Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/09.2TBESP-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO-PROMESSA
POSSE
REGISTO
PENHORA
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 2º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.410, 819, 1252, 1261, 1267, 1268 CC
Sumário: 1. Exerce posse em nome próprio a promitente compradora que habita na coisa prometida vender, que foi autorizada a realizar obras na coisa prometida vender e que tem a seu favor uma procuração irrevogável outorgada pelos promitentes vendedores conferindo-lhe poderes para consigo mesma celebrar a compra e venda prometida do referido imóvel.

2. O possuidor com melhor posse que demonstre o exercício de poderes de facto sobre a coisa beneficia da presunção prevista no nº 2, do artigo 1252º do Código Civil.

3. A posse passível de ser tutelada em sede de embargos de terceiro não carece de ser registada.

4. A posse de terceiro iniciada em data anterior ao do registo da penhora ofensiva dessa posse, não sendo aduzidos factos tendentes a ilidir a presunção de titularidade do direito inerente a essa situação possessória, nem tendo sido pedido o reconhecimento do direito de propriedade a favor dos embargados executados, prevalece sobre a penhora posteriormente registada.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

A 05 de Agosto de 2009, por apenso ao processo nº 122/09.2TBESP então pendente no 2º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Espinho, S (…), veio instaurar contra “A (…), Lda.”, exequente nos autos principais, e “SA (…)Lda.”, G (…) e E (…), os presentes embargos de terceiro, pedindo, a final, a procedência dos embargos e, em consequência, o levantamento da penhora sobre o prédio urbano descrito sob o nº X..., da freguesia de .., concelho de Condeixa-a-Nova, e inscrito na matriz sob o artigo Y..e a restituição da posse do mesmo imóvel, com dispensa de prestação de caução.

Além de excepcionar a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Espinho, a embargante alegou para fundamentar as suas pretensões, em síntese, que o imóvel penhorado inscrito na matriz sob o artigo Y..., da freguesia de .., concelho de Condeixa-a-Nova, está na sua posse há muito tempo, pois já não é propriedade dos executados; que em 15 de Março de 2002 foi celebrado entre os executados G (…) e E (…), promitentes vendedores, e a ora embargante, promitente compradora, contrato-promessa de compra e venda do imóvel identificado pelo preço global de € 22.445,91 euros; que com a outorga desse contrato, a embargante pagou de imediato o valor de € 2.493,99 euros, a título de sinal, e os promitentes vendedores autorizaram logo a promitente compradora a tomar posse imediata e efectiva do imóvel, tendo em vista a realização de obras de construção; que por acordo entre as partes, no dia 5 de Novembro de 2002, G (…) e E (…) outorgaram a favor da embargante procuração irrevogável atinente ao prédio identificado; que em 27 de Janeiro de 2003, a embargante celebrou com a “EDP, S.A.” contrato de fornecimento de energia para o imóvel penhorado, tendo requerido ainda instalação e fornecimento de água ao domicílio; que desde Novembro de 2003 que a embargante habita o imóvel, aí recebendo amigos, tomando as refeições, aí dormindo diariamente, pagando os impostos correspondentes, fazendo-o à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma contínua, actuando como verdadeira dona; que em 8 de Julho de 2003, a embargante até adquiriu um terreno contíguo e que confina com o prédio em apreço; que a escritura pública de compra e venda relativa ao imóvel em causa foi celebrada em 16 de Julho de 2009, no cartório Notarial de SL..., em Coimbra, na qual interveio a ora embargante por si e na qualidade de procuradora de G (…) e E (…); que só no dia 14 de Julho de 2009, ao obter junto da Conservatória do Registo Predial competente uma certidão relativa ao imóvel, a embargante constatou que existia uma descrição de penhora a favor da exequente.

Efectuada a notificação das partes primitivas no processo principal, apenas a embargada/exequente “A (…), Lda.” contestou, pugnando pela improcedência da excepção de incompetência territorial e alegando desconhecer todos os factos aduzidos pela embargante, que não lhe dizem respeito e nos quais não tomou parte, concluindo pela improcedência dos embargos de terceiro.

