Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
483/07.8TBVGS.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
AUTO
VISTORIA AD PERPETUAM REI MEMORIAM
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 09/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, VAGOS – JUÍZO DE PEQUENA E MÉDIA INSTÂNCIA CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 11º DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES.
Sumário: I – Numa expropriação o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam e o auto de posse administrativa, ao fixarem uma determinada área como correspondente à da parcela expropriada, fixam os pressupostos de facto dessa expropriação, no sentido em que estes são entendidos como relevantes pelas partes no processo expropriativo subsequente, designadamente pelos expropriados, para a fixação da indemnização devida pela expropriação.

II – A vontade negocial dos expropriados, caso a expropriação se realize por acordo subsequente ao auto de vistoria e com base nos dados dele constantes, forma-se nesses termos, concretamente quanto à extensão da área que será objecto de expropriação.

III – Assim, alterando a expropriante, unilateralmente, a área expropriada no instrumento consubstanciador do acordo com o expropriado (no designado auto de expropriação amigável), contra o teor do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, está a modificar os termos pressupostos pelo expropriado nesse acordo com o expropriante, carecendo essa alteração de assentimento do expropriado.

IV – A aquisição do bem expropriado pela via de direito privado, enquanto forma específica de realizar a expropriação por acordo (artigo 11º do CE), configura-se essencialmente como celebração de um contrato de transacção (artigo 1248º do CC) entre expropriante e expropriado, funcionando como forma de evitação do litígio perspectivado pela adjectivação expropriativa na falta desse acordo.

V – Relativamente a este acordo de transacção, a alteração da área expropriada, efectuada pelo expropriante nos termos descritos em III deste sumário, conduzirá a uma situação de culpa in contrahendo do expropriante (artigo 227º do CC) se este obtém a subscrição do acordo expropriativo pelo expropriado na convicção de estar em causa – quando realmente não está – a área expropriada indicada no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam.

VI – Em última análise, a transferência irreversível para a dominialidade do Estado, por via da intervenção expropriativa, de mais área de terreno que a considerada na indemnização conduz a uma situação de enriquecimento sem causa, na forma de enriquecimento por intervenção (artigo 473º, nº 1 do CC), gerando a obrigação de indemnizar pela área efectivamente ocupada com a expropriação.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 20 de Julho de 2007[1], J… e mulher, I… (AA. e aqui Apelados), demandaram o Instituto das Estradas de Portugal, IEP, depois Estradas de Portugal, EPE (R. e Apelante nesta instância de recurso), invocando (aqueles) terem sido sujeitos a uma expropriação por utilidade pública que incidiu sobre uma parcela de um prédio do qual são proprietários (foram, pois, nesse contexto – e aqui serão referidos como tal – Expropriados), aí ocupando a posição de entidade Expropriante o R. Ora, como incidência gerada nesse quadro expropriativo que culminou em acordo, alegam os AA. terem sido induzidos em erro quanto à extensão (à área) do seu prédio efectivamente expropriada, sendo que, convencidos de corresponder esta a 1212 m2 (€19,95/m2), que foi a área indicada nos autos de vistoria ad perpetuam rei memoriam (fls. 26/28) e no “de posse administrativa” (fls. 30/31), e tendo eles, como Expropriados, chegado a acordo com a Expropriante nesse pressuposto, verificaram posteriormente, através do texto “auto de expropriação amigável” (de fls. 34/35) terem sido “expropriados” (pagos) 928 m2, “apenas[2], sendo que o valor que receberam da R. (€18.515,80 correspondentes a 928 m2) deve aqui ser acrescido – é, no fundo, isso que pretendem através desta acção – de mais €5.664,02 (1212 m2 X €19,95 m2 = €24.179,40 – €5.664,02 = €18.515,80).

            Em função destes dados, formulam os AA. os pedidos seguintes:
“[…]
a) declarar-se que na parcela em questão nestes autos foram expropriados 1212 m2 do prédio […];
b) declarar-se que a R. se locupletou de 284 m2 do prédio dos AA.;
c) pelo que deverá ser condenada a pagar-lhes €5.664,02;
d) acrescidos de juros moratórios até integral pagamento;
e) mais deverá declarar-se que o auto de expropriação[[3]] padece de um erro na área expropriada (1212 m2 em vez de 928 m2), bem como o valor a pagar (€18.515,80, em vez de €24.179,40);
f) ordenando-se, em consequência, o cancelamento e correcção de todos os registos feitos com base nos mesmos.
[…]”[4].

1.1. O R./Expropriante contestou (fê-lo a fls. 58/68), impugnando a versão da A., afirmando referir-se a expropriação na realidade a 928 m2[5], independentemente do teor do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam.

            1.2. Findas as fases dos articulados, de saneamento e de condensação – esta última plasmada no despacho de fls. 80/84 –, alcançou-se o julgamento[6]. Findo este, fixados que foram os factos referidos à base instrutória (através do despacho de fls. 483/486), foi a acção finalmente decidida pela Sentença de fls. 490/494 vºesta, integrada pelo despacho de fls. 483/486, constitui a decisão objecto do presente recurso – julgando a acção totalmente procedente[7].

            1.3. Inconformada, recorreu a entidade Expropriante/R. apresentando, a rematar a alegação do recurso, as seguintes conclusões:
“[…]

II – Fundamentação

            2. Na apreciação da apelação – referida à Sentença final de fls. 490/494 vº –, ter-se-á presente que o âmbito temático de tal impugnação foi delimitado pelo Apelante através das conclusões transcritas no antecedente item [v. os artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[8]]. Com efeito, fora das conclusões só valem, nesta sede, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos simples argumentos esgrimidos por quem recorre ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não propriamente aos diversos argumentos jurídicos convocados ao longo das alegações.

