Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
828/20.5T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: NEGÓCIO SOB CONDIÇÃO SUSPENSIVA
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
EXECUÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 270º C. CIVIL; 715º, NºS 1 A 4 NCPC .
Sumário: 1. No negócio sob condição suspensiva a obrigação só é exigível depois de a condição se verificar, ficando o credor/exequente onerado com a prova dessa verificação, sem o que a execução não é admissível (art.ºs 270º do CC e 715º, n.ºs 1 a 4 do CPC).

2. O credor, munido de um título com força executiva, tem de fornecer essa prova no momento em que inicia a execução.

3. Não constando do requerimento executivo os meios de prova para demonstrar a exigibilidade da obrigação exequenda, justifica-se o convite ao aperfeiçoamento para indicação de prova complementar (art.º 726º, n.º 4 do CPC).

Decisão Texto Integral:








            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. A 23.3.2018, C..., G... e J... instauraram execução para entrega de coisa certa contra O..., com fundamento em decisão judicial condenatória.

Por despacho de 13.10.2020 o Tribunal a quo decidiu ´indeferir liminarmente a presente ação executiva`, uma vez que o título executivo apresentado não se mostra exequível - cf. art.º 726, n.º 2, al. a), do CPC.

Inconformados, os exequentes apelaram formulando as seguintes conclusões:

...

A executada respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, coloca-se a questão da exequibilidade do título dado à execução (sentença condenatória).

II. 1. Para a decisão do recurso releva o descrito no antecedente relatório e o seguinte:

1) A 1ª instância “tendo em conta o requerimento executivo e título executivo apresentados e restante processado eletrónico”, considerou assente:

a) Os exequentes alegaram que: “A Autora, aqui executada não cumpriu as obrigações ínsitas nos pontos[1] 4 e 5 da transacção. / Assim, não procedeu ao agendamento da escritura, até dia 15.11.2016, com vista à sua outorga a realizar nos 10 dias subsequentes, nem volvidos 10 meses sobre aquela procedeu à entrega do imóvel à Herança ilíquida aberta por óbito de C... / Pelo que se instaura a presente execução para a entrega do imóvel descrito no artigo 1º da petição inicial - descrito sob o n.º ... da freguesia de ... na Conservatória do Registo Predial de ..., e na respetiva matriz urbana sob o artigo ....”.

b) Na referida sentença, transitada em 24.02.2016, ficou a constar a seguinte:[2]

«TRANSACÇÃO - 1) A ré V..., no presente acto entrega a posse do imóvel à sua mãe O... / 2) Os autores desistem do pedido de pagamento de uma indemnização correspondente ao período de privação do uso do imóvel desde Set. 2010 até à data da entrega efectiva do mesmo aos autores no quantum de 300€ mensais; e a ré/reconvinte desiste do pagamento das obras descritas no articulado de contestação-reconvenção no valor de 10.000€ (…) e do eventual direito de retenção sobre o imóvel até integral pagamento. / 3) A ré O... compromete-se a adquirir as quotas partes dos remanescentes autores, sobre o imóvel objecto dos autos e identificado no artigo 1º da petição inicial, pelo valor global de € 33 750, cabendo a cada um destes €11.250, com realização de escritura pública no prazo máximo de 10 meses a contar da presente data.[3] / 4) (…) O... obriga-se a notificar os restantes autores, até ao dia 15.11.2016, da data da realização da escritura a realizar nos 10 dias posteriores. / 5) Decorrido o prazo de 10 meses sem que a escritura seja realizada a ré O... compromete-se a entregar o imóvel à Herança ilíquida aberta por óbito de C...[4] sem necessidade de qualquer interpelação para o efeito. / 6) (…) O... compromete-se no prazo de 8 dias a proceder à demolição do telheiro situado na escada e parte do logradouro, conforme comunicação da Câmara Municipal de .... / 7) Caso seja necessário praticar qualquer outra exigência da Câmara Municipal, para obtenção/dispensa da licença de habitabilidade as partes comprometem-se a colaborar entre si na resolução de tais exigências. / 8) Custas em partes iguais sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário de que beneficiam, prescindindo autores e réus das de parte.»

