Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
259/17.4TXCBR-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
NATUREZA DO DESPACHO
VÍCIOS
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 118.º, N.ºS 1 E 2; 379.º, N.º 1, AL. A) E 123.º, DO CPP; ART.ºS 152.º E 154.º, DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
Sumário: I – Nos termos do art.º 118.º do CPP, que consagra o princípio da legalidade das nulidades, «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei», constituindo irregularidade nos demais casos – n.ºs 1 e 2.
Portanto, a consequência da violação do dever geral de fundamentação de acto decisório depende do acto que esteja em causa.

Tratando-se de sentença a consequência da falta de fundamentação na forma prevista na lei é a nulidade, pois assim o diz a lei no art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Quando a lei não comine a nulidade o acto será irregular, sujeito à disciplina do art.º 123.º do CPP.

II – Por isso, apurar se o despacho recorrido que atendeu a factos que não constam do elenco dos factos enumerados na “fundamentação de facto” e que, inclusive, não se verificam, enquadra uma nulidade ou, ao invés, uma irregularidade, depende da resposta à pergunta sobre a natureza da decisão que aprecia a liberdade condicional do condenado.

III. A este propósito a jurisprudência divide-se por ambas as soluções, cada uma delas com argumentos válidos nas respectivas defesas.

IV – O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade estabelece, no art.º 152.º, n.º 1, que «salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo para a prática de qualquer acto processual».

Não prevendo este código prazo diferente para a arguição de irregularidades e estabelecendo o seu art.º 154.º o princípio da aplicação subsidiária do CPP, resulta, então, que o prazo de arguição de irregularidade é o prazo geral de dez dias.

V – Mostrando-se admissível, pelo menos em tese, que a decisão recorrida, expurgada das considerações que não respeitam ao arguido, pudesse ter um outro desfecho, cumpre assim apreciar o requerimento apresentado pelo arguido o qual deve ter-se também por tempestivo.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

1.

Por decisão de 30-7-2020 não foi concedida liberdade condicional ao arguido CS.

2.

O arguido recorreu, concluindo que:

- contrariamente ao que consta da alínea 10) da “Fundamentação de Facto” concluiu o 12º ano;

- por isso o despacho recorrido enferma de erro de escrita ou sobre os pressupostos de facto em que se baseou, incorrendo em irregularidade, nos termos do art. 123º, do C.P.P que, atempadamente invocada, deveria ter sido suprida;

- esta irregularidade é susceptível de influir na apreciação e decisão de concessão ou recusa da liberdade condicional e acarreta a nulidade do processado subsequente, nos termos do art. 123º, nº 1, com a consequência legal do art. 122º, nº 1, ambos do C.P.P.;

- na “Fundamentação de Direito” o despacho recorrido refere-se a uma “sentença de cúmulo” e ao “consumo de álcool” por parte do condenado;

- relativamente ao arguido, nos presentes autos ou em outro qualquer, nunca foi proferida sentença de cúmulo jurídico;

- em parte alguma do processo se fala em consumo de álcool por parte do arguido;

- a circunstância de ter sido condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes não permite concluir pela existência de tendência criminosa, de que o despacho recorrido fala;

- também por estas razões o despacho recorrido enferma de erro de escrita ou sobre os pressupostos de facto em que se baseou a decisão, incorrendo na irregularidade prevista no art. 123º, do CPP, a qual tendo sido em devido tempo arguida nos termos do art. 152.º do CEPMPL, deveria ter sido suprida;

- os autos devem baixar à 1ª instância para que ali seja reformado o despacho proferido, emitindo nova decisão expurgada das irregularidades cometidas e concedendo a liberdade condicional:

- caso assim não se entenda deverá o despacho recorrido ser alterado, concedendo ao arguido a liberdade condicional;

- encontra-se em reclusão há mais de cinco anos, sempre manteve um bom comportamento disciplinar e desde Maio de 2019 trabalha na secção de vendas do EP de (...) , fazendo atendimento ao público, sem que se tenha verificado qualquer incidente;

- beneficiou de várias medidas de flexibilização da pena e actualmente usufrui de licença de 45 dias, nos termos do Decreto-Lei n.º 9/2020, sem que até à data tenham ocorrido quaisquer incidentes quanto às injunções a que está obrigado;

- aproveitou o tempo de reclusão para a sua valorização académica, tendo concluído o 12º ano de escolaridade, quando à data em que foi detido tinha concluído o 9º ano;

- antes da sua reclusão trabalhava na área da comercialização e construção naval, sector de actividade onde é profissionalmente reconhecido e ao qual, por força das competências adquiridas nessa área, pretende regressar para trabalhar;

- a sua mãe vive sozinha e quando em liberdade irá residir com ela;

- por todo o exposto não só o juízo de prognose a realizar quanto ao comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade se apresenta favorável, como também tal juízo de prognose é igualmente favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade e quanto ao impacto de tal libertação no que diz respeito às exigências de ordem e paz social;

- está social, familiar e profissionalmente bem enquadrado e é nula a possibilidade de qualquer alarme social com a sua libertação;

- inexiste qualquer tendência criminosa da sua parte, despoletadora de comportamentos não conformes com as regras sociais, estando por isso verificadas as exigências de prevenção geral, designadamente quanto ao sentimento de segurança por parte da comunidade, pois existe a garantia de que uma vez libertado o condenado não reincidirá na prática delituosa;

- a ressocialização do indivíduo e a reintegração deste na sociedade ao fim de algum tempo resulta sempre melhor se for realizada em meio aberto, isto é, em liberdade, do que em meio fechado, ou seja na cadeia, especialmente nas situações em que o indivíduo se mostra merecedor de tal crédito, como é o caso;

- o despacho recorrido violou o art. 61º, nº 2 do Código Penal.

3.

O recurso foi admitido.

          (…)

          4.

Proferido despacho preliminar teve lugar a conferência.

Cumpre decidir.

 


*

FACTOS PROVADOS

5.

