Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4161/18.4T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO DE CRÉDITO
LIVRANÇA
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ANSIÃO - JUÍZO DE EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 10, 70, 75, 77, 78 LULL, 342, 334 CC
Sumário: 1. Quem emite ou subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato - o pacto de preenchimento - pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento.

2. Como excepção que é, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos - enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título.

3. O nosso legislador não consagrou um limite temporal ao preenchimento do título em branco.

4. Se não há violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70º (ex vi do art.º 77º), da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, coincida ou não com o incumprimento do contrato (vencimento da obrigação) subjacente.

Decisão Texto Integral:            







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. T (…) deduziu oposição à execução que lhe move N (…), S. A., pedindo a absolvição do pedido e a condenação do executado F (…) no pagamento da livrança dada à execução.

Alegou, em síntese: assinou a livrança sem que tivessem sido explicados os termos do contrato, e só assinou porque lhe foi exigido pelo ex-marido, o executado F (…), e solicitado pela exequente; o valor da livrança destinou-se ao pagamento de um veículo que o executado queria adquirir para seu uso exclusivo; até ao divórcio foi sujeita a violência física e psicológica, que a diminuía e a impedia de se libertar daquela relação e ter uma vida normal; não celebrou o contrato de forma consciente e a exequente, de má fé, não curou de a informar do que estava a assinar.

A exequente contestou sustentando que a livrança exequenda foi entregue como caução do empréstimo bancário no valor de € 22 872,08 que concedeu aos executados, montante depositado numa conta de que o executado era titular e que em 2004 passou a ser titulada, também, pela embargante; o empréstimo foi negociado por ambos os executados e explicado aos mutuários, antes de assinado; foi regularmente pago até junho de 2012; a embargante antes, durante e depois da assinatura do contrato nunca alegou ter sido objeto de violência física ou psicológica para assinar o contrato e a livrança que o cauciona. Concluiu pela improcedência dos embargos.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 03.02.2020, julgou parcialmente procedente a oposição à execução mediante embargos e, em consequência, quanto à embargante, determinou o prosseguimento da execução para pagamento do somatório correspondente ao capital em dívida (€ 13 117,84), acrescido de juros remuneratórios e moratórios (€ 4 525,65), imposto de selo sobre estes (€ 181,03) e selagem (€ 89,12), e dos juros de mora à taxa de 4 % desde a data de vencimento aposta na livrança (09.11.2018) até integral pagamento.

Inconformada, a exequente/embargada interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar a invocada nulidade da sentença e, equacionada a existência de abuso do direito (de conhecimento oficioso)[1], se outra deverá ser a decisão de mérito.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

i. Entre a exequente e os executados foi celebrado em 14.10.2008 um contrato de crédito ao consumo BES que consta de fls. 22.

ii. Das cláusulas contratuais particulares consta, para além do mais, que:

1. o capital concedido foi de € 20 000,

2. imposto de selo de € 137,23,

3. prémio de seguro € 2 140,18,

4. comissão de estudo de processo € 571,80,

5. imposto de selo sobre comissões € 22,87,

6. montante de financiamento total € 22 872,08,

7. o prazo de amortização é de 84 meses,

8. a taxa de juro anual e nominal de 9,500 %,

9. a taxa de juro anual de encargos efetiva global inicial (TAEG) será de 11,594 %;

10. o reembolso em prestações mensais e sucessivas de capital e juros, podendo a primeira prestação ser de valor diferente por débito na conta à ordem n.º 3440 3179 0004.

11. para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades assumidas, entregaram ao BES uma livrança com cláusula não à ordem subscrita por “F (…)” “T (…)”, cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o Banco os fixe na data em que julgar conveniente pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando, assim o seu preenchimento; todos os intervenientes dão o seu assentimento à entrega desta livrança nos termos e condições que ela é feita.

iii. Das cláusulas contratuais gerais consta, além do mais, o seguinte:

1. 5. Período de reflexão

5.1. O cliente poderá resolver livremente o contrato no prazo máximo de 7 (sete) dias, a contar da sua assinatura, mediante o envio de carta registada com aviso de recepção ou mediante comunicação escrita entregue ao BES, desde que qualquer uma das referidas comunicações seja expedida dentro do prazo acima referido.

