Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
87/02.1TAACN.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRORROGAÇÃO DO PERÍODO DE SUSPENSÃO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA PENA
Data do Acordão: 09/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14º DO RGIFNA, 55ºE 56º DO CP
Sumário: 1. O juízo sobre a revogação da suspensão da execução pena impõe uma manifesta e inequívoca violação culposa dos deveres impostos ao condenado, o que no que diz respeito ao pagamento de indemnizações exige a demonstração da sua capacidade financeira para o fazer.
Decisão Texto Integral: 21

RELATÓRIO

Os arguidos A e P, foram condenados, por acórdão proferido em 8 de Julho de 2004 e transitado em julgado em 11 de Abril de 2005, em co-autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. pelos artºs 23º nºs 1 e 2 b) e 3 c) e e) do RJIFNA, nas penas únicas de 2 anos e 8 meses de prisão e 2 anos e 6 meses de prisão, respectivamente, suspensas na sua execução pelo período de 4 anos, sob a condição de pagarem ao Estado Português o montante dos impostos em dívida e acréscimos legais, no montante global de € 1.089.295,10, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, no prazo dos 4 anos subsequentes à condenação.
Decorrido o prazo de suspensão e uma vez que os arguidos não cumpriram a condição imposta, foram os mesmos ouvidos em 08.07.08, tendo eles justificado o não pagamento por dificuldades de ordem financeira, juntaram certidão dos Serviços de Finanças de Alcanena sobre o montante total da dívida relativamente a todos os processos como sendo de € 1.143.609,42, o que significava que a dívida total baixara de € 500.000, salientando que perante os empréstimos que lhes foram garantidos, pretendiam pagar até Agosto de 2008, o resto da dívida.
Solicitou-se certidão de condenação dos arguidos num outro processo que foi junta aos autos, solicitou-se informação aos Serviços de Finanças sobre se os arguidos tinham procedido ao pagamento de qualquer quantia quer no âmbito destes autos, quer no âmbito de outros processos, o que foi respondido negativamente no que respeita a estes autos – fls. 985 e 989.
Os arguidos não procederam ao pagamento da dívida em Agosto, como se tinham comprometido, nem deram qualquer justificação para tal.
Por despacho de 1/10/2008 foi determinada a revogação da suspensão da pena nos termos do artº 56 nº 1 al a) CPP.
Interpuseram recurso para esta Relação, que lhe viria a conceder provimento, por acórdão de 09.04.22 ( fls. 1048 e ss), que determinou a revogação do despacho recorrido, ordenando a realização das diligências necessárias (“o Tribunal deveria solicitar às Finanças informação completa sobre o pagamento por parte dos arguidos da dívida aqui em causa até porque, os arguidos referem que já amortizaram em € 500,000 a sua dívida total, ouvindo se necessário, os arguidos em declarações. Confrontar os arguidos com as suas declarações no sentido de saber se conseguiram ou não, obter o empréstimo e, em caso afirmativo, porque é que não pagaram a dívida como se tinham comprometido. E, por fim, tendo em vista apurar, neste momento, as suas condições sociais económicas, talvez o tribunal pudesse lançar mão do auxílio do IRS…. Para tal e declarando os arguidos que se encontram com graves dificuldades económicas o tribunal deve investigar, averiguar, a real situação dos arguidos e, depois, confrontá-los com as informações obtidas. “.
Remetidos os autos à 1ª instância, foi aí ordenada a realização de várias diligências e obtida informação variada, após o que a Srª juiz proferiu o seguinte despacho:
“Por acórdão, proferido no dia 8 de Julho de 2004 e transitado em julgado no dia 11 de Abril de 2005, os arguidos P e A foram condenados, além do mais, pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, de dois crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 23.°, nºs 1, 2, alínea b), e 3, alíneas a) e e), do RGIFNA, nas penas únicas de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente, suspensas na sua execução pelo período de quatro anos, sob a condição dos mesmos pagarem ao Estado Português o montante dos impostos em dívida e acréscimos legais, no montante global de € 1.089.295, 10, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, no prazo legal de 4 (quatro) anos subsequentes à condenação, demonstrando nos autos tal pagamento na proporção anual de 1/4 (cfr. fls. 598 e ss).
Por ofício, datado de 9 de Maio de 2006, a Direcção Geral dos Impostos veio informar que em nome da LOG---, Lda., não foram efectuados quaisquer pagamentos até à data (cfr. fls. 819).
Por ofício, datado de 18 de Dezembro de 2006, a Direcção Geral dos Impostos veio informar que se encontravam registados em nome dos arguidos P e As: o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 31, da Secção J, da freguesia de São Pedra, concelho de Torres Novas, com o valor patrimonial de €1.204,47; o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2299, da freguesia de São Pedra, concelho de Torres Novas, com o valor patrimonial de €992,1l; o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2749, da freguesia de São Pedro, concelho de Torres Novas, com o valor patrimonial de €55.1l7,19; o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1920, da freguesia de Queijas, concelho de Oeiras, com o valor patrimonial de €56.575,80; e um total de 342.874 de unidades de valores mobiliários no Banco Comercial Português, S.A. Mais informou que o arguidos P e As eram sócios gerentes da LOG…. Lda., e da LO… Lda.; que o primeiro fez constar da declaração de rendimentos de IRS relativa ao ano de 2005 como ganho de trabalho por cinta de outrem o total de €4.496,49, auferido da LOG.., Lda.; que a segunda auferiu no ano de 2005 rendimentos de trabalho como professora na Escola Secundária de A1canena no valor global de €26.322,22; que os arguidos declararam ter recebido em 2005 o montante de €12.601,11 como rendimento da aplicação de capitais, pagos pelo Banco Comercial Português, S.A.; e que os veículos automóveis utilizados pelos arguidos se encontram registados a favor de locadoras financeiras, não sendo, por isso, possível proceder à identificação dos mesmos (cfr. fls. 860 e ss).