No âmbito de decisão proferida no apenso de oposição à execução, do apenso B, foi decidido julgar procedente a excepção dilatória da incompetência do tribunal de Espinho, atribuindo a competência para a execução de que esses autos são apensos ao Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, tendo o processo principal e respectivos apensos sido enviados e distribuídos ao 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

Fixou-se o valor da causa, proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória.

Realizou-se a audiência de julgamento e seguidamente respondeu-se à matéria vertida na base instrutória.

Proferiu-se sentença a julgar os embargos de terceiro procedentes, ordenando-se, consequentemente, o levantamento da penhora que incide sobre o prédio urbano descrito sob o nº X..., da freguesia de .., concelho de Condeixa-a-Nova, e inscrito na matriz sob o artigo Y....

Inconformada com a sentença, a embargada “A (…), Lda.” interpôs recurso contra a mesma, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

(…)

            A recorrente termina as suas alegações pedindo que a sentença recorrida seja declarada nula, ou, caso assim se não entenda, que seja revogada e a recorrente absolvida.

            A recorrida contra-alegou referindo que a recorrente não observou o disposto no artigo 684º-B do Código de Processo Civil, pois omitiu a indicação da espécie, do efeito, e modo de subida do recurso interposto, sendo as conclusões do recurso mais extensas do que as alegações, prolixas e nada concisas, tudo a determinar o indeferimento liminar do recurso; mais referiu que a sentença não enferma do vício invocado pela recorrente, concluindo pela integral confirmação da sentença sob censura.

            O tribunal a quo pronunciou-se no sentido da inverificação da nulidade da sentença arguida pelo recorrente.

            Proferiu-se despacho a indeferir a pretensão da recorrida de indeferimento liminar do recurso por força da inobservância do disposto no artigo 684º-B do Código de Processo Civil.

Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da cognição de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da nulidade da sentença recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto;

2.2 Da inoponibilidade à recorrente da situação jurídica em que a embargante está investida.

3. Fundamentos


3.1

A embargada “A (…), Lda”, pela apresentação nº 6226, penhorou, em 8 de Maio de 2009, no âmbito dos autos principais a que estes embargos correm por apenso, o prédio urbano composto de casa de habitação, curral e pátio, sito no Cadaval Grande, freguesia de .., concelho de Condeixa-a-Nova, inscrito em nome de G (…) e E (…), com a área total de 166 m2, que confronta a norte com caminho público, a poente com herdeiros de AA... e a sul e nascente com herdeiros de JC..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo Y..e descrito na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova sob o nº X... (alínea A da factualidade assente).

3.2

No dia 05 de Novembro de 2002, no 4º Cartório Notarial de Coimbra, G (…) e E (…) outorgaram uma procuração, na qual constituíram a embargante como sua procuradora, concedendo-lhe, de forma irrevogável, poderes para vender, prometer vender, ou de qualquer forma alienar, pelo preço e condições que entender convenientes, podendo fazer negócios consigo mesma, em relação ao prédio referido em 3.1 (alínea B da factualidade assente).

3.3

No dia 16 de Julho de 2009, no Cartório de SL..., em Coimbra, a embargante, por si e na qualidade de procuradora de G (…) e E (…)celebrou um contrato de compra e venda relativo ao imóvel referido em 3.1, de acordo com o qual os segundos lhe venderam o tal imóvel pelo preço já recebido de € 22.445,91 (alínea C da factualidade assente).

3.4

Em 15 de Março de 2002, foi celebrado entre os executados G (…) e E (…) e a ora embargante um acordo que denominaram de “contrato-promessa de compra e venda” que tinha por objecto o imóvel referido em A (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

3.5

No âmbito de tal acordo, os executados G (…) e E (…)e a ora embargante acordaram que esta última pagaria pelo imóvel o preço global de € 22.445,91 (vinte e dois mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros e noventa e um cêntimos) (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

3.6

Com a celebração do acordo referido em 3.4, a ora embargante pagou de imediato o montante de € 2.493,99 (dois mil, quatrocentos e noventa e três euros e noventa e nove cêntimos) (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.7

Na data do acordo em cima referido (3.4), a embargante foi autorizada pelos executados G (…) e E (…) a efectuar obras no imóvel antes identificado (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.8

Desde Novembro de 2003 que a embargante habita o imóvel referido em 3.1, aí recebendo amigos, aí tomando as refeições, bem como aí dormindo diariamente, fazendo-o à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma contínua (respostas aos artigos 5º a 8º e 10º a 12º, todos da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Da nulidade da sentença recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil)

A recorrente arguiu a nulidade da sentença recorrida, alegando que nessa peça processual se omite a referência expressa à matéria de facto da base instrutória, que não se estabelece aí a relação entre a factualidade dada como provada e a decisão final tomada, não curando de evidenciar a relevância jurídica de tal factualidade e que foi transcrito sob o nº 11 dos factos provados da sentença recorrida o artigo 8º da base instrutória, que não se provou.