2. 6. Garantias

Em garantia do cumprimento das obrigações assumidas neste contrato ou dele emergentes, o cliente presta as garantias referidas nas condições particulares ou, eventualmente, outras adicionais ou não, aceites pelo BES.

3. 8. Incumprimento

8.1. O não cumprimento de qualquer das obrigações de natureza pecuniária assumidas neste contrato implicará a obrigatoriedade do pagamento de todas as prestações em falta, acrescidas de juros de mora à taxa de 2 %, assim como de todas as prestações vincendas, podendo o Banco, para cobrança dos créditos, fazer uso dos direitos decorrentes dos títulos ou garantias que lhe foram prestadas pelo cliente.

iv. A conta n.º 344031790004 foi aberta em 03.3.2000, constando da respectiva ficha de abertura de contrato que o executado era menor e estava representado por M (…)

v. Em 16.5.2003 a embargante foi adicionada como participante no contrato de abertura de conta referido.

vi. A conta poderia ser movimentada com uma assinatura.

vii. Como morada associada ao contrato estava “Rua (…)Chaianca”.

viii. O produto do empréstimo foi creditado na conta DO n.º (…) em 17.10.2008 e utilizado pelos mutuários.

ix. As prestações do contrato foram pagas entre 14.10.2008 e até 25.6.2012 e durante esse período de tempo a embargante nunca suscitou qualquer problema relativamente ao contrato.

x. Em 27.6.2012 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…)Chainca, onde solicita a regularização do montante então em dívida de € 532,25.

xi. Em 04.9.2012 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…) Chainca, onde solicita a regularização do montante em dívida de € 1 307,42, com a informação de que, não sendo regularizado, até 14.9.2012 o processo será enviado para o departamento de contencioso.

xii. Em 03.11.2012 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…) Chainca, onde solicita a regularização do montante em dívida de € 1 523,43, com a informação de que, não sendo regularizado em 10 dias, o contrato será denunciado e a livrança preenchida.

xiii. Em 02.12.2012 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…), a informar que a situação de incumprimento persiste pelo que irá recorrer à via judicial.

xiv. Em 19.12.2012 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…)Chainca, de idêntico teor.

xv. Em 16.10.2018 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida à Rua (…) Chainca, onde informa que a livrança será preenchida com o seguinte valor: € 13 117,84 de capital, € 9 683,93 de juros devidos desde 25.6.2012, imposto de selo sobre juros de € 387,37 e selagem da livrança de € 115,95, num total de € 23 305,09.

xvi. Em 16.10.2018 a exequente enviou uma carta a cada um dos executados, dirigida, quanto à embargante, à Rua (…) Pombal, onde informa que a livrança será preenchida com o seguinte valor: € 13 117,84 de capital, € 9 683,93 de juros devidos desde 25.6.2012, imposto de selo sobre juros de € 387,37 e selagem da livrança de € 115,95, num total de € 23 305,09.

xvii. O empréstimo foi objeto de negociações entre os mutuários e o mutuante, tendo em vista definir o montante do empréstimo, o prazo do empréstimo, as taxas de juros, as garantias, as condições de reembolso, os impostos, as comissões, entre outros.

xviii. Depois de aprovado o empréstimo, mas antes de assinado o contrato, foi o mesmo lido e explicado, detalhadamente, aos mutuários.

xix. A embargada explicou à embargante os termos do contrato de mútuo, respectivas cláusulas particulares e gerais e responsabilidade daí decorrente.

xx. Os executados divorciaram-se em 24.3.2011.

xxi. Em 29.01.2019 a embargante ainda residia na Rua (…)Chainça.

2. E deu como não provado:

i. A embargante foi coagida pelo executado a assinar o contrato de mutuo;

ii. A embargada sabia que a embargante era uma pessoa oprimida pelo cônjuge e que estava a ser por ele manipulada para assinar o contrato de mútuo e livrança;

iii. A embargante assinou a livrança e o contrato de mútuo que lhe subjaz sem ter consciência do que estava a assinar.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Na 1ª instância foi identificado como objecto do litígio saber se o contrato que subjaz à emissão da livrança é nulo”.

Face à factualidade provada, a Mm.ª Juíza a quo concluiu que entre a embargante (e outro) e a embargada foi celebrado um contrato de crédito ao consumo (à data da celebração do contrato, regulado pelo DL n.º 359/91 de 21.9), sendo um dos efeitos essenciais a obrigação de o consumidor restituir o valor emprestado acrescido dos respetivos juros, no prazo acordado (art.ºs 1142º e 1145º do CC).

