Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
507/10.1T2AVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO FORMAL
PROVA PERICIAL
ADMISSIBILIDADE
RECURSO
NULIDADE PROCESSUAL
INQUISITÓRIO
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV - AVEIRO - JGIC - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 411, 547, 630, 644 CPC, 62 CRP
Sumário: 1.- O principio da adequação formal, consagrado no art. 547.º CPC, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo.

2.- Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art. 4.°-2 da Lei n.º 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado ás especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.

3.- Do n.° 2 do art. 630 CPC extrai-se a seguinte regra: todas as decisões judiciais relativas à simplificação ou agilização processual, ou à adequação formal, ou às regras gerais da nulidade dos actos processuais admitem recurso quando contendam quer com os princípios da igualdade ou do contraditório, quer com a aquisição processual de factos, quer com a admissibilidade de meios probatórios.

4.- A decisão proferida no uso legal de um poder discricionário não é recorrível com fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende seja atingido. Mas já o será quando, como na situação sub judice, a avaliação do imóvel se enquadra na prova pericial, estando na presença de um meio de prova, admissível de recurso, nos termos do art. 630.°, n.° 2 CPC, tanto assim que emerge do disposto no art. 644°, n.°2, aI. d) do CPC a consagração expressa de ser admissível recurso de apelação de despacho de rejeição de um meio de prova.

5.- Nulidades do processo «são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais». Estes desvios de carácter formal podem revelar-se seja através da prática de um acto proibido, seja na omissão de um acto prescrito na lei, seja ainda na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

6.- O art. 411 CPC, consagrador do princípio do inquisitório determina incumbir ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer. O juiz, ao não ordenar a diligência, viola o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, tem de ser arguida a nulidade de tal omissão.

7.- Garantindo somente o direito de propriedade, a Constituição ( art. 62 ) não reconhece directamente outros direitos patrimoniais, previstos e regulados na lei civil e comercial (direito de usufruto, por exemplo). Mas isso não quer dizer que os negue; simplesmente deixou a sua protecção e o seu regime para a lei (art. 16°-1) e para a sua liberdade de conformação, não se justificando as tentativas feitas no sentido de os subsumir num conceito amplo, descaracterizado e fragmentado do direito de propriedade.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

J (…)S, R. melhor identificado nos autos em epigrafe referenciados notificado do despacho que indeferiu a nova avaliação do imóvel com a refª 21940991, não se conformando com o mesmo, veio dele interpor RECURSO DE APELAÇÃO - a subir em separado e imediatamente, com efeitos meramente devolutivos, nos termos do disposto nos arts. 627°, n.°1, 638.°, 644°, n.°2, al. d), 645°, n°2, 647.°, n°1 todos do CPC, requerendo o conhecimento da inconstitucionalidade, invocada por violação do art. 62.° da CRP, posto que se o imóvel vier a ser vendido a um preço inferior ao seu valor real, por falta de uma avaliação crível, o R. ficará privado de uma parte do seu património, vendo desta forma a sua propriedade privada crassamente afectada; Mais se vem arguir a nulidade por omissão, nos termos do 195.° CPC, uma vez que o Tribunal a quo, ao não ordenar a diligência, violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação até oficiosa -, alegando e concluindo que:

A- Nos termos da lei processual civil as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso, assim, “são recorríveis as decisões do juiz que violem qualquer preceito legal, ainda que, na aparência, se destinem apenas a regular os termos normais do processo.”

B- O douto despacho fundamenta o indeferimento com base na possibilidade da adequação formal prevista no art. 547.° CPC.

C- Salvo melhor e douta opinião, a avaliação do imóvel enquadra-se na prova pericial, pelo que estamos na presença de um meio de prova sendo admissível recurso, nos termos do art. 630.°, n.° 2 CPC.

D- O art. 644°, n.°2, aI. d) do CPC consagra de forma expressa que é admissível recurso de apelação de despacho de rejeição de um meio de prova.

E- Recordemos que a presente demanda deu entrada em juízo no dia 11/03/10, com o seguinte pedido: “Nestes termos, e nos melhores de Direito, por V Exa doutamente supridos, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, em consequência, fixadas as quotas da compropriedade, na estrita proporção dos valores despendidos por cada uma das partes e decretada a divisão da coisa comum entre Autor e Réus.”

E - Ora versando a demanda sobre um imóvel é deveras importante ambas as partes estarem conscientes do valor deste, pois traduz a “utilidade económica do pedido”.