c) Seguiu-se a sentença homologatória: «(…) Por ser válida, objectiva e subjectivamente, ao estarem em causa direitos incluídos na livre disponibilidade das partes e sendo estas as titulares da relação objecto do processo, homologo por sentença a transacção exarada em ata, (…) ficando as partes vinculadas ao seu cumprimento nos seus precisos termos (…).»

d) Os exequentes apenas juntaram ao requerimento executivo a caderneta predial do imóvel e as procurações.[5]

e) Nada mais tendo sido alegado ou anexo ao requerimento executivo.

2) Para concluir que “o título executivo apresentado não é exequível”, a Mm.ª Juíza invocou, apenas, o teor das cláusulas 4ª e 5ª referidas em 1) b) e os art.ºs 10º, n.º 5, 713º e 715º do CPC[6].

3) Face ao determinado na acção executiva, decidiu, ainda, a Mm.ª Juíza, invocando o «“dever de gestão processual e (os) princípios de economia e eficiência processuais”, determinar desde já que o APENSO A, não tendo autonomia, deverá ser extinto por inutilidade superveniente da lide», pelo que «de harmonia com o disposto no artigo 277, al. e), do CPC», julgou «extintos os autos de embargos de executado por impossibilidade/inutilidade superveniente da lide», com «custas a cargo dos embargados/exequentes, que deram causa aos embargos» (sic).

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos (art.º 10º, n.º 5).

De entre os vários títulos (tipificados), reza o n.º 1 do art.º 703º que à execução podem servir de base as sentenças condenatórias (alínea a)).

A execução principia pelas diligências, a requerer pelo exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo (art.º 713º).

Quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro, incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efetuou ou ofereceu a prestação (art.º 715º, n.º 1 - sob a epígrafe “Obrigação condicional ou dependente de prestação”). Quando a prova não possa ser feita por documentos, o credor, ao requerer a execução, oferece de imediato as respetivas provas (n.º 2). No caso previsto no número anterior, o juiz decide depois de apreciar sumariamente a prova produzida, a menos que entenda necessário ouvir o devedor antes de proferir decisão (n.º 3). No caso previsto na parte final do número anterior, o devedor é citado com a advertência de que, na falta de contestação, se considera verificada a condição ou efetuada ou oferecida a prestação, nos termos do requerimento executivo, salvo o disposto no art.º 568º (n.º 4). A contestação do executado só pode ter lugar em oposição à execução (n.º 5).

O processo é concluso ao juiz para despacho liminar (art.º 726º, n.º 1, sob a epígrafe “despacho liminar e citação do executado”). O juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: a) Seja manifesta a falta ou insuficiência do título; b) Ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso; c) Fundando-se a execução em título negocial, seja manifesta, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso; (…) (n.º 2). É admitido o indeferimento parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo ou aos sujeitos que careçam de legitimidade para figurar como exequentes ou executados (n.º 3). Fora dos casos previstos no n.º 2, o juiz convida o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 6º (n.º 4). Não sendo o vício suprido ou a falta corrigida dentro do prazo marcado, é indeferido o requerimento executivo (n.º 5).

O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (art.º 6º, n.º 2).

3. Refere a Mm.ª Juíza a quo que, segundo os exequentes, a executada não cumpriu os pontos 4 e 5 da aludida transacção, ou seja, não procedeu ao agendamento da escritura, até dia 15.11.2016, com vista à sua outorga a realizar nos 10 dias subsequentes, nem, volvidos 10 meses, procedeu à entrega do imóvel à Herança ilíquida aberta por óbito de C...

