Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2118/17.1T8CTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: REALIDADE RELEVANTE
NULIDADES ARGUIDAS
Data do Acordão: 04/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – J.C. CÍVEL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 617º E 641º, Nº 1 DO CPC
Sumário: 1. É nula a sentença que desconsidera/omite que a credora reclamante e a exequente gozavam de idêntica garantia real, em paridade e na proporção dos respetivos créditos - o que decorria do requerimento executivo, dos documentos juntos aos autos e dos factos dados como provados -, dando azo a uma indevida graduação de créditos que os interessados (exequente e reclamante) quiseram colocar em igual patamar.

2. Não sendo de enquadrar a situação na previsão do art.º 616º, n.º 2 do CPC, seria possível evitar a via do recurso, dando-se efectivo cumprimento ao prescrito nos art.ºs 617º e 641º, n.º 1 do CPC.

Decisão Texto Integral:

Apelação 2118/17.1T8CTB-B.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

               Sumário do acórdão:

1. É nula a sentença que desconsidera/omite que a credora reclamante e a exequente gozavam de idêntica garantia real, em paridade e na proporção dos respectivos créditos - o que decorria do requerimento executivo, dos documentos juntos aos autos e dos factos dados como provados -, dando azo a uma indevida graduação de créditos que os interessados (exequente e reclamante) quiseram colocar em igual patamar.

2. Não sendo de enquadrar a situação na previsão do art.º 616º, n.º 2 do CPC, seria possível evitar a via do recurso, dando-se efectivo cumprimento ao prescrito nos art.ºs 617º e 641º, n.º 1 do CPC. 

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 08.01.2020, por apenso à execução movida por Banco ..., S. A., contra E..., Lda., J... e M..., a credora G..., S. A., veio reclamar um seu crédito, garantido por hipoteca, no montante de €419.627,14, acrescido de juros até integral pagamento.  

Alegou, em síntese: no exercício da sua actividade prestou duas garantias autónomas à primeira solicitação e os executados J... e M... constituíram uma hipoteca voluntária em primeiro grau, a favor da reclamante e do beneficiário, em paridade e na proporção dos respectivos créditos, sobre um prédio urbano (melhor identificado no art.º 3º da reclamação) e, ainda, uma hipoteca voluntária em terceiro grau, a favor da reclamante e do beneficiário, em paridade e na proporção dos respectivos créditos, sobre aquele mesmo imóvel; na sequência de incumprimento das obrigações emergentes dos contratos de prestação de garantia e tendo em conta o pagamento aos beneficiários por parte da reclamante, preencheu as livranças que lhe tinham sido entregues pelo valor em dívida, que aqui reclama; acresce a quantia referente ao imposto do selo; tendo em conta o não pagamento do valor em dívida, interpôs a respectiva acção executiva e registou a penhora sobre o referido imóvel, objecto de uma primeira penhora no âmbito da presente execução, motivo pelo qual a execução movida pela reclamante se encontra sustada; aos valores em dívida acrescem juros de mora vencidos e o respetivo imposto de selo; o total reclamado ascende a €419.627,14.

Tendo a Mm.ª Juíza a quo afirmado o cumprimento do disposto no art.º 789º do Código de Processo Civil (CPC) e a não impugnação do crédito reclamado, e bem assim que a sua verificação não estava dependente de produção de prova para além da existente nos autos, nos termos do disposto no art.º 791º, n.º 2 do CPC e relativamente ao produto do prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de ... sob o n.º ..., penhorado nos autos principais, decidiu graduar os créditos da seguinte forma: «1) Em primeiro lugar o crédito do credor reclamante G..., S. A., relativos aos contratos de mútuo com hipoteca celebrados, mais os juros que sobre o mesmo se vencerem, até ao montante especificamente indicado no registo e incluindo os juros e as cláusulas penais que tenham sido acordadas para o caso de incumprimento apenas até aos últimos três anos. / 2) Em segundo lugar o crédito exequendo de que Banco ..., S. A., no remanescente de 1).»

Inconformada com a dita sentença de verificação e graduação de créditos, e sem prejuízo da respectiva rectificação/reforma, a exequente apelou formulando as seguintes conclusões:

...

Não houve resposta.

No despacho sobre o requerimento de interposição do recurso, a Mm.ª Juíza  a quo escreveu: «(…) Vi o teor das alegações com a ref. ... / Assim e quanto a tal, remetendo para fundamentação da decisão agora recorrida, julgo não verificadas as nulidades invocadas, atento o disposto no art.º 641º, n.º1 do CPC.»

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir se a sentença é nula e se na verificação e graduação de créditos se deverá atender à hipoteca constituída a favor da recorrente sobre o imóvel penhorado, graduando o respectivo crédito em 1º lugar, em paridade com o crédito da reclamante, na proporção dos respectivos créditos.

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

...

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

É nula a sentença quando, nomeadamente, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (art.º 615º, n.º 1, alínea d) - 1ª parte, do CPC).