G — No que toca à avaliação do imóvel, tendo em conta que a última e única avaliação do imóvel data de 13 de julho de 2012, e que o Exmo. Sr. perito conclui da seguinte forma: “face aos valores obtidos pelos métodos de avaliação utilizados e devido à grave crise que o sector imobiliário atravessa, conclui-se que o valor da moradia (terreno incluído), sem quaisquer ónus é de: 150.0000 € (cento e cinquenta mil euros).”

H- Dado o tempo volvido e tendo em consideração que a idade do prédio que influi no índice de vetustez, e que o índice de qualidade e conforto se pode ter alterado e que o mercado imobiliário está constantemente sujeito a flutuações, o valor actual do bem será, certamente, um valor diferente daquele que consta dos autos

1-O R. a 26/03/14 deu entrada de um requerimento com o seguinte teor: “J (…), melhor identificado nos autos em epígrafe referenciados, ate ndendo ao lapso de tempo já volvido, requer muito respeitosamente, a avaliação actual do imóvel, não apenas por ser imprescindível para a boa decisão da presente causa, para o desiderato a que a mesma se destina, mas também, por poder ser útil a fim de um eventual acordo na presente instância.”

J- O requerido pelo R. foi indeferido pelo despacho datado de 02/05/14 com a refª 21904991, com o fundamento seguinte: “dentro das possibilidades de adequação formal do processo que a lei permite (cf. o artigo 547.° do Código de Processo Civil) não considero que, nesta data, tal diligência se justifique.”

L-Apesar do douto despacho se basear nas possibilidades da adequação formal prevista no ad. 547.° CPC, não podemos deixar de frisar que estamos perante um meio probatório 1 sendo, como tal admissível recurso.

M- E como decorre do princípio do inquisitório, consagrado no art. 411.° do CPC, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.”

N- Neste sentido, o juiz deve ordenar as diligências indispensáveis para que o processo siga os seus trâmites.

O-Assim, o referido artigo consagra um poder-dever do juiz, que o douto acórdão do STJ, proc. n.° 325/00, de 11/01/2001 caracterizou da seguinte forma ‘uns entendem como o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa e outros como um poder discricionário, tendente a realizar uma função meramente supletiva e residual do tribunal em sede de produção de provas, como um poder autónomo de indagação oficiosa”.

P- Tendo em conta que o Tribunal a quo, ao não ordenar a diligência, violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, estamos perante uma nulidade por omissão que se deixa expressamente arguida para todos os devidos efeitos legais.

Q- A avaliação do imóvel foi requerida pelo R. e afigura-se essencial para a justa composição do litígio, uma vez que, se a diligência não for realizada agora e dado o valor da presente acção (52.512.21€), sendo admissível recuso até ao STJ podemos apenas ter o valor do imóvel na data do trânsito em julgado da acção e não na data da decisão em 1ª instância, o que será manifestamente desfasado da realidade.

R- Acresce que, quanto mais tarde for realizada tal diligência, mais deturpado será o valor do imóvel, e consequentemente menor será a sua conformidade com a realidade, daí existir uma necessidade imperiosa da avaliação do imóvel ao tempo da venda e não na data do trânsito em julgado da decisão.

S- A diligência requerida afigura-se não meramente útil, mas essencial para a justa composição do litígio, uma vez que, na eventualidade de o imóvel ser vendido por um preço inferior devido à inexistência de uma avaliação do imóvel críveI, a um terceiro de boa-fé, não se poderá, posteriormente exigir o pagamento de um montante superior em consequência de uma avaliação ao imóvel tardia.

T- Neste caso estaremos perante uma intromissão e eventual violação do direito de propriedade privada das partes consagrado constitucionalmente no art. 62.° da CRP.

U- Uma vez que, “o âmbito do direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: a) a liberdade de adquirir bens; b) a liberdade de usar e fruir dos bens que se é proprietário; c) liberdade de os transmitir; d) o direito de não ser privado deles.” (J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP anotada, Vol.l, p802).

V- Assumindo a natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, compartilhando por isso do respectivo regime especifico, nomeadamente para efeito do regime de restrições.

X- Neste sentido, da inconstitucionalidade, se o imóvel vier a ser vendido a um preço inferior ao seu valor real, por falta de uma avaliação crível, o R. ficará privado de uma parte do seu património, vendo desta forma a sua propriedade privada crassamente afectada.