          Dos autos resultam os seguintes elementos, relevantes à decisão:

- o arguido CS encontra-se a cumprir a pena de prisão, fixada em dez anos pelo S.T.J. no acórdão de 12-4-2018, decorrente da condenação proferida em 19-12-2016, no processo 140/15.1T9FNC, que correu termos na instância central criminal de Ponta Delgada, da comarca dos Açores, pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado, dos art. 21º e 24º, al. c), do D.L. nº 15/93, de 22/1;

- relativamente às condições pessoais, familiares, sociais e profissionais do arguido consta do acórdão condenatório o seguinte, por referência ao relatório social respectivo:

« CS é o mais velho de uma fratria de 3 irmãos e nasceu em Angola … Iniciou a escolaridade em Angola, mas devido à instabilidade decorrente do processo de independência do país, a família abandonou o mesmo em 1975, e veio para Portugal … Já dispunha na época de alguma experiência profissional, decorrente do trabalho que exercia junto da empresa do progenitor, onde cuidava da manutenção das máquinas e viaturas da empresa, e após deixar a escola, integrou os quadros da referida empresa, como maquinista … em 1993 e devido à paragem das obras do empreendimento ligado à barragem de Foz Côa, a cargo da empresa do progenitor, esta ficou em má situação financeira e veio a falir. CS optou na época por deslocar-se para a Guiné Equatorial, onde esteve 3 anos a trabalhar … Regressou a Portugal em 95/96 para assumir a direcção de uma empresa de construção de barcos da qual já era proprietário há alguns anos juntamente com amigos/sócios e começou a trabalhar em exclusividade na manutenção, reparação e construção de barcos … À data dos factos que motivaram a sua prisão preventiva, vivia sozinho na morada cedida pelo amigo, sem compromissos de ordem pessoal. CS trabalhava na empresa “ (...) , Lda.”, como gerente, e encontrava-se numa situação profissional estável, ainda que pontualmente com algumas dificuldades económicas … era, de acordo com as fontes, uma pessoa bem conceituada no âmbito profissional, quer pelos seus conhecimentos na área, como por respeitar os compromissos que estabelecia nas negociações com clientes ou empresas do sector. A nível pessoal é descrito como uma pessoa cordial, de bom trato social, com uma ampla rede de amizades maioritariamente conotadas com a sua actividade profissional, e bem conceituada localmente, pela disponibilidade e solidariedade demonstrada para com terceiros. Revela uma perspectiva crítica sobre a natureza do crime de que está acusado no presente processo, não se revê nos acontecimentos em causa.

Dispõe a nível externo, de um suporte familiar consistente e o progenitor assumiu interinamente as suas funções como gerente da empresa “ (...) ”, a qual se tem mantido em actividade, e continua a ter o apoio por parte de amigos/clientes, os quais, e apesar de surpresos com a sua presente situação jurídica, continuam disponíveis para manter negócios e amizade com CS. Em liberdade, pretende retomar o seu modo de vida e as suas funções na referida empresa, embora, segundo o próprio, com cuidados e exigências adicionais, que evitem futuras situações similares. CS desenvolveu-se num contexto sócio familiar bem estruturado, afectuoso e dinâmico do ponto de vista profissional, que lhe possibilitou condições para um crescimento integrado. Fez até à data um percurso linear e investido quer a nível pessoal como laboral, sendo presentemente uma pessoa bem conceituada no meio residencial, quer pelos seus atributos pessoais, de solidariedade com terceiros, como a nível profissional, sector em que é respeitado pela postura e conhecimentos que detêm na área. À data dos factos vivia sozinho, trabalhava como gerente na empresa “ (...) ”, mantinha um estilo de vida adaptado e sem sinais de qualquer problemática pessoal, económica ou laboral … Não se afiguram riscos significativos com a sua reintegração em meio externo, uma vez que conta no exterior com suporte familiar e por parte de amigos/clientes, tem possibilidade de voltar a trabalhar na mesma empresa, e assegurar as condições para a sua subsistência, e assume uma postura critica e de distanciamento relativamente à natureza do crime pelo qual está acusado»;

- na altura o arguido tinha sofrido uma condenação, por sentença de 24-7-2009 e transitada em julgado em 23-9-2009, na pena de 180 dias de multa, que pagou, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 21-11-2006;

- do relatório social elaborado para a concessão de liberdade condicional ao arguido, datado de 14-5-2020, consta, nomeadamente, que:

«… continua a manter o apoio por parte de amigos/clientes, os quais continuam aparentemente disponíveis para manter a amizade e os negócios com o condenado.

As medidas de flexibilização de que beneficiou mereceram avaliação positiva por parte da família. Paralelamente, não houve registo de qualquer anomalia em termos de integração social ou de reação adversa à sua presença no meio comunitário, demonstrando o próprio atitude pró-ativa na resolução de diversos assuntos relacionados com a preparação da sua liberdade.

… veio a concluir o 12º ano de escolaridade, já na EPC, verificando-se que tinha apenas o 9º ano, aquando da reclusão.

Desconhecem-se comportamentos aditivos.

Confrontado com os crimes da presente condenação, CS surge-nos como um indivíduo que, apesar de intimidado com as reações penais aplicadas, procura, na generalidade, atenuar as suas responsabilidades quanto a comportamentos criminais. Evidencia sempre disponibilidade para abordar os fatores subjacentes aos comportamentos criminais adotados, mas sustenta um discurso sobretudo de minimização quanto aos atos ilícitos praticados, dado que, na sua perspetiva, emergiram associados à aquisição de uma embarcação, negócio a que deu seguimento da forma habitual, mas que veio a revelar-se com o tempo, com uma maior complexidade.

Do contacto com o próprio, avalia-se que possui capacidade para o relacionamento interpessoal positivo, com capacidades de comunicação, tendendo a apresentar um discurso convencional. Em meio institucional evidencia comportamento ajustado à especificidade normativa a que se encontra sujeito e tem apresentado motivação para a ocupação estruturada do tempo, ocupando-se com os estudos, e, desde Maio de 2019, trabalha na secção de vendas do EPC (atendimento ao público), evidenciando assiduidade e motivação.

