Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/11.7TAAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 353º CP
Sumário: O arguido, pese embora tenha sido notificado para tal, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorre na prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º, do Código Penal, uma vez que a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a sua realização.
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

1.1. Submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum singular, porquanto acusado pelo Ministério Público da prática indiciária de factualidade que o instituiria na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º, do Código Penal, realizado o contraditório, foi o arguido A..., por sentença, absolvido dessa autoria.

1.2. Porque desavindo, recorre o Ministério Público, extraindo do requerimento através do qual minutou o dissídio, a seguinte ordem de conclusões:
1. Findo o julgamento e produzida a prova, o M.mo Juiz
a quo deu como provado, que por sentença proferida no dia 25 de Outubro de 2010, no âmbito do processo sumário n.º 116/10.5 GAAGN, que correu termos no Tribunal Judicial de Arganil, foi o ora e também aí arguido condenado, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor na via pública, durante o período de três meses, e advertido de que deveria entregar a carta de condução de que é titular, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial sob pena de incorrer na prática de crime.

2. Mais deu o M.mo Juiz a quo como provado que o arguido se encontrava presente no dia da leitura da sentença tendo sido pessoalmente notificado de tal decisão; que a sentença transitou em julgado no dia 24 de Novembro de 2010 e que o arguido, não obstante ter sido notificado e de se saber obrigado a acatar aquela determinação não enviou nem procedeu à entrega da sua carta de condução no Tribunal Judicial de Arganil ou em qualquer posto policial no prazo que lhe fora concedido.

3. Todavia, considerou o M.mo Juiz a quo que não resultou provado que o arguido ao agir do modo descrito o fez livre e conscientemente sabendo estar a desrespeitar como quis e desrespeitou urna ordem que deveria acatar, por emanada de entidade competente, proferida no âmbito de funções e em conformidade com a lei, não ignorando que. o seu comportamento era contrário ao direito e penalmente censurável.

4. No que concerne à motivação positiva, o Mmo Juiz a quo fundou a sua convicção nas declarações do arguido, prestadas em julgamento e na certidão de fis. 2 a 10 destes autos.

5. Quanto à matéria dada corno não provada, o M.rno Juiz a quo motivou a sua decisão dizendo que ‘não foi feita prova”.

6. Ora, mal se compreende que o Tribunal a quo tenha dado como provado os factos supra descritos e não tenha considerado como provado que o arguido sabia da obrigação que tinha de entregar a sua carta de condução no prazo fixado, porquanto é o próprio que refere, no seu depoimento constante do CD 1 (02:15 minutos a 04:47 minutos), que sabia que tinha que entregar a carta de condução no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão proferida no processo n.º 116/10.5 GAAGN e que o fez depois dos 40 dias seguintes à leitura da sentença proferida naquele processo.

7. A tudo isto acresce que, encontrando-se presente no dia da leitura da sentença proferida no âmbito do processo n.º 116/10.5 GAAGN, o arguido foi advertido, pessoalmente, que tinha que proceder à entrega da carta de condução no prazo que lhe foi estipulado e que não o fazendo incorreria na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo art.º 353.º, do Código Penal.

8. Atentos os elementos de prova constantes nos autos, designadamente a certidão de teor junta de fls. 2 a 10 e as declarações do arguido em julgamento, conjugados com as regras da experiência comum, sempre, pois, deveria ter sido dado como provado que o arguido ao não proceder à entrega da carta de condução agiu de modo livre e consciente sabendo estar a desrespeitar uma ordem imanada por quem de direito e que tal circunstância o fazia incorrer em ilícito criminal.

9. Os elementos de prova carreados para os autos impunham a imputação ao arguido da autoria do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, sendo nolóriamente erróneo considerar, como o fez, o M.mo Juiz recorrido, que nenhuma prova foi realizada relativamente à actuação dolosa do arguido.

10. Porém, tendo havido documentação da prova produzida em audiência, o vício correspondente [ut art.º 410.º, n.º 2, alínea e), do Código de Processo Penal] sempre poderá ser ultrapassado com recurso não só ao texto da decisão recurso, como igualmente à própria documentação efectuada, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento [art.ºs 426.º, n.º 1 e 431.º, alínea b) do mesmo Código de Processo Penal].