Z- Pelo que padece o despacho de uma inconstitucionalidade que se deixa expressamente arguida e que se requer que o Tribunal ad quem a conheça.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, que V. Excelências mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder — por inteiramente provado e em conformidade ser ordenada nova avaliação ao imóvel, nos termos requeridos, e imediatamente com as necessárias e advindas consequências legais. Mais se requer o conhecimento da inconstitucionalidade por violação do art. 62.° da CRP, com as advindas consequências legais.

Não foram produzidas contra alegações.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa a materialidade invocada de que o elemento narrativo dos Autos dá conta, designadamente:

- Na presente ação foi proferida sentença, a fls. 340 e segs., julgando a ação parcialmente procedente, fixando os quinhões das partes e declarando que o imóvel em causa nos autos é indivisível.

- Realizou-se a conferência de interessados, não tendo havido acordo quanto à adjudicação do imóvel a uma das partes.

- Decidiu-se proceder à venda do imóvel, tendo para esse efeito sido realizada perícia de avaliação do imóvel — cf. fls. 354 e segs.

- O requerido veio solicitar nova avaliação do imóvel — cf. fls. 428 e segs.

- O tribunal indeferiu esse requerimento a pretexto de:

. falta de fundamento legal e porque, mesmo consideradas as possibilidades legais de adequação formal do processo, não se justificar tal diligência — cf. fls. 433 [o requerido pelo R. foi indeferido pelo despacho datado de 02/05/14 com a refª 21904991, com o fundamento seguinte: “dentro das possibilidades de adequação formal do processo que a lei permite (cf. o artigo 547.° do Código de Processo Civil) não considero que, nesta data, tal diligência se justifique.”]

;

. o requerido veio recorrer de tal despacho — cf. fls. 435 e segs;

. já terminou o prazo de contraditório, pelo que cumpre proferir o despacho a que alude o artigo 641.º do Código de Processo Civil;

. está em causa um despacho proferido depois da decisão final, previsto na alinea g) do n.° 2 do artigo 644.° do Código de Processo Civil, e não um despacho de rejeição de meio de prova, previsto na alínea d) do mesmo artigo (cf. fls. 72 dos Autos).

Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2 do art. 608°, do mesmo Código.

*

Das conclusões -

das quais haverá de dizer-se - em nome do rigor que sempre há que colocar na hipótese de trabalho judiciário sub judice -, que desenvolvem de forma profusa e tautológica pontos de apreciação, em desrespeito pelo disposto no art. 639º NCPC sem levar em devida conta que, justamente, por conclusões se entendem “as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (Alberto dos Reis, CPC Anot., 5.°-359). E, sobretudo, que «as conclusões consistem na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso. Com mais frequência do que seria para desejar vê-se, na prática, os recorrentes indicarem como conclusões, o efeito jurídico que pretendem obter com o provimento do recurso, e, às vezes, até com a procedência da acção. Mas o erro é tão manifesto que não merece a pena insistir neste assunto. Se as conclusões se destinam a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e os seus fundamentos, pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido, é claro que tudo o que fique para aquém ou para além deste objectivo é deficiente ou impertinente (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 30, 299).

Com efeito, ao concluir-se nas alegações dum recurso devem indicar-se, com um mínimo de precisão e de um modo directo, claro e conciso, as razões ou fundamentos da discordância com a decisão recorrida. Cabe a quem tem que apreciar o recurso, desde que se esteja perante uma anormal e injustificada prolixidade na explanação das conclusões, o juízo decisivo quanto à definição do limite do dever de concisão imposto pelo n.° 1 do art. 690.°, do Cód. Proc. Civil (639º NCPC) (Ac. STJ de 29.2.2000: Sumários, 38.°-53).

As conclusões das alegações de recurso são proposições sintéticas onde se sumaria a exposição analítica do corpo das alegações. O recorrente, depois de elaborar mais ou menos longamente o rol das suas razões de facto e de direito, terá - a final - que apresentar um índice das questões, das razões e do direito que lhe assiste. Daqui resulta que as conclusões terão de ser, formalmente, bem diversas da exposição de motivos que as antecede; a não ser assim, corre-se o risco de, repetindo as conclusões formalmente a exposição anterior, ficar por delimitar o objecto do recurso (Ac. STJ, de 6.4.2000: Sumários, 40.°-25);

- emergem, não obstante, as seguintes questões elencadas, na sua formulação originária, de parte, a considerar na sua própria matriz:

I.

B- O despacho fundamenta o indeferimento com base na possibilidade da adequação formal prevista no art. 547.° CPC.