Não tendo os arguidos satisfeito a condição da suspensão, foram os arguidos ouvidos em 8 de Julho de 2008, tendo os mesmos justificado o não pagamento por dificuldades várias que indicaram, designadamente financeiras, e esclarecido que não só já haviam procedido ao pagamento de parte do montante em dívida, mas também perspectivavam pagar o remanescente até Agosto de 2008 (cfr. fls. 956 e ss).
Por ofícios, datados de 25 de Julho de 2008 e 22 de Setembro de 2008, a Direcção Geral dos Impostos veio informar que em nome da LOG.., Lda., não foram efectuados quaisquer pagamentos até então (cfr. fls. 985 e 989).
Por acórdão, proferido no dia 19 de Junho de 2008 nos autos do processo nº …/04.4TDLSB, que correu seus termos neste Tribunal, os arguidos P e A foram condenados, além do mais, pela prática, em co-autoria e concurso real, no período de 2002 a 2004, de dois crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.0, nºs 1 e 2, do RGIT, e de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos artigos 105º, nº 1, e 107º, nº 1, do RGIT, nas penas únicas de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão e de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente (cfr. fIs. 964 e ss); o qual, como é do meu conhecimento funcional, já transitou em julgado.
Por acórdão, proferido no dia 6 de Fevereiro de 2009 e transitado em julgado, foi revogado o despacho que determinou a revogação da suspensão da pena aplicada aos arguidos (cfr. fls. 991 e ss e fls. 1048 e ss).
Nesta sequência determinou-se a notificação dos arguidos para se pronunciarem sobre a eventual revogação da suspensão da pena de prisão aplicada aos mesmos, bem como para comparecerem em Tribunal a fim de prestarem declarações nesse sentido (cfr. fls. 1062 a 1075).
Regularmente notificada (cfr. fls. 1075), a arguida A nada disse, nem compareceu em Tribunal na data designada (cfr. fls. 1076).
Frustrada a notificação do arguido P (cfr. fls. 1069), foram encetadas diligências no sentido de apurar o seu paradeiro (cfr. fls. 1079, 1080, 1086 a 1088, 1090 a 1092).
Nesta sequência, foi ordenada a emissão de mandados de detenção para assegurar a comparência da arguida A no dia 30 de Outubro de 2009 e determinada a notificação do arguido, na morada que se veio a apurar e através de órgão de polícia criminal, para comparecer em Tribunal na mesma data (cfr. fls. 1075 e 1089).
Por ofício, datado de 30 de Setembro de 2009, a Direcção Geral dos Impostos veio informar que em nome da LOG.., Lda., não foram efectuados quaisquer pagamentos referentes à dívida fiscal em causa nos presentes autos até à data (cfr. fls. 1097 e ss).
Por requerimentos, apresentados pelos arguidos em 29 de Outubro de 2009, os arguidos vieram informar que não poderiam comparecer em Tribunal no dia seguinte em virtude de terem sido acometidos por doença súbita e apresentar o correspondente atestado médico (cfr. fls. 1106 a 1110).
No dia 30 de Setembro de 2009, os arguidos não compareceram em tribunal nem voluntária, nem coercivamente (cfr. fls. 1112).
Consultada a base de dados disponível, apurou-se que a arguida A s não tem quaisquer veículos inscritos a seu favor e que o arguido P é o titular inscrito do veículo com a matrícula VG-…-15 desde 16 de Novembro de 2006, sobre o qual incidem duas penhoras (cfr. fis.1125 a 1027).
Solicitados esclarecimentos sobre o estado de doença invocado pelos arguidos nos mencionados requerimentos, o médico que subscreveu os atestados veio esclarecer que os mesmos padeciam de doença psiquiátrica, manifestando ansiedade aguda e depressão, e que, por isso, eram incapazes de realizar as suas tarefas profissionais, mas que poderiam levar a efeito as mais básicas tarefas pessoais (cfr. fls. 1142).
