Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
786/09.7T2OBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.150 E 192 OTM, 1409 A 1411 CPC, CONVENÇÃO DE HAIA DE 25/10/1980, REGULAMENTO (CE) Nº2201/2003 DO CONSELHO DE 27/11/2003
Sumário: I - O processo de entrega judicial de menor tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita;

II - A Convenção Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças tem por objectivo assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-Membro;

III - Nos termos do artº 11º daquela Convenção e do artº 11º, nº 3, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003, o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança;

IV – Por isso, não constitui nulidade a circunstância de o tribunal ter dispensado a produção de prova oferecida pelo requerido, tanto mais se, no requerimento respectivo, se pede a inquirição de testemunhas por carta rogatória e a efectivação de inquérito;

V- Aquele Regulamento pretende desencorajar o rapto de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, se tal vier a ocorrer, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estado-Membro de origem;

VI - A deslocação de uma criança de um Estado-Membro para outro sem o consentimento de um dos titulares constitui um rapto da criança ao abrigo do mesmo Regulamento;

VII - Este reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do artº 13º da referida Convenção; o princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

O Magistrado Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores da Comarca do Baixo Vouga, requereu, em 04/03/2010, a pedido de M (…), residente no Luxemburgo, mãe da menor M.A. (…), nascida a 03/09/2005, por intermédio da Autoridade Central, Direcção-Geral de Reinserção Social, a instauração, com carácter de urgência, do presente processo para entrega judicial de menor, ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25/10/1980, Regulamento C. E. n.º 2201/2003 do Conselho de 27/11/2003 e artº 160.º da OTM, contra o pai da mesma menor, V (…).

Conclusos os autos, veio a ser vertido neles despacho, com a mesma data, que determinou a respectiva apensação aos autos de regulamentação do poder paternal com o n.º 786/09.7T2OBR, em que figura como requerente o pai da menor, designando-se para declarações ao mesmo o dia 10/03/2010.

Tomadas declarações ao requerido, por ele foi dito ter receio de devolver a criança à mãe por a mesma não reunir condições para receber a menina, requerendo a concessão de um prazo para deduzir oposição.

Deduziu o requerido contestação, concluindo por afirmar que é de todo inapropriado o envio da menor para o Luxemburgo, como se de uma “mercadoria” se tratasse, pelo que termina pedindo se julgue improcedente o deduzido pedido de entrega da menor; culminou a sua oposição com um extenso requerimento de prova, onde se inclui o relatório social, o depoimento de parte da mãe da menor e 14 testemunhas, a última das quais a ser ouvida por carta rogatória a expedir para o Luxemburgo.

O Ministério Público, na vista que teve de seguida, promoveu se ordenasse “o regresso voluntário da criança, notificando-se o progenitor para, no prazo de dez dias, proceder à entrega voluntária da filha às autoridades Luxemburguesas e processo do qual foi emanado o presente expediente, juntando a estes autos declaração de tal entrega emitida pelo titular desses autos, sob pena de, não fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência”; mais promoveu que, para apreciação da responsabilidade criminal do pai da menor pela prática de eventual crime de rapto, lhe fosse entregue certidão do processo.

Seguidamente, em 26/03/2010, verteu-se nos autos sentença, que decidiu do seguinte modo:

Nestes termos e sem mais, determino o regresso imediato da menor M.A. (…) ao Luxemburgo, onde deverá ser entregue à sua progenitora.

Para o efeito deverá o Requerido pai proceder à entrega da menor à mãe no Luxemburgo no prazo de 10 dias a contar da notificação pessoal que para o efeito lhe vai ser efectuada, com a cominação de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, do que fica desde já expressamente advertido.

Deverá o Requerido fazer chegar ao Processo documento assinado pela progenitora comprovativo da entrega da menor”.