C- Salvo melhor opinião, a avaliação do imóvel enquadra-se na prova pericial, pelo que estamos na presença de um meio de prova sendo admissível recurso, nos termos do art. 630.°, n.° 2 CPC.

D- O art. 644°, n.°2, aI. d) do CPC consagra de forma expressa que é admissível recurso de apelação de despacho de rejeição de um meio de prova.

Apreciando, diga-se que as decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos deste art. 547.º, não admitem recurso, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (n.° 2 do art. 630.º).

Naturalmente que o principio da adequação formal, consagrado neste artigo, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo. Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art. 4.°-2 da Lei n.º 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado ás especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.

Como é bom de ver, a ideia de adequação formal exige um juiz com uma perspectiva crítica das regras procedimentais, um juiz activo, um juiz empenhado em que o rito processual assegure os fins do processo civil, cumprindo-se assim a instrumentalidade do direito adjectivo face ao direito substantivo.

Ainda a propósito da adequação formal, é de assinalar que a actividade desenvolvida pelo juiz neste âmbito não deve ser tomada como o exercício de um simples poder outorgado ao juiz, outrossim como o desempenho de uma competência que lhe é conferida (para ser exercida) de modo a assegurar um processo equitativo (JOAO CORREIA, PAULO PIMENTA, SERGIO CASTANHEIRA, Introdução ao Estudo e Aplicação do CPC de 2013, 2013, p. 65).

Por sua vez, o conceito de despacho de mero expediente e de despacho proferido no uso legal de um poder discricionário encontra-se fixado no n.° 4 do art. 152º, segundo o qual «os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes», ao passo que se consideram proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador».

Sendo que, do n.° 2 do art. 630º, se extrai a seguinte regra: todas as decisões judiciais relativas à simplificação ou agilização processual, ou à adequação formal, ou às regras gerais da nulidade dos actos processuais admitem recurso quando contendam quer com os princípios da igualdade ou do contraditório, quer com a aquisição processual de factos, quer com a admissibilidade de meios probatórios.

Os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário são aqueles que são determinados pelo próprio juiz livremente, sem quaisquer limitações subjectivas ou objectivas, ao abrigo de uma norma que lhe confira uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher, em seu prudente arbítrio e em atenção a um certo fim. Como regra, não há actos totalmente vinculados ou discricionários; os actos são vinculados em relação a certos aspectos e discricionários em relação a outros, sendo que estes últimos respeitam, em princípio, à liberdade de agir ou não agir, à decisão de praticar ou não o acto e à liberdade de ajuizar sobre a existência ou não dos pressupostos de facto de que a lei faça depender a faculdade de agir, além de outros.

A decisão proferida no uso legal de um poder discricionário não é recorrível com fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende seja atingido (Ac, STJ, de 5.3.2002, Agr. n.° 320/026.°: Sumários, 3/2002).

 Mas já o será quando, como na situação sub judice, a avaliação do imóvel se enquadra na prova pericial, estando na presença de um meio de prova, admissível de recurso, nos termos do art. 630.°, n.° 2 CPC. Tanto assim que emerge do disposto no art. 644°, n.°2, aI. d) do CPC a consagração expressa  de ser admissível recurso de apelação de despacho de rejeição de um meio de prova.

Em brevíssimo bosquejo retrospectivo, destaque-se a dominante apreciativa que se reconduzia, no essencial, a enunciado do seguinte jaez:

«no sistema “actual” de recorribilidade não autónoma diferida, o que pode ser impugnado no recurso que seja interposto da decisão final é uma decisão anterior, não podendo a parte aproveitar esse recurso para suscitar ex-novo uma qualquer questão que deveria ter colocado em momento anterior (art. 69l.° n’o 3 do CPC). Assim, no caso de nulidades cometidas na 1.ª instância, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação — e não a nulidade ela mesma. A perda do direito á impugnação por via da reclamação — v.g., por caducidade — importa a extinção do direito à impugnação por via do recurso ordinário.

 Isto só não é assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades que sejam de conhecimento oficioso e de que seja lícito conhecerem qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas, dado que estas últimas constituem objecto implícito do recurso, pelo podem ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido (art. 205.° n.° 3 do CPC) (Ac. RL, de 9.12.2010: CJ, 2010, 5.°-127).