De acordo com o previsto no artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis[1], é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No entanto, no actual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório[2].

Ao invés do que é afirmado pela recorrente, a sentença recorrida especificou, de forma expressa, os factos considerados provados, discriminando os que resultavam dos factos assentes, daqueles que resultaram da base instrutória.

A sentença recorrida apenas se absteve de indicar a concreta proveniência de cada um dos factos provados resultantes da base instrutória, em cada um dos sucessivos números dos fundamentos de facto respeitantes a esta peça processual.

Porém, embora essa indicação seja útil para uma melhor análise crítica da fundamentação de facto e para detectar eventuais discrepâncias ou omissões, não constitui uma formalidade da sentença legalmente imposta e integrante de nulidade da sentença, em caso de violação.

A leitura da sentença recorrida permite, de forma inequívoca, apreender quais os factos que firmaram a decisão a final tomada e as qualificações jurídicas dos mesmos factos.

Ao contrário do que é afirmado pela recorrente, o artigo 8º da base instrutória obteve resposta positiva e passou a constar sob o nº 11 dos fundamentos de facto da sentença recorrida, em virtude de se terem numerado seguidamente todos os factos provados, independentemente da sua concreta proveniência.

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que não se verifica a nulidade da sentença recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).

4.2 Da inoponibilidade à recorrente da situação jurídica em que a embargante está investida

A recorrente invoca a falta de registo da situação jurídica da embargante e a sua ineficácia relativa para fundamentar a procedência da sua pretensão recursória. Em seu entender, por força do disposto no artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial, essa situação jurídica não lhe é oponível.

Cumpre apreciar e decidir.

Numa primeira abordagem da questão colocada pela recorrente, dir-se-ia que a dilucidação do problema passaria pela determinação da qualidade de terceiro da recorrente face à embargante. Neste trilho, debater-se-ia, necessariamente, a problemática da inclusão ou não do beneficiário de uma penhora na esfera de protecção do artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial[3].

Porém, centrando a nossa atenção na causa de pedir dos embargos de terceiro, na defesa deduzida em sede de contestação e nos fundamentos da decisão recorrida, verifica-se que essa abordagem é despicienda.

Na verdade, embora a embargante também invoque na sua petição inicial o seu direito de propriedade, dúvidas não subsistem que esse instrumento processual foi mobilizado para tutela da posse que a embargante afirma ter sobre o imóvel penhorado para garantia do pagamento de um crédito da ora recorrente.

Por outro lado, na sua contestação, a ora recorrente, no essencial, limitou-se a impugnar por desconhecimento a maior parte da factualidade articulada pela embargante na sua petição de embargos, não curando de tentar ilidir a presunção de titularidade do direito emergente da situação possessória. Além disso, a ora recorrente não pediu o reconhecimento do direito de propriedade a favor dos executados, nos termos previstos no nº 2, do artigo 357º, do Código de Processo Civil.

Por isso, neste circunstancialismo, importa efectivamente dilucidar se a embargante é titular de posse sobre o bem imóvel penhorado, se essa posse é por si passível de se fazer valer em embargos de terceiro, sem mais, isto é, sem registo e, finalmente, a existir essa situação possessória, se a mesma prevalece ou não sobre a penhora registada a favor da ora recorrente.