            Vendo as conclusões, constata-se constituir fundamento central do recurso a impugnação da matéria de facto (praticamente de toda a matéria de facto), suscitando o Apelante o exercício por esta Relação dos poderes de alteração desse elemento do julgamento nos termos previstos no artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC. Adicionalmente, com base nesta almejada alteração dos factos, pretende o Apelante uma decisão-outra, no sentido da improcedência da acção. Todavia, esta pretensão, se bem compreendemos o sentido do recurso (designadamente quanto ao conteúdo das conclusões XVIII a XX), abrange a crítica, que subsistiria mesmo com base nos mesmos factos, ao enquadramento jurídico da situação realizado pelo Tribunal a quo.

            2.1. Os factos fixados na instância apelada – deles há que partir na apreciação do recurso – foram os seguintes:
“[…]

            2.1.1. Como factos que o Tribunal considerou não provados, aos quais o Apelante pretende a formulação (aqui, por este Tribunal) de respostas positivas, temos os seguintes três quesitos (os quais são mantidos na forma interrogativa original constante da base instrutória, v. fls. 84):
12.
Tal área [a de 928 m2] resultava de acordo quanto à verdadeira localização das estremas dos prédios confinantes, estabelecido com todos os proprietários?
13.
De que foi dado conhecimento ao representante dos AA.?
14.
Este deu o seu acordo quanto a tal rectificação?

            2.2. Comecemos, assim, pelos factos.

Como dissemos, crítica o Apelante praticamente toda a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo – este teria julgado a acção totalmente ao contrário da prova… –, pretendendo o Apelante a formulação de respostas “não provado” aos quesitos 1º, 3º a 10º e, ao invés, respostas positivas (“provado”) aos quesitos 12º, 13º, 14º. O primeiro grupo de quesitos expressa a tese dos AA. a respeito da efectiva transferência para a dominialidade do Estado dos 1212 m2 (não dos 928 m2 referidos, e “pagos”, no “acordo de expropriação amigável” enquanto valor unilateralmente alterado pelo R.) e esmiúça a incidência da alteração da área sem o concurso dos Expropriados. O outro grupo de quesitos (12º, 13º e 14º) expressa o ponto de vista do Expropriante quanto à área efectivamente transferida para o Estado (teriam sido os tais 928 m2) e à alegada aceitação pelos AA. (pelo seu procurador) quanto à alteração do acordo celebrado com base no conteúdo da vistoria ad perpetuam rei memoriam e do auto de posse administrativa.

Existem assim, na impugnação da matéria de facto pelo Apelante, duas incidências temáticas que importará tratar: (1) qual a área da parcela efectivamente transferida para a propriedade do Estado (1212 m2 ou 928 m2); (2) se os AA. deram o seu acordo a essa alteração de área contra o conteúdo do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam e, por via desta, do auto de posse administrativa (note-se que o Expropriante assumiu que decidiu alterar e alterou ele esse elemento no contrato consubstanciador do “acordo amigável” de fls. 34/35).

2.2.1. A questão da área expropriada – como questão está ela formulada a fls. 236 – induziu a produção de prova pericial, sendo que, por decisão deste Tribunal da Relação no Acórdão de fls. 372/377, teve lugar uma segunda perícia (colegial, com três peritos) cujo resultado está documentado a fls. 441/447. Este resultado expressa-se na posição maioritária – podemos vê-la nestes termos – subscrita pelo perito do Tribunal e dos AA., no sentido da área efectivamente expropriada corresponder a 1212 m2 (que é a área indicada, depois de medição, nos autos de vistoria ad perpetuam rei memoriam e de posse administrativa). A posição minoritária do perito da entidade Expropriante (v. fls. 444/446), conclui que “da parte da Expropriante houve boa fé…”[9] e que a área expropriada “não anda/passa muito da realidade que na opinião do perito signatário será de 928 m2”. Ora, independentemente do teor dos esclarecimentos adicionais prestados por escrito pelos dois peritos subscritores da posição maioritária a fls. 469/470 – e independentemente dos outros esclarecimentos prestados pelos três peritos na audiência reaberta para esse efeito (v. a acta de fls. 481/482)[10] –, independentemente de tudo isto[11], dizíamos, o que o perito do Expropriante afirma na segunda perícia, assenta na formulação de juízos meramente hipotéticos, baseados em dúvidas que ninguém suscitou anteriormente e cujos pressupostos de facto não podem agora (depois da obra realizada e da alteração irreversível por ela introduzida no local) ser esclarecidos devidamente[12].

Note-se que na base da questão suscitada quanto à área a considerar (mas na base daquilo que agora ainda podemos reconstituir e controlar) está a diferença entre três plantas do local assinalando a parcela expropriada, sendo duas delas iguais e confirmando ambas a área de 1212 m2 (as juntas aos autos de vistoria e de posse administrativa) e uma terceira (que é a de fls. 36), posterior ao início dos trabalhos[13], apontando para uma área mais pequena (a que o Expropriante considerou na redacção unilateral do posterior auto do “acordo de expropriação”). Ora, tendo presente que as duas primeiras plantas foram realizadas pela própria entidade Expropriante (por sinal sem o concurso dos Expropriados[14]) com base em levantamentos topográficos anteriores à obra motivo da expropriação, as quais (referimo-nos às plantas), por isso mesmo, puderam considerar a realidade predial que verdadeiramente interessava à determinação de qual a área efectivamente retirada aos Expropriados, não vemos neste momento alternativa válida, no sentido de passível de um efectivo controlo nos seus pressupostos de facto, à consideração do levantamento topográfico efectuado pelo Expropriante, através do Engº … (v. nota 15, supra) ao tempo da vistoria ad perpetuam rei memoriam, levantamento que determinou uma área de 1212 m2 como extensão efectivamente expropriada. Foi isto que as duas perícias disseram (a última disse-o por maioria) e não vemos como se poderá entender diversamente com uma base racional demonstrável a posteriori (quando o que se teria de medir posteriormente já não existe com a configuração que possibilitaria uma nova medição fiável). Com efeito, não vale, como “base racional” de explicitação da correcção de uma outra medição da área abrangida pela expropriação, dizer que um “caminho”, de cuja existência ninguém se lembrou antes – rectius, o Expropriante, embora essa passagem já existisse e todos o soubessem[15] –, poderia introduzir um desvio na planta de 0,5 mm e alterar as medições, sendo patente estar-se, contra o facto consubstanciado na primeira planta, a suscitar uma dúvida, só construída a posteriori (e parece que construída ad hoc relativamente à pretensão do Expropriante) e só aparecida como hipótese meramente especulativa[16], quando, se erro algum existiu (e não há base alguma para o afirmar), foi, tão-somente, um “erro” do Expropriante de má gestão do seu processo de expropriação, erro que – se existiu e, repete-se, nada indica que tenha existido –, é a Expropriante, por absoluto e exclusivo “domínio do facto”, que deve assumir o “custo”, o ónus, desse hipotético “erro”. Estamos aqui num quadro de clara supremacia técnica do Expropriante e de assimetria informacional em esmagador benefício deste (uma grande empresa detentora de vasta experiência em processos expropriativos e que pode mobilizar atempadamente meios técnicos aptos a defendê-la de erros), sendo que os Expropriados, em função disso, investiram a respectiva confiança na apreciação e gestão técnica do Expropriante, nos termos em que essa gestão estava espelhada nos autos de vistoria ad perpetuam rei memoriam e de posse administrativa.