Inconformado com o assim decidido, interpôs o requerido recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, o apelante, o qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “Verifica-se a nulidade da sentença em causa, dado que a mesma não observou nem se ateve na consideração do princípio basilar de toda a sistemática normativa e processual que impõe a produção de prova ainda que mínima tanto mais considerando as implicações que tal decisão tem na vida e saúde da menor;

2ª – Dado que a sentença foi proferida sem que fosse produzida qualquer prova, nomeadamente o requerido relatório social, as condições oferecidas pelo progenitor e o perigo inerente à entrega à progenitora da menor;

3ª – Ouvindo as testemunhas, o que se imponha ao Tribunal, sob pena de decidir, como decidiu, em detrimento dos verdadeiros e ponderosos interesses da menor;

4ª – Por outro lado, é pressuposto do objecto da Convenção a existência de rapto, consubstanciado na violação de um direito de custódia, atribuído a outra pessoa, de forma ilícita. E, é igualmente pressuposto que esse direito de custódia esteja a ser exercido, individualmente e de forma efectiva;

5ª – Ora, in casu, não estão minimamente cumpridos os pressupostos de aplicabilidade da aludida Convenção, dado que nãos e verifica, por um lado, que exista um direito de custódia adstrito à progenitora da menor, muito menos que tenha sido efectivado de forma individual, regular e efectiva;

6ª – Por outro lado, a deslocação da menor não foi efectuada de forma ilícita, ao contrário do que pretende de forma abusiva e falaciosa a progenitora da menor;

7ª – Pois que o requerido reúne todas as condições para prover amor, carinho, sustento e bem-estar à menor;

8ª – Ainda, sempre se verifica, nos termos do artigo 14º da Convenção que tendo em conta a legislação luxemburguesa, e considerando a própria informação proveniente desse Estado-Membro, ambos os progenitores têm igual capacidade para o exercício do poder paternal;

9ª – Logo, o requerido não violou ilicitamente qualquer direito de custódia em relação à menor, dado que tal direito de custódia pertence-lhe!!!

10ª – Finalmente, ainda que não se entenda quanto a tudo o que supra veio alegado, e que aqui se dá por reproduzido, há indubitavelmente, perigo grave na deslocação da menor para o Luxemburgo ao nível da sua saúde física e psicológica;

11ª – Isto porque, a menor é portuguesa (só estiveram no Luxemburgo 2 meses), os pais são portugueses, os avós paternos e tios maternos estão em Portugal, a menor fala português, está social e familiarmente inserido, sendo uma criança alegre e amorosa;

12ª – Por tudo isto, nos termos dos artigos 13.º, alíneas a) e 20º da Convenção, resulta comprovados os factos necessários à determinação da rejeição do pedido de entrega imediata da menor à progenitora, por inexistência de qualquer fundamento e muito menos de qualquer facto que o legitime;

13ª – Sendo que a sentença ora recorrida viola o intuito normativo da OTM e da própria Convenção de Haia, bem como o disposto nos respectivos art.ºs supra mencionados e os mais elementares princípios constitucionais”.

Contra-alegaram o Ministério Público e a mãe da menor, ambos pugnando pela manutenção do julgado.


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ÂMBITO DO RECURSO


O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber:

- Se a sentença recorrida enferma da apontada nulidade; e

- Se estão preenchidos os pressupostos da Convenção de Haia para a entrega da menor à mãe.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

- V (…) e M (…), pais da menor M.A. (…), nascida a 03/09/2005, acordaram entre si emigrar para o Luxemburgo levando consigo a filha, o que fizeram em Julho de 2009;

- De comum acordo fixaram residência nesse País onde passaram a viver, onde lograram obter trabalho remunerado, mediante contrato de trabalho;

- Devido a desentendimentos com a progenitora, o pai da menor abandonou o lar, ali ficando a residir a menor com a sua mãe;

- Em Setembro de 2009, o pai da menor decidiu regressar a Portugal, e, sem o consentimento da mãe da menor, decidiu trazer consigo a filha;

- Na sequência disso, a mãe da menor requereu no Luxemburgo a regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha e deu início ao presente expediente, invocando a legislação sobre o rapto internacional – Convenção de Haia de 25/10/1980 e o Regulamento 2201/2003, de 27/11.