Tomaram-se declarações à arguida A no dia 16 de Novembro de 2009, tendo a mesma esclarecido que não procedeu ao pagamento de qualquer quantia por conta da dívida fiscal em causa nos presentes autos, nem nunca cuidou de se informar do estado do pagamento da mesma uma vez que confiou que o marido (o arguido P) se encarregaria desse assunto, apesar dos mesmos já não manterem uma relação de cumplicidade e proximidade (“vivem juntos, mas já não fazem vida em comum"); que nunca esteve doente, nem teve conhecimento da emissão do atestado médico junto aos autos; que, apesar das penhoras que incidem sobre o seu vencimento (na proporção de um terço - cfr. fls. 1232), consegue arrecadar mensalmente cerca de €1.000,00, mas não pensou considerou a possibilidade de usar parte desse rendimento líquido na amortização da mencionada dívida uma vez que procurou garantir, tanto quanto possível, o nível de vida dos filhos; que, entretanto, já investiu num mestrado e está a considerar em tirar o doutoramento uma vez que conta com o apoio económico e financeiro dos seus familiares; e que o marido vive consigo, mas encontra-se desempregado, estando a encetar esforços no sentido de arral1.jar um emprego e contactos no sentido de realizar investimentos no estrangeiro e, assim, realizar algum capital para resolver os seus problemas (cfr. fls. 1176 e ss e fls. 1251 ss).
Saliente-se que, apesar da arguida ter referido nas suas declarações, que o arguido P continua a residir consigo na casa de morada de família, o mesmo nunca aí foi encontrado (cfr. fls. 1144, 1147 e l1S0), nem nunca se deslocou voluntariamente a Tribunal, sequer, para se inteirar do estado do processo.
Solicitou-se ao órgão de polícia criminal a realização de inquérito sobre as condições sócio-económicas dos arguidos (cfr. fls. 1185), às Conservatórias do Registo Predial de Alcanena e Torres Novas a junção aos autos das certidões dos prédios que aí se encontram inscritos a favor dos arguidos (cfr. fls. 1165 a 1170), à Segurança Social informação sobre se os arguidos aí se encontram inscritos como trabalhadores por conta de outrem ou como beneficiários de qualquer subsídio estatal (cfr. fls. 1203 e 1204) e ao Instituto de Seguros de Portugal a indicação de seguro de que os arguidos sejam tomadores e a identificação da entidade com quem celebraram o correspondente contrato de seguro (cfr. fls. 1155 a 1157). Mais se averiguou na base de dados disponível se os arguidos são titulares de quaisquer veículos automóveis (cfr. fls. 1124 a 1127) e se solicitou à Escola E.E. 2/3 de Alcanena e aos Centros de Formação de Professores de Alcanena e Torres Novas informação sobre o montante global das remunerações auferidas pela arguida P nos anos de 2008 e 2009, com a discriminação do valor líquido entregue à mesma em cada mês dos mencionados anos (cfr. fls. 1212, 1226, 1227, 1229, 1232, 1233, 1243 e 1244)
Por sentença, proferida em 20 de Novembro de 2008 nos autos do Proc. nº …./08.4TBTNV, que correu seus termos no 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, e transitada em julgado no dia 19 de Janeiro de 2009, foi decretada a insolvência de P e A (cfr. fls. 1216 a 1225).
O IRS elaborou e juntou aos autos um Relatório Social apenas referente à arguida A (cfr. 1297 e ss) - por não tendo sido possível apurar o paradeiro do arguido -, no qual se refere que a arguida revela uma estável inserção sócio-­profissional e uma personalidade bem formada. Mais se salienta que o projecto de vida apresentado pela arguida passa pela desvinculação do cônjuge e pelo investimento na sua relação com os filhos (que se encontram actualmente a cargo dos avós paternos) e no seu percurso profissional.
O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da pena de prisão aplicada aos arguidos.
A arguida A pronunciou-se no sentido da manutenção da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à mesma por considerar que não se verificou qualquer violação grosseira dos deveres impostos na sentença condenatória.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 55.° do Código Penal que "se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao readaptação, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n. ° 5 do artigo 50.°".
Por sua vez, o artigo 56.°, nº 1 do Código Penal que "a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. "
Por seu turno, o artigo 14.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, preceitua que "1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos beneficios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa. 2 ­Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado , mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) Revogar a suspensão da pena de prisão".
Neste contexto, verifica-se que nem toda a violação do dever de pagamento da prestação tributária deve conduzir à revogação da suspensão, já que isso seria frustrar a intenção legislativa na sua cruzada contra a pena de prisão.
As causas de revogação da suspensão da execução da pena de prisão não devem, pois, ser entendidas como um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. O arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da execução da pena.
A este propósito, "importa não olvidar que a suspensão da pena de prisão insere-se numa filosofia jurídico-penal assente num princípio de subsidiariedade da pena privativa de liberdade e que pressupõe que, no momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando, pois uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades de punição e, consequentemente, a ressocialização do arguido - em liberdade!" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 1998, in CJ, tomo 11, pág. 253).
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é, pois, clara e determinante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer "correcção", "melhora' ou - ainda menos - "metanoia" das concepções daquele sobre a vida e o mundo. Decisivo é aqui o "conteúdo mínimo) da ideia de socialização, traduzida na "prevenção da reincidência" (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.519).
Pressuposto formal da sua aplicação é que a medida da pena de prisão aplicada em concreto não seja superior, no caso, a três anos (actualmente a cinco anos). Pressuposto material é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido: a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e para satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Aliás, nunca será de mais lembrar que a suspensão de uma pena não prejudica os fins da prevenção criminal, sendo a ameaça da sua execução um factor que pode ser altamente dissuasor de novas violações criminais (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Março de 1993, in BMJ nº 425, pág. 331 e ss).