Para esta constatação é, no essencial, irrelevante a prova testemunhal e, como já se disse, não são agora controláveis (se alguma relevância apresentaram) os esclarecimentos dos peritos feitos na audiência reaberta.

Vale aqui, contra o que o Apelante refere no recurso, com notório desacerto jurídico, tem aqui inteira validade, dizíamos, a referenciação dos elementos relevantes para a determinação da justa indemnização ao teor da vistoria ad perpetuam rei memoriam, enquanto elemento probatório fortemente persuasivo e que permite “cristalizar” (e recordar ao longo do processo) os elementos relevantes para o cálculo da indemnização – todos esses elementos, incluindo a área expropriada –, como resulta do artigo 21º do Código das Expropriações (CE), em particular do nº 4, alínea b) deste. Com efeito, existe na vistoria um elemento aparentado à percepção pericial que, posteriormente, refere a essa diligência uma natureza de constatação de pendor técnico da realidade do bem expropriado, ao tempo relevante para a fixação da indemnização[17].

Vale isto pela confirmação aqui (no recurso) das asserções de facto que pressupõem que a entidade Expropriante retirou efectivamente aos Expropriados 1212 m2 e não 928 m2. É, pois, com base no primeiro valor que a indemnização tem de ser calculada e, enfim, para que as coisas estivessem correctas, seria com essa base (a expropriação de 1212 m2) que a celebração do contrato consubstanciador do acordo (a aquisição pela via de direito privado, prevista no artigo 11º do CE) deveria de ter ocorrido, além de que deveria ter ocorrido transparentemente[18]. Em qualquer caso, fica aqui claro, que a área transferida para a dominialidade do Estado foi de 2012 m2 e não de 928 m2 e que à indemnização efectivamente paga pelo Expropriante “faltam”, por assim dizer, 284 m2 (x €19,95 m2 = €5.664,02).

Note-se que esta asserção – e abrimos aqui um parênteses de explicação do correcto entendimento da matéria de facto –, esta asserção, dizíamos, estava presente (desde a fase condensatória, v. o despacho de fls. 108) nos factos assentes (v. a alínea T) do elenco fáctico). Aqui se refez a indagação desta circunstância em função da impugnação dos factos pelo Apelante abranger essa incidência. Tenha-se presente que o contexto do despacho de fls. 108, que deferiu a reclamação dos AA., não foi a de afirmar logo a exacta área transferida para o Estado – asserção que ficou aí controvertida –, mas de indicar o que diziam os actos processuais que indicavam essa área de 1212 m2. Ora, sendo certo que o Apelante contestou essa asserção no recurso (e todo o julgamento incidiu sobre a pesquisa dessa asserção), aqui apreciámos a fixação da exacta área expropriada, embora o Expropriante não indique nos factos provados a localização dessa asserção na alínea T) desse rol de factos. Fica, não obstante, resolvido aqui esse problema, sendo que se entende ter sido correcto o assumir da área efectivamente ocupada pelo Expropriante como correspondendo a 1212 m2, mas entende-se isso, depois de valorados, no quadro deste recurso, os elementos de prova. 

2.2.2. Interessa-nos agora controlar a prova, no sentido de controlar a asserção de facto, correspondente à alteração unilateral (sem negociação e sem o prévio acordo dos Expropriados) do texto do “auto de expropriação amigável” (através do documento de fls. 34/35), indicando 928 m2 e não os 1212 m2 resultantes, como área expropriada, da vistoria ad perpetuam rei memoriam e do auto de posse administrativa. Esta asserção passou pelas respostas positivas do Tribunal aos quesitos 1º e 3º a 10º da base instrutória.

A correcção das asserções do Tribunal a quo expressas nas respostas a todos estes quesitos, bem como nas respostas negativas aos quesitos 12º, 13º e 14º, assentou fundamentalmente, na referenciação dessas respostas à prova testemunhal, no depoimento da pessoa que actuou como procurador dos AA. no processo de expropriação, a testemunha …, irmão da A. Foi este, com efeito – e o respectivo depoimento foi, como correctamente observou o Tribunal a quo, absolutamente objectivo e esclarecedor –, quem acompanhou as vicissitudes da medição da área da parcela, foi ele quem alertou para o notório erro inicial e suscitou, junto do R., a correcção para os 1212 m2 (realizada no âmbito da fase arbitral necessária da expropriação pelo Engº …), extensão que foi aceite por todos os interessados e intervenientes nesse processo. Foi esta área (1212 m2), por isso mesmo, a incluída na vistoria e, em função disso, a que foi considerada no auto de posse administrativa (incidências estas assentes desde o início do processo) e foi tal área – e a este respeito vale, com um enorme peso de objectividade, o depoimento do procurador dos AA. – aquela que estes aceitaram no quadro da resolução através de uma transacção[19] (na terminologia do Código das Expropriações, cfr. artigo 11º: aquisição por via de direito privado) da questão da expropriação da parcela a destacar da respectiva propriedade: aceitaram que estavam a ser expropriados de 1212 m2, por ser essa a área medida no local e correspondente à parte do seu prédio da qual foram privados.