11. Na decisão emanada, mais foi concluido impôr-se a absolvição do arguido, uma vez que, escreveu-se, “pese embora não tenha procedido à entrega da sua carta de condução no prazo de 10 dias contados do trânsito cm julgado da decisão condenatória, tendo em vista o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não praticou o crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo art.º 353.º do Código Penal, pois que a sua conduta não violou a concreta proibição de conduzir (a qual apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido) traduzindo-se apenas no não cumprimento de um comportamento processual prévio à execução da sanção acessória que se encontra previsto no art.º 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal “o qual, no entanto, não faz parte integrante do elemento objectivo do tipo inserto no art.º 353.º do Código Penal (violação da proibição de conduzir veículos motorizados).”.

12. Ao invés, entende-se, os factos praticados pelo arguido e pelos quais foi deduzida contra ele acusação preenchem o tipo objectivo e o tipo subjectivo do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo citado art.º 353.º.

13. In casu, o arguido ficou obrigado, por sentença transitada em julgado, a entregar a sua carta de condução no Tribunal ou no Posto da GNR, nos 10 dias seguintes ao trânsito em julgado da sentença que o condenou, o que não cumpriu.

14. A entrega da carta de condução nos termos supra referidos, a fim de iniciar o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, é uma imposição determinada por sentença judicial transitada em julgado, cujo não cumprimento determina a frustração de sanção imposta por sentença criminal, porquanto a pena acessória de proibição de conduzir só se inicia com a entrega da carta de condução.

15. Atenta desde logo a nova redacção introduzida através da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao mencionado art.º 353.º, tal conduta – não entrega da carta de condução no prazo fixado de 10 dias – integra o tipo de ilícito criminal previsto naquela norma, pois que viola uma imposição determinada em sentença transitada em julgado.

16. A consideração de que a não entrega da carta de condução no prazo estipulado não integra o apontado tipo de ilícito criminal redundaria num vazio punitivo para a conduta constituída pela não entrega voluntária da sua carta de condução e se visse frustrada a apreensão daquele documento nos termos do aludido art.º 500.º, n.º 2, já que tal culminaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

17. Sustenta-se, consequentemente, ter sido este vazio punitivo que a nova redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007 ao art.º 353.º, veio preencher, ao aditar à anterior redacção a “violação de imposições”.

18. Neste sentido se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 14 de Julho de 2010, acessível em www.dgsi.pt.jtrc, quando refere que “A descrição típica do crime, anteriormente apenas epigrafado de “Violação de proibições ou interdições”, foi substantivamente ampliada, prevendo agora, não só o sancionamento por violação das proibições impostas por sentença criminal a título de pena acessória, mas também a criminalização dos casos consubstanciadores de violação de imposições determinadas a igual título. A incriminação que, na lei antiga, apenas tratava de garantir o cumprimento de sanções impostas por sentença criminal que não possuíssem qualquer outro meio de assegurar a sua eficácia, foi alargada com a nova lei, de modo a contemplar também a violação de imposições onde se integra, inter alia, o não cumprimento de obrigação determinada na sentença, consubstanciada no dever de entrega, pelo arguido, da carta/licença de condução (...).”

19. Em boa verdade, uma vez que o cumprimento da pena acessória só se inicia com a apreensão do título de condução, admitindo-se que a conduta o arguido de não entregar no prazo dos 10 dias a sua carta de condução não integraria o elemento objectivo do tipo de ilícito criminal cm investigação, haveria arguidos que, tendo sido condenados na pena acessória de proibição de conduzir, por se furtarem à apreensão policial do título, não mais cumpririam essa pena, havendo outros que obedecendo à ordem legalmente dada pelo Tribunal, sofreriam efectivamente a condenação, conforme anotou o Ex.mo PGA no parecer emitido no âmbito daquele mesmo processo.

20. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, mostra-se merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais.

21. Acaso assim não suceda, estaria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de a cumprir apenas quando entendesse, O que não pode ter sido propósito do legislador que, avisado, atribuiu nova redacção àquele art.º 353.º.

Terminou pedindo que, alterada a matéria de facto no sentido propugnado, seja depois e também o arguido condenado pela autoria de um crime p.p.p. mencionado art.º 353.º.

1.3. Acatado o disposto pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o arguido não contra-alegou.

1.4. Proferido despacho admitindo o recurso, cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, no momento processual a que se reporta o art.º 416.º, do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente à procedência do recurso. Com efeito, anotou, devendo proceder-se à reclamada alteração da matéria de facto (embora por verificação do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão), a mesma integra depois, com a demais assente, a emergência do ilícito que na acusação vinha assacado ao recorrido.