Assim, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos. A função de socialização constitui actualmente o vector mais relevante da prevenção especial. A medida das necessidades de socialização do agente é, pois, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena (neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 1995, in CJ, tomo II , pág. 210 e ss).
Assim, a violação culposa dos deveres impostos na sentença condenatória só implicará a revogação da suspensão se a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, a esperança fundada de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, in As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 357), pois que então não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão daquela suspensão.
No caso sub judice, verifica-se, desde logo, que os arguidos violaram grosseira e repetidamente o dever imposto na sentença condenatória, porquanto desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória (em Abril de 2005) nunca envidaram um mínimo esforço no sentido de garantir a entrega ao Estado qualquer quantia, por ínfima que fosse, por conta da dívida fiscal em apreço.
Aliás, o arguido P optou mesmo por se eximir a toda e qualquer responsabilidade e até à acção da justiça, pondo-se em fuga para parte incerta.
Sendo certo que os arguidos revelaram ab initio que enfrentavam dificuldades económicas e que cerca de três anos após o trânsito em julgado da sentença condenatória (no ano de 2008) foi mesmo declarada a sua insolvência, mas tal não impediu a arguida de procurar manter o seu nível de vida, nem de investir em mestrados e pós-graduações - já que arrecadava, depois dos descontos que incidiam sobre o seu vencimento, um rendimento líquido de cerca de €1.000,00 (mil euros) e que continuava (e continua) a poder contar com o apoio económico e financeiro dos seus familiares. Nem se diga que a arguida se mostra prejudicada pela actuação do marido (o arguido) - por, como a mesma invocou, ter confiado que o mesmo estaria a resolver os problemas da família - pois trata-se de pessoa instruída e culta, com capacidade para autonomamente resolver os seus problemas, designadamente para indagar junto da administração fiscal qual o modo mais adequado para proceder à amortização da dívida, não dependendo nem económica, nem ou intelectualmente daquele.
No fundo, verifica-se que os arguidos não procederam à entrega ao Estado de qualquer montante contido no âmbito das suas possibilidades económicas, nem durante todo o período de suspensão da execução da pena fixado na sentença condenatória (fixado em quatro anos), nem posteriormente - revelando uma violação reiterada da sua obrigação de pagamento.
A reforçar este entendimento, refira-se que, apesar de terem património, designadamente imobiliário, os arguidos não encetaram esforços no sentido de o alienar e, assim, realizar capital a fim de colmatar, pelo menos, parte da dívida.
Aliás, a própria arguida reconheceu, como se disse, que podia contar com um rendimento líquido mensal de cerca de € 1.000,00 (mil euros) - ou seja, mais do dobro do salário mínimo nacional -, ma que nem sequer considerou a possibilidade de entregar ao Estado nem que fosse uma prestação mensal de €200,00 (duzentos euros) para amortizar a dívida, tendo optado por investir na manutenção do nível de vida dos filhos e na sua carreira profissional - tal como afirma agora que pretende continuar a fazer. Na verdade, a arguida continua a não manifestar qualquer empenho, nem sequer a considerar a possibilidade, de cumprir (ainda que dentro das suas possibilidades) com as suas obrigações fiscais.
Na verdade, compulsados os autos, verifica-se que, não obstante tenham sido condenados em pena de prisão, os arguidos não tomaram consciência de que tinham que aproveitar o período de suspensão da execução da mesma para transformar a sua vida, iniciando, com êxito um processo no sentido da assunção das suas responsabilidades fiscais e comunitárias.
Sucede que, as declarações da arguida A e o facto do arguido P se ter posto em fuga lograram, fortemente (não o podemos deixar de expressar), criar a convicção no Tribunal de que estaremos perante um verdadeiro caso de insucesso das finalidades de punição.
Assim, não obstante o lapso temporal já decorrido desde a prática dos factos em causa nos nossos autos e a data da condenação e respectivo trânsito, entendemos que apenas a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos arguidos será apta a desencadear um processo onde o sistema prisional, no cumprimento da finalidade última da punição penal, pode vir a ser bem sucedido.
Ademais, a personalidade revelada pelos arguidos (por força da conduta assumida pelos mesmos) justifica a opção pela pena privativa da liberdade, afigurando-se que a manutenção da suspensão da execução da pena de prisão poria em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 333).
Neste contexto, é nosso entendimento que os arguidos devem cumprir a pena de prisão em que foram condenados na medida em que o prognóstico que foi feito quanto ao seu percurso existencial se encontra, no momento, marcado por um fortíssimo insucesso e que os arguidos violaram grosseira e repetidamente o dever de pagamento fixado na sentença condenatória.
A ponderação de todos estes elementos permite-nos concluir que o juízo de prognose favorável está definitivamente infirmado e, por conseguinte, deverá ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão a que os arguidos foram condenados.
Face ao exposto, o Tribunal decide revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos condenados P e A nos presentes autos, e em consequência, determinar o cumprimento pelos mesmos da pena de prisão fixada na sentença condenatória.”.
É deste despacho que a arguida interpôs o presente recurso.