É significativa a forma como esta testemunha (…) relata a entrega do “auto de expropriação amigável” de fls. 34/35, contra a entrega de um cheque no valor de €18.515,80 (a destacar de um papel sem qualquer referência à área). Tudo ocorreu sem uma convocatória formal pela entidade Expropriante para o acto de celebração do acordo indemnizatório final (disseram-lhe “para ir lá naquele dia” sem indicar o motivo), sendo que estavam lá muitos outros Expropriados, limitando-se a Engenheira do R. (a pessoa presente contra o teor expresso do auto de expropriação e sem competência para o efeito, como admitiu no seu depoimento em julgamento) a solicitar ao procurador que “assinasse aquele papel” (“esteja descansado que está tudo em ordem…”, terá dito ela) e que ele (…) “confiou”[20], só mais tarde se apercebendo, “já à noite em casa”, lendo os termos do documento de fls. 34/35 e confrontando-os com outros elementos dos quais dispunha, que a área indicada no papel (928 m2) era diferente daquela que havia sido estabelecida na medição realizada pelo Engº …[21]. E note-se que esta afirmação da testemunha, o procurador dos AA., é confirmada pelo contexto temporal da carta de fls. 38 na qual, logo na 2ª feira seguinte dia 2 de Agosto (o auto foi assinado e entregue ao procurador 6ª feira dia 30 de Julho), contesta logo a área indicada no auto.

Particularmente relevante a respeito dos dados de facto afirmados pela testemunha …, aliás fornecendo elementos de corroboração desses dados, devemos salientar que a testemunha …, primo dos Expropriados e também ele expropriado naquele local (todas as parcelas integrar-se-iam numa propriedade de antanho pertencente a um avô de todos os Expropriados), confirmou a tentativa de lhe “imporem” um “auto de expropriação” também com alterações unilaterais de áreas do seu terreno, o que ele não aceitou. E o mesmo sucedeu com a testemunha ouvida subsequentemente, …, primo do A. (também ele expropriado naquelas circunstâncias), cujo “auto de expropriação” conteve, igualmente, alterações unilaterais efectuadas pelo R. relativamente à área resultante do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, o que ele também não aceitou. Valem estes depoimentos, como dissemos, enquanto sugestivos elementos de corroboração da circunstância de ser prática da Estradas de Portugal alterar unilateralmente os acordos estabelecidos com os expropriados, com base nos elementos contidos nos autos de vistoria ad perpetuam rei memoriam, modificando os “autos de expropriação amigável”, entendendo que esse auto posterior, depois de assinado pelos expropriados, dissiparia automaticamente a mácula negocial correspondente a este desvalor comportamental (alterar unilateralmente os elementos de um contrato a celebrar com base em elementos assentes numa negociação anterior). Esquece, todavia, a Estradas de Portugal (e seria curioso saber se também altera unilateralmente os contratos[22] quando “descobre” situações menos favoráveis aos respectivos interesses) que está sujeita ao princípio da boa fé na sua actuação e que alterações de dados relevantes para o acordo expropriativo exigem novas negociações e não a simples obtenção de assinaturas dos expropriados em circunstâncias duvidosas. E esquece também o R. que a assinatura do auto “alterado” só dissipa desvalores se a alteração for efectiva e conscientemente aceite (não é uma espécie de “fala agora ou cala-te para sempre…”), sendo que aqui, não foi aceite logo que a pessoa representando os contraentes se apercebeu (e aqui foi quase de imediato) do logro em que tinha sido induzida e no qual tinha caído (mas caiu só por um fim-de-semana…).

Claro que ninguém de boa fé pode aceitar o que diz o elemento da empresa que teria alterado os 1212 m2 para os 928 m2, a testemunha ... Este afirma que comunicou verbalmente as alterações da área da parcela. Porém, há coisas que não se resolvem com conversas – ou que não se resolvem só com conversas – e este Tribunal, tal como a primeira instância, não aceita que uma comunicação verbal (que não deixa prova alguma e nos coloca à mercê do que pessoas interessadas no assunto possam dizer ao Tribunal) resolva todos os problemas num contexto tão formal quanto este – uma expropriação – o é[23]. Aliás, esta testemunha nem das razões que levaram à alteração de áreas dos prédios (às alterações contra o teor das vistorias) afirma dispor de elementos escritos: até isso “seria verbal”, disse no julgamento. E é isto, enfim – são procedimentos deste tipo – que a Estradas de Portugal pretende que este Tribunal aceite no contexto de uma expropriação por utilidade pública.

Vale o somatório de todas estas considerações pela confirmação, neste Tribunal, de toda a matéria de facto fixada na instância precedente.

É, pois, com os factos acima elencados no item 2.1. deste Acórdão que entraremos em linha de conta na subsequente apreciação do recurso.

2.3. Quanto ao enquadramento jurídico deste acervo de factos – de todos os factos considerados na primeira instância –, configuram-se e podem ser consideradas duas vertentes subsuntivas (e até as podemos considerar alternativamente, constatando conduzirem ambas ao mesmo resultado de procedência da acção). (1) Uma primeira vertente de enquadramento estrutura-se em função da circunstância de o Expropriante ter ocupado e transferido para a respectiva dominialidade mais área do que aquela que efectivamente pagou aos Expropriados (ter, pois, dizendo o mesmo de outra forma, ficado com área cujo valor não pagou a esses Expropriados). (2) Uma outra vertente de enquadramento jurídico – em certo sentido alternativa à primeira – referida ao comportamento do Expropriante ao alterar o teor do contrato efectivamente negociado (1212 m2 a €19,95/m2), unilateralmente, contra a presumível vontade do outro contraente, gerando neste danos patrimoniais decorrentes desse comportamento.