O seu projeto de vida futuro apresenta fatores de proteção que se prendem com o apoio familiar consistente e com as suas boas competências/capacidades laborais. Contudo, o sucesso da sua ressocialização dependerá essencialmente da sua vontade e motivação para se manter afastado de atividades ilícitas.

O percurso prisional globalmente adaptado e o suporte familiar de que beneficia continuam a constituir-se como fatores que podem promover um futuro que se espera pró-social. São-lhe, também, reconhecidas competências pessoais que poderão facilitar uma reinserção social adaptada, caso a elas decida recorrer.

Todavia, apesar de o condenado deter condições sociofamiliares e económicas que poderão permitir uma ressocialização responsável, a que acresce o facto de as reaproximações ao meio livre, através de medidas de flexibilização da pena, virem a decorrer de forma positiva, a gravidade do comportamento criminal, tendo em conta o bem jurídico lesado e amplitude da pena, levam-nos a considerar, ainda, como prematura a concessão da medida em apreciação»;

- do relatório social elaborado para a concessão de liberdade condicional ao arguido, datado de 21-7-2020, consta, nomeadamente, que:

«Em 17 de Abril de 2020, foi-lhe concedida Licença de Saída Administrativa Extraordinária (LSAE), ao abrigo do regime excecional de flexibilização das penas (Lei nº 9/2020, de 10 de Abril), no âmbito da pandemia da doença Covid – 19, que iniciou em 20/04/2020.

CS beneficiou da concessão de Licenças de Saída Jurisdicionais (LSJ) desde 30/04/2019, que vinham a decorrer de forma positiva ao nível da sua integração social e a merecer avaliação favorável por parte dos familiares, situação que foi decisiva para a concessão da LSAE.

A LSAE de que beneficia, atualmente, vem a decorrer sem anomalias: integra o agregado da mãe, está a cumprir todas as orientações e obrigações, procurando ocupar o seu tempo de uma forma útil, dentro dos condicionalismos da sua situação, verificando-se que se dedica a tarefas no espaço de habitação.

Na articulação com a técnica destes serviços responsável pelo acompanhamento da LSAE e acima identificada, é visível, por parte do condenado, sentido de responsabilidade e intenção em canalizar os seus interesses para o investimento na reorganização do seu percurso de vida centrada no trabalho e no privilégio das relações familiares, o que vem na continuidade do comportamento evidenciado intramuros e descrito no relatório já remetido para concessão de liberdade condicional.

Não obstante a gravidade da pena e o facto de CS surgir-nos como um indivíduo que, apesar de intimidado com as reações penais aplicadas, procura, na generalidade, atenuar as suas responsabilidades quanto a comportamentos criminais, sustentando um discurso sobretudo de minimização quanto aos atos ilícitos praticados, que nos levaram, num momento anterior, a apresentar reservas relativamente à concessão da liberdade condicional, verifica-se um ajustamento muito positivo na execução da LSAE, não registando, até à data, anomalias na sua execução.

Acrescem a estes aspetos, a crescente motivação para a sua reorganização individual, o apoio da família e a existência de garantias concretas de empregabilidade, fatores que surgem como de proteção a uma futura inserção social adaptada.

Face à evolução da situação do condenado, alteramos o parecer técnico relativamente ao relatório já remetido a esse Tribunal, por entendermos que o condenado reúne condições mínimas para a execução da medida de flexibilização da pena em apreciação, pelo que somos parecer favorável à sua concessão»;

- em 28-7-2020 o conselho técnico reuniu para apreciar a concessão de liberdade condicional ao arguido e pronunciou-se nos seguintes termos:

          - responsável para a área do tratamento prisional – favorável;

          - responsável da equipa dos Serviços de Reinserção Social – favorável;

          - comissário do serviço de vigilância e segurança – favorável;

          - director do Estabelecimento Prisional – desfavorável;

- em 30-7-2020 foi proferido despacho, não concedendo a liberdade condicional ao arguido, do seguinte teor:

«… FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

1) CS está a cumprir uma pena de dez anos de prisão decidida no Processo n.º 259/17.4TXCBR – B, do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada – J2, pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes agravado.

2) Segundo a liquidação efectuado, o cumprimento do meio da pena ocorre em 13/08/2020, os 2/3 da pena em 13.4.2022, os 5/6 da pena em 13.12.2023 e o termo da pena em 13.8.2025.

3) No exterior o condenado pretende ir residir com a mãe, na Rua (...) . A habitação é propriedade da família do condenado, tratando-se de uma casa constituída por r/ch e 1º andar, que apresenta boas condições de habitabilidade e conforto.

4) À data da reclusão, CS vivia sozinho na (...) , num apartamento cedido a título gratuito por um amigo.

5) O pai do condenado faleceu no passado dia 2 de Junho de 2019 e a mãe, JS, ficou a viver sozinha na habitação familiar, demonstrando total disponibilidade para apoiar o filho.

6) Tem 2 filhas, atualmente maiores de idade, de um primeiro casamento, que vivem na zona e com quem mantém um vínculo afetivo forte, estando estas igualmente disponíveis para apoiarem o pai.

7) Tem, ainda 2 irmãos, que o visitam no EP, e com os quais mantém a proximidade afetiva.

8) Em Abril de 2019, o condenado iniciou o beneficio de medidas de flexibilização da pena que têm decorrido de modo adequado.

9) O condenado era um elemento bem conceituado no meio de inserção, quer pelo âmbito profissional (conhecido empresário da construção naval), quer a nível pessoal, sendo descrito como cordial e de bom trato social, com uma ampla rede de amizades.

10) CS concluiu o 11º ano de escolaridade já na EP de (...) , sendo certo que antes da reclusão tinha o 9º ano de escolaridade.

11) Iniciou o seu percurso laboral junto da empresa do pai no ramo da construção civil, com sede em (...) , onde cuidava da manutenção das máquinas e viaturas da empresa, e após deixar a escola, integrou os quadros da referida empresa como maquinista.

12) A empresa entrou em processo de insolvência em 1993, e o condenado optou, na época, por emigrar para a Guiné Equatorial, onde trabalhou 3 anos no sector da construção de arruamentos.