Na respectiva motivação vêm formuladas as seguintes conclusões:
1 - A arguida ora recorrente foi condenada nos presentes autos por acórdão de 08 de Julho de 2004 - transitado em julgado em 11 de Abril de 2005 em co-autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de fraude fiscal, p. e p. pelo Art° 23, nºs 1, 2, alínea b), e 3, alínea a) e e), do RGIFNA, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, sob a condição de pagar ao Estado Português o montante dos impostos em divida e acréscimos legais, no montante global de € 1.089.295,10, acrescido de juros de mora vencidos até efectivo e integral pagamento, no prazo legal de 4 (quatro) anos subsequentes à condenação, demonstrando nos autos tal pagamento na porção anual de % (cfr. fls. 598 e ss).
2 - Por decisão, proferido no dia 6 de Fevereiro de 2009 e transitado em julgado, foi revogado o despacho que determinou a revogação da suspensão da pena aplicada aos arguidos (cfr. fls. 991 e ss e fls. 1048 e ss).
3 - Até à presente data a A. não efectuou qualquer pagamento por conta do montante em débito ao Estado.
4 - Mas apenas porque não detinha quaisquer disponibilidade financeira para tal,
5 - Na sequência dos vários débitos que tinha apenas devido ao facto de ser sócia e/ ou gerente de algumas sociedades, foi declarada a sua insolvência no processo n° …/08.4TBTNV que correu seus termos pelo 2° juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas
6 - Antes de declarada a sua insolvência a A. ora recorrente já tinha a sua remuneração mensal penhorada à ordem de vários processos,
7 - A A. com 1.000,00€ (mil euros) dos quais tinha que fazer face a todas as suas despesas, bem como à despesa da cosa e dos seus dois filhos
8 - Assim que a A. não efectuou qualquer pagamento por conta do débito dos presentes autos por não dispor de quaisquer disponibilidade financeira para tal.
9 - Se a A. retivesse do que sobrava da sua remuneração após os descontos judiciais, qualquer montante, colocaria em risco a dignidade da sua existência e dos seus dois filhos
10 - A A. entende que só por manifesto lapso é que nos presentes autos foi condenada
11 - Visto que embora tenha sido acusada e condenada pela prática dos identificados ilícitos penais a A. nunca foi gerente de direito da sociedade e nunca praticou na qualidade de gerente da mesma qualquer acta, nunca tendo a qualquer título intervido em sua representação.
12 - A arguida ora recorrente nunca praticou um único acto de gestão da identificada sociedade.
13 – Desconhecendo por completo o que se passava na sociedade.
14 - Apesar de sócia nunca se inteirou do que se passava na sociedade.
15 - Sempre que foi chamada a depor na qualidade de gerente da sociedade, referiu nada saber sobre a vida da sociedade
16- Porque efectivamente nada sabia.
17 - Foi isso que declarou nos serviços de segurança social aos 07 de Fevereiro de 2006 que desconhecia que constava como gerente da sociedade.
18 - E foi por isso que naquele serviço se propôs o arquivamento dos autos contra a ora requerente.
19 - E se considerou como único gerente de facto e de direito o sócio P
20 - O sócio gerente da identificada sociedade sempre assumiu que a gerência era exercida exclusivamente por si.
21 - No parecer do serviço de Investigação Criminal e Fiscal, processo de inquérito nº 5/06.8 se consignou o seguinte:
Fls. 446 - Gerência por: P
22 - E a Fls. 463 - Ponto 4.1.1: Identificar o responsável pelo incumprimento da arguida: O arguido o Sr. P., sócio - Gerente, (Gerente de facto).
23 - A A. foi constituída arguida nos presentes autos sem que dos mesmos resultasse qualquer indício da prática de qualquer acto na qualidade de gerente da sociedade ou mesmo em sua representação a qualquer título.
24 - Nos autos não ficou demonstrado que tenha praticado qualquer acto na qualidade de gerente da sociedade.
25 - Também face à certidão de fls. se conclui que a A. nunca foi gerente de direito da sociedade.
26 - Como bem resulta de tal certidão a A apenas adquiriu as quotas que anteriormente pertenciam a seu irmão.
28 - E nunca aceitou por qualquer forma desempenhar funções de gerente na identificada sociedade.
29 - Não é pelo facto de nos presentes autos se ter provado que a A é gerente de direito da sociedade que passa a sê-lo.
30 - Tal qualidade não se adquire por decisão judicial nos presentes autos mas por deliberação da sociedade - única que podia atribuir tal qualidade -à arguida.
31 - Para além da sua nomeação como gerente (que como se referiu supra nunca existiu) para que a A assumisse a qualidade de gerente era necessário uma sua declaração de vontade no sentido da sua aceitação de tal nomeação.
32 - A arguida nunca aceitou desempenhar o cargo de gerente da sociedade.
33 - A A. vem tentando demonstrar quer nos presentes autos quer no processo n° …/04.4TDLSB que corre seus termos por este Tribunal, mesmo após o trânsito dos respectivos acórdãos condenatórios que nunca foi gerente da sociedade nem de facto nem de direito.
34 - Após tal negação de revista a A. tem tentado obter elementos de prova "não apreciados em julgamento", através dos quais consiga demonstrar que nunca foi gerente de direito nem de facto da sociedade,
35 - E que quer a condenação dos presentes autos quer a condenação no identificado processo n° …/04.4TDLSB foram injustas.