            2.3.1. Na primeira vertente, a que corresponde à verdadeira e operante ratio decidendi da Sentença apelada, valem as regras atinentes ao pagamento da justa indemnização, no sentido em que este pressuposto da extinção coactiva do direito de propriedade (é ao que corresponde a adjectivação expropriativa[24]) só é preenchido quando toda a área efectivamente expropriada é (efectivamente) paga aos Expropriados. Ora, se essa área é de 1212 m2 a ser paga a €19,95/m2, a indemnização deverá (terá de) corresponder a esse cálculo, fazendo-se incidir nesta espécie de readjectivação da indemnização (decorrente da errada consideração da área; é este o verdadeiro sentido da presente acção) todos os elementos relevantes. Foi um pouco isto o que a Sentença apelada fez: regularizou a indemnização a pagar em função dos elementos relevantes, sendo que estes estavam – estão – fixados no processo expropriativo.

            Poderíamos ainda encarar a situação, todavia, fazendo sobressair a circunstância de o Estado, por via das vicissitudes da expropriação por utilidade pública, se ter apropriado, através da intervenção no património dos AA., de mais terreno daquele que considerou no cálculo da indemnização efectivamente paga, sendo essa transferência em excesso, aplicada que foi toda a área ocupada na obra de utilidade pública, impossível de fazer reverter à situação original (à situação em que apenas seriam transferidos 928 m2).

            Ora, neste quadro, poderá actuar o instituto do enriquecimento sem causa [artigo 473º, nº 1 do Código Civil (CC)], assumido aqui na especial vertente chamada de enriquecimento por intervenção, traduzida esta numa apropriação em excesso quantitativo (não passível de reversão) de um bem alheio[25], que deve, por força dessa irreversibilidade, ser pago pelo valor efectivamente (e definitivamente) apropriado, sendo intuitivamente não autorizada, mesmo num contexto de venda, uma intervenção que deixe por pagar uma determinada parte do terreno apropriado em vista de uma expropriação. Chegaríamos, neste enquadramento (que os AA., aliás, não deixaram de equacionar na petição inicial, v. o artigo 65º desta transcrito na nota 5, supra) ao mesmo resultado da Sentença aqui impugnada: pagar toda a área expropriada ao preço acordado, a €19,95/m2.

            2.3.2. Ao mesmo resultado chegaríamos conferindo ênfase desta feita à incidência correspondente à alteração unilateral não negociada da área indicada (e paga) no auto de expropriação amigável, tratando esta incidência comportamental do ora Apelante no quadro da responsabilidade pré-contratual, com base no artigo 227º do CC. Vale a este respeito a configuração do acordo entre expropriado e expropriante no quadro da fase arbitral necessária, aquilo que o Código das Expropriações chama, no respectivo artigo 11º, aquisição por via de direito privado, como envolvendo a celebração de um contrato entre os interessados, por via do qual se processa a transferência do bem objecto da expropriação para a dominialidade pública.

            Ora, situando-se essa aquisição, como aqui sucede, no âmbito da fase arbitral necessária do processo expropriativo, designadamente depois da realização da vistoria ad perpetuam rei memoriam, colhe um especial valor a circunstância dessa via contratual visar prevenir um litígio que se expressaria, em última análise, para além da decisão arbitral própria dessa fase (da decisão prevista no artigo 49º do CE), no recurso para Tribunal nos termos do artigo 52º do CE. Esta configuração do acordo entre o expropriado e o expropriante – verdadeira forma de evitação de um litígio judicial correspondente a uma fase da adjectivação expropriativa em curso – confere-lhe, no âmbito de uma caracterização contratual, a feição de um contrato de transacção, nos termos em que este está previsto no artigo 1248º do CC[26]. Seja como for, nesta referenciação contratual da aquisição por via de direito privado, sempre poderíamos encarar o acordo de expropriação como correspondendo, fundamentalmente, a um contrato de compra e venda da parcela expropriada celebrado entre os Expropriados e a entidade Expropriante.

            É neste quadro – isto é, num quadro contratual – que tem sentido a convocação, face aos factos provados, através dos quais captamos o comportamento do R., enquanto entidade Expropriante (enquanto contraente ostensivamente mais forte[27]), alterando unilateralmente o contrato nos termos que estavam intuitivamente acordados, em função do teor da vistoria, e induzindo uma “aceitação” pouco consentânea com um dever de lealdade, é neste quadro, dizíamos, que adquire sentido a referência ao artigo 227º do CC e ao instituto da culpa na formação dos contratos. Interessa aqui a injunção comportamental – da qual o R. fez notório descaso – expressa no nº 1 desse artigo 227º: “[q]uem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.     No que interessa aos factos (ao comportamento do R.) aqui em causa, sublinhamos a importância que no contexto da responsabilidade pré-contratual adquirem os chamados deveres de lealdade, inibindo estes os contraentes de comportamentos, no iter conducente ao contrato, que determinem danos à outra parte, abrangendo a frustração de legítimas expectativas desta relativamente à existência e conteúdo (o conteúdo efectivamente acordado) do contrato[28]. Ora, sendo evidente que o acordo negocial com o Expropriante se formou aqui, por banda dos Expropriados, por referência à área da parcela referida no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam e com base no outro auto que atesta a transferência para o Estado da posse dessa mesma área (1212 m2), a redução unilateral posterior dessa área (num contexto de confusão criada pela própria entidade Expropriante), como pressuposto do valor a pagar, frustra (frustrou) legítimas expectativas dos Expropriados, conduzindo a uma situação que, globalmente encarada, reduz o valor da indemnização intuída como a correspondente àquela parcela. A indemnização a considerar aqui deve, pois, reintegrar os AA. pelo valor correspondente a uma valorização de €19,95/m2, por 1212 m2, sendo por esta via que actuará neste caso a indemnização por responsabilidade pré-contratual, restabelecendo a situação alterada pelo comportamento lesivo do Expropriante no iter conducente ao contrato.