Diz, a seguir, que os exequentes não indicaram “testemunha(s) e/ou prova documental que permitisse dar como assente que existiu tal incumprimento por parte da executada”, sendo que “o reconhecimento da obrigação de entrega do imóvel, melhor descrito na sentença, está condicionado ao incumprimento por parte da executada do disposto na cláusula 4, da transação”.

Acrescenta que “apesar dos exequentes, no seu requerimento executivo, referirem que a executada não cumpriu as obrigações ínsitas nos pontos 4 e 5, da transação, era seu ónus indicar prova que comprovasse tal asserção (cf. art.º 715º, n.º 2, do CPC) ou intentar uma notificação judicial avulsa que permitisse comprovar que os exequentes solicitaram à executada a marcação da escritura, o que não sucedeu./ Isso mesmo nos diz o disposto no art.º 713º, do CPC (…)./ Tal ónus não pode ser cumprido na fase dos embargos à execução, mas logo no requerimento executivo, de modo a poder tornar o título exequível. (…)/ Assim, os exequentes deveriam ter solicitado a produção de prova testemunhal e/ou junto documentos que permitissem a aferição do incumprimento, por parte da executada, da cláusula 4, da transação, que é condição suspensiva para a entrega do imóvel a um terceiro, identificado na cláusula 5, da mesma transação.”

4. Ao atribuir eficácia executiva às sentenças de condenação, o legislador quis abranger nesta designação todas as sentenças que contêm uma ordem de prestação ou comando de actuação ao demandado de maneira incondicional, em que o juiz impõe a alguém determinada responsabilidade.[7]

5. O regime incluído no citado art.º 715º vem de há muito (desde o CPC de 1939) e respeita à denominada prova complementar do título.

Trata-se duma actividade instrutória a ter lugar na fase liminar do processo executivo, cuja necessidade decorre de, antes das providências executivas, serem verificados os pressupostos da certeza e da exigibilidade da obrigação exequenda: quando não resultem do próprio título, mas tenham já resultado de diligências anteriores à propositura da acção executiva, há que provar no processo executivo que tal sucedeu.

Assim, por exemplo, porque a obrigação sob condição suspensiva só é exigível depois de a condição se verificar (a verificação da condição importa a produção dos efeitos do negócio, é factor essencial da existência da obrigação - art.º 270º do Código Civil/CC), o credor/exequente fica onerado com a prova dessa verificação, sem o que a execução não é admissível (art.º 715º, n.ºs 1 a 4).

6. Explicitando.

Vê-se, pelo título executivo, que a obrigação está dependente de uma condição suspensiva. Nem por isso o título deixa de ter força executiva (o título é exequível, desde que reúne os requisitos formais e substanciais exigidos por lei)[8], posto que não dê, por si só, a segurança de que a obrigação existe.

O credor está munido de um título com força executiva, mas como, apesar disso, a existência da obrigação depende da prova da verificação da condição, tem ele de fornecer essa prova no momento em que inicia a execução.[9]

7. Constituindo orientação fundamental do CPC a de proporcionar o aproveitamento das acções, mediante o suprimento da falta de pressupostos processuais, bem como a correcção de irregularidades formais, desde que sanáveis (art.ºs 6º, n.º 2 e 590º, n.º 2), justifica-se, plenamente, adoptar nas situações acima descritas a solução do aperfeiçoamento prevista no n.º 4 do art.º 726º, e só no caso do requerente (in casu, exequente) não aperfeiçoar a petição/requerimento executivo é que se seguirá, tal como no de falta de apresentação do título executivo, o indeferimento do requerimento executivo - profere-se despacho liminar de aperfeiçoamento, só seguido de indeferimento no caso de, na sua sequência, o vício não ser sanado  (art.º 726º, n.º 5).[10]

8. Como decorre do disposto no art.º 1248º do CC, a transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões e que, naturalmente, podem envolver a constituição de obrigações para uma ou ambas as partes.