1.6. Cumprido que foi o n.º 2 do subsequente art.º 4l7.º, nenhuma resposta ofertou o arguido.

1.7. No exame preliminar a que alude o n.º 6, ainda deste inciso, consignou-se que nenhuma circunstância impunha a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao respectivo conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir, com a recolha dos vistos devidos, e submissão à presente conferência.
Urge, consequentemente, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. Após discussão da causa, a sentença recorrida considerou como provados os factos seguintes:

1. Por sentença proferida no dia 25 de Outubro de 2010, no âmbito dos autos de Processo Sumário 116/10.5 GAAGN, que correram os seus termos no Tribunal Judicial de Arganil, foi o ora e também aí arguido condenado, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e advertido de que no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado, deveria entregar a carta de condução, de que é titular, na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, sob pena de incorrer na prática de um crime.

2. No dia da leitura da sentença, dia 25 de Outubro de 2010, o arguido que se encontrava presente, foi notificado pessoalmente de tal decisão.

3. A sentença referida transitou em julgado no dia 24 de Novembro de 2010.
4. Não obstante, assim, ter sido notificado e de se saber obrigado a acatar aquela determinação judicial, o arguido, que não reagiu por recurso à sentença proferida, não enviou, nem procedeu à entrega da sua carta de condução no Tribunal Judicial de Arganil, ou em qualquer posto policial, no prazo que lhe fora concedido.

Mais se provou que:

5. O arguido é electricista auferindo mensalmente o salário de € 563,00.

6. A esposa do arguido é operária auferindo mensalmente o salário equivalente ao salário mínimo nacional.

7. Têm uma filha menor de idade.

8. Pagam € 200,00 mensais do empréstimo da casa.

9. Têm um veículo automóvel.

10. O arguido possui o 11.º ano de escolaridade.

11. O arguido tem antecedentes criminais, mormente uma condenação pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal.

12. Por outro lado, e no que concerne a factos não provados, considerou como tais, os que se passam a elencar:

- O arguido, actuou livre e conscientemente, sabendo estar a desrespeitar, como quis e desrespeitou, uma ordem que deveria acatar, por emanada de entidade competente, proferida no âmbito de funções e em conformidade com a lei;

- Não ignorava, o arguido, que o seu comportamento era contrário ao direito e penalmente censurável.

13. Por fim, tem o teor que segue a motivação probatória constante da mesma decisão:

Motivação da decisão de facto positiva:

O Tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido, o qual admitiu não ter entregue a sua carta de condução no prazo que lhe foi cominado na sentença, esclarecendo, contudo, que o tentou fazer no posto da GNR de Góis, mas não lhe aceitaram a carta, porém, porque precisava da carta, por razões profissionais, acabou por não a entregar no tribunal.

Teve-se ainda em consideração a documentação constante dos autos, nomeadamente o teor da certidão de fls. 1 a 10.

Quanto às condições de vida nas declarações do arguido que nos mereceram credibilidade.

No que tange aos antecedentes criminais no teor do CRC. junto a fls. 53/54.

Motivação da decisão de facto negativa: Não foi feita prova.


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III – Fundamentação de direito.

3.1. O objecto de um recurso penal é definido através das conclusões que o
recorrente extrai da respectiva motivação, mas isto sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso — art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º 1, daquele art.º 412.º, e conforme jurisprudência pacífica e constante[1], o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito[2].

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar — ditos art.ºs 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e 2[3].

Nesta perspectiva, no caso vertente, porque não intercede fundamento para qualquer intervenção oficiosa, vistas as conclusões do recorrente, importa então aquilatar se se impõe a reclamada alteração da matéria de facto e, sendo afirmativa a resposta, a materialidade que depois sobressai constitui o arguido enquanto agente material do ilícito decorrente da previsão do indicado art.º 353.º.

3.2. No que concerne à primeira das questões elencadas, afigura-se-nos dever proceder o recurso, embora apenas parcialmente e por distinto fundamento.
Na verdade, e como começou por precisar a Ex.ma PGA, a decisão recorrida padece quanto a parte do segmento factual de um dos vícios previstos pelo art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, qual seja o da sua alínea b), isto é, de contradição insanável entre fundamentação e a decisão. Vício susceptível de ser reparado nesta instância, por conterem os autos todos os elementos de prova que lhe serviram de base [cfr. art.ºs 426.º e 431.º, alínea a), ambos daquele diploma adjectivo].