            2.4. Enfim, apreciados os factos e integrados estes por qualquer das formas equacionadas neste Acórdão, resulta existir um dever de indemnizar por parte do R., como entidade Expropriante, cuja medida corresponde, em qualquer dos casos, ao valor que seria pago – devia ter sido pago numa relação expropriativa pautada pela lisura procedimental – por uma expropriação de 1212 m2 com base no valor de €19,95 por cada m2.

            Corresponde este resultado, pois, à total improcedência do recurso. É o que importará declarar a culminar este Acórdão.

2.5. Sumário elaborado pelo relator:
I – Numa expropriação o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam e o auto de posse administrativa, ao fixarem uma determinada área como correspondente à da parcela expropriada, fixam os pressupostos de facto dessa expropriação, no sentido em que estes são entendidos como relevantes pelas partes no processo expropriativo subsequente, designadamente pelos expropriados, para a fixação da indemnização devida pela expropriação;
II – A vontade negocial dos expropriados, caso a expropriação se realize por acordo subsequente ao auto de vistoria e com base nos dados dele constantes, forma-se nesses termos, concretamente quanto à extensão da área que será objecto de expropriação;
III – Assim, alterando a expropriante, unilateralmente, a área expropriada no instrumento consubstanciador do acordo com o expropriado (no designado auto de expropriação amigável), contra o teor do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, está a modificar os termos pressupostos pelo expropriado nesse acordo com o expropriante, carecendo essa alteração de assentimento do expropriado;
IV – A aquisição do bem expropriado pela via de direito privado, enquanto forma específica de realizar a expropriação por acordo (artigo 11º do CE), configura-se essencialmente como celebração de um contrato de transacção (artigo 1248º do CC) entre expropriante e expropriado, funcionando como forma de evitação do litígio perspectivado pela adjectivação expropriativa na falta desse acordo;
V – Relativamente a este acordo de transacção, a alteração da área expropriada, efectuada pelo expropriante nos termos descritos em III deste sumário, conduzirá a uma situação de culpa in contrahendo do expropriante (artigo 227º do CC) se este obtém a subscrição do acordo expropriativo pelo expropriado na convicção de estar em causa – quando realmente não está – a área expropriada indicada no auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam;
VI – Em última análise, a transferência irreversível para a dominialidade do Estado, por via da intervenção expropriativa, de mais área de terreno que a considerada na indemnização conduz a uma situação de enriquecimento sem causa, na forma de enriquecimento por intervenção (artigo 473º, nº 1 do CC), gerando a obrigação de indemnizar pela área efectivamente ocupada com a expropriação. 

III – Decisão

            3. Face ao exposto, na improcedência do recurso, decide-se confirmar a Sentença apelada.

            Custas a cargo do Apelante.

 (J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)

 

***


[1] Esta data (a data da propositura da presente acção) marca a aplicação a esta instância de recurso do regime processual anterior à reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Note-se, aliás, que, por essa mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil doravante citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo mencionado DL 303/2007, se refere à versão anterior à introduzida por este Diploma.
[2] É um pouco em torno deste advérbio de modo – apenas me expropriaram 982 m2 a €19,95 m2, quando estava à espera de ver expropriados 1212 m2 a esse valor – que os AA. constroem a presente acção, embora o argumentário por eles empregue seja compatível com a asserção de lhes terem sido efectivamente retirados (ocupados) pela R. os 1212 m2., caso em que o valor aqui peticionado se referiria à realidade da expropriação realizada pela R.
[3] Referem-se os AA. ao “auto de expropriação amigável” de fls. 34/35.
[4] Interessam à cabal compreensão da essência do litígio, com reflexo nestes pedidos, os seguintes trechos da petição inicial:
“[…]
62º
[A] área aí mencionada [no “auto de expropriação amigável”] não corresponde, de facto, com o verificado junto da parcela em epígrafe (pois a área que veio a ser efectivamente utilizada foi a que foi medida e delimitada aquando da vistoria ad perpetuam rei memoriam).
63º
Mais se acrescenta, nos termos do artigo 37º, nº 2, alínea a) do Código das Expropriações, por remissão do artigo 73º, nº 1 do mesmo Diploma legal, que do auto ou escritura de expropriação amigável devem constar a indemnização acordada e a forma de pagamento.
64º
Ora, no processo expropriativo que aqui se discute, o único acordo dado a conhecer aos AA. foi o relativo a 1212 m2 (área que veio a ser efectivamente utilizada foi a que foi medida e delimitada aquando da vistoria ad perpetuam rei memoriam).
65º
Por fim, e subsidiariamente, caso falhem os enquadramentos legais atrás referidos, sempre deverá a R. ser condenada com base no enriquecimento sem causa (cfr. artigo 473º do Código Civil).
[…]”.
Note-se que, anteriormente, os AA. haviam configurado juridicamente a obrigação atribuída ao R., de lhes satisfazer os €5.664,02, no quadro da responsabilidade civil extracontratual, artigo 483º do Código Civil (artigos 53º a 55º da p.i.).
[5] É interessante reter aqui, porque expressa exactamente a posição do R., o seguinte trecho da contestação:
“[…]
16. Como se poderá constatar da planta parcelar junta aos autos, tais parcelas assumem a configuração de estreitas faixas longitudinais de terreno.
17. Por outro lado, face às características presentes e identificáveis no local, as mesmas dispunham de estremas de difícil determinação, o que importava constrangimentos na correcta fixação dos seus limites.
18. Assim, uma área inicialmente contabilizada em 532 m2, foi, numa primeira fase, corrigida para 1212 m2, conforme aliás consta da respectiva vistoria ad perpetuam rei memoriam.
19. Posteriormente, um dos funcionários da … informou os serviços da EP, que a área da parcela em causa corresponderia, efectivamente, a 928 m2.
20. Sendo que tal facto resultaria de acordo quanto à verdadeira localização das estremas dos prédios confinantes, estabelecido com todos os respectivos proprietários,
21. E do qual havia sido dado conhecimento ao representante dos expropriados.
[…]”.
[6] Aqui ocorreram, em rigor, dois julgamentos, mas só uma Sentença: o primeiro julgamento originou as respostas documentadas a fls. 324/326 e o recurso decidido por esta Relação a fls. 371/377, que determinou a realização (negada pelo Tribunal a quo) de uma segunda perícia, sendo que este recurso, em função do efeito que lhe foi fixado a fls. 331/332 (efeito suspensivo da marcha do processo), bloqueou a prolação de Sentença: decidido o recurso, realizada, pois, a segunda perícia – esta induziu, em rigor, um novo julgamento na sua fase final –, foi proferida a Sentença de fls. 490/494 vº que corresponde à decisão aqui apelada.
[7] Aqui se transcrevem os trechos expositivos da Sentença que, directamente, justificaram este resultado:
“[…]