Considerou, ainda, que foram observadas as formalidades legais (art.º 6º, n.º 1 do DL n.º 359/91 de 21.9) e que a embargante não provou o alegado circunstancialismo em que fez assentar a pretensa nulidade do contrato.

Partindo do entendimento de que a livrança apresentada como título executivo desempenhava “uma função de garantia num contexto de relativa incerteza”, podendo “ser acionada (através do preenchimento do título) em caso de incumprimento”, e constatando que a situação de incumprimento “verificou-se a 25.6.2012 e a livrança foi preenchida com data de vencimento em 09.11.2018” - sendo que “o nosso ordenamento jurídico não fixa qualquer prazo para o preenchimento da livrança” -, a Mm.ª Juíza a quo, ancorando-se no ensinamento de Carolina Cunha[2], concluiu, depois, que a exequente podia preencher a livrança, nomeadamente no tocante à data de vencimento, não quando lhe aprouvesse mas sim quando se verificasse o incumprimento do contrato, pelo que, na situação em análise, “o preenchimento da livrança deveria ter ocorrido até três anos contados desde o incumprimento do contrato, isto é, até 25.6.2015”, o que leva à reconfiguração da pretensão cambiária (mormente, quanto a juros devidos pelo período de três anos), de modo a contê-la dentro dos limites excedidos, sob pena de abuso, daí resultando que, - no dizer da Mm.ª Juíza a quo - responsabilizando-se o subscritor na exacta medida vertida no acordo de preenchimento, “o valor da livrança exequenda passará a corresponder ao somatório do capital em dívida (€ 13 117,84), acrescido de juros remuneratórios e moratórios (€ 4 525,65), imposto de selo sobre estes (€ 181,03) e selagem (€ 89,12)”, e “juros de mora à taxa de 4 % desde a data de vencimento aposta na livrança (09.11.2018) e até integral pagamento”.

4. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que a referida perspectiva da Mm.ª Juíza a quo é desconforme, por um lado, com as regras processuais e probatórias e o enquadramento que vem sendo dado à denominada excepção do preenchimento abusivo dos títulos cambiários, e, por outro, com a resposta unânime da jurisprudência à concreta questão na base da qual foi decidido reduzir a quantia exequenda.

5. Os executados podiam opor-se à execução, através de embargos (art.º 728º do CPC) e, não se baseando a execução em sentença, para além dos fundamentos especificados no art.º 729º do CPC, na oposição podiam ser alegados quaisquer outros que seria lícito deduzir no processo declarativo (art.º 731º do CPC).

A circunstância de haver título executivo autoriza a formulação de um pedido executivo, e o título faz presumir a existência da obrigação dele constante. Tal não significa, porém, que o executado esteja impedido de ilidir tal presunção, constituindo a oposição à execução o modo de que o executado dispõe para se libertar da execução contra si instaurada, seja com base em razões de natureza processual, seja aduzindo argumentos materiais (que contendam com a existência ou a subsistência da obrigação).[3]

6. A livrança é um título de crédito, passado e assinado por um subscritor, a favor ou à ordem de outra pessoa, por via da qual o primeiro assume, perante o segundo, a obrigação de pagar a quantia nela aposta na data do vencimento (art.ºs 75º e 78º, da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças/LULL).

A livrança dada à execução, subscrita pelos executados, foi emitida à ordem da exequente/recorrente e entregue a esta em branco[4] para “garantia e segurança do cumprimento do responsabilidades assumidas” (cf. em II. 1. ii) - 11, supra).

A exequente, na sequência do incumprimento aludido em II. 1. ix) a xvi), supra, preencheu a dita livrança, apondo-lhe a importância e a data de vencimento.

A referida livrança, uma vez preenchida pela exequente/entidade credora (beneficiária), não chegou a entrar em circulação.

Este quadro leva-nos a considerar que quer a exequente quer os executados se mantêm no domínio da relação cambiária primitiva, não tendo a livrança saído das relações imediatas, pelo que são oponíveis excepções fundadas na obrigação causal (relação subjacente), tudo se passando como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta.[5]

7. Nos termos do art.º 77º da LULL são aplicáveis às livranças as normas referentes às letras de câmbio dela constantes, com as devidas adaptações, entre as quais a referente à letra em branco (art.º 10º da mesma Lei).