E, vício que, tal como os demais, aliás, previstos nesse art.º 410.º, n.º 2, resulta do próprio texto da decisão recorrida, por si só e conjugado com as regras da experiência comum, sem apelo a elementos que lhe sejam alheios.
Precisando:
Consta da decisão de facto positiva, nomeadamente, que o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido, o qual admitiu não ter entregue a sua carta de condução no prazo que lhe foi cominado na sentença, esclarecendo, contudo, que o tentou fazer no posto da GNR de Góis, mas não lhe aceitaram a da carta, e, por razões profissionais, acabou por não a entregar no Tribunal.

Depois, como factos não provados (rectius, elemento subjectivo da infracção imputada) consideraram-se:

- O arguido, actuou livre e conscientemente, sabendo estar a desrespeitar, como quis e desrespeitou, uma ordem que deveria acatar, por emanada de entidade competente, proferida no âmbito de funções e em conformidade com a lei;

- Não ignorava, o arguido, que o seu comportamento era contrário ao direito e penalmente censurável.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Fevereiro de l983[4], “o dolo pertence à vida interior de cada um, sendo, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só sendo possível captar a sua existência através de actos materiais comuns”, e ainda, no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra[5], “não obstante o dolo pertencer ao íntimo de cada um, ser um acto interior, revestindo natureza subjectiva, o facto de o arguido exercer o direito ao silêncio não impede que a existência daquele seja captada através de dados objectivos, através das regras da experiência comum”.

Qualquer comum cidadão (e é nesta perspectiva que a questão deverá ser dilucidada) sabe que as ordens judicialmente emanadas são para serem cumpridas.
Por outro lado, não despiciendo na situação presente, importa lembrar que a ordem cominada ao arguido pelo Tribunal, no âmbito do processo sumário n.º 116/10.5 GAAGN, foi ademais no sentido em que eventual omissão na entrega da carta de condução, o faria incorrer na prática de um crime.

Como o próprio recurso presente comprova, não era (é) líquido que assim sucedesse (suceda).

Em todo o caso, foi neste quadro e circunstância que o recorrido omitiu a entrega da sua carta de condução. Salvaguardando então o erro em que pode ter agido, certo é, todavia, que, tudo conjugado (regras da experiência comum e factos objectivos provados n.ºs 1 a 4), se mostra contraditória a consideração como não provados dos dois elementos aludidos.

Impõe-se, pois, concluir que o Tribunal a quo incorreu em contradição insanável, na apreciação que aqui fez da prova, valoração que agora importa corrigir, à luz do citado art.º 426.º, n.º 1, eliminando-se esses dois itens da matéria de facto não provada, cuja respectiva factualidade passa a integrar os pontos 4-A e 4-B da “Matéria de facto provada”, com as seguintes e respectivas redacções:

“4-A. O arguido, actuou livre e conscientemente, sabendo estar a desrespeitar, como quis e desrespeitou, uma ordem que deveria acatar, por emanada de entidade competente, proferida no âmbito de funções e em conformidade com a lei;

4-B. Convicto de que o seu comportamento era contrário ao direito e penalmente censurável.”

3.3. Fixado o acervo fáctico dos autos, questão subsequentemente reclamada, a do seu enquadramento jurídico, mais precisamente apurar se tal conduta é passível de se subsumir ao crime p. e p. pelo controvertido art.º 353.º.

A propósito, foi proferido aresto[6] neste Tribunal, pela Ex.ma Desembargadora Maria José Nogueira, dando nota da controvérsia actualmente reinante e sufragando tese a que (tal como desde o início) aderimos.
Porque nenhum elemento novo se nos antolha emergir susceptível de a alterar (mormente o que resultaria de uma ampliação do tipo, por força da redacção introduzida a esse normativo através da Lei n.º 57/2009), passamos a citá-lo, com a devida vénia.

Ilustrando o dissídio instalado a propósito começa por elencar, exemplificativamente, os acórdãos do TRC de 20.01.2010 [proc. n.º
672/08.8 TAVNO.C1], 23.06.2010 [proc. n.º 1001/08.6 TAVIS.C1], 30.06.2010 [proc. n.º 149/08.1 TAVGS,C1], 14.07.2010 [proc. n.º
48/09.0 TAVGS.C1], 12.07.2011 [proc. n.º 295/09.4 TAVIS.C1], 12.05.2010 [proc. n.º 1745/08.2 TAVIS.C1], 06.10.2010 [proc. n.º
24/09.2 TAVGS.C1], 16.12.2009 [proc. N.º 82/08.7 TAOBR.C1], 22.04.2009 [proc. N.º 329/07.07] do TRG de 03.05.2011 [proc. n.º
50/11.1 GBGMR.G1], do TRE 14.06.2011 [proc. 146/09.0 TAPTG], 24.03.2011 [proc. n.º 2/09.1 TAABF.E1], do TRL de 18.12.2008 [proc.
1932/08], 24.03.2010 [proc. 470/04.8 TAOER.L1-3.ª] do TRP de
10.11.2010 [proc. 118/09.4 T3OVR.P1], 22.09.2010 [proc.
2700/09.0 TAVLG.P1].