Com a presente acção pretendem os AA obter a declaração dos concretos m2 expropriados da sua parcela com a consequente condenação da Ré no pagamento de uma indemnização correspondente aos m2 do prédio que efectivamente expropriaram/ocuparam.
[…]

Ademais, também se apurou que rectificação para os 928m2 ocorreu sem que estivesse presente o procurador dos AA ou qualquer interessado (B’) e que aos AA ou ao seu procurador não foi dado pela Ré conhecimento da realização de outras medições/rectificações (C’).

Tal actuação da Ré, viola as disposições legais que impõem o pagamento da justa indemnização, sendo por isso susceptível de a fazer incorrer em responsabilidade civil extracontratual (art.º 483 e ss do CC). Na verdade a Ré, a partir de um determinado momento fez crer nos AA que a parcela a expropriar era de 1212m2, sendo tal medida a que ficou a constar do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam. Aquando da assinatura do auto de expropriação do mesmo não constava a área a expropriar, sendo que o valor pago também não correspondia á área daquela parcela.

Qualquer actuação por parte da Ré da área a expropriar implicava a sua comunicação aos AA para, que o processo pudesse correr de forma clara e transparente.

A actuação da Ré violou as normas de correcção, transparência e lisura que devem nortear os processos, mormente os de expropriação, onde são postos em causa os interesses dos particulares, que se vêem confrontados com decisões unilaterais do Estado em expropria os seus bens, ficando apenas com o direito de reclamar/exigir o valor da justa indemnização.

É manifesto a actuação negligente da Ré, na medida em que não informou os AA de qualquer alteração de área, pretendo passar incólume em face da desconformidade da área.
[…]