36 - Só "um lamentável lapso" de investigação e posteriormente de julgamento permitiram que fosse considerado provado que a A. era gerente de facto e de direito da sociedade Log…, Lda.
37 - Com efeito nos autos encontra-se demonstrado justamente o contrário
38 - Entretanto a arguida tomou conhecimento que no processo instaurado pelo Director de Finanças de Santarém contra a Log… Lda. para apuramento dos impostos devidos nos anos de 2005 a 2007 - processo ref 2320 de 15 de Março de 2010 ordens de serviço n° 200801096; 01200801740; 01201000073; 01201000251 e 01201000252 se apurou conforme melhor consta do QUADRO 3 - OUTRAS SITUAÇÕES NO PONTO 3.2 - gerência o seguinte: Relativamente à gerência da sociedade apenas podemos referir que consta na conservatória do registo Comercial que a gerência é exercido por P, conforme cópia da certidão que consta em papéis de trabalho. Atendendo a que não foi possível ter acesso a todos os documentos nem aos gerentes da sociedade, não temos na nossa posse elementos que indiquem a gerência de facto.
39 - Finalmente a divisão de Inspecção concluiu tal como a recorrente vem reclamando há muito nos autos que: "Conforme cópia da certidão de matricula da sociedade apenas podem referir que consta da CRC que a gerência é exercido por P"
40 - Conclui-se que da certidão de matricula da sociedade o único gerente de direito da mesma é o sócio P
41 - Aliás este sócio (marido da arguida ora recorrente) sempre assumiu que a gerência da sociedade sempre foi assumida e exercida única e exclusivamente por si.
42 - Contudo porque para apreciação da justiça da revogação da suspensão da execução da pena, não será indiferente o efectivo grau de censura que merece (ou não) o comportamento da A:
43 - Assiste razão quanto à imputação da prática dos ilícitos penais pelos quais foi condenada.
44 - A imposição à A duma condição de suspensão de execução da pena de pagamento dum débito do valor de € 1.089.295,10, sem indagar o Tribunal da 1ª Instância se a A tinha condições para satisfazer a obrigação, do pagamento que lhe era imposto, equivale à aplicação duma pena de prisão efectiva,
45 - Visto que a mesma não tendo condições para efectuar o pagamento, não é razoável que se exija tal pagamento.
46 - No momento da aplicação da pena e agora na decisão da revogação da suspensão da mesma o Tribunal "a quo" não indagou se a recorrente no momento da sua condenação e mesmo posteriormente tinha condições de pagar o que se lhe impôs.
47 - O Tribunal não teve em conta a situação económica da arguida - a mesma encontrava-se presa desde 4 de Novembro de 2009 - nem as demais condições da sua vida.
48 - O Tribunal violou o princípio da razoabilidade e interpretou do Art° 50 do CP com um alcance que ele não impõe, porquanto as necessidades da prevenção geral e especial estão asseguradas com simples ameaça de pena de prisão.
49 - Da alínea a) do nº 1 do artigo 51º do Código Penal, prevê que o tribunal fixee o dever de pagar a indemnização devida, no todo ou na parte que considerar possível (e até aos limites que em concreto se lhe mostrarem possíveis) redacção do Projecto de Revisão (artigo 49º nº 1, alínea a)).
50 - A necessidade de prever o pagamento parcial responde aos casos em que o arguido não pode pagar na totalidade.
51 - A sentença recorrida viola claramente o disposto no artigo 51º, nº 2 do Código Penal, nomeadamente o princípio da razoabilidade
52 - A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores é clara a este propósito, ao perfilhar o entendimento de que a apreciação sobre a falta de cumprimento dos deveres impostos em sentença como condicionantes da suspensão da execução da pena deve ser cuidada e criteriosa, de tal sorte que apenas uma falta grosseira determina a revogação,
53 - O arguido nunca poderá vera a sua suspensão revogada por falta de pagamento da indemnização fixada, a menos que tal falta lhe seja, de todo, imputável.
54 - O Tribunal deve efectuar um juízo sobre a qualidade da situação, sobre o grau de violação dos deveres impostos, sobre a intencionalidade da conduta e sobre os reflexos desse comportamento sobre o juízo de prognose favorável que lhe permitisse a suspensão da execução da pena.
55 - Só se a situação for tão grave que permita concluir que deixaram de se verificar os pressupostos em que se baseou a suspensão da execução da pena, e que o Juiz tem o poder/ dever de determinar a revogação da suspensão nos termos do Art° 56 do CP.
56- Não é o caso seguramente dos autos.
57 - Não existe relativamente à ora recorrente um grau elevado de violação dos deveres, visto a mesma não pagou porque não dispunha de meios financeiros para tal,
58 - Não existe qualquer intencionalidade da sua conduta visto que o incumprimento verificou-se por situação que a mesma se encontrava impedida de controlar ou impedir que se verificasse.
59 - Mantendo-se os pressupostos em que se baseou a suspensão da execução da pena deve manter-se a suspensão da execução da pena, por ser esta que atendendo à personalidade da arguida mais de adequa à finalidade da pena e à sua reinserção social.
Juntou cinco documentos.