Para efeitos de admissibilidade de recurso autónomo (art. 691.º, n.° 2, al.j) do CPC), os incidentes processuais são apenas aqueles que estão tipificados como tal no Código; tratam-se questões que surgem no processo, que se enxertam na acção e que merecem (e têm) uma tramitação mais cuidada (Ac. RE, de 20.12.20 12: Proc. 48821 /08.ITBPTM-B.E.dgsi.Net).

Do despacho que admite (ou não admite) um meio de prova, cabe recurso de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo (art. 691.º/2i) CPC (Ac. RP, de 4.3.2013: Proc. 6880/11.7TBMAI.P1. dgsi.Net).

Nos termos do art. 691.º, n.°’ 2, al. i), do CPC, o despacho de admissão ou de rejeição de meios de prova (v. g., o despacho que admite ou manda desentranhar determinados documentos) é imediatamente recorrível (Ac. RP, de 10.7.201 3 Proc. 1029/10.6TVPRT.P1. dgsi.Net)».

Do que assim se consagrava e perante o próprio elemento redactorial do actual art. 644º NCPC, pode, pois, também, concluir-se - como já se fazia em José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume 3.°, TOMO 1, 2.ª EDIÇÃO, p. 81 que «o despacho de admissão ou rejeição de meios de prova é também impugnável por apelação (ver os arts. 528, 532, 549-4, 552, 578, 612, 616, 641, 642, entre outros). A importância da prova para a decisão da matéria de facto explica a solução legal.

O que atribui resposta afirmativa às questões em I.

II.

L-Apesar do despacho se basear nas possibilidades da adequação formal prevista no art. 547.° CPC, estamos perante um meio probatório, sendo, como tal admissível recurso.

M- E como decorre do princípio do inquisitório, consagrado no art. 411.° do CPC, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.”

N- Neste sentido, o juiz deve ordenar as diligências indispensáveis para que o processo siga os seus trâmites.

P- Tendo em conta que o Tribunal a quo, ao não ordenar a diligência, violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, estamos perante uma nulidade por omissão que se deixa expressamente arguida para todos os devidos efeitos legais.

No referencial que vem de delinear-se, mantém, assim, actualidade o ensinamento de A. DOS REIS, Comentário, 2.°-507.°, quando escreve que “a arguíção da nulidade só seria admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho por interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”,

Existindo uma decisão que sancionou uma omissão geradora de nulidade, o conhecimento desta pode-se fazer através de recurso, mesmo que o prazo de arguição da nulidade já se tenha esgotado. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir será precisamente o recurso (Ac. RC, de 4.6.2000: BMJ, 496.°-314).

A propósito do prescrito no art. 201º CPC - regra geral sobre a nulidade dos actos (195º NCPC) -, escreve A. dos Reis (Com. 2.°-484): «O que  (neles) há de característico e frisante é a distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes. Praticando-se um acto que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção, mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se ver fica um destes cases: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». No segundo caso — continua o mesmo A. — «é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa».

Nulidades do processo «são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais» (Manuel de Andrade, Noções Bem, de Proc. Civil, 1956, pág. 165).

Estes desvios de carácter formal podem revelar-se seja através da prática de um acto proibido, seja na omissão de um acto prescrito na lei, seja ainda na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido (Manuel de Andrade, oh. cit., pág. 166, e Antunes Varela, Manual Proc. Civil, 1984, pág. 376).

O art. 411.°, consagrador do princípio do inquisitório determina incumbir ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer.

Reproduzindo este artigo literalmente o n.° 3 do anterior art. 265.°, na redacção do DL n.° 180/96, de 25-9, continua, pois, a consagrar um poder-dever do juiz, que uns entendem como o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa e outros como um poder discricionário, tendente a realizar uma função meramente supletiva e residual do tribunal em sede de produção de provas, como um poder autónomo de indagação oficiosa. Em todo o caso, pode entender-se, também, que esta disposição legal consagra um poder vinculado, susceptível de recurso, quando se refere “aos factos de que lhe é lícito conhecer”, o que seguramente pretende significar que o juiz pode ordenar diligências probatórias para o efeito de apurar a verdade, mas só dos factos articulados pelas partes (parte final do art. 664.º, do CPC – art. 5º NCPC) e controvertidos (art. 511°, n.° 1, do mesmo Código – 596º NCPC). O juiz, quando se pronuncia expressamente sobre a necessidade ou não de uma diligência oficiosa para o apuramento da verdade dos factos, ou pura e simplesmente a não ordena, actua no exercício de um poder discricionário, nos termos do n.° 4 do art. 156.º. do CPC (152º NCPC). Caso se entenda que o juiz, ao não ordenar a diligência, viola o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, tem de ser arguida a nulidade de tal omissão (Ac. STJ, P. n.° 3521/00, 1.ª, de 11.1.2001, Sumários, 47.°-11). O que aconteceu, no caso, através de proacção de parte e pela via (recursória) configurada.

