressa ou tacitamente, é aos herdeiros que caberá intervir como parte nas acções em que se debatam interesses da herança, excepcionados os casos em que isso é legalmente atribuído ao cabeça de casal./ VI – Uma herança impartilhada carece de personalidade judiciária para propor acção de reivindicação sobre imóvel dessa herança, já que não se trata de uma herança jacente (art.º 2046º CC e 6º, al. a), CPC), não sendo a legitimidade activa assegurada pela intervenção da cabeça-de-casal – art.º 2091º, n.º 1, do CC.(…)»], 16.11.2010-processo 51/10.7TBPNC.C1, 24.02.2015-processo 1530/12.7TBPBL.C1 e 26.02.2019-processo 1222/16.8T8VIS-C.C1 e da RL de 01.6.2010-processo 1282/08.5TVLSB.L1-7, 15.02.2018-processo 2538/16.9T8LRS-2 e 30.10.2018-processo 2650/15.1T8VFX.L1-1, publicados no “site da dgsi, com a excepção do referido primeiro acórdão da RP que se encontra publicado na CJ, XXIII, 5, 211.
   Perspectiva diversa e “mais alargada” vemos adoptada por Antunes Varela, e Outros, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 105, nota (1), entendendo-se que atribuindo a lei tal personalidade à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão, será também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada), pois que embora «não estando ainda efectuada a partilha, é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário».

   E no acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1, publicado no “site” da dgsi, também se defende, em idêntico sentido: «Aliás, tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos art.ºs 2079º, 2088º, 2089º e 2091º, n.º 1, do CC, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça-de-casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada pela lei no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere, as previstas nos restantes preceitos). Acrescente-se ainda que chegou a ser proposta pela chamada “comissão Varela” de revisão do Código de Processo Civil a previsão da atribuição expressa de personalidade judiciária à herança não partilhada ao lado da herança de titular indeterminado, mas acabou por se decidir [na redacção da alínea a) do preceito em análise, que é a resultante do DL 329-A/95, de 12.12] não o fazer porque se entendeu que tal fórmula “ia longe demais na atribuição de personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante” [como nos dá conta Lebre de Freitas, no seu CPC Anotado, Coimbra Editora, Vol. 1º, a págs. 18 e 20 (anotações 1 e 3 ao art.º 6º), citando Teixeira de Sousa, “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, Lisboa, Lex, 1995, pág. 18].

   Deste modo, e em conformidade com o que se referiu, é de, contrariamente ao defendido na decisão sob recurso e dando procedência ao entendimento da recorrente, reconhecer que a herança indivisa - como a ora autora - tem personalidade judiciária, devendo, por isso, ser em seu nome (como o foi) que a presente acção deve ser proposta.»

[11] Cf. o citado acórdão do STJ 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1 e o acórdão da RC de 24.9.2019-apelação 348/18.8T8FND-A.C1 (subscrito pelo relator e o 2º adjunto do presente aresto), publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. citados, pág. 152 e, por exemplo, o referido acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1.
[13] Que reza o seguinte: “A falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representações pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.”

[14] Cf., a propósito, a posição de Antunes Varela a que se alude na “nota 10”, supra, no sentido de que o cabeça-de-casal, quando propõe uma acção no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede, actua no interesse da herança e não em interesse próprio e exclusivo, ainda que, em termos processuais, seja ele a parte e não a herança, na medida em que esta não dispõe de personalidade jurídica e tão-pouco de personalidade judiciária.

[15] Veja-se, em idêntico sentido, os acórdãos do STJ de 10.7.1990-processo 078685 (tendo-se concluído: “perante uma petição em que no cabeçalho se diz que a acção é proposta contra a herança do falecido mas logo a seguir se identificam todos os herdeiros pedindo-se a citação destes para os termos da causa, é de entender que a acção foi proposta contra estes…”) e da RC 27.5.2008-processo 400/2002.C1 (que em situação idêntica à dos presentes autos concluiu que “assiste aos herdeiros determinados da «herança ilíquida e impartilhada de A., identificados na petição, personalidade judiciária e legitimidade processual para proporem a acção como representantes dela”), publicados no “site” da dgsi.
[16] Aliás, como ensina I. GalvãoTelles, in Direito das Sucessões/Noções Fundamentais, 6º edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1996, págs. 40 e seguintes, 61 e seguinte, 84 e 264, o traço essencial da sucessão ou transmissão é a ideia de identidade – identidade do direito (que o direito se conserva o mesmo) e consequente identidade do regime (o regime permanece igual – o direito tem nas mãos do novo titular o regime que tinha nas do antigo); por outro lado, apesar da incorrecta “definição” do art.º 2024º do CC, o regime sucessório consagrado no Código Civil assenta na ideia de aquisição de um património ou de bens, que passam a novos titulares, os herdeiros ou legatários; a propriedade (servindo igualmente o interesse geral) também é transmissível por morte, pela decisiva razão de que, se ela não sobrevivesse ao proprietário extinguindo-se com este, se perturbaria a ordem e ofenderia a justiça, quebrando-se a continuidade de situações económico-jurídicas, princípio igualmente consagrado no art.º 62º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (que estabelece: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”).
[17] Cf. a “nota 5”, 2ª parte, supra.
[18] Cf. o cit. acórdão da RC de 24.9.2019-apelação 348/18.8T8FND-A.C1.
[19] Em idêntico sentido, cf. o cit. acórdão do STJ de 12.9.2013-processo 1300/05.9TBTMR.C1.S1.

[20] Cf., sobre os pontos II. 7. e II. 8., principalmente, os citados acórdãos da RC de 24.02.2015-processo 1530/12.7TBPBL.C1, aqui seguido de perto, 26.02.2019-processo 1222/16.8T8VIS-C.C1 e 24.9.2019-apelação 348/18.8T8FND-A.C1.

    Com entendimento parcialmente diverso, e numa perspectiva porventura mais “ortodoxa” do processo, cf., de entre vários, os citados acórdãos do STJ de 15.01.2004-processo 03B4310; da RG de 02.6.2016-processo 72/15.3T8VPA.G1; da RP de 19.5.2010-processo 16/1999.P1 e 19.10.2015-processo 443/14.2T8PVZ-A.P1 e da RC de 16.11.2010-processo 51/10.7TBPNC.C1 (e 28.5.2013-processo 325/09.0TBCTB.C2, publicado no mesmo “site”, citado na decisão recorrida).
[21] Vide I. GalvãoTelles, ob. cit., págs. 47 e seguinte e 60.
[22] Cf., ainda, o cit. acórdão da RP de 26.9.2011-processo 4494/09.0TJVNF.P1.
[23] Neste sentido, o cit. acórdão da RC de 24.9.2019-apelação 348/18.8T8FND-A.C1.

[24] Salvo o devido respeito por entendimento contrário, rejeita-se, pois, a hipótese aventada na parte final da decisão recorrida (aparentemente, com apoio nos dois últimos arestos desta Relação referidos na “nota 20”, supra), na medida em que, ainda que a viúva fosse já autora, in casu (atendendo à prova documental junta aos autos e à aludida actuação processual), não seria necessário convidá-la a deduzir o adequado incidente, nos termos do disposto nos art.ºs 33º, n.º 1, 6º, n.º 2 e 590º, n.º 2, a), do CPC, para fazer intervir nos autos os demais herdeiros, no lado activo.