Respondeu o MP defendendo a manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso deve improceder.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A questão colocada no presente recurso traduz-se em saber se se justifica a revogação da suspensão da pena por não ter a arguida dado cumprimento à condição de que a mesma dependia.
Antes de mais cumpre tomar posição quanto aos documentos juntos pela arguida com o recurso
E o que desde já se dirá é que a sua apresentação neste momento é extemporânea.
É que é de todo descabido, pese embora todo o respeito que nos merece a opinião contrária, que este tribunal aprecie elementos que o tribunal recorrido não apreciou.
A decisão recorrida há-de ser apreciada apenas em função dos factos materiais que foram apurados na 1ª instância e não de prova posteriormente introduzida nos autos.
“ a missão do tribunal de recurso é a de apreciar se uma questão decidida pelo tribunal de que se recorre foi bem ou mal decidida e extrair daí as consequências atinentes; o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questão nova, salvo se isso for cometido oficiosamente pela lei” Cfr. AcSTJ 87.02.06 e 89.10.03, BMJs 364, pág. 714 e 390, pág. 408.
Daí que a prova agora apresentada seja completamente irrelevante para a apreciação do presente recurso.
Avancemos então para a sua apreciação.
Começa a recorrente por referir que, pese embora tivesse sido condenada nos presentes autos, nunca praticou um único acto de gestão na sociedade, quer na qualidade de gerente ou mesmo em sua representação.
Pois bem o que a este respeito se dirá é que isso é completamente irrelevante.
É que não faz qualquer sentido que a recorrente venha agora, depois da decisão que a condenou e já transitada em julgado, levantar uma tal questão.
O que está aqui em causa é tão só saber se o despacho que lhe revogou a suspensão da pena merece censura.
E disso passaremos já a tratar.
Para a apreciação da questão importa trazer desde já à colação as normas aplicáveis.
Dispõe o artº 14º do RGIT:
“ 1- A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento da quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2. Na falta de pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.
Por sua vez, atento o disposto no artº 3º da Lei nº15/2001, de 5/06, que determina serem aplicáveis subsidiariamente quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar, há ainda a considerar que o art.º 55º CP, estabelece:
“ Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta expostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal:
a) Fazer uma solene advertência;
b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo se suspensão previsto no n.º 5 do art.º 50º.”.
E ainda o artº 56º CP:
“1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2- A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.”.
O sentido deste preceito é ainda complementado pelo artº 495º CPP referente à falta de cumprimento das condições de suspensão.
Pois bem o que decorre desde logo da conjugação dos referidos preceitos, designadamente tendo em conta a aplicação subsidiária do Código Penal, é a de que só o incumprimento culposo ( artº 55º CP) da falta de pagamento das prestações tributárias pode conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do arguido.
E resulta igualmente da leitura de tais preceitos que o não cumprimento das obrigações impostas não desencadeia necessariamente a revogação da suspensão da pena em que o arguido foi condenado.
Veja-se que quer no artº 14º do RGIT, quer no artº 56º CP, tal revogação só pode ter lugar em última ratio.
O que diga-se se compreende, face à preocupação do legislador em lutar contra a pena de prisão.
Por isso a revogação, como o refere expressamente o citado artº 56º nº 1 a), só se impõe se o condenado “ infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.
Não nos diz contudo a lei o que deve entender-se como violação grosseira dos deveres, ficando ao critério do julgador a sua fixação.
Parece-nos porém que o AcSTJ 97.02.19 CJSTJ 1/97, 166. é lapidar nessa definição e com a qual estamos absolutamente de acordo: “ A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a) do nº 1 do artº 56º do CP, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada. Só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação”.
Assim face a um incumprimento culposo das condições de suspensão o tribunal tem de ponderar se a revogação constitui a única forma de conseguir as finalidades da punição, isto é se as restantes providências consignadas no artº 14º nº 2 são manifestamente ineficazes para o caso concreto.
Como diz Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 357.“ Correcto seria que, qualquer que houvesse sido a natureza do incumprimento culposo das condições de suspensão, esta só fosse revogada se um tal incumprimento revelasse que as finalidades que estavam na base da suspensão já não poderiam, por meio desta, ser alcançadas; ou dito por outra forma, se nascesse dali a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade”.
Haverá então razões que justifiquem a não revogação da suspensão da pena ?
O acórdão condenatório da arguida transitou em julgado em 11 de Abril de 2005, tendo a execução da pena de prisão que então lhe foi aplicada ficado dependente do cumprimento da condição de pagarem ao Estado Português o montante dos impostos em dívida e acréscimos legais, no montante global de € 1.089.295,10, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, no prazo dos 4 anos subsequentes à condenação.
Em 8 de Julho de 2008 foram ambos os arguidos ouvidos, tendo a arguida referido que exercia a actividade de professora, auferindo um vencimento mensal de 1.500 euros, encontrando-se parte penhorado há 2 anos, por custas judiciais, descontando mensalmente 500 euros. Mais acrescentou que já foi proprietária de um veículo marca Audi, modelo TT, mas foram buscá-lo à escola onde lecciona, no início do ano lectivo ( Setembro de 2007/2008).
Mais foi na mesma altura afirmado por ambos que perspectivavam pagar a dívida até Agosto do mesmo ano.