Neste sentido, pois, o juiz deveria ter ordenado a diligência em causa (avaliação requerida no condicionalismo expresso), assim revelada indispensável para que o processo seguisse conformando rigor absoluto nos seus trâmites, à luz do que anteriormente se referiu e lhe haveria de servir de conformação.

O que, do mesmo modo, atribui resposta afirmativa às questões em I.

III.

S- A diligência requerida afigura-se não meramente útil, mas essencial para a justa composição do litígio, uma vez que, na eventualidade de o imóvel ser vendido por um preço inferior devido à inexistência de uma avaliação do imóvel críveI, a um terceiro de boa-fé, não se poderá, posteriormente exigir o pagamento de um montante superior em consequência de uma avaliação ao imóvel tardia.

T- Neste caso estaremos perante uma intromissão e eventual violação do direito de propriedade privada das partes consagrado constitucionalmente no art. 62.° da CRP.

X- Neste sentido, da inconstitucionalidade, se o imóvel vier a ser vendido a um preço inferior ao seu valor real, por falta de uma avaliação crível, o R. ficará privado de uma parte do seu património, vendo desta forma a sua propriedade privada crassamente afectada.

Reconduzindo este enunciado à sua identitária dimensão, que não poderá conformar hipérboles específicas, sempre se dirá que já o Ac. n.° 644/97 do Trib. Const., de 29.10.1997 (BMJ, 470.°-140), decidiu no sentido da admissibilidade do recurso de constitucionalidade tendo por objecto a questão de saber se o conceito de absoluta inutilidade, a que aludia o n.° 2 do art. 734° CPC, deveria, ou não, «abranger os casos em que a retenção do recurso (agravo) interposto — pela tramitação e encaminhamento do processo decorrente da manutenção provisória até ao momento da subida diferida do despacho recorrido — pode conduzir a uma frustração dos objectivos prosseguidos pelas partes na causa». A questão aqui perfilada ganha contornos que passam por esquisso com pontos noemáticos atinentes.

É que não se pode olvidar que o artigo 62.º da Constituição, ao garantir a todos o direito de propriedade e o direito «à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição», consagra fundamentalmente uma garantia fundamental da propriedade privada.

Efectivamente, esta garantia jusconstitucional corresponde, em rigor, ao conteúdo fundamental da regulamentação que se extrai do artigo 62.° É significativo, aliás, que, ao contrário da estrutura dualista dos preceitos constitucionais sobre direitos económicos, sociais e culturais, em que o reconhecimento do direito é assistido por urna lista mais ou menos extensa de incumbências do Estado-legislador ou do Estado-administração, o artigo 62.° não coloca o cerne do direito de propriedade na dependência de imposições legiferantes ou de outra natureza. Pelo contrário, enquanto projecção e instrumento da autonomia e do livre desenvolvimento das pessoas (JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, pág. 666), é a defesa da propriedade que ocupa um lugar central no texto constitucional: “no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano colectivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político” (Ac. n.° 421/09). A garantia constitucional da propriedade significa, neste sentido, que a uma posição jurídica de direito privado é associado um direito fundamental de defesa ou manutenção dessa posição (MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A justificação da propriedade privada, pág. 846).

Em coerência, “ainda que esteja colocado no título III da parte I da Constituição, o direito fundamental de propriedade bem poderia estar situado no título II da parte I, sem que isso importasse (salvo na desvitalização da componente prestacional) qualquer alteração substancial à essência, ao fundamento, à estrutura, ao conteúdo ou ao estatuto constitucional que cabe a essa figura (...). Ainda que esteja colocado no titulo III da parte I da Constituição, nenhuma hesitação relevante pode haver acerca da qualificação do direito fundamental de propriedade, em todas as suas principais componentes (...), na medida em que constitui uma expressão imediata da igual dignidade de todos os seres humanos e na medida em que representa um instrumento jurídico (tutelado em normas formalmente constitucionais) de realização da existência, da autonomia e do poder, protegendo o individuo contra ingerências (públicas e privadas) indevidas” (JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias, II, pág. 676). De resto, o direito fundamental de propriedade, nesta relevante vertente, tem uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias e, como tal, beneficia do regime aplicável aos direitos de liberdade (…).