A “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (artigo 1251º do Código Civil). Pode ser exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem (artigo 1252º, n.º 1, do Código Civil). “Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 1257º” (artigo 1252º, nº 2, do Código Civil[4]). Dada a ressalva existente na parte final do normativo que se acaba de citar, a presunção legal iuris tantum de que a posse se presume naquele que exerce o poder de facto apenas se aplica àquele que, exercendo o poder de facto, iniciou a posse[5], a menos que aquele que iniciou a posse a tenha transmitido àquele que presentemente exerce o poder de facto ou que aquele que exerce no momento presente o poder de facto tenha melhor posse, isto é, posse de um ano e um dia (artigo 1267º, nº 1, alínea d), do Código Civil).

O caso dos autos tem a particularidade do “título” que originou a situação de facto em que a embargante se acha não ter carácter translativo do direito de propriedade ou de outro direito real, embora lhe possam ser atribuídos efeitos reais, nos termos previstos no artigo 413º do Código Civil. Na verdade, o efeito jurídico do contrato-promessa de compra e venda é a vinculação unilateral ou bilateral do ou dos promitentes à futura emissão das declarações de vontade correspondentes ao contrato prometido. A obrigação assumida mediante a celebração de um contrato-promessa é assim uma prestação de facto positiva futura: a emissão no futuro da ou das declarações de vontade necessárias à perfectibilização do negócio prometido.

O figurino obrigacional do contrato-promessa leva a que só em casos pontuais se admita que a tradição da coisa determine o exercício de posse, em nome próprio, por parte do promitente beneficiário dessa tradição. A doutrina[6] e a jurisprudência[7] têm admitido o exercício de posse em nome próprio por parte do promitente comprador havendo tradição da coisa a seu favor, nos casos em que essa tradição visou antecipar o cumprimento do contrato definitivo, finalidade que pode ser indiciada pelo pagamento integral ou quase integral do preço, pela concessão de poderes próprios da titularidade do direito de propriedade ou pela adopção de uma vinculação negocial tal que torna a celebração do contrato prometido praticamente certa, ou pelo menos, apenas dependente da vontade do promitente comprador.

No caso em apreço, desconhece-se precisamente quando foi efectuado o pagamento da totalidade do preço, pois apenas se provou que quando foi celebrada a escritura pública de compra e venda, já após o registo da penhora que a embargante reputa ofensiva da sua posse, o preço estava integralmente pago. A alusão que na decisão recorrida se faz ao depoimento de parte prestado pelo executado para considerar provado tal facto[8] é tecnicamente inaceitável, já que tal matéria de facto não foi alegada na petição inicial e por isso como tal seleccionada para ser submetida à prova, não tendo sido objecto de decisão por parte do tribunal que presidiu à audiência de discussão e julgamento.

No entanto, provaram-se factos que apontam inequivocamente no sentido de mediante a tradição da coisa se ter querido a antecipação do cumprimento do contrato definitivo, pois foram logo conferidos poderes à embargante para efectuar obras na coisa cuja compra e venda foi prometida (veja-se a resposta ao artigo 4º da base instrutória) e, além disso, os promitentes vendedores outorgaram uma procuração irrevogável[9] permitindo à embargante a celebração consigo mesmo da compra e venda prometida (veja-se a alínea B dos factos assentes)[10]. Finalmente, resulta da factualidade provada que desde Novembro de 2003, a embargante habita o imóvel objecto mediato da promessa de compra e venda, aí recebendo amigos, aí tomando as refeições, bem como aí dormindo diariamente, fazendo-o à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma contínua.

Uma vez que os poderes de facto que a embargante vem exercendo se prolongam desde há mais de um ano, a embargante tem melhor posse (veja-se o artigo 1267º, nº 1, alínea d), do Código Civil), beneficiando da presunção de animus prevista no nº 2, do artigo 1252º do Código Civil, sendo no caso em apreço esse animus o de proprietária, atento o cumprimento que se visou antecipar, bem como a amplitude dos poderes exercidos pela embargante.

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que a embargante vem exercendo posse em nome próprio, sobre a coisa imóvel que foi penhorada no âmbito da acção executiva de que estes autos são dependência, como se fora dona dessa coisa.

Neste momento importa apreciar se esta posse é passível de por si mesma ser invocada em sede de embargos de terceiro, ou se para tal ser possível, carece de ser registada.

A posse que seja ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode ser defendida por meio de embargos de terceiro, nos termos da lei de processo (artigos 1285º do Código Civil e 351º, nº 1, do Código Civil). A posse tutelada juridicamente é a que é exercida pacificamente e publicamente (artigos 1261º, 1262º, 1263º, alínea a) e 1267º, nº 2, todos do Código Civil).

