Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4816/12.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: AÇÃO DE INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSIQUICA
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA - TRIBUNAL JUDICIAL ( EXTINTO ) - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 138, 140 CC, 944 CPC, LEI Nº 52/2008 DE 28/8, LEI Nº 62/2013 DE 26/8
Sumário: 1. A alínea h) do art. 114º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, não conferia competência, em razão da matéria, aos Juízos de Família e Menores, para preparar e julgar as ações de interdição.
2.Também a alínea g) do art. 122º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto, não confere competência, em razão da matéria, às secções de família e menores para preparar e julgar as ações de interdição.

3. As “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” da competência material das secções de família e menores (alª g) do nº 1 do art. 122 da Lei 62/2013) são aquelas que correspondem às condições ou qualidades pessoais e que têm como fonte as relações jurídicas familiares, no sentido estrito de “estado civil” da lei anterior.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I

Em 28 de Setembro de 2012, o Ministério Público instaurou a presente ação especial de interdição por anomalia psíquica relativamente a M (…), ação essa distribuída, ao tempo, ao 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.

Os autos prosseguiram de acordo com a tramitação prevista no art. 944º e seguintes do Código de Processo Civil (de 1961) e, após a junção do exame pericial à requerida, o Mmº Juiz a quo proferiu despacho ordenando a notificação do Ministério Público, assim como da patrona da interditanda, para querendo, se pronunciarem sobre a eventual incompetência material do tribunal par aos presentes autos.

Pronunciou-se apenas o Ministério Público no sentido de que a ação de interdição não é da competência das Secções de Família e Menores, não se integrando no artigo 122º da Lei nº 62/2013, de 26/8, mormente na alínea g) do nº1 do mesmo artigo, pelo que, deve o tribunal onde a ação foi instaurada, agora da instância local cível – núcleo de Leiria, ser considerado competente para prosseguir com  a ação.

Mas o tribunal a quo assim não o entendeu decidindo que:

«Nos termos do disposto nos artigos. 96º, a), 97º, nº1 e 98º todos do CPC, e artigos 38º da lei nº 62/2013, e 104º, 117º do decreto/lei nº 49/2014 de 27 de Março, declaro incompetente em razão da matéria a presente Instância Local Cível de Leiria do Tribunal judicial da Comarca de Leiria, por para a presente ação ser competente a Instância Central de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (2ª Secção instalada em Pombal)».

Inconformado com tal decisão veio o Ministério público recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

1. Os presentes autos versam sobre a decisão do Mm. Juiz a quo, de se declarar incompetente, em razão da matéria, para julgar a presente ação de interdição, por entender que a mesma, face ao disposto no art. 122.º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, mais concretamente, da alínea g), é da competência do Tribunal de Família e Menores.

2. No sentido social, entende-se estado civil como a existência e condições da existência do indivíduo perante a lei civil (solteiro, casado, viúvo ou divorciado), o que em nada está relacionado com as situações julgadas e decididas nas ações de interdição ou seja, situações de incapacidade para o governo da sua pessoa e dos seus bens.

3. O facto das ações de interdição serem objeto de registo, nos termos do disposto no art. 1º do Código de Registo Civil, não implica que estas assumam natureza de ação de estado civil, uma vez que no art. 1º do Código de Registo Civil encontram-se elencados vários factos, cujo registo, não obstante ser obrigatório, v.g., declaração de insolvência, em nada estão relacionados com o “estado civil das pessoas”.

4. As ações de interdição não versam sobre o estado civil das pessoas, propriamente dito, mas sim sobre uma situação pessoal que afeta a capacidade de exercício de direitos do indivíduo.

5. O instituto da interdição e da inabilitação encontram-se reguladas na lei substantiva no Livro I (parte geral), Título II (das Relações Jurídicas), Subtítulo I (das pessoas), Secção V (incapacidades), subsecção I e II, a par com a maioridade e emancipação (subsecção I e II), releva, uma vez que, a interdição, tal como a menoridade, constituem modalidades de incapacidade para o exercício de direito, colocando-se as questões relacionadas com as mesmas, nomeadamente, a sua declaração, no plano da titularidade de situações jurídicas, relevante para efeitos de capacidade para ser parte em negócio jurídico.