Enfim, ainda que a normação não possa aniquilar ou afectar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da “propriedade (Ac. n.° 421/09), a verdade é que, sem prejuízo da necessidade de assegurar aos proprietários os direitos ou as faculdades elementares de aproveitamento pleno dos diferentes bens patrimoniais apropriáveis (v. g. através da consagração de direitos reais de propriedade, de direitos emergentes de patentes, de direitos de autor), a Constituição não garante especificamente os múltiplos tipos de direitos de carácter patrimonial existentes na ordem juridica portuguesa. Há uma garantia institucional da propriedade no sentido de que seria inconstitucional, por exemplo, a lei ordinária reduzir os direitos das pessoas sobre as coisas ao usufruto ou a outros direitos reais menores; a lei civil tem de conter um direito de propriedade com o feixe de poderes de uso, fruição e disposição que lhe são inerentes na tradição jurídica e cultural do nosso pais. Mas a Constituição não impõe a conservação deste ou daqueloutro direito em abstracto; não confirma os tipos de direitos reais e as categorias de outros direitos patrimoniais subsistentes à data da sua entrada em vigor, não tolhe o desaparecimento de quaisquer desses tipos ou figuras ou o aparecimento de novos tipos ou categorias. Uma coisa é o princípio da capacidade patrimonial privada ou da susceptibilidade de, salvo algumas excepções, os particulares serem titulares de direitos patrimoniais; outra coisa seria garantir todos os tipos de direitos patrimoniais que, com maior ou menor relevância e mais ou menos duradouramente, a normação ordinária tenha instituído ou venha a instituir (JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA, TOMO I, 2.ª edição, revista, actualizada e ampliada, pp. 1243-1245).

Quer isto dizer, pois, que a colocação sistemática do direito de propriedade, colocado entre os «direitos económicos», não deixa de ser relevante para efeitos do seu  entendimento constitucional. Está muito longe a concepção constitucional liberal-burguesa, que fazia do direito de propriedade o primeiro dos direitos fundamentais, porque supostamente era condição de todos os outros, a começar pela liberdade. Na CRP o direito de propriedade não faz parte do elenco dos «direitos, liberdades e garantias» (embora goze do respectivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles: cfr. art. 17°), não sendo igualmente despiciendo o facto de nem sequer constituir o primeiro dos «direitos económicos»; capítulo que, significativamente, abre com o direito ao trabalho (cfr. art. 58°). Não se trata tanto de «desvalorizar» a importância do direito de propriedade como de lhe retirar a dimensão quase sacrossanta que lhe era conferida no «individualismo possessivo» e na concepção tradicional conservadora dos direitos fundamentais assente na indissociabilidade da liberdade e propriedade.

O enquadramento sistemático confirma a ideia de que na CRP não existe uma ligação directa entre direito de propriedade e a tutela da autonomia privada e da liberdade e dignidade pessoais. Isto é ainda mais evidente no caso da propriedade de meios de produção. Garantindo somente o direito de propriedade, a Constituição não reconhece directamente outros direitos patrimoniais, previstos e regulados na lei civil e comercial (direito de usufruto, por exemplo). Mas isso não quer dizer que os negue; simplesmente deixou a sua protecção e o seu regime para a lei (art. 16°-1) e para a sua liberdade de conformação, não se justificando as tentativas feitas no sentido de os subsumir num conceito amplo, descaracterizado e fragmentado do direito de propriedade (Cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume 1º, 4ª edição revista, 2007, pp. 799-88).

O que afasta qualquer tipo de inconstitucionalidade aqui arguida por violação do art. 62.° da CRP.

Sendo esta a resposta às questões em III configuradas.

Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº7, NCPC), que:

1.

O principio da adequação formal, consagrado no art. 547.º, não transforma o juiz em legislador, ou seja, o ritualismo processual não é apenas aplicável quando aquele não decida, a seu belo prazer, adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais, sob a invocação de, desse modo, assegurar um processo equitativo. Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art. 4.°-2 da Lei n.º 21/85, de 30-7), e, daí, que o poder-dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado ás especificidades da causa, e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.

2.