13) Regressou a Portugal em 1995/96 para assumir a direção de uma empresa de construção de barcos, da qual era proprietário há alguns anos juntamente com amigos/sócios e começou a trabalhar em exclusividade na manutenção e construção de barcos.

14) Paralelamente passou a comercializar carros que adquiria na Alemanha para vender em Portugal, por conta própria.

15) À data dos fatos da condenação, trabalhava na empresa “ (...) , Lda.”, como gerente, e encontrava-se numa situação profissional estável, ainda que pontualmente com algumas dificuldades, devido a uma redução dos serviços da empresa ou atrasos nos pagamentos desses serviços.

16) Em liberdade, pretende retomar o modo de vida e as funções na empresa dita em 15).

17) A subsistência de CS no período imediato à sua libertação será garantida pela progenitora que é reformada e com recursos próprios e por poupanças do condenado.

18) Apesar de se mostrar intimidado com a reclusão, não assume a integralidade da sua conduta delituosa, tendendo a desvalorizar a sua participação nos factos graves por que cumpre pena.

19) No EP vem mantendo um comportamento adaptado, sem registo de infrações disciplinares recentes.

20) Trabalha, desde Maio de 2019 na secção de vendas do EPC (atendimento ao público) e no presente ano lectivo frequenta o 12º ano.

21) Iniciou o usufruto de Licença de 45 dias de acordo com o Decreto-Lei n.º 9/2020 de 11.4 a 19.4.2020.

22) Declarou aceitar a liberdade condicional.


*

Motivação:

Para prova dos factos supra descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos: a) Certidão das decisões condenatórias e da liquidação da pena; b) Relatório dos serviços de Educação e Ensino da DGRSP; c) Ficha Biográfica da DGRSP; d) Relatórios da DGRSP; e) Certificado do Registo Criminal; f) Declarações do recluso e esclarecimentos prestados em conselho técnico.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

No caso em apreço, está em causa a apreciação da liberdade condicional a meio da pena, constituindo a liberdade condicional uma fase de transição entre a reclusão e a liberdade do condenado que cumpre pena privativa de liberdade, desde que verificadas determinadas condições, medida que serve como estímulo à reintegração na sociedade daquele que aparenta ter experimentado uma suficiente recuperação na última etapa do cumprimento da pena privativa de liberdade.

Assim, constituem pressupostos formais:

a) O consentimento do condenado (art.º 61.º, nº 1, do C.Penal);

b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (art.º 61.º, nº2 e 63.º, nº2, ambos do C.Penal);

c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão (ou da soma das penas de prisão) que se encontram a ser executadas (art.º 61.º, nº2 e 63.º, nº2, do C.Penal).

Além disso, constituem pressupostos de natureza material:

a) o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (art.º 61.º, nº 2, al a) do C.Penal);

b) o juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (juízo atinente à prevenção geral positiva), dito de outro modo, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social (art.º 61.º nº 2, al b) do C.Penal).

No presente caso, atenta a fase do cumprimento da pena, tendo o condenado prestado o necessário consentimento, consideram-se verificados os pressupostos formais.

De notar que, no primeiro momento de apreciação da liberdade condicional, quando o condenado já cumpriu metade da pena de prisão, faz-se depender a concessão da liberdade condicional também de razões de prevenção geral (art.º 61.º nº 1, al b) do C.Penal), isto porque se admite a possibilidade de o cumprimento de metade da pena de prisão poder não ser suficiente para satisfazer as finalidades de prevenção geral.

No caso presente, o recluso encontra-se a cumprir pena por um particularmente grave, crime de tráfico de estupefaciente agravado. Estes factos revelam uma personalidade com sérias dificuldades em adequar a sua conduta às mais elementares regras sociais, prejudicando seriamente qualquer juízo de prognose favorável que permite a sua libertação nesta fase do cumprimento da pena de prisão. Tal como é referido na sentença de cúmulo, “é possível reconhecer a presença de alguma tendência criminosa do arguido, porém entendemos que tal tendência se encontra intimamente relacionada com o seu consumo de álcool, uma vez que também é o álcool que funciona como despoletador desses comportamentos”.

Acresce que nesta fase as exigências de prevenção geral são ainda prementes obstando a que um condenado numa pena de 10 anos por um crime de tal gravidade – com grande repercussão no sentimento de segurança da comunidade – possa sair em liberdade logo após o cumprimento da metade da pena.

Nesta fase de cumprimento da pena cabe apelar às finalidades de execução das penas (finalidades de prevenção geral (positiva) o que, de acordo com o art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, consiste na “protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Ora, a antecipação da liberdade condicional deve, unicamente, ser concedida quando se considerar que o condenado, uma vez em liberdade, irá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e quando se concluir que a libertação se irá revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.

Na hipótese dos autos está-se perante crime passível de gerar insegurança, e alarme social, sendo certo que a liberdade condicional também tem particular enfoque na prevenção geral.

Assim, não pode deixar de se concluir que as circunstâncias do caso, as características do crime praticado – tráfico de estupefacientes agravado – a necessidade de reposição da confiança na norma violada pela conduta do recluso, não se bastam com o actual tempo de cumprimento das penas de prisão em execução.

Ou seja, a antecipação da liberdade condicional, nesta fase de cumprimento da pena, seria claramente vista como uma injustificada indulgência e prova de fragilidade na luta contra a criminalidade, o que se mostra incompatível com a defesa da ordem e da paz social.

Pelo exposto, não se mostram reunidas as condições necessárias para que seja concedida ao recluso a liberdade condicional.

Consequentemente, por se entender que se não verificam os pressupostos reclamados pelo artigo 61º, n.º 2, als. a) e b), do Código Penal, deverá prosseguir o cumprimento da pena …»;

- em 14-8-2020 o arguido requereu que o tribunal recorrido proferisse novo despacho, sanando as irregularidades cometidas na decisão que negou a concessão de liberdade condicional e que, a final, a concedesse, nos seguintes termos:

«…1.º Na alínea 10) da “Fundamentação de Facto” constante do douto despacho que recusou a liberdade condicional ao condenado, consta que o mesmo “concluiu o 11.º ano de escolaridade já na EP de (...) , sendo certo que antes da reclusão tinha o 9.º ano de escolaridade”.