Pelo que se impõe que a Ré restabeleça a verdade dos factos e proceda ao pagamento aos AA do valor total da parcela concretamente expropriada, correspondente aos € 1211m2, com a consequente rectificação do auto de expropriação e do respectivo registo. Temos, assim, que procede na integra a presente acção.
[…]”.
[8] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[9] Mera opinião, que vale o que vale qualquer opinião e não vale como juízo pericial. Esta Relação, por exemplo, analisando todo o processo fica com a impressão (opinião, se preferirmos dizer as coisas assim) de ter existido má fé da entidade Expropriante ao alterar o texto de um “acordo” contra o sentido expresso nos documentos base desse acordo. Mais ainda, quando as condições dessa alteração são apercebidas nos termos em que a testemunha …, o irmão da A., procurador dos AA. em toda a negociação da expropriação.
[10] Esclarecimentos que não foram gravados e são, por isso, inacessíveis a este Tribunal da Relação; note-se que o Apelante não suscitou qualquer questão a respeito dessa não gravação e esteve presente no acto que consubstancia essa incidência. Vale aqui, para este Tribunal da Relação, tão-somente, a base escrita da segunda perícia.
[11] Sendo que, “em tudo isto”, também vale a valoração pelo julgador da posição maioritária expressa na perícia, designadamente, quando esta posição tem a seu favor, como aqui sucede, o voto do perito designado pelo Tribunal. Trata-se, este, obviamente de um critério de decisão racional no quadro da valoração de elementos de incidência técnica pelo julgador.
[12] Como, aliás, já havia sido justamente observado no relatório da primeira perícia (v. fls. 246/247).
[13] Ou que, pelo menos não é referenciável ao mesmo momento das outras duas; estas, se são contemporâneas da última, porque não foram usadas logo pelo Expropriante na vistoria ou na posse administrativa?
[14] Embora, como referiu a testemunha …, com os trabalhos de campo respectivos, efectuados pelo Engº …, presenciados por todos os proprietários e pelos confinantes (estamos a referir elementos relatados por esta testemunha no seu depoimento).
[15] Como indicaram as testemunhas …, profundos conhecedores, desde sempre, do prédio matriz do aqui em causa (este sempre pertenceu à família e foi a divisão de tal prédio que gerou as diversas parcelas aqui expropriadas).
[16] Note-se que o perito da Expropriante na segunda perícia, na sua posição discrepante da maioria a fls. 445, não diz que existiu um desvio de 0,5 mm, diz que bastava ter havido esse desvio: “[…] basta um desvio de 0,5 mm na medição (mesmo a grossura da linha), para haver um erro de área em 100 m2 ou 200 m2”.
[17] Como refere Salvador da Costa, anotando o artigo 21º do CE:
“[…]
É uma diligência [a vistoria ad perpetuam rei memoriam] materializada em documento particular, sob a forma de relatório, visa salvaguardar o interesse das partes na determinação da justa indemnização, com a especial relevância que lhe advém de constituir o registo dos elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento interesse para o julgamento da causa […].
O relevo probatório desta prova pericial decorre da impossibilidade, em regra, de uma nova apreciação dos factos materiais a que se reporta, em virtude da transformação neles ocorrida.
[…]
Resulta, pois, deste normativo o conteúdo do relatório da vistoria ad perpetuam rei memoriam, legalmente enunciado, por terem sido considerados idóneos e relevantes, sobretudo no caso da alteração da estrutura dos bens a expropriar na sequência de obras realizadas após a investidura na posse administrativa da entidade beneficiária da expropriação, para a prolação do acórdão arbitral ou da sentença final.
[…]” (Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores. Anotados e Comentados, Coimbra, 2010, p. 133 e p. 136).
[18] E não nos termos que, credivelmente, nos foram relatados pela testemunha …: obtendo deste, à pressa – e no dia em que convocaram muitos outros expropriados –, uma assinatura contra a entrega de um cheque.
[19]  Que teve o sentido da celebração de um contrato de transacção (v. o artigo 1248º do CC e o item 2.3.2., infra).
[20] Contra o que diz o documento, garante a testemunha … que não existiu leitura do mesmo (“foi tudo à pressa”) e nem sequer se encontrava presente a outra pessoa indicada no auto. Interessa a este respeito o depoimento da testemunha … (a pessoa que assina o auto, v. fls. 35 vº), que referiu não ter memória da situação, admitindo que, em “meia dúzia de casos”, possa ter sido dado como presente sem o estar (“arranjámos umas instalações em open space em Ílhavo para meter os expropriados que eram muitos”), remetendo para uma outra empresa (através de um tal Engº …) um eventual contacto com os Expropriados, mas desconhece esse elemento em concreto, não sabendo se essa empresa (e esse Engenheiro) procedeu assim, não o pode afirmar. A Engª. …, a pessoa que teria realmente feito a entrega do auto de expropriação ao procurador dos AA. referiu, embora também sem lembrança do caso concreto, que habitualmente lê e explica os autos de expropriação; este depoimento deve ser entendido, porém, à luz da circunstância de o auto referir como presente quem não estaria (ela própria o admite) e de ser notório que a testemunha se foi defendendo, nos aspectos menos claros da situação, com referências vagas: “eu penso que sim…”, “eu creio que sim…”, embora tenha confirmado que, “logo depois”, “o Sr. … se lhe queixou que a área era menor que a acordada…”, não tendo explicação para esta circunstância.
[21] Este, depondo como testemunha (nem sempre respeitosamente com os Advogados e com o próprio Tribunal, que teve uma paciência e tolerância enorme com o depoimento desta testemunha), confirmou que a sua vistoria determinou a área de 1212 m2, fundamentalmente com base, segundo disse (era do que se lembrava), nos elementos fornecidos pela entidade Expropriante. Note-se que a testemunha inquirida a seguir a esta, … (antigo vizinho numa das estremas), que assistiu às medições feitas, em Novembro de 2002, “pelos dois engenheiros” afirmou peremptoriamente que estes (o que inclui o Engº …) mediu nessa ocasião o terreno a expropriar e que usava nessa circunstancia uma fita métrica e um “aparelho”.
[22] Como referimos acima (nota 20) a expropriação amigável faz-se através da celebração de contratos e sujeita-se ao regime da celebração e demais contingências destes.
[23] E até é sintomático que esta testemunha tenha acabado por dizer que o Procurador dos AA. exigiu um documento escrito para entregar aos representados e que ele não o entregou, “porque não era hábito naquela fase muito avançada fazer ofícios…” – tratava-se, e trata-se, todavia, de um mau hábito…e, mais do que isso, de um hábito absurdo.
[24]A especificidade da indemnização por expropriação reside na sua caracterização teleológica por referência à ideia de recomposição da igualdade afectada pelo acto de apropriação forçada (extinção coactiva) pelo Estado de um concreto direito de propriedade alheio” (trecho constante do sumário do Acórdão desta Relação de 20/06/2012, proferido pelo ora relator no processo nº 97/06.0TBGVA.C2, disponível, directamente, na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/54d356cc6ccf4a8a80257a2f0051b3b).
[25] Valem neste enquadramento as seguintes considerações tecidas por Luís Manuel Teles de Menezes Leitão a respeito dessa vertente do enriquecimento sem causa:
“[…]
Ao referir-se apenas a situações de enriquecimento por prestação, o artigo 473º, nº 2 [CC], omite completamente a situação de alguém obter um enriquecimento através da ingerência não autorizada no património alheio, como sucederá nos casos de uso, consumo, fruição ou disposição de bens alheios. Parece, no entanto, claro que nessa situação não deixa de ocorrer uma hipótese de enriquecimento sem causa, que aliás, a doutrina há muito tem qualificado como enriquecimento por intervenção […]. Daí que, com base na cláusula geral do artigo 473º, nº 1, deva ser atribuída nesses casos ao titular uma pretensão à restituição do enriquecimento sem causa, sempre que essa pretensão não seja excluída pela aplicação de outro regime jurídico. O fim dessa pretensão será a recuperação da vantagem patrimonial obtida pelo interventor, o que ocorrerá sempre que, de acordo com a repartição dos bens efectuada pela ordem jurídica, essa vantagem se considere como pertencente ao titular do direito.
As hipóteses mais comuns de enriquecimento por intervenção reconduzem-se às intervenções em direitos absolutos, como sejam os direitos reais […].
[…]” (Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 404/405).
[26] Tenha-se presente que, nos termos do artigo 1250º do CC, o contrato de transacção, está sujeito a requisitos de forma absolutamente compatíveis com a forma aqui empregue no “auto de expropriação amigável” (v., sobre o contrato de transacção, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 591/594).
[27] Detentor da posição que, com ou sem acordo, prevalecerá e é, desde logo, realizada no seu efeito prático logo com a transferência do bem para a dominialidade pública. Isto além de ser o expropriante o contraente beneficiado pela assimetria informacional característica da situação.
[28] Neste sentido, corresponde ao desencadear de uma situação relevante de culpa in contrahendo, o comportamento que, conduzindo à “[…] celebração válida ou eficaz do contrato, [ocorre] em termos tais que o modo como foi celebrado gere danos para uma das partes” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, cit. p. 337/378).