6. Deste modo, é indubitável, que, por exemplo, no caso de incumprimento de contrato em que uma das partes é menor, legalmente representada, os tribunais chamados para resolver a questão não serão os tribunais de Família e Menores, mas sim, os tribunais de instância central ou local, apesar de se tratar de questão relacionada com menor.

7. Atendendo aos princípios proclamados pela “nova organização judiciária”, nomeadamente o espírito de especialização judiciária, apenas as questões de menores e família devem ser tratadas nos Tribunais de Família e Menores.

8. Por tudo o exposto, não podia o despacho declarar incompetente em razão da matéria a Instância Local Cível de Leiria, por o ser a Instância Central de Família e Menores do Tribunal de Judicial da Comarca de Leria (2ª Secção), devendo, antes, verificar-se os ulteriores termos do processo.

                                                                        II

A factualidade a considerar resulta do relatório supra.

                                                                        III
            Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 608 in fine),
é a seguinte a questão a decidir:

- Qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer da ação de interdição.

Recorreu o Ministério Público do despacho que decidiu que a Instância Local Cível de Leiria do Tribunal judicial da Comarca de Leiria era incompetente em razão da matéria para a presente ação de interdição sendo competente a Instância Central de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (2ª Secção instalada em Pombal).

Não foi indiferente para tal decisão, como da mesma resulta, o facto de ter ocorrido, com efeitos a partir de 01 de Setembro de 2014, uma reforma na orgânica judiciária com a entrada em vigor da Lei nº 62/2013 de 26 de agosto que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Vejamos.

Dispõe o art. 138º do Código Civil, que «1. Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar as suas pessoas e bens. 2. As interdições são aplicáveis a maiores, mas podem ser requeridas e decretadas dentro do ano anterior à maioridade, para produzirem os seus efeitos a partir do dia em que o menor se torne maior».

Nos termos do art. 140º do Código Civil, sob o título, competência dos tribunais comuns «Pertence ao tribunal por onde corre o processo de interdição a competência atribuída ao tribunal de menores nas disposições que regulam o suprimento do poder paternal».

À data da interposição da ação - 28 de Setembro de 2012 - estava em vigor a Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto - Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais  - que, quanto à lei reguladora da competência, assim definia:

 Artigo 24.º

Fixação da competência

1 — A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.

2 — São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.

A posterior e atual Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26 de agosto) contém no seu art. artigo 38.º norma idêntica, preceituando que:

«Fixação da competência

1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa».

Assim, inequívoco é que, será de acordo com a lei de organização judiciária vigente ao tempo em que a ação foi intentada (ano de 2012), que se há-de definir qual o tribunal materialmente competente para decidir a ação de interdição, sendo irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou for atribuída competência a um órgão que até aí dela carecia.

À data da interposição da ação estava em vigor a Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto, importando destacar da mesma as seguintes normas:

Artigo 73.º - Competência

1 — Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais.

2 — Os tribunais de comarca são tribunais de competência genérica e especializada.

Artigo 74.º - Desdobramento

1 — Os tribunais de comarca desdobram-se em juízos, a criar por decreto-lei, que podem ser de competência genérica e especializada, nos termos do presente artigo e dos artigos 110.º e seguintes.

2 — Podem ser criados os seguintes juízos de competência especializada:

(…)

b) Família e menores;

(…)

Juízos de família e menores

Artigo 114.º - Competência relativa ao estado civil das pessoas e família

Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

(…)

h) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

Nas leis de organização judiciária anteriores à LOFTJ de 2008 não existia, no que concerne à competência material dos tribunais de família, norma idêntica à supra mencionada alínea h) (cfr., por último, a LOFTJ de 1999 – Lei n.º 3/99, de 13.01, art.º 81.º).

Também no art. 115º da mesma LOFTJ de 2008 consta a al. l)  – competência para preparar e julgar as ações de investigação e impugnação de maternidade e paternidade - que também não tinha qualquer correspondência no disposto no correspondente art. 82º da antiga LOFTJ.

Assim importa concluir que o legislador da LOFTJ de 2008 quis ampliar a competência dos Tribunais de Família e de Menores a três situações: ações relativas ao estado civil das pessoas e família, ações de investigação e impugnação de maternidade e paternidade.

Centrando-nos na alínea h) importa então definir se nas ações relativas ao estado civil das pessoas se contemplam as ações de interdição e de inabilitação.

A decisão da 1ª instância entendeu que nas ações de estado civil se incluem as de interdição e de inabilitação, incidindo, contudo a sua análise na norma da atual Lei nº 62/2013 de 26 de agosto que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário, que dispõe:

«SUBSECÇÃO IV

Secções de família e menores

  Artigo 122.º

Competência relativa ao estado civil das pessoas e família

1 - Compete às secções de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos». (sublinhados nossos).

Já o Ministério Público defendeu que a norma “g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” se refere a um conceito restrito de estado civil das pessoas que não inclui aquele tipo de ações.

Podemos dizer que o texto em causa, idêntico na sua formulação na Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto e na Lei nº 62/2013 de 26 de agosto, não prima pela clareza e, por isso, permite a divergência de interpretações para a mesma norma, concorrendo uma interpretação estrita do conceito de “estado civil” das pessoas, com um conceito mais lato, claramente adotado pelo tribunal a quo.

Recorrendo aos trabalhos preparatórios da Lei nº 52/2008, nos termos do art. 9º do Cód. Civil, pronunciou-se, do seguinte modo, o Ac. do STJ de 13-11-2012, Processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1. (Cons. João Camilo), in www.dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto:

«(…) na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 187/X que deu origem à LOFTJ de 2008 e no tocante à competência material dos diversos tribunais consta que uma das linhas de orientação do diploma, consiste em “apostar no reforço da justiça especializada no tratamento de matérias específicas, como sejam, família, menores, comércio, trabalho, níveis diferenciados de criminalidade.”

E no parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (DAR II série A n.° 91/X/3, de 03.5.2008), a respeito dos juízos de família e menores escreveu-se "de referir que se atribui aos juízos de família e menores a competência para preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situação de união de facto ou economia comum - cfr. art.° 113° alínea b) - e ações de investigação da maternidade e paternidade – cfr. art.° 114.°, n.° 1,alínea I), competências que não se encontram atualmente acometidas aos Tribunais de Família e Menores."

Os referidos artigos 113º e 114º da proposta deram origem aos artigos 114º e 115º da Lei aprovada.

Mas nada nos é dito sobre o conteúdo da inovação constante da introdução da al. h) referida.

Assim, nada nos trabalhos preparatórios nos permite esclarecer diretamente sobre o que o legislador pretendeu com essa alínea».

Na sequência desse pensamento poderemos então afirmar que as ações de interdição não têm a ver com o direito de família. Se o legislador pretendesse fazer incluir as ações de interdição na competência dos tribunais de família e menores, dada a inovação que isso ocasionava em relação ao direito anterior, deveria ter-se exprimido de forma clara ou expressa.

Mas essa não é uma conclusão isenta de dificuldades.

Pela sua importância, remetemo-nos de novo para as referências doutrinárias do citado acórdão do STJ,  que assim dita:

«Pensamos que há que meditar cuidadosamente sobre tais argumentos.

Antes de mais há que realçar que existe uma ideia expressa na Lei nº 52/2008 no sentido de alargar a competência dos tribunais de família e menores, como dissemos já.

Essa ideia é claramente dedutível da introdução do texto inovador das alíneas b) e h) do art. 114º, e da al. l) do nº 1 do art. 115º.

Por outro lado, é tradicionalmente entendida como ações que versam sobre o estado das pessoas, as ações de interdição e de inabilitação – cfr. José A. Dos Reis, in Comentário ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3º, pág. 625; Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, 5ª ed. pág. 53; Lebre de Freitas, in Cód. de Proc. Civil, anotado, vol. I, pág. 552 e Jacinto Rodrigues Bastos, in Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. II, pág. 96 da 3ª ed.

(…)

Ana Prata, in Dicionário Jurídico, pág. 509/510, define estado civil, como “uma situação integrada pelo conjunto das qualidades definidoras do estado pessoal que constam obrigatoriamente de registo civil, sendo o estado pessoal a situação jurídica da pessoa, no que toca, entre outras, à idade (menoridade, maioridade, emancipação), relações familiares (casado, solteiro, divorciado, viúvo), relações com o Estado (nacional, estrangeiro, naturalizado, etc.), à situação jurídica (interdito, inabilitado)”.

Por outro lado, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 96 da 5ª ed., define esse mesmo conceito como a expressão da condição jurídica da pessoa, enquanto maior ou menor, capaz ou incapaz.

Para Neves Ribeiro, in O Estado nos Tribunais, 2ª ed. , 1994, pág. 205, as ações sobre o estado das pessoas pressupõem um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil.

E o assento nº 1/92, DR, nº 134, de 11/06/1996, pág. 2794 entende as ações sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projeta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…)

Já João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, pág. 101 e 102 da edição de 1978, alude ao conceito de estado pessoal ou civil, num sentido global que abrange o conjunto de qualidades das pessoas que revistam as características que se inscrevem no registo civil ou que a doutrina repute de relevância jurídica igual à dessas.

Também pode aquele conceito ser usado numa aceção mais particularizada em que se chama estado a cada uma dessas qualidades (estado de filho legítimo, estado de maior, etc.), ou seja, abrangendo apenas as qualidades que resultam da posição face ao matrimónio.

O referido mestre refere como exemplo de um estado civil, o de interdito, porque consta obrigatoriamente do registo civil.

Assim na aceção do conceito mais restrito de estado civil abrange a posição da pessoa face ao matrimónio ( solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo ) e está usado nomeadamente nos arts. 7º, nºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, nº 1 als. a) e b), 132º, nº 2, e 136º, nº 2 al. a), todos do Código de Registo Civil.

Já o conceito mais amplo de estado civil abrange os factos sujeitos a registo, e está usado no art. 211º do mesmo Cód. de Registo Civil».

Exposto este enquadramento doutrinário, como definir então a abrangência do conceito “estado civil” da alínea h) do art. 114 da Lei nº 52/2008?

Cremos que a referência na parte final à palavra “família” se tem de entender como referida às ações sobre o estado civil das pessoas, fazendo qualificar o conceito de “estado civil” usado este no seu sentido restrito, pois que, os tribunais de família têm tido, desde que foram criados pela Lei 4/70 de 29/4 ( regulamentados pela primeira vez, pelo Decreto-Lei nº 8/72 de 7/1) uma esfera de competência especializada para ações que versam o Direito da Família. [i]

Ora, se o legislador pretendesse romper com esta tradição, estendendo a competência daquele tribunal de competência especializada a um tipo de ações em que não há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, tinha o dever de o fazer expressamente e de forma inequívoca no texto da lei.

Reportando-nos ao âmbito da Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto (LOTJ), aqui aplicável, a não referência expressa na lei e nos trabalhos preparatórios ao tipo de ações de interdição e de inabilitação, aponta para que, a competência para o conhecimento das mesmas se não tenha por prevista na competência dos Tribunais de Família e Menores, recaindo antes, tal competência sobre os tribunais cíveis, cuja competência é residual.

Diferente não é o nosso entendimento da lei orgânica atual e que o Mmº Juiz a quo entendeu sobrepor.

No que respeita às atualmente designadas “secções de família e menores” têm estas competência, no âmbito da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ), para as questões respeitantes ao estado civil das pessoas e família (122.º), relativas a menores e filhos maiores (123.º) e ainda em relação a matéria tutelar educativa e de proteção (124.º).

No artigo 122.º acima transcrito, especifica-se no seu n.º 1 alª g) que compete às secções de família e menores preparar e julgar “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.

No n.º 2 desenvolveu-se uma particular competência para os tribunais de família e menores, contemplada de forma mais restrita no regime anterior (alínea d) do nº 1): “Inventários requeridos na sequência de ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, bem como os procedimentos cautelares com aqueles relacionados” de forma a que, a competência das secções de família e menores passasse a abranger, ainda, os casos em que a lei confere competência aos tribunais na generalidade dos processos de inventário na sequência de separação judicial de pessoas e bens ou só de bens, bem como na seguimento da dissolução do casamento, em qualquer das suas modalidades.