Ora,

2.º Tal facto não corresponde à verdade e só por mero lapso de escrita ou por errada ou incompleta informação prestada pelos Serviços de Educação e Ensino da DGRSP, poderá ter sido incluído em tal despacho.

Porquanto,

3.º Sendo verdade que antes da reclusão, o condenado apenas havia concluído o 9.º ano de escolaridade, é igualmente verdade que este aproveitou o tempo de reclusão para investir na sua formação e educação, tendo por isso concluído com aprovação o 12.º ano de escolaridade …

4.º Enferma o douto despacho de erro de escrita ou sobre os pressupostos de facto em que se baseou a decisão nele prolatada, tendo sido por isso praticada irregularidade prevista no art. 123.º, do CPP, a qual deverá ser suprida.

Pois,

5.º … o cometimento de tal irregularidade sendo susceptível de influir na apreciação e decisão de concessão ou recusa da liberdade condicional, acarreta, salvo melhor e douta opinião, a nulidade do processado subsequente, nos termos do art. 123.º, n.º 1, com a consequência legal do art. 122.º, n.º 1, ambos do CPP, mesmo não tendo esta de ser aferida em termos concretos na apreciação e decisão da causa, bastando que abstractamente o acto praticado seja apto a ter essa influência.

6.º Desta forma, a inclusão de facto que ostensivamente não corresponde à verdade constitui irregularidade que afecta a validade dos actos subsequentes nos termos das disposições invocadas.

7.º As irregularidades processuais só determinam a invalidade do acto, se forem tempestivamente arguidas no prazo referido no art. 152.º do CEPMPL, o que se verifica (conforme douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 11/11/2015, Proc. 382/12.1TXCBR-G.C1 …

8.º Caso assim não se entenda o que apenas por mera hipótese e dever de patrocínio se admite, sempre tal erro será susceptível de ser corrigido, nos termos do art. 380.º do CPP.

Por outro lado,

9.º Da “Fundamentação de Direito” … consta igualmente o seguinte trecho: «Tal como é referido na sentença de cúmulo, “é possível reconhecer a presença de alguma tendência criminosa do arguido, porém entendemos que tal tendência se encontra intimamente relacionada com o seu consumo de álcool, uma vez que também é o álcool que funciona como despoletador desses comportamentos”».

Ora,

10.º A referência ali feita a uma “sentença de cúmulo”, bem como, ao “consumo de álcool”, por parte do condenado, são manifestamente incompreensíveis e só, igualmente por mero lapso de escrita, poderão ter ficado a constar daquele douto despacho.

Na verdade,

11.º O recluso e aqui requerente foi condenado a uma pena de 10 (dez) anos de prisão por douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sequência dos sucessivos recursos que por aquele foram sendo interpostos e que as subsequentes instâncias foram reduzindo, relativamente à pena inicial que pelo Juízo Cível e Criminal de Ponta Delgada – J2, nos autos com o n.º 140/15.1T9FNC, lhe havia sido aplicada, pela prática de um único crime de tráfico de estupefacientes agravado.

Por isso,

12.º Nunca em tais autos, nem posteriormente em quaisquer outros, nos termos do art. 77.º do Código Penal, até porque pura e simplesmente nunca existiram, foi ao recluso proferida qualquer sentença de cúmulo de penas.

14.º Mais estranho ainda é o facto de se referir que o condenado revela uma “tendência criminosa” e que tal tendência está intimamente “relacionada com o seu consumo de álcool”.

Ora,

15.º Sendo certo que o condenado foi apenas condenado por único crime, não se podendo daí concluir pela revelação de uma “tendência criminosa”,

16.º É igualmente verdade, que muito embora não seja abstémio, contudo, o consumo de bebidas alcoólicas por parte do mesmo só é feito esporadicamente e em episódicos momentos de convívio ou celebração, nunca tendo padecido de qualquer adicção dessa ou outra natureza.

Pelo que,

17.º Só por manifesto lapso ou errada informação poderá o sempre referido despacho ter feito alusão a tal circunstância.

Como tal,

18.º Do mesmo modo e também por isso, enferma o douto despacho de erro de escrita ou sobre os pressupostos de facto em que se baseou a decisão nele prolatada, tendo sido por isso praticada irregularidade prevista no art. 123.º, do CPP, a qual deverá ser igualmente suprida.

19.º … tal irregularidade, pois sendo também a mesma susceptível de influir na apreciação e decisão de concessão ou recusa da liberdade condicional, acarreta igualmente a nulidade do processado subsequente, nos termos do art.º 123.º, n.º 1, com a consequência legal do art.º 122.º, n.º 1 ambos do CPP, mesmo não tendo esta de ser aferida em termos concretos na apreciação e decisão da causa, bastando que abstractamente o acto praticado seja apto a ter essa influência.

20.º Desta forma e também neste caso a inclusão de facto que ostensivamente não corresponde à verdade, constitui irregularidade que afecta a validade dos actos subsequentes nos termos das disposições invocadas.

Pelo que,

21.º Terá a mesma de ser tempestivamente arguida, o que agora igualmente é feito (art. 152.º do CEPMPL, conforme douto acórdão já supra referido).

22.º Também aqui, caso assim não se entenda o que apenas igualmente por mera hipótese e dever de patrocínio se admite, sempre tal erro é susceptível de ser corrigido, nos termos do art. 380.º do CPP. …»;

- por despacho de 16-9-2020 o pedido foi indeferido, nos seguintes termos:

«… Decorre do estatuído no art. 380º, 1, al. b) e 3, aplicável “ex vi” art. 154º do CEP, que o Tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção de qualquer acto decisório quando este contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

Ora, no caso dos autos deve, desde logo, dizer-se que a decisão em causa não enferma de qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

Na verdade, o que o mesmo invoca é a existência de um erro de julgamento, na medida em que considera que determinada factualidade nela incluída não corresponde à realidade, pelo que não poderia ter sido inserida na fundamentação de facto ou de direito.

Assim, face ao exposto e dado que se mostra esgotado o poder jurisdicional do tribunal relativamente à decisão proferida a fls. 278 e segs, indefere-se o requerido a fls. 290 e segs. pelo requerente …»;

- segundo a liquidação da pena que consta dos autos, o arguido atingiu o cumprimento do meio da pena em 13-8-2020, os 2/3 ocorrerão em 13-4-2022, os 5/6 em 13-12-2023 e o termo da pena acontecerá em 13-8-2025.


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DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P. resulta que as questões a decidir por este tribunal respeitam à irregularidade do despacho recorrido, por erro nos pressupostos de facto em que se baseou a decisão, e à verificação dos pressupostos de concessão da liberdade condicional


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          O nº 1 do art. 205º da Constituição da República Portuguesa determina que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

          Devendo todas as decisões que não sejam de mero expediente ser fundamentadas «na forma prevista na lei» vejamos o que diz a lei ordinária a propósito.

Nos termos do nº 5 do art. 97º do C.P.P. «os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».

Portanto, os actos decisórios devem conter a especificação dos motivos de facto e de direito que os determinaram.

E qual o vício que inquina o despacho quando a fundamentação na forma prevista na lei não exista?

Nos termos do art. 118º do C.P.P., que consagra o princípio da legalidade das nulidades, «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei», constituindo irregularidade nos demais casos – nº 1 e 2.

Portanto, a consequência da violação do dever geral de fundamentação de acto decisório depende do acto que esteja em causa.

Tratando-se de sentença a consequência da falta de fundamentação na forma prevista na lei é a nulidade, pois assim o diz a lei no art. 379º, nº 1, al. a), do C.P.P.

Quando a lei não comine a nulidade o acto será irregular, sujeito à disciplina do art. 123º do C.P.P.


*

          O art. 61º do Código Penal estabelece os pressupostos e duração da liberdade condicional.

          Quanto ao tempo de cumprimento, ela pode ser concedida quando estiver cumprida metade da pena, dois terços da pena ou cinco sextos da pena.

Dependendo a concessão de liberdade condicional sempre de consentimento do condenado, como impõe nº 1, a concessão de liberdade condicional a cinco sextos da pena depende deste cumprimento e do consentimento do condenado. Como depende apenas da verificação destes requisitos formais diz-se que neste caso estamos perante liberdade condicional obrigatória.

Já quanto à concessão de liberdade condicional a meio da pena e a dois terços da pena, depende da verificação de requisitos formais e, ainda, de requisitos materiais que o tribunal tem que validar. Por isso quantos a esta fala-se de liberdade condicional facultativa.

Para a concessão da liberdade condicional a meio da pena diz o nº 2 do art. 61º do Código Penal que ela será concedida se se verificarem, cumulativamente, os requisitos formais e os requisitos materiais.

Quanto aos requisitos formais, são eles o consentimento do condenado e o cumprimento de metade da pena e no mínimo de seis meses.

Quanto aos requisitos materiais, diz o nº 2 que a libertação neste momento será concedida se:

- «a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

e

- b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social».

Quanto à libertação condicional a dois terços da pena, nos termos do nº 3 depende dos requisitos formais de consentimento do condenado, cumprimento de dois terços da pena e no mínimo de seis meses e de o caso revelar ser «fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes».

No caso em análise a decisão recorrida não concedeu a liberdade condicional ao arguido porque entendeu não ser possível concluir «que o condenado, uma vez em liberdade, irá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» e porque a libertação não era «compatível com a defesa da ordem e da paz social».

          Na «fundamentação de facto» da mesma constam os factos julgados relevantes e na «fundamentação de direito» diz-se, nomeadamente, o seguinte:

«… No caso presente, o recluso encontra-se a cumprir pena por um particularmente grave, crime de tráfico de estupefaciente agravado. Estes factos revelam uma personalidade com sérias dificuldades em adequar a sua conduta às mais elementares regras sociais, prejudicando seriamente qualquer juízo de prognose favorável que permite a sua libertação nesta fase do cumprimento da pena de prisão. Tal como é referido na sentença de cúmulo, “é possível reconhecer a presença de alguma tendência criminosa do arguido, porém entendemos que tal tendência se encontra intimamente relacionada com o seu consumo de álcool, uma vez que também é o álcool que funciona como despoletador desses comportamentos”».

          Confrontando este excerto da decisão com o elenco dos factos constantes da fundamentação de facto resulta o seguinte:

- o arguido sofreu até à data duas condenações, uma em 2009, em pena de multa que cumpriu, e a segunda pelo crime de tráfico de estupefacientes, cuja pena de prisão se encontra a cumprir neste momento; 

- na fundamentação de facto do despacho recorrido não se refere tendência criminosa do arguido nem consumo de álcool despoletador de comportamentos criminosos;

- no acórdão que condenou o arguido pelo crime de tráfico de estupefacientes não consta que o arguido tenha uma tendência criminosa e não se fala em consumo de álcool despoletador de comportamentos criminosos.

          Portanto, o despacho recorrido atendeu a factos que não constam do elenco dos factos enumerados na “fundamentação de facto” e que, inclusive, não se verificam.

          Esta situação enquadra uma nulidade ou, ao invés, uma irregularidade, como o arguido alega?

          A resposta a esta pergunta depende da resposta à pergunta sobre a natureza da decisão que aprecia a liberdade condicional do condenado e sobre esta a jurisprudência divide-se por ambas as soluções, cada uma delas com argumentos válidos nas respectivas defesas.

          Por um lado, temos o entendimento de que tais decisões são materialmente sentenças, pelo que o verificado constitui uma nulidade, na linha do decidido pela Relação de Lisboa em 23-10-2008, no processo 8105/2008-9.

Ali se decidiu que as decisões que denegam ou revogam a liberdade condicional, sendo formalmente despachos, devem conter os requisitos das sentenças, decorrendo esta solução não só da «importância do que está em causa: a concessão ou não da liberdade, que implica uma ponderação aprofundada de cada caso, que não se compadece com uma qualquer fundamentação (exigida pelo disposto no art.º 97º/5 do CPP) que fique aquém do que exige o disposto no art.º 374º/2 do C.P.P.», mas também «porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso … só um tal entendimento permite dar verdadeiros significado e sentido à possibilidade de recurso destes despachos …

Na verdade, se se entendesse que tais decisões são despachos, que não sentenças, e que se lhes não aplicava o regime destas, então a falta ou deficiência de fundamentação seriam consideradas meras irregularidades (art.º 118º/2 do CPP), que só poderiam ser arguidas nos 3 dias seguintes ao seu conhecimento (art.º 123º/1 do CPP), nesse caso conduzindo à invalidade do acto.

Ora, se o Arg. tem 20 ou 30 dias para recorrer daqueles despachos, não faria sentido que, nesses prazos, não pudesse arguir tais deficiências.

No limite, poder-se-ia configurar uma hipótese em que uma decisão que denegasse a liberdade condicional e que fosse completamente omissa quanto à fundamentação, fosse, em sede de recurso, inatacável, caso o recorrente não tivesse suscitado a questão nos 3 dias seguintes ao seu conhecimento».

Neste mesmo sentido pronunciaram-se também, além de outros, os acórdãos de 19-5-2009, proferido no processo 6928/07.0TXLSB-A.L1-5,  de 1-10-2009, processo 6877/07.1TXLSB-A.L1-9, de 15-12-2009, processo 2272/05.5TXEVR-B.E1, de 29-4-2015, processo 1331/11.0TXPRT-D.P1, de 24-7-2016, processo 3208/10.7TXPRT-V.P1, e de 26-3-2019, processo 507/14.2TXLSB-E.L1-5.

As decisões que apreciam a liberdade condicional, diz o acórdão 1331/11.0TXPRT-D.P1, «são actos judiciais com afinidade essencial em relação às sentenças porque conhecem, a final, do objecto do processo organizado para o efeito (ou seja, a concessão ou denegação da liberdade condicional) e, embora a tramitação do processo não comporte uma audiência de julgamento, há uma apreciação e uma valoração de provas e uma decisão sobre matéria de facto».

          Estendendo ao despacho de apreciação de liberdade condicional as exigências de fundamentação da sentença, do art. 374º, nº 2, do C.P.P. estender-se-lhe-ão, também, as consequências da violação dessas exigências, constantes do art. 379º do mesmo diploma, que sanciona com a nulidade a omissão das menções referidas naquele nº 2.

          Conforme resulta, no caso o despacho recorrido considerou factos que não constam da matéria dada como provada e que não resultam dos elementos do processo.

          Portanto, não cumpriu as exigências de fundamentação incorrendo, segundo esta orientação, na nulidade do nº 1 do art. 379º do C.P.P., com a necessidade de prolação de nova decisão, que não padeça do apontado vício de falta/deficiência de fundamentação.

          Em sentido diferente, de a falta ou deficiente fundamentação da decisão que aprecia a liberdade condicional constituir uma irregularidade, do art. 123º do C.P.P.,

pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos de 30-9-2003 da Relação de Évora, proferido no processo 1988/03-1, de 3-10-2012, proferido no processo 821/11.9TXPRT-G.P1, de 9-4-2013, processo 2957/11.7TXLSB-D.L1-5, de 22-5-2013, processo 850/10.0TXCBR-G.C1, de 25-9-2013, processo 1080/10.6TXCBR-H.C1, de 6-10-2015, processo 267/11.9TXEVR-L.E1, de 11-11-2015, processo 382/12.1TXCBR-G.C1 e de 17-10-2018, processo 385/12.6TXCBR-O.P1.

          Conforme o decidido no primeiro destes acórdãos, «… a decisão recorrida … é um acto decisório proferido pelo Juiz de Execução das Penas, tomando a forma de despacho.

Ora, o nº 4 do sobredito art. 97º prescreve que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão” …

As consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos actos processuais encontram-se reguladas nos arts. 118º a 123º do Código de Processo Penal e têm como efeito a invalidade dos actos processuais, sendo as seguintes as espécies de invalidades previstas na lei: a nulidade insanável, a nulidade dependente de arguição e a irregularidade.

O Código de Processo Penal estabelece em matéria de nulidades o princípio da legalidade que se traduz em só haver nulidade dos actos quando expressamente cominada na lei, sendo que quando a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular - cfr. nºs 1 e 2 do sobredito art. 118º.

As nulidades insanáveis - que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do processo - encontram-se enumeradas no art. 119º do Código de Processo Penal, para além das que como tal são cominadas em outras disposições legais.

Às nulidades sanáveis ou dependentes de arguição se refere o art. 120º do Código de Processo Penal, enumerando-se algumas delas no nº 2 desse preceito.

Sendo taxativa a enumeração das nulidades (cfr. o nº 1 do sobredito art. 118º), elas terão que ser especificadas entre os mencionados preceitos que indicam as nulidades insanáveis e as dependentes de arguição ou em qualquer outro preceito legal.

As nulidades específicas da sentença estão previstas nas diversas alíneas do nº 1 do art. 379º do Código de Processo Penal, devendo, nos termos do nº 2 desse mesmo preceito, “ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 414º, nº 4”. Não existe, porém, qualquer disposição legal que torne extensível aos despachos o regime de nulidades da sentença, falecendo razão ao Digno Recorrente quando fundamenta a sua pretensão na alínea a) daquele nº 1, a qual, por sua vez, remete para os nºs 2 e 3, b) do art. 374º do Código de Processo Penal que respeitam aos requisitos da sentença, e não também dos despachos.
Por outro lado, não se lobriga que a omissão, ou insuficiência, de fundamentação dos despachos possa consubstanciar qualquer das nulidades previstas nos arts. 119º e 120º do Código de Processo Penal ou tenha tratamento específico previsto na lei. Se, como vimos, para que um acto processual possa ser declarado nulo é necessário que a lei expressamente comine a nulidade, nos casos em que tal não aconteça o acto ilegal é, como estabelece o nº 2 do sobredito art. 118º, irregular. A irregularidade consiste, assim, no vício formal do acto processual que não produz nulidade, tendo, pois, como afirma o Professor Germano Marques da Silva, o respectivo conceito “natureza residual” …

Do exposto flui que a inobservância do preceituado no nº 4 do sobredito art. 97º é susceptível de constituir uma simples irregularidade, sujeita ao regime do art. 123º do Código de Processo Penal …».

          Nesta tese, sendo a decisão que conhece da liberdade condicional um incidente processual, não conhecendo nem do objeto final do processo de execução da pena, e muito menos do objeto do processo, não é, nem sob o ponto de vista formal nem teleológico, uma sentença

          Na decorrência, a falta ou insuficiência de fundamentação da decisão que conhece da liberdade condicional, em que a desconformidade entre os pressupostos de facto e a decisão se enquadra, configura uma irregularidade, enquadrável no art. 123º do C.P.P.

Nos termos do nº 1 deste art. 123º «qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado».

No caso em análise este prazo de três dias não foi respeitado.

No entanto, nem por isso poderia ser desconsiderada a arguição de irregularidade, feita pelo arguido.

O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade estabelece, no art. 152º, nº 1, que «salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo para a prática de qualquer acto processual».

Não prevendo este código prazo diferente para a arguição de irregularidades e estabelecendo o seu art. 154º o princípio da aplicação subsidiária do C.P.P., resulta então que o prazo de arguição de irregularidade é o prazo geral de dez dias, e não o supletivo estabelecido no C.P.P., pelo que o requerimento do arguido, requerendo a sanação da irregularidade cometida no despacho recorrido, por erro nos pressupostos de facto e de direito, está em tempo.

Veja-se, neste sentido o acórdão desta relação, de 11-11-2015, proferido no processo 382/12.1TXCBR-G.C1.

Portanto, e nesta tese, poderia o tribunal recorrido ter sanado a irregularidade cometida.

          O arguido arguiu a irregularidade do despacho recorrido por duas razões:

- porque no ponto 10 da fundamentação de facto consta que concluiu o 11º ano de escolaridade no EP quando, na verdade, concluiu o 12º;

- porque na fundamentação de direito consta que a pena resultou de uma sentença de cúmulo jurídico e que esta refere que o arguido apresenta uma tendência criminosa intimamente relacionada com o seu consumo de álcool, sendo que não há sentença de cúmulo jurídico nem factos dos quais resulte tendência criminosa e problemas de alcoolismo.

          Como resulta dos factos, quando o arguido foi detido tinha o 9º ano e desde então concluiu o 12º ano.

          Também resulta que a condenação do arguido não resultou de sentença de cúmulo jurídico e teve lugar no acórdão proferido no processo que correu termos pelo Juízo Cível e Criminal de Ponta Delgada com o nº 140/15.1T9FNC, sendo a pena de dez anos de prisão fixada pelo S.T.J., na decisão do recurso, não falando o acórdão em tendência criminosa do arguido, nem em alcoolismo.

         

          Nos termos do nº 2 do art. 123º do C.P.P. «pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade … quando ela puder afectar o valor do acto praticado».

          Portanto, só as irregularidades que afectem o valor do acto são relevantes para esse efeito.

          Em anotação àquele art. 123º do C.P.P. fala Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 326 e segs., no princípio da relevância material da irregularidade e de que o interessado também a pode invocar, como não podia deixar de ser.

          No caso dos autos estava em causa a análise da concessão de liberdade condicional ao arguido. A determinado momento consta da decisão recorrida que os factos pelos quais o arguido foi condenado «revelam uma personalidade com sérias dificuldades em adequar a sua conduta às mais elementares regras sociais, prejudicando seriamente qualquer juízo de prognose favorável que permite a sua libertação nesta fase do cumprimento da pena de prisão».

E em jeito de reforço desta conclusão o despacho reproduz, de seguida, um texto, que diz ser da referida sentença de cúmulo, com o seguinte conteúdo: «Tal como é referido na sentença de cúmulo, “é possível reconhecer a presença de alguma tendência criminosa do arguido, porém entendemos que tal tendência se encontra intimamente relacionada com o seu consumo de álcool, uma vez que também é o álcool que funciona como despoletador desses comportamentos”».

          Sendo certo que o despacho recorrido refere o alarme social que o crime cometido pelo arguido provoca e a dificuldade de conjugar as necessidades de prevenção geral com a libertação a meio da pena, também é verdades que aquelas considerações, que faz sobre a personalidade reveladora de dificuldades de manutenção de um comportamento dentro das regras, sobre a tendência criminosa e sobre o consumo de álcool que as despoletarão, revestem, pelo menos aparentemente, relevo na economia da decisão, tanto mais que o despacho recorrido diz que as necessidades de prevenção geral do crime em causa acrescem às razões obstativas expostas ligadas à pessoa do arguido.

Portanto, aquelas razões ligadas ao arguido tiveram peso na decisão final. E neste particular sempre se poderá defender que a escolaridade real será mais um dado favorável ao arguido.

          Assim, é admissível, pelo menos em tese, que a decisão recorrida, expurgada das considerações que não respeitam ao arguido, pudesse ter um outro desfecho.

          Portanto, que os erros do despacho recorrido, acima referidos, podem ter afectado o desfecho da decisão e devem, por isso, ser sanados, com a prolação de nova decisão, expurgada dos vícios, que aprecie a situação do arguido e lhe conceda, ou não, a liberdade condicional.


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          Aqui chegados concluímos que quer se enquadre o caso na nulidade do art. 379º, nº 1, do C.P.P., quer se enquadre na irregularidade do art. 123º, resulta que sempre terá que ser proferida nova decisão que, expurgada dos vícios cometidos, aprecie a situação do arguido, concedendo-lhe ou negando-lhe a liberdade condicional. 


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na procedência do recurso, anula-se a decisão proferida e determina-se a baixa do processo à primeira instância para que seja proferida nova decisão de apreciação da concessão, ou não, de liberdade condicional ao arguido CS, expurgada dos vícios cometidos e acima referidos.

Sem custas.

Elaborado em computador, revisto e assinado electronicamente – art. 94º do C.P.P.



          Coimbra, 17 de Dezembro de 2020

Olga Maurício (relatora)

Luís Teixeira (adjunto)