Entretanto em 22 de Setembro de 2008, a Direcção Geral dos Impostos informou que não haviam sido feitos quaisquer pagamentos.
Volvido um ano, em 30 de Setembro de 2009, veio de novo a mesma entidade informar que não haviam sido entregues quaisquer quantias para o pagamento da dívida em causa.
Feita a consulta à base de dados, constatou-se que a recorrente não tem quaisquer veículos inscritos em seu nome.
Em 16 de Novembro de 2009, foi de novo a arguida ouvida em declarações, tendo esta, quando lhe foi perguntada a razão do não pagamento da indemnização, respondido que “ quando os problemas começaram a aparecer, os nossos bens começaram a ser penhorados, inclusive até o meu ordenado, que é penhorado já há algum tempo, e portanto sem a possibilidade de nós podermos recorrer a empréstimos, sem a possibilidade de vender os bens que já não tínhamos, portanto, não, não consegui fazer face a, esse pagamento”. Esclareceu na altura que o seu vencimento é de 1500 euros, de que lhe fica retido um terço, que vive em casa dos sogros, com dois filhos de 8 e 13 anos, respectivamente e com o marido.
Acrescentou ainda que nos últimos 5 anos fez um mestrado, cujo custo foi de 500 euros por semestre e durante dois anos e está a fazer um doutoramento, que não teve que pagar porque foi convidada e que só começou a pagar para fazer a tese, de seis em seis meses, mas normalmente são os sogros que lhe dão o dinheiro para fazer esses pagamentos.
A fls. 1227 a Escola Secundária de Alcanena informou o tribunal dos montantes auferidos mensalmente pela arguida nos anos de 2008 e 2009 e que variaram entre €1.075,24 em Janeiro de 2008 e €1.251,60 em Outubro de 2009.
Mais se destaca ainda o relatório elaborado pelo IRS e junto a fls. 1297 e ss, no qual se dá conta que a fracção autónoma onde a arguida residia com seu marido foi alvo de execução da hipoteca que o onerava, tendo sido colocado à venda em hasta pública no final de 2009 e adquirido pelos sogros, que está em cumprimento de pena de prisão de 3 anos e 6 meses no EPT, desde 4 de Novembro de 2009, em que foi condenada no processo …/04.TDLSB e ainda que está em curso o processo de divórcio.
Aí se refere ainda que a arguida revela uma estável inserção sócio-­profissional e uma personalidade bem formada, salientando-se que o projecto de vida apresentado pela arguida passa pela desvinculação do cônjuge e pelo investimento na sua relação com os filhos (que se encontram actualmente a cargo dos avós paternos) e no seu percurso profissional.
Verifica-se também da análise do despacho recorrido que o processo à ordem do qual a arguida cumpre pena é referente a uma condenação pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artº 105º nºs 1 e 2 do RGIT.
Finalmente releva ainda o facto de por sentença transitada em julgado proferida em 20 de Novembro de 2008 e transitada em 19 de Janeiro de 2009, ter sido decretada a insolvência da recorrente e marido ( fls. 1217 e ss).
Ora constituindo a revogação da suspensão e o consequente cumprimento da pena de prisão, a medida mais radical, a pergunta que cabe agora colocar é a seguinte: Será que a conduta da arguida ao longo destes anos consubstancia uma actuação indesculpável e que não merece ser tolerada ?
E ainda, será que a situação por si vivida durante este período é reveladora de que já se perdeu a finalidade da sua recuperação subjacente à suspensão ?
A nós parece-nos que face ao quadro relatado não se pode afirmar que a arguida violou de forma grosseira o dever de pagamento fixado no acórdão.
É que não só não ficou demonstrado que a arguida dispusesse de capacidade financeira para suportar o pagamento da referida indemnização após a prolação da sentença condenatória, como a mesma até se agravou, com a sua declaração de insolvência que mais não é do que o reconhecimento judicial de que o passivo suplantou o activo e mais recentemente com a sua prisão.
É que só assim seria se tivesse ficado demonstrado que a arguida podendo pagar, não o fez, pois que, como já referido anteriormente, o juízo sobre a revogação há-de traduzir-se numa manifesta e inequívoca violação dos deveres impostos ao condenado o que, no que concerne ao pagamento de indemnizações passa pela demonstração da sua capacidade financeira para o fazer.
Quer isto dizer que não ficou demonstrado que a arguida não cumpriu a condição por motivo que lhe seja imputável, mas sim por não ter possibilidades económicas de o fazer.
Ora a falta de capacidade financeira para pagar tão elevado montante indemnizatório não pode levar ao cumprimento da pena aplicada, pelo que assiste razão à recorrente ao sustentar que a suspensão da execução da pena não deveria ter sido revogada.
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que equacione a possibilidade de se lançar mão da medida prevista na alínea b) do artº 14º do RGIT, porquanto a opção pela revogação da suspensão da pena é manifestamente excessiva.

DECISÃO

Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam, em conceder provimento ao recurso e, consequentemente revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que pondere a possibilidade de aplicação da providência prevista na alínea b) do artº 14º do RGIT.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)
Tribunal da Relação de Coimbra, 8 de Setembro de 2010.