No caso sub júdice, a sentença homologatória já havia transitado à data em que foi proposta a execução e, portanto, era um título exequível que, como tal, poderia fundamentar uma acção executiva.

Em causa, apenas, se a obrigação já era exigível, dependendo do decurso do prazo que as partes haviam estipulado para o cumprimento fixado na transacção.[11]

9. Na situação em apreço, perante a não indicação, no requerimento executivo, das diligências destinadas a demonstrar a exigibilidade da obrigação exequenda e não se podendo concluir, sem mais, por qualquer insuficiência do título, justificava-se o convite ao aperfeiçoamento (do requerimento executivo) com a indicação de prova complementar tendente à demonstração dos pressupostos de existência/exigibilidade da obrigação exequenda (condição material da realização coactiva da prestação), possibilitando-se, assim, ao exequente, demonstrar a ocorrência da mencionada condição [cf. II. 3., supra e o art.º 726º, n.º 4][12], o que implica a revogação da decisão recorrida, com os efeitos legais daí decorrentes [inclusive, para o apenso de embargos de executado - cf. II. 1. 3), supra].

10. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos autos, como se indica em II. 9., supra.

Sem custas.


26.10.2021



[1] Idem.
[2] Cf. acta de 22.01.2016 da acção declarativa comum n.º 121/14.2TBLSA movida pelos exequentes contra a executada (fls. 10).
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
   A situação de compropriedade está documentada na “caderneta predial” de fls. 4.
[4] Decorre da procuração de fls. 7 que era o marido da exequente G...
[5] Cf. os documentos de fls. 4 a 9.
[6] Diploma a que respeitam as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[7] Vide J. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 1º, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 68 e 127; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 62 e Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pág. 150 e seguintes (com uma perspectiva crítica, sobretudo, no tocante ao entendimento pretérito sobre as “condenações tácitas ou implícitas”).
[8] Meio probatório da relação obrigacional creditícia existente entre as partes, o título executivo avulta como condição necessária, mas também suficiente da acção executiva, posto que apresente os requisitos externos de exequibilidade que a lei prevê; verificados esses requisitos, por reconhecida se tem a exequibilidade, presumindo-se a existência do direito que o título corporiza (a obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida/o título executivo constitui base da presunção da existência – e titularidade – da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu), só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e provar pelo executado em oposição à execução - cf., entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 60 e seg.; Alberto dos Reis, Processo de Execução, cit., pág. 174 e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 87 e segs. e, designadamente, os acórdãos do STJ de 10.11.2011-processo 4719/10.0TBMTS-A.S1 e da RL de 27.6.2007-processo 5194/2007-7, publicados no “site” da dgsi.
   Também se diga que a exequibilidade extrínseca da pretensão decorre da sua incorporação num título executivo, num documento que formaliza por via legal “a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida” (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 06.12.2011-processo 869/05.2TBAMT-C.P1.S1, publicado no “site” da dgsi), identificando-se a exequibilidade intrínseca com a “certeza, exigibilidade e liquidez”, pressupostos de carácter ´material`, que condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão” (vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 37).
[9] Vide J. Alberto dos Reis, Processo de Execução, cit., págs. 461 e seguinte.
[10] Vide, nomeadamente, J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, págs. 248 e seguintes (comentando disposição similar do CPC de 1961); J. Lebre de Freitas, A Ação Executiva, cit., págs. 109, 112 e seguinte e 186 e seguinte e Rui Pinto, ob. cit., págs. 230 e seguintes, 331 e 353 e seguintes.
[11] Cf., ainda, o acórdão da RC de 05.3.2013-processo 471/08.7TBVNO-B.C1, publicado no “site” da dgsi.

[12] Na resposta à alegação de recurso, a executada veio admitir que «A entrega do imóvel (que serve de base à execução) está, portanto, de forma inequívoca sujeita à condição do incumprimento na marcação da escritura. / E, efetivamente, a recorrida não agendou a escritura, sem prescindir do infra alegado (…).»