A publicidade no exercício da posse é uma publicidade espontânea, informal, embora possa pelo decurso do tempo e após apreciação notarial conduzir a uma publicidade institucional mediante o registo da mera posse (artigos 1295º do Código Civil e 2º, nº 1, alínea e) e 118º, nº 2, estes do Código do Registo Predial). Precisamente por força da publicidade espontânea inerente à posse juridicamente tutelada, é que se entende que a mesma não depende de ser registada para ser oponível[11]. Na verdade, a recorrente tinha a possibilidade de percepcionar quem exercia poderes de facto sobre a coisa penhorada, sendo a posse pública exercida pela embargante idónea para tal efeito.

Apurado que a embargante tem a posse em nome próprio da coisa imóvel penhorada para satisfação de um direito de crédito da recorrente, que essa posse não carece de ser registada para se fazer valer em embargos de terceiro, importa agora determinar se tal posse prevalece sobre a penhora inscrita no registo predial, a favor da recorrente, desde 08 de Maio de 2009.

Nos termos do disposto no artigo 819º do Código Civil, “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.” Desta regra legal resulta a inoponibilidade ao exequente dos actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens que já se achem penhorados, isto é, a inoponibilidade respeita a actos posteriores à penhora.

O caso em apreço não cai no âmbito da previsão do artigo 819º do Código Civil, pois trata-se de uma relação possessória que se iniciou vários anos antes da penhora.