Por sua vez, o conceito de despacho de mero expediente e de despacho proferido no uso legal de um poder discricionário encontra-se fixado no n.° 4 do art. 152º, segundo o qual «os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes», ao passo que se consideram proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador». Sendo que, do n.° 2 do art. 630º, se extrai a seguinte regra: todas as decisões judiciais relativas à simplificação ou agilização processual, ou à adequação formal, ou às regras gerais da nulidade dos actos processuais admitem recurso quando contendam quer com os princípios da igualdade ou do contraditório, quer com a aquisição processual de factos, quer com a admissibilidade de meios probatórios.

3.

A decisão proferida no uso legal de um poder discricionário não é recorrível com fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende seja atingido.  Mas já o será quando, como na situação sub judice, a avaliação do imóvel se enquadra na prova pericial, estando na presença de um meio de prova, admissível de recurso, nos termos do art. 630.°, n.° 2 CPC. Tanto assim que emerge do disposto no art. 644°, n.°2, aI. d) do CPC a consagração expressa  de ser admissível recurso de apelação de despacho de rejeição de um meio de prova.

4.

Consequentemente, o despacho de admissão ou rejeição de meios de prova é também impugnável por apelação. A importância da prova para a decisão da matéria de facto explica a solução legal.

5.

Nulidades do processo «são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais». Estes desvios de carácter formal podem revelar-se seja através da prática de um acto proibido, seja na omissão de um acto prescrito na lei, seja ainda na realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

6.

O art. 411.°, consagrador do princípio do inquisitório determina incumbir ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer. Entendendo que o juiz, ao não ordenar a diligência, viola o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, tem de ser arguida a nulidade de tal omissão  O que aconteceu, no caso, através de proacção de parte e pela via (recursória) configurada.

7.

Neste sentido, pois, o juiz deveria ter ordenado a diligência em causa (avaliação requerida no condicionalismo expresso), assim revelada indispensável para que o processo seguisse conformando rigor absoluto nos seus trâmites, à luz do que anteriormente se referiu e lhe haveria de servir de conformação.

8.

Não se pode olvidar que o artigo 62.º da Constituição, ao garantir a todos o direito de propriedade e o direito «à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição», consagra fundamentalmente uma garantia fundamental da propriedade privada. Efectivamente, esta garantia jusconstitucional corresponde, em rigor, ao conteúdo fundamental da regulamentação que se extrai do artigo 62.° É significativo, aliás, que, ao contrário da estrutura dualista dos preceitos constitucionais sobre direitos económicos, sociais e culturais, em que o reconhecimento do direito é assistido por urna lista mais ou menos extensa de incumbências do Estado-legislador ou do Estado-administração, o artigo 62.° não coloca o cerne do direito de propriedade na dependência de imposições legiferantes ou de outra natureza.

9.

A lei civil tem de conter um direito de propriedade com o feixe de poderes de uso, fruição e disposição que lhe são inerentes na tradição jurídica e cultural do nosso pais. Mas a Constituição não impõe a conservação deste ou daqueloutro direito em abstracto; não confirma os tipos de direitos reais e as categorias de outros direitos patrimoniais subsistentes à data da sua entrada em vigor, não tolhe o desaparecimento de quaisquer desses tipos ou figuras ou o aparecimento de novos tipos ou categorias. Uma coisa é o princípio da capacidade patrimonial privada ou da susceptibilidade de, salvo algumas excepções, os particulares serem titulares de direitos patrimoniais; outra coisa seria garantir todos os tipos de direitos patrimoniais que, com maior ou menor relevância e mais ou menos duradouramente, a normação ordinária tenha instituído ou venha a instituir.

10.

Garantindo somente o direito de propriedade, a Constituição não reconhece directamente outros direitos patrimoniais, previstos e regulados na lei civil e comercial (direito de usufruto, por exemplo). Mas isso não quer dizer que os negue; simplesmente deixou a sua protecção e o seu regime para a lei (art. 16°-1) e para a sua liberdade de conformação, não se justificando as tentativas feitas no sentido de os subsumir num conceito amplo, descaracterizado e fragmentado do direito de propriedade. O que afasta qualquer tipo de inconstitucionalidade aqui arguida por violação do art. 62.° da CRP.

III. A Decisão:

Nestes termos, julga-se procedente a apelação, devendo, em conformidade, ser ordenada nova avaliação ao imóvel, nos termos requeridos, com as necessárias e advindas consequências legais.

Sem Custas.

***

                     António Carvalho Martins - Relator

                        Carlos Moreira  -  1º Adjunto

                      Anabela Luna de Carvalho- 2º Adjunto