Após, continua, e citamos: «Também na doutrina não se detecta convergência de posições, pronunciando-se Paulo Pinto de Albuquerque no sentido de que o incumprimento da obrigação de entregar a carta integra o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal — [cfr. Comentário do Código Penal, 1.ª edição, pág. 834 e Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 1256], enquanto Tolda Pinto, em comentário ao artigo 160.º do Código da Estrada, incluído no “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. I, 2010, UCE, escreve... Assim, o tribunal, ao proferir decisão condenatória que aplica a pena acessória prevista no art.º 69.º, deve notificar o arguido da obrigatoriedade da entrega da carta no prazo de 10 dias (cfr. n.º 3 do art.º 69.º do CP e n.º 2 do art.º 500.º do CPP), após o decurso do prazo do recurso, advertindo-o de que o não cumprimento tem consequências penais — o cometimento do crime de desobediência conforme contempla o n.º 3 do CE. Essa advertência deve constar da notificação da decisão (oral ou escrita), conforme estabelece a parte final do n.º 3 do art.º 160.º do Código da Estrada.»

Realçando as três orientações, uma das quais com duas variantes, que é assim possível descortinar, precisando da concreta questão decidenda — isto é, apurar se a factualidade dada por assente é subsumível no dito crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, prossegue:

«E, naturalmente, com o sempre devido respeito por opinião em contrário, entendemos que não.

Por nos revermos na argumentação aí expendida transcrevemos o que a propósito ficou consignado no acórdão do TRC de 12.05.2010 [Relator, Desembargador Ribeiro Martins, reproduzido no acórdão do TRC de 06.10.2010 [Relator, Desembargador Orlando Gonçalves]: O que a norma do art.º 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória: não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.

Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art.º 69.º do CP), quem exercer função (art.º 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art.º 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g., não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa do serviço, estas obrigações processuais (...). E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (...) Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art.º 69/1 do Código Penal.

E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só”.

Em idêntico sentido, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353.º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de nele, também, incluir a não entrega da carta de condução, no prazo dos 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, e uma vez mais por traduzir, a esse respeito o nosso pensamento, até porque, modestamente reconhecemos nada termos já a acrescentar, reproduzimos as seguintes passagens do acórdão do TRP de 02.03.2011 [Relator, Desembargador Araújo Barros]: Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada»

(…)
A alteração do artigo 353.º do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de “imposições”, a par das de “proibições e interdições”, pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90.º – A, n.º 2, alínea a), e 90.º – G do Código Penal
”.» (itálico e sublinhado nossos)

Subsumindo o que vem de dizer-se ao caso dos autos, conclusão óbvia a de que o recorrido, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º, do Código Penal, como pretende o Ilustre recorrente, uma vez que, nos termos sobreditos, a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.

Corolário, o de haver de considerar-se por improcedente esta parte do recurso.


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IV – Decisão.

Em face de todo o exposto, na procedência parcial do recurso interposto:

- Determina-se a alteração do acervo factual, tal como consignado supra em
III 3. 2.

- No mais, mantém-se a sentença recorrida.

Sem custas, vista a isenção processual do recorrente.


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Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves


[1] Designadamente, do S.T.J. — Acs, de 13 de Maio de 1998; de 25 de Junho de 1998 e de 3 de Fevereiro de 1999, in, respectivamente, BMJ’s 477/263; 478/242 e 477/271.
[2] Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19 de Outubro de 1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28 de Dezembro de 1995.

[3] A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Volume III, 2.ª edição, 2000, fls. 335: “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.”

[4] Publicado no BMJ, n.º 324, pág. 620.
[5] Datado de 16 de Novembro de 2005, relatado pelo (então) Ex.mo Desembargador João Trindade, acessível em www.dgsi.pt.jtrc.
[6] In recurso n.º 984/09.3 TAVIS.C1, com data de 9 de Novembro de 2011, disponível em www.dgsi.pt.jtrc.