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O DIREITO

1 - A nulidade da sentença

O apelante arguiu a nulidade da sentença recorrida, em virtude de esta ter sido proferida sem que se tivesse produzido qualquer prova, nomeadamente o requerido relatório social, as condições oferecidas pelo progenitor e o perigo inerente à entrega da menor à respectiva progenitora.

Mas, ressalvado o devido respeito, não assiste razão ao apelante. Na verdade, o Tribunal “a quo” dispensou a realização das diligências probatórias que foram requeridas pelo apelante, na sua contestação. Mas nem por isso se cometeu nulidade alguma, atenta a natureza do processo em causa.

A Convenção Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, ratificada por todos os Estados-Membros, estabelece no seu artº 1º, al. a), que tem por objectivo “assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante…”.

Nos termos do artº 11º daquela Convenção e do artº 11º, nº 3, do Regulamento Bruxelas II [Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000], o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança. Se o tribunal não tiver tomado uma decisão no prazo de seis semanas, pode ser solicitado a justificar o seu atraso[1].

Ora, o regresso da menor M.A. (…) foi solicitado pelas autoridades judiciárias do Estado do Luxemburgo, como resulta dos documentos de fls. 6 a 8. Esse pedido tinha carácter muito urgente e, como tal, o tribunal podia dispensar a realização de diligências que não se enquadrassem naquele espírito de urgência do procedimento.

E o certo é que o Tribunal “a quo” apontou as razões pelas quais não produziu a prova requerida pelo ora apelante. Como se diz na sentença recorrida, “os documentos juntos aos Autos, doutas alegações oferecidas quer nestes quer nos Autos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais de que os presentes constituem apenso, e demais elementos constantes do Processo são sobejamente suficientes para se poder conhecer, com segurança, dos fundamentos meritórios do pedido, razão pela qual indefiro os requerimentos de prova do progenitor, por dilatórios e desnecessários”.

Aliás, se bem repararmos, o requerimento de prova do apelante, ao requerer a elaboração de um relatório social, o depoimento de parte da requerida e a inquirição de 14 testemunhas, uma das quais a inquirir por carta rogatória, tinha como necessária consequência impedir a resposta célere ao pedido de entrega da menor solicitado por um Estado-Membro. A ser ordenada a realização de tais provas, nunca o pedido poderia ser atendido nas seis semanas seguintes à sua apresentação, com o que se frustraria o que se dispõe no citado Regulamento, segundo o qual o tribunal deve utilizar o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional. Sabe-se, como efeito, que a elaboração de um relatório social e a inquirição de 14 testemunhas leva algum tempo a concretizar. E que a inquirição de uma testemunha por carta rogatória pode demorar vários meses.

Ademais, o próprio artº 192º, nº 1, da OTM, dispõe que o juiz «pode» ordenar as diligências convenientes, o que, desde logo, confere ao juiz uma inescapável margem de manobra na realização, ou não, de determinadas diligências. O que decorre também, em certa medida, do preceituado no artº 191º, nº 5, do mesmo diploma legal, ao dispor que “se houver contestação e necessidade de provas, o juiz só decidirá depois de produzidas as provas que admitir”.

E, tendo o processo de entrega judicial de menor natureza de jurisdição voluntária[2], o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita. Os processos tutelares cíveis, como é o caso, são considerados de jurisdição voluntária (artº 150º da O.T.M.). Este tipo de processos tem um regime peculiar, que diverge em muito do regime geral do processo contencioso (v. artºs 1409º a 1411º do C. de Proc. Civil). Do regime dos processos de jurisdição graciosa destacam-se quatro pontos fundamentais:

a) O predomínio do princípio inquisitório sobre o dispositivo, quanto ao objecto do processo, já que o tribunal não está limitado, em regra, aos factos articulados pelas partes;

b)  O predomínio da equidade sobre a legalidade, já que, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna;

c) A livre revogabilidade das resoluções, uma vez que, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; e

d)  A inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça[3]

Como tem sido doutrinariamente sustentado, o traço fundamental da distinção entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa reside na natureza desenvolvida em cada uma delas[4].