Mas já no respeitante ao nº 1 do art. 122, que ora importa, estamos perante uma quase plena correspondência de circunstâncias atributivas da competência em razão da matéria das secções de família e menores, tal como outrora a definiu na Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto, para os juízos de família e menores.

Na nova Lei subsiste uma definição de conceito de “estado civil das pessoas” não diferente do da Lei anterior.

O legislador de 2013 deu por adquirido o conceito de “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, sem que tivesse sentido a necessidade de o precisar.

Assim, tal como no Ac. do STJ 13-11-2012, atrás citado, também no âmbito da nova Lei consideramos que “a referência na parte final à palavra família se tem de entender como referida às ações sobre o estado civil das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de estado civil no seu uso restrito”.

O legislador marcou a diferença apenas no art. 123º da Lei 62/2013, estendendo a competência da jurisdição de família e menores a laços familiares não decorrentes do casamento, flexibilizando o conceito de família de modo a nele abranger as novas realidades sociais, como, por exemplo a relação de apadrinhamento civil (ar. 123 nº 1 alª h), mas, sempre num contexto de relacionamento da vida em família.

Daí que a leitura mais coerente da expressão em causa ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, quer na nova quer na anterior lei, se deva reportar às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto.

As ações de interdição não versam sobre o estado civil das pessoas, mas apenas com uma situação pessoal que lhes afeta a sua capacidade de exercício de direitos. E o facto das ações sobre o estado das pessoas pressuporem um registo, como nas ações de interdição, tal não implica que estas assumam essa natureza.

Com efeito, o art. 1º do Código do Registo Civil indica quais os factos para os quais o registo é obrigatório, aí se incluindo muitas situações, tais como, o registo da declaração de insolvência, da nomeação e cessação de funções do administrador judicial e do administrador judicial provisório de insolvência que, nada têm a ver com o estado civil das pessoas.

Aqui chegados podemos concluir:

Porque a ação de interdição não era da competência dos outrora juízos de família e menores, no momento em que foi instaurada, nem tal ação é atualmente da competência das secções de família e menores, não há que apreciar se, no caso concreto, ocorreu alguma modificação de direito respeitante à supressão do órgão em que a ação estava afeta, ou se ocorreu a atribuição de competência a algum órgão que inicialmente dela carecesse.

Competente para dela conhecer eram os juízos cíveis como agora o são as secções cíveis.

Os autos foram, assim, e bem, distribuídos e processados no 4 Juízo Cível de Leiria, não tendo, até à entrada em vigor da atual Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26 de agosto), em 1 de setembro de 2014, sido posta em causa a competência material desse tribunal.

Tendo os autos transitado, por força do disposto no artº 104 nº 5 do DL n.º 49/2014, de 27 de Março, para a Instância local Cível de Leiria – J4 e, mantendo-se a competência para julgar as ações de interdição na instância cível, infundamentada se mostra a decisão de incompetência em razão da matéria proferida pelo tribunal a quo, ao abrigo da nova Lei.

Procede, deste modo, o fundamento do recurso.

Em suma:

- A alínea h) do art. 114º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, não conferia competência, em razão da matéria, aos Juízos de Família e Menores, para preparar e julgar as ações de interdição.

- Também a alínea g) do art. 122º da Lei 62/2013 de 26 de Agosto, não confere competência, em razão da matéria, às secções de família e menores para preparar e julgar as ações de interdição.

- As “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” da competência material das secções de família e menores (alª g) do nº 1 do art. 122 da Lei 62/2013) são aquelas que correspondem às condições ou qualidades pessoais e que têm como fonte as relações jurídicas familiares, no sentido estrito de “estado civil” da lei anterior.

 

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se em consequência, o despacho proferido e julgando-se o Tribunal recorrido, o competente, para em razão da matéria, prosseguir os autos.

Sem custas.

Anabela Luna de Carvalho( Relatora)

João Moreira do Carmo

José Fonte Ramos


[i] E, nem mesmo todo o Direito da Família lhe tem sido entregue, como foi o caso das ações de investigação de paternidade que aplicando normas de Direito da Família, num conceito social alargado, no ramo da Filiação, continuaram a ser da competência dos tribunais cíveis, até à alteração introduzida na competência daqueles tribunais pela Lei nº 52/2008.