Nos termos do disposto no artigo 1268º, nº 1, do Código Civil, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse. Por isso, na hipótese em análise, desde Novembro de 2003, a embargante é presumida legalmente proprietária do imóvel penhorado, não tendo a ora recorrente alegado qualquer factualidade com aptidão para ilidir a referida presunção legal, nem tendo pedido o reconhecimento do direito de propriedade a favor do embargado executado, de acordo com o previsto no artigo 357º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Neste circunstancialismo, há que concluir pela prevalência da posse da embargante iniciada em data muito anterior à data da inscrição da penhora a favor da ora recorrente, pelo que deve ser confirmada a sentença sob censura, embora com base em fundamentos não exactamente coincidentes.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por “A (…) Lda.” e, em consequência, embora por fundamentos não totalmente coincidentes, em confirmar a sentença sob censura proferida a 03 de Abril de 2012. Custas a cargo da apelante, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140.
[2] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Março de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sérgio Poças, no processo nº 161/05.2TBPRD.P1.S1 e acessível no site da DGSI.
[3] Sobre esta questão, na jurisprudência, em sentidos dissonantes, vejam-se, considerando que aquele que obtém o registo de penhora sobre certo bem não é terceiro para efeitos do artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Junho de 1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 328, páginas 504 a 508; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Janeiro de 1988, com dois votos de vencidos em sentido oposto quanto a esta questão, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 373, páginas 468 a 473; acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/99, publicado no Diário da República I-A, nº 159, de 10 de Julho de 1999; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2003, proferido no processo nº 03B2518, acessível no site do ITIJ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01 de Junho de 2006, proferido no processo nº 06B1656, acessível no site do ITIJ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Setembro de 2008, proferido no processo nº 08B2065, acessível no site do ITIJ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Janeiro de 2009, proferido no processo nº 08B3877, acessível no site do ITIJ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012, proferido no processo nº 121/09.4TBVNG.P1.S1, acessível no site do ITIJ. Considerando que aquele que obtém registo de penhora sobre certo bem pode ser terceiro para os efeitos do artigo 5º, nº 1, do Código do Registo Predial vejam-se: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 408, páginas 495 a 502; acórdão uniformizador de Jurisprudência nº 15/97, de 20 de Maio de 1997, publicado no Diário da República I-A, de 04 de Julho de 1997; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Janeiro de 2009, proferido no processo nº 08B3797, acessível no site do ITIJ; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011, proferido no processo nº 91-G/1990.P1.S1.
Na doutrina, sufragam o conceito mais amplo de terceiros para efeitos de registo, de modo a abarcar o credor que procede a registo de penhora: o Professor Antunes Varela, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03 de Junho de 1992, publicada na Regista de Legislação e Jurisprudência, ano 126, nº 3838, página 19; o Professor Carvalho Fernandes em anotação ao acórdão de uniformização de jurisprudência nº 15/97, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, páginas 1283 a 1320; o Professor Orlando de Carvalho, embora apenas se pronuncie expressamente sobre a venda em acção executiva in Terceiros para Efeitos de Registo, Boletim da Faculdade de Direito, volume LXX, páginas 97 a 106 e especialmente na página 105.
[4] Foi proferido um acórdão de uniformização de jurisprudência a propósito desta norma, tendo-se aí concluído que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (Acórdão do Pleno das Secções Cíveis de 14 de Maio de 1996, publicado na segunda série do Diário da República de 24 de Junho de 1996). Não é jurisprudencialmente pacífico o alcance desta presunção legal, entendendo alguns que só opera em caso de dúvida e que a prova do animus onera aquele que invoca a situação possessória (neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo II, 1993, páginas 95 e 96), enquanto outros entendem que essa presunção legal opera sempre que esteja demonstrado o corpus da posse, não recaindo nesse caso o ónus da prova do animus sobre aquele que invoca a situação possessória e beneficiando este daquela presunção legal, ainda que tenha sido elaborado quesito relativo a tal animus e o mesmo tenha obtido resposta negativa (neste sentido vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09 de Janeiro de 1997, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo I, 1997, páginas 37 a 39, de 20 de Junho de 2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, tomo II, 2000, páginas 123 a 127 e de 07 de Fevereiro de 2008, proferido no processo nº 57/08, acessível na Colectânea de Jurisprudência online), entendendo ainda outros que não recaindo o ónus da prova do animus sobre aquele que invoca a situação possessória sempre que esteja demonstrado o corpus da posse, a presunção prevista no nº 2, do artigo 1252º do Código Civil não operará sempre que tenha sido elaborado quesito a inquirir da verificação positiva do animus da posse e tal quesito tenha obtido resposta negativa (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Novembro de 2005, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano XIII, tomo III, 2005, páginas 112 a 115).
[5] Realça esta circunstância o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2000, citado na nota que antecede.
[6] Na doutrina, por todos, veja-se, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, Almedina 2000, 3ª edição actualizada, António Menezes Cordeiro, páginas 75 a 78.
[7] Na jurisprudência, entre muitos outros, vejam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos acessíveis no site do ITIJ: de 19 de Novembro de 1996, proferido no processo nº 96A362, de 31 de Março de 2004, proferido no processo nº 04B362; de 23 de Maio de 2006, proferido no processo nº 06A1128 e de 29 de Novembro de 2011, proferido no processo nº 322-D/1999.E1.S1.
[8] O pagamento da totalidade do preço em Novembro de 2002.
[9] Discordamos da sentença sob censura quando afirma que com a outorga da procuração irrevogável a favor da embargante se operou a transmissão do direito de propriedade a favor da embargante, para tanto bastando pensar que não obstante a outorga dessa procuração, nada impedia os promitentes vendedores de, em violação dos compromissos assumidos, venderem a terceira pessoa, a coisa cuja venda prometeram. Sobre o alcance da procuração irrevogável e sobre a sua relevância em sede de exercício do direito de preferência veja-se a anotação de Pedro de Albuquerque ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Março de 2004, in Cadernos de Direito Privado, nº 13, páginas 9 a 36.
[10] O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 29 de Novembro de 2011, proferido no processo nº 322-D/1999.E1.S2, acessível no site do ITIJ, em hipótese similar à destes autos (também aí os promitentes vendedores outorgaram uma procuração irrevogável a favor da promitente compradora), pronunciou-se no sentido da promitente compradora exercer posse em nome próprio.
[11] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já anteriormente citado, de 26 de Junho de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 408, páginas 495 a 502. Na doutrina veja-se, Processos Especiais, Volume I, Reimpressão, Coimbra 1983, Professor Alberto dos Reis, página 406, nota 1. Ambíguo quanto a esta matéria e com citação de doutrina que não dá suporte à posição aparentemente assumida, veja-se, Embargos de Terceiro na Acção Executiva, Coimbra Editora 2010, Marco Carvalho Gonçalves, página 73.