A referida nulidade (e as demais das alíneas b) a e) do n.º 1) só pode ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer das nulidades previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 (n.º 4).

4. A referida previsão da 1ª parte da alínea d) relaciona-se com o dispositivo do art.° 608°, n.° 2 (1ª parte), do mesmo Código, e por ele se tem de integrar - o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

5. Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento (art.º 617º, n.º 1 do CPC). Se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão (n.º 2). No caso previsto no número anterior, pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respectivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo (n.º 3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade da alteração introduzida na sentença, assumindo, a partir desse momento, a posição de recorrente (n.º 4).

Findos os prazos concedidos às partes, o juiz aprecia os requerimentos apresentados, pronuncia-se sobre as nulidades arguidas e os pedidos de reforma, ordenando a subida do recurso, se a tal nada obstar (art.º 641º, n.º 1 do CPC).

Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação (art.º 665º, n.º 1 do CPC).

6. Se nenhum dos créditos (reclamados) for impugnado ou a verificação dos impugnados não depender de prova a produzir, profere-se logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente, sem prejuízo do disposto no n.º 4 (art.º 791º, n.º 2 do CPC). São havidos como reconhecidos os créditos e as respectivas garantias reais que não forem impugnados, sem prejuízo das excepções ao efeito cominatório da revelia, vigentes em processo declarativo, ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação (n.º 4).

7. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686º do CC).

A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes (art.º 687º do CC).

A hipoteca assegura os acessórios do crédito que constem do registo (art.º 693º, n.º 1 do CC). Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos (n.º 2).

8. Perante os elementos disponíveis, nomeadamente, a factualidade dada como provada em II. 1. 3), 4), 10) e 11), supra, e respectivas “notas”, teremos necessariamente de concluir pela justeza da pretensão da recorrente.

A sentença de verificação e graduação de créditos proferida pela Mm.ª Juíza a quo envolve factos (conformadores da pretensão exequenda) e correlativas questões omitidos/ignorados na dilucidação de mérito, pelo que é nula.

Tal circunstancialismo - máxime, por se haver desconsiderado/omitido que a reclamante e a exequente/beneficiária gozavam de idêntica garantia real, constituída a seu favor (no mesmo documento), em paridade e na proporção dos respetivos créditos (realidade que decorria da causa de pedir levada ao requerimento executivo[1], dos documentos juntos e dos factos dados como provados) - levou a uma indevida graduação de créditos que os interessados e credores quiseram colocar em igual patamar.

E, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não sendo de enquadrar a situação em análise na previsão do art.º 616º, n.º 2 do CPC[2], seria porventura possível evitar a via do recurso e a consequente delonga, caso a Mm.ª Juíza a quo propendesse para a existência, v. g.,  de omissão de pronúncia (relativamente à hipoteca de que também goza o crédito da recorrente) e consequente conhecimento, em 1ª instância, de toda a realidade relevante nos termos dos art.ºs 617º e 641º, n.º 1 do CPC. 

9. Em linha com o expendido na fundamentação da alegação de recurso, dir-se-á de que o crédito exequendo e a respetiva garantia hipotecária não foram impugnados nem pelos executados, mediante embargos de executado (art.º 728º do CPC) nem pela credora reclamante, ao abrigo do disposto no art.º 789º, 3 do CPC.

10. A reclamação de créditos em apreço - processo declarativo de estrutura autónoma, mas funcionalmente subordinado ao processo executivo[3] - também não foi impugnada, pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 791º do CPC, cabia ao Tribunal recorrido proferir sentença conhecendo da existência do crédito reclamado, graduando-o com o crédito do exequente.
Como vimos (e decorria, claramente, dos factos dados como provados na 1ª instância), o crédito da recorrente/exequente, para além da penhora, está garantido pela hipoteca voluntária constituída e registada a seu favor em 16.01.2009 sobre o mesmo imóvel.

A hipoteca, devidamente constituída, é um direito real de garantia que confere ao credor hipotecário o direito de ser pago preferencialmente sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686º do CC).

A Mm.ª Juiz a quo não considerou/ignorou a invocada hipoteca voluntária (sobre o imóvel penhorado) devidamente constituída e registada a favor da exequente/recorrente (e da reclamante), com a descrita configuração, garantia a que importa atender.

11. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso

III. Pelo exposto, revogando a decisão recorrida, gradua-se o crédito da recorrente/exequente em paridade com o crédito da credora reclamante (em “1º lugar”), na proporção dos respectivos créditos, mantendo-se no mais o decidido em 1ª instância.

Sem custas.


Coimbra, em 20/04/2021


[1] Vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 181 e seguinte.
[2] Que assim reza: «Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida
[3] Vide J. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 363.
Como vimos (e decorria, claramente, dos factos dados como provados na 1ª instância), o crédito da recorrente/exequente, para além da penhora, está garantido pela hipoteca voluntária constituída e registada a seu favor em 16.01.2009 sobre o mesmo imóvel.