Dispõe o art.º 10º da LULL que se o título que está incompleto no momento da sua emissão tiver sido completado "contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra [livrança] de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave."

Daqui resulta, desde logo, a conclusão de que a obrigação cambiária se constitui mesmo antes do total preenchimento da livrança ou, no limite, aquando do preenchimento.[6]

A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado “acordo ou pacto de preenchimento”.

8. O contrato - ou pacto - de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.[7]

Se a livrança foi preenchida pelo primeiro adquirente e é este quem reclama o pagamento, pode sempre ser oposta a excepção de preenchimento abusivo - o título deverá ser preenchido de harmonia com tais estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como “abusivo”.[8]

Esse acordo pode ser expresso [quando as partes estipularam certos termos em concreto] ou tácito [por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título][9], reporta-se à obrigação cartular em si mesma, o que pode ou não coincidir com a obrigação que esta garante e que daquela é causal ou subjacente. Mas ali valem, tão-somente, os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstracção e não a "causa debendi", bastando-se para a execução a não demonstração, pelo executado, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento, que pode ser invocado no domínio das relações imediatas.

9. Embora o art.º 10º da LULL não explicite em que se traduz a inoponibilidade da excepção de preenchimento abusivo, sendo esta relativa a obrigações cambiárias, há-de qualificar-se como excepção pessoal, fundada nas relações imediatas do seu subscritor com o portador imediato.

Devendo a livrança em branco ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes[10], no caso de ter havido, como aqui houve, acordo expresso, no domínio das relações imediatas, é livremente oponível ao seu portador a inobservância daquele acordo, questionando-se dessa forma a obrigação exequenda, cabendo, porém, ao obrigado cambiário, o respectivo ónus de alegação e prova - cabe-lhe o ónus de alegar e provar os factos integradores da concreta excepção de preenchimento abusivo que consubstancie a sua oposição à execução (art.ºs 342º, n.º 2 do CC e 576º, n.º 3 do CPC).[11]

10. A embargante/executada, mediante os presentes embargos, pretende impedir a execução ou obstar à produção dos efeitos do título executivo.

Contudo, não suscitou a excepção do preenchimento abusivo do título (e correlativa prescrição parcial do montante inserido na livrança) - consequentemente, nenhum dos temas da prova versa sobre o preenchimento abusivo e/ou a prescrição (cf. o despacho de 11.11.2019 e a “conclusão 3ª”, ponto I., supra) -, pelo que, em princípio, não podia o Tribunal a quo conhecer de tal matéria, sob pena de nulidade da sentença (cf., ainda, nomeadamente, os art.ºs 303º do CC e 579º, 608º, n.º 2 e 615º, n.º 1, alínea d) do CPC).

Considerando-se, porventura, que a concreta factualidade que - segundo o Tribunal a quo - integra a excepção de preenchimento abusivo do título será de enquadrar na figura mais ampla do abuso do direito (art.º 334º do CC), então, por se tratar de problemática de conhecimento oficioso, já nada obstaria a que fosse ponderada e apreciada na decisão de mérito (cf., designadamente, os art.ºs 579º e 608º, n.º 2, 2ª parte, in fine, do CPC[12]).

Daí que se deva reapreciar o decidido nesse contexto (cf., ainda, o art.º 665º, n.º 1 do CPC).

11. A questão suscitada pela Mm.ª Juíza a quo e retomada pela apelante confronta a matéria da denominada limitação temporal ao preenchimento da letra ou livrança emitida em branco, concretamente a questão de saber se existe ou deve existir um limite temporal ao preenchimento do título em branco por parte do respectivo portador (com a eventual prescrição em função da data que deveria ter sido indicada como vencimento).

Nesta matéria é indiscutido que o nosso legislador não consagrou, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, um limite temporal a esse preenchimento.

E a jurisprudência nacional, depois de numa primeira fase ter perfilhado o entendimento de que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, tem vindo a entender, de forma unânime, que o prazo prescricional previsto no art.º 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, sendo que o preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que ambas podiam objectivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no art.º 236º do CC.

A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70º, 1º parágrafo[13], ex vi do art.º 77º da LULL, se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores, não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada.

12. A exequente ficou autorizada a preencher a referida livrança nos seguintes termos: “(…) cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o Banco os fixe na data em que julgar conveniente pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando, assim o seu preenchimento” (cf. II. 1. ii) - 11., supra).

Verificado o incumprimento da relação subjacente, o apelante podia mas não estava obrigado a preencher a livrança - o preenchimento podia ocorrer quando se mostrasse necessário ou conveniente ao accionamento do título e tendo em vista a satisfação coactiva do crédito.

Por conseguinte - à luz do exposto -, atendendo às datas de vencimento inscrita na livrança e da instauração da execução, não é possível sustentar que a livrança em apreço se encontra prescrita (ainda que parcialmente) e que a demonstrada actuação da exequente corporize abuso do direito (art.º 334º do CC), sendo certo que, como tem sido afirmado pela jurisprudência, o mero decurso do prazo, sem mais, não permite ao devedor invocar uma legítima confiança na renúncia por parte do credor ao exercício dos direitos que lhe assistem.[14]

Assim, os autos prosseguem para pagamento da totalidade da quantia exequenda.

13. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, prosseguindo os autos como se refere em II. 12., supra.

Custas, nas instâncias, pela embargante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.


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14.12.2020


 

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral

 


[1] Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 21.01.2003-processo 02A4233, 04.4.2006 e 26.6.2007, o primeiro publicado no “site” da dgsi e os restantes na CJ-STJ XIV, 2, 33 e XV, 2, 127, respectivamente.

[2] In Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, designadamente, a pág. 205: “(…) o direito cambiário emergente de um título em branco torna-se exercitável a partir do momento em que o respetivo portador está legitimado a preenchê-lo - tipicamente, a partir da ocorrência do incumprimento e subsequente resolução do contrato fundamental. Ou seja, a verificação do pressuposto a que o preenchimento está submetido faculta-nos a determinação da data de vencimento que deve ser aposta no título e, assim, acaba, reflexamente, por traçar um limite factual taxativo ao exercício da faculdade de preenchimento: pode ocorrer até ao final do prazo de prescrição cambiária. (…)”.
[3] Vide, entre outros, Paulo Pimenta, Acções e Incidentes Declarativos na Pendência da Execução, Revista FDUNL, THEMIS, Ano V, n.º 9, 2004, “A Reforma da Acção Executiva”, Vol. II, pág. 73 e J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 205 e seguintes.
[4] «Livrança em branco» é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no art.º 75° da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças/LULL.
  Preceitua-se neste art.º:
A livrança contém:
               1. A palavra «livrança» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redacção desse título;
               2. A promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada;
               3. A época do pagamento;
               4. A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento;
               5. O nome da pessoa ou à ordem de quem deve ser paga;
               6. A indicação da data e do lugar onde a livrança é passada;
               7. A assinatura de quem passa a livrança (subscritor).
  Na livrança em branco exige-se, pelo menos, que contenha uma assinatura (do sacador, aceitante ou avalista), e que esta tenha sido feita com a intenção de assumir uma obrigação cambiária - Vide Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 5ª edição, pág. 81 e, entre outros, o acórdão do STJ de 30.9.2010-processo 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1, publicado no “site” da dgsi. É, igualmente, indispensável que tal assinatura conste de um título que contenha a designação impressa de livrança, sendo já dispensável que dela constem os demais requisitos enunciados no citado artigo da LULL.
               E nos termos do art.º 76º da LULL:
            “O escrito em que faltar algum dos requisitos indicados no artigo anterior não produzirá efeito como livrança, salvo nos casos determinados nas alíneas seguintes.
               A livrança em que se não indique a época de pagamento será considerada pagável à vista.
               Na falta de indicação especial, o lugar onde o escrito foi passado considera-se como sendo o lugar do pagamento e, ao mesmo tempo, o lugar do domicílio do subscritor da livrança.
               A livrança que não contenha indicação do lugar onde foi passada considera-se como tendo-o sido no lugar designado ao lado do nome do subscritor.”
[5] Vide Abel Pereira Delgado, ob. cit., págs. 118 e seguintes.
[6] Vide, no primeiro sentido, Mário de Figueiredo, in RLJ 55º, pág. 242 e, no sentido de constituição de vínculo aquando do preenchimento, José Gabriel Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, