Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1541/22.4T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 1083.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: O inventário em consequência de divórcio corre por apenso à acção onde foi proferido o divórcio.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

           

I - AA, requereu, por apenso à acção de divórcio em que foi parte e que terá corrido termos no Tribunal em causa, processo de inventário para partilha dos bens comuns, invocando o disposto no art 1133º CPC, tendo sido proferido, no tocante a esse requerimento, o  seguinte despacho:

«Remeta os presentes autos à distribuição, por inexistir fundamento legal – ao contrário do que sucedia em face do artigo 1404º, nº 3 do CPC na redacção dada pelo DL. 227/94 de 8/9– para a sua apensação ao processo de divórcio».

II – Inconformado, interpôs apelação, que concluiu nos seguintes termos:

1.º A Autora requereu a 21 de Março de 2022, por apenso à acção de divórcio, nos termos do artigo 1133.º do CPC, processo de inventário para partilha dos bens comuns.

2.º Por despacho datado de 24 de Março de 2022, o Tribunal a quo decidiu remeter “os presentes autos à distribuição, por inexistir fundamento legal – ao contrário do que sucedia em face do artigo 1404º, nº 3 do CPC na redacção dada pelo DL. 227/94 de 8/9– para a sua apensação ao processo de divórcio.” – Cfr. Despacho datado de 24 de Março de 2022 (com referência 87973911).

3.º Tal despacho fere o disposto no artigo 206.º, n,.º2 do CPC, bem como o artigo 122.º da LOSJ, contrariando o artigo 1083º nº 1 b) do CPC.

4.º Porquanto, e salvo melhor entendimento, o processo para partilha dos bens comuns do casal é dependente do processo de divórcio judicial, sendo consequência deste - “é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal.” – Cfr. Acórdão do TRC de 23/02/2021.

5.º Correndo, assim, por apenso, nos termos do citado artigo 206.º, n.º2 do CPC.

6.º Não podendo colher a fundamentação do Despacho do Tribunal a quo – “por inexistir fundamento legal – ao contrário do que sucedia em face do artigo 1404º, nº 3 do CPC na redacção dada pelo DL. 227/94 de 8/9– para a sua apensação ao processo de divórcio.”

 7.º Vejamos, “Da não menção no art. 1133º do C.P.C. que esse inventário corre por apenso ao processo de divórcio não se pode retirar a conclusão contrária tanto mais que a apensação àquele processo resulta dos referidos art. 1083º nº 1 b) e 206º nº 2 do C.P.C.” – Cfr. Acórdão do TRG de 27/05/2021.

 8.º E “A regra da apensação mantém justificação pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, e é a que melhor se coaduna com a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar, nomeadamente, o inventário requerido na sequência de divórcio judicial. Pelo que, tendo em conta o disposto no art. 206º, nº 2, do C.P.C., não podemos retirar do confronto entre o atual art. 1133º do C.P.C. e o correspondente anterior art. 1404º, que o inventário deva ser tramitado de forma autónoma e independente nos tribunais de família e menores ainda que aí tenha corrido termos a ação que lhe deu origem e que com ele é conexa.” – Cfr. Acórdão do TRP de 23/02/2021.

9.º “Em suma, concluímos que cabendo aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil (sem prejuízo das competências atribuídas às conservatórias do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento), cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122, nº 2, da LOSJ, e 206, nº 2, do C.P.C.” – Cfr. Acórdão do TRL de 14/07/2020.

10.º Assim, deve o processo inventário para partilha dos bens comuns do casal ser tramitado por apenso ao processo de divórcio, revogando-se o despacho e ordenando a apensação deste inventário à ação de divórcio.

11.º Sendo dado provimento ao presente recurso.

Não houve contra-alegações.

III – Os factos necessários ao conhecimento do recurso emergem do acima relatado.

IV – Importa apreciar no presente recurso se o processo de inventário que se mostre subsequente a uma acção de divórcio deve ser instaurado por apenso a esta, ou se, como se decidiu na 1ª instância, deve ser objecto de distribuição.

O anterior CPC estabelecia, expressamente, no respectivo art 1404º/3, que o inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento corria por apenso a estes processos.

E a questão dessa possível apensação volta a colocar-se hoje, depois que a L 117/2019 de 13/9, entrada em vigor em 1/1/2020, tendo revogado o regime jurídico do processo de inventário decorrente da L 23/2013 de 5/3, e voltando a instituir, ainda que em paralelo com o inventário notarial, o inventário judicial a que se reportam os  (acrescentados) arts 1082º a 1135º do actual CPC, não contém norma correspondente á daquele nº 3 do art 1404º/3.

Na sequência da opinião  de Tomé dAlmeida Ramião, que se expressou no sentido  de que [1] «perante a ausência de norma expressa em sentido adverso, o processo de inventário instaurado no âmbito do art 1133º do CPC, continua a ser tramitado como processo autónomo e independente, cuja competência está deferida aos Tribunais de Família e Menores, nos termos do referido nº 2 do art 122º da LOSJ», alguns tribunais da 1ª instância têm vindo a entender ordenar à distribuição os processos de inventário que vêm dirigidos aos tribunais que decidiram a acção de divórcio para serem tramitados por apenso a tais acções.

Deve salientar-se que, quer para os processos de divórcio, quer para os de inventário, o tribunal materialmente competente é o mesmo -  os juízos de família e menores – como resulta da al c) do nº 1 do art 122º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do nº 2 dessa norma, onde se preceitua que, «os juízos de família e menores  exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos instaurados em consequência da separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».

Importa ainda atender ao art 1083º CPC - como se viu, decorrente da Lei 117/2019 de 13/9 - que estabelece, a propósito da repartição de competências entre os tribunais judiciais e os cartórios notarias que, «O processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais», entre outras situações, «sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial»- nº 1 al a).

Feitas estas considerações, há que lembrar que à  margem dos critérios específicos da competência, desde há muito que um outro se deve entender como existente-  constituindo afloramento do mesmo o art 73º CPC a respeito da acção de honorários - a que se poderá designar de competência por conexão ou dependência, que permite falar de foro conexional [2] , sem que quanto a esta “competência” se levantem objeccções, a menos que a mesma implique a sobreposição relativamente aos critérios da competência material, o que como já se viu, na situação dos autos não sucede.

As razões específicas deste tipo de competência radicam na economia e  celeridade processual e, por vezes, na imediação, como sucede na acção de honorários a que se refere o referido art 73º CPC[3], ou na acção de responsabilização civil do administrador de insolvência a que se refere o art 59º do CIRE [4].

Já Anselmo de Castro [5] individualizava a “competência por conexão”, referindo que «as regras anteriormente enunciadas deixam de funcionar sempre que surja a figura de conexão de causas».  Com efeito, como afirma (ainda em função das normas do aCPC)  é, afinal, é a figura da conexão de causas e, consequentemente, a competência por conexão, que justifica as soluções de «nas acções cumuladas, quer em cumulação subjectiva (arts 31º/1 e 27º), quer em cumulação objectiva (art 470º/1), a competência do tribunal se estender aos diferentes pedidos, contanto que seja competente em relação a um deles». Acrescentando que, «a mesma regra da extensão da competência por conexão, e ainda por razão idêntica (a conveniência do tratamento das diferentes causas em conjunto), verifica-se na reconvenção (art 98º) e no pedido de declaração incidental (art 96º/2)».

A lei processual reporta-se ainda ao que designamos por competência por conexão no art 206º CPC, que, ao estabelecer que actos processuais estão sujeitos a distribuição na 1ª instância, refere, no seu nº 2, que «as causas que por lei ou despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependem».

São, aliás, várias as manifestações desta dependência por conexão, justamente  no direito da família, sendo esse tipo de competência que justifica a instauração por apenso na prestação de contas pelo cabeça de casal (art. 947º), a atribuição da casa de morada de família por dependência da ação de divórcio pendente ou finda (art. 990º/4), a autorização para a prática de actos por dependência de processo de inventário ou de maiores acompanhados (art 1014º/4), a nomeação judicial de titulares de órgãos sociais para efeito de representação da pessoa coletiva em causa pendente (art. 1054º/2) ou ainda os casos previstos nos arts. 881ª/3, 915º, 924º e 959º, como o assinalam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [6].

Deste modo, não podendo excluir-se que o decidido na acção de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens possa influenciar a partilha subsequente  – pense-se na data da fixação da separação, nos termos e para o efeito previsto no nº 2 do art 1789º CC – e realçando-se na já referida al b) do nº 1 do art 1083º CPC, ao estabelecer a competência exclusiva dos tribunais judiciais para o inventário,  a utilização do vocábulo «dependência», tem-se como muito pouco discutível, na perspectiva deste Tribunal, que o legislador não tivesse querido para estes inventários que os mesmos corressem por dependência ao processo de divórcio.

Nesse sentido pronunciam-se  Pedro Pinheiro Torres[7], referindo, concretamente: “(…) Será, porventura, relevante, fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente o divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC».

E também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [8], que deixam bem claro: «Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206º, nº 2»[9].

Do que decorre haver que revogar a decisão recorrida, devendo o inventário em causa ser tramitado por apenso ao processo de divórcio judicial dos interessados.

.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em revogar a decisão recorrida, determinando que o processo de inventário prossiga os seus termos por apenso ao processo de divórcio judicial dos interessados.

Sem custas.

Coimbra, 12 de Julho de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

(…)


               [1] - Cadernos do CEJ «Inventário: O novo Regime», Maio de 2020, p. 39/40
[2] -  Por ex, Paulo Pimenta «Processo Civil Declarativo», 2014, 101/102

[3] - Parece ser dominante na jurisprudência, embora discutível,  o entendimento, a  propósito da acção de honorários, no sentido da mesma não poder correr por apenso a uma acção principal que corre ou correu termos num tribunal de competência especializada, em virtude de tal colidir com a atribuição de competência em razão da matéria.Como se refere, a título de exemplo, respectivamente, nos acórdãos da  Relação de Lisboa de 23/2/2006 [3] e de 8/3/2007 [3], «A acção de honorários só correrá por apenso ao processo onde foram prestados os serviços, quando o tribunal seja materialmente competente, tanto para a acção onde foram prestados os serviços como para a de honorários» 2. Donde se impõe concluir que o Tribunal de Comércio é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção de honorários»; «A norma do artigo 76.º do Código de Processo civil respeita à competência territorial para a acção de honorários que deve ser intentada no tribunal da causa na qual foi prestado o serviço, devendo aquela correr por apenso a esta; pressupõe-se que o tribunal da causa tem competência, em razão da matéria, para conhecer da acção de honorários pois, se não tiver, esta acção terá de ser proposta autonomamente».
[4] -«Código da Insolvência e Recuperação Anotado», Vol I,  2006, p 275.

O ponto de vista de Carvalho Fernandes/João Labareda  a respeito da questão em apreço, é o de que  não obstante não «existir nenhuma disposição que, só por si, sustente a conclusão de a acção de responsabilidade constituir um incidente ou um apenso do processo», «há que convir em que a responsabilidade do administrador, resultando da violação funcional de deveres que lhe incumbem, é originada no próprio devir processual e constitui, por isso, uma questão inteiramente conexionada com a insolvência», para concluir que, «neste contexto, cremos  que o tribunal do processo será ainda competente para a acção de responsabilidade que, então, deve ser autuada por apenso», pondo em relevo, e em abono do seu entendimento, que «esta solução, é de resto, não só a que melhor se ajusta aos princípios da economia processual, como também a que melhor permite um adequado julgamento».
[5]«Direito Processual Civil Declaratório» , 1982, vol II, p 70
               [6] Código de Processo Civil Anotado», 2020, II, p 527
               [7] - Cadernos do CEJ, «Inventário: o novo regime», Maio de 2020, p. 31
               [8] - Obra e lugar referido
               [9] - Na jurisprudência, vejam-se, entre outros, o Ac R L 14/7/2020 (Mª da Conceição Saavedra), o Ac RC 23/2/2021 (António Pires Robalo) e da mesma data Ac R P (Alexandra Pelayo)