Assim, «a jurisdição voluntária implica o exercício de uma actividade essencialmente administrativa, a jurisdição contenciosa implica o exercício de uma actividade verdadeiramente jurisdicional[5]».

Sendo, pois, como é, o processo em questão de jurisdição voluntária, o tribunal não está sujeito a medidas estritas de legalidade e pode adoptar, em cada momento, as medidas que julgue mais convenientes e oportunas. Nesta conformidade, decidiu já o S.T.J., no seu acórdão de 05/11/2009, que “não é motivo de nulidade de acórdão proferido num processo de jurisdição voluntária a discordância sobre a forma como são exercidos os poderes de investigação do tribunal[6]”.

Improcede, pois, a arguida nulidade.


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2 - Se estão preenchidos os pressupostos da Convenção de Haia para a entrega da menor à mãe

Defende o apelante que não estão preenchidos os pressupostos em que a referida Convenção faz assentar a entrega das crianças. Em primeiro lugar, por não se verificar a existência de um direito de custódia adstrito à mãe da menor. E, em segundo, por existir um perigo grave na deslocação da menor para o Luxemburgo, ao nível da respectiva saúde, tanto física como psicológica. Mas, também aqui, o apelante não convence.

O aludido Regulamento Bruxelas II pretende desencorajar o rapto de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, se tal vier a ocorrer, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estado-Membro de origem[7]. Para efeitos do Regulamento, o rapto da criança abrange tanto a deslocação ilícita como a retenção ilícita (item 11 do artigo 2º).

O juiz deve primeiramente determinar se existiu uma “deslocação ou retenção ilícitas”, na acepção do Regulamento. A definição do ponto 11 do artº 2º é muito semelhante à definição constante da Convenção de Haia de 1980 (artº 3º) e abrange a deslocação ou retenção da criança em violação dos direitos de guarda reconhecidos na legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes do rapto. Contudo, o regulamento acrescenta que a guarda é considerada como sendo exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode decidir sobre o local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental. Por conseguinte, a deslocação de uma criança de um Estado-Membro para outro sem o consentimento de um dos titulares constitui um rapto da criança ao abrigo do Regulamento[8].

O Regulamento reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do artº 13º[9] da Convenção. O princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem.

Ora, como resulta da factualidade dada como adquirida, que não foi impugnada pelo apelante, foi de comum acordo que os pais da menor M (…) fixaram residência no Luxemburgo, onde passaram a viver com aquela menor, aí tendo logrado obter trabalho remunerado. Aquele país, como é do domínio público, tem um dos mais altos níveis de vida dos países da União Europeia, sendo a sua população constituída por cerca de 10% de portugueses emigrados.

Devido a desentendimentos com a mãe da menor, o ora apelante abandonou o lar, pelo que a menor M (…) passou a residir somente com a mãe.

E, em Setembro de 2009, o ora apelante decidiu regressar a Portugal e, sem obter o consentimento da mãe da menor, decidiu trazer consigo a M (…). Como se diz na comunicação da Direcção-Geral de Reinserção Social de fls. 3 a 5, o “requerido pediu à progenitora para passar alguns momentos com a filha, a mãe aceitou, aproveitando esse facto, o progenitor no último sábado do mês de Setembro não mais entregou a criança”.

Ora, como bem refere a sentença recorrida, tratando-se de uma questão de particular importância para a vida da menor, a mudança de residência quando é feita para país diferente daquele em que vive exige o acordo de ambos os progenitores.

E, por acordo dos pais, a residência da menor fixou-se no Luxemburgo. E não restam dúvidas que era a mãe que tinha a custódia da M (…), na residência que foi estabelecida no Luxemburgo, por acordo entre ambos os progenitores. Residência que o ora apelante abandonou.

Por isso, após o abandono da residência do casal por parte do apelante, era a mãe da M (…) quem efectivamente tinha a custódia desta.

Daí que a retirada da menor do local destinado por ambos os progenitores à residência da filha M (…) e a sua deslocação para Portugal, sem acordo ou consentimento da respectiva mãe, tem de ser considerada “ilícita”, para efeitos do art.º 3º da aludida Convenção[10] de Haia.

Essa retirada da menor, sem acordo ou consentimento da mãe, foi feita com clara violação do nosso texto constitucional, já que, segundo o artº 36º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa, os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

A retirada da menor pelo pai ocorreu em Setembro de 2009, ou seja, há menos de um ano, sendo certo que a mãe não deu o seu consentimento ou manifestou qualquer concordância, posteriormente àquela retirada.

Bem pelo contrário, manifestou total desacordo com esse acontecimento, já que foi ela quem fez despoletar os instrumentos internacionais com vista ao regresso imediato da menor, o que retira credibilidade à alegação do progenitor de que a mãe não se preocupa com a filha.

Além disso, também não tem qualquer suporte a afirmação de que o regresso da menor ao Luxemburgo acarrete risco grave para ela e que esse regresso a exponha a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, a ficar numa situação intolerável.

Se o Estado do Luxemburgo pediu a entrega da menor é porque reconhece que a respectiva mãe tem condições para a ter consigo. Além disso, estando já pedida, naquele país, a regulação do exercício do poder paternal referente à menor, essas condições não deixarão de ser objecto de assídua avaliação com vista a decidir aquela regulação. 

E, embora não decisivas, as fotos juntas aos autos, que mostram a menor e a mãe juntas, deixam perceber a afectividade que existe entre ambas.

Por último, se o regresso ao Luxemburgo, para ser entregue à mãe, representasse algum perigo para a menor, não se percebe como o ora apelante possa ter abandonado o lar, deixando a sua filha entregue aos cuidados da mãe. Se esta não tinha capacidade para tratar da filha e representava algum perigo para a sua integridade física ou psíquica, mal se entenderia como o pai podia ter abandonado, como abandonou, a filha (item 3º dos factos), deixando-a entregue aos cuidados da mãe.

Em suma, improcedem as conclusões da alegação do apelante, pelo que a douta sentença recorrida tem de se manter.


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Sumário:

1 - O processo de entrega judicial de menor tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita;

2 - A Convenção Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças tem por objectivo assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-Membro;

3 - Nos termos do artº 11º daquela Convenção e do artº 11º, nº 3, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003, o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança;

4 – Por isso, não constitui nulidade a circunstância de o tribunal ter dispensado a produção de prova oferecida pelo requerido, tanto mais se, no requerimento respectivo, se pede a inquirição de testemunhas por carta rogatória e a efectivação de inquérito;

5 - Aquele Regulamento pretende desencorajar o rapto de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, se tal vier a ocorrer, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estado-Membro de origem;

6 - A deslocação de uma criança de um Estado-Membro para outro sem o consentimento de um dos titulares constitui um rapto da criança ao abrigo do mesmo Regulamento;

7 - Este reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do artº 13º da referida Convenção; o princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.


[1] Vide Guia prático para aplicação do novo Regulamento Bruxelas II, edição da Comissão Europeia, pág. 43.
[2] Vide neste sentido Rui Epifânio e António Farinha, OTM Anotada, Almedina 1997, 465.
[3] Vide Antonino Antunes, O.T.M. Comentada e Anotada, 94 e 95.
[4] Vide Rui Epifânio e António Farinha, ob. cit., 180.
[5] Prof. Alberto dos Réus, Processos Especiais, 2º, 398.
[6] Disponível em www.dgsi.pt, proc. 1735706.0TMPRT.S1, e citado no despacho de fls. 192.
[7] A expressão «Estado-Membro de origem» é aqui usada em contraponto ao de «Estado-Membro requerido», que é aquele para o qual a criança foi deslocada; por isso, aquele termo «origem» refere-se ao Estado onde a criança tinha a sua residência e não àquele de onde é natural.
[8] Vide Guia prático citado, pág. 40.
[9] É do seguinte teor aquele artigo 13º:
Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha o seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, a ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.
[10] É do seguinte teor aquele artº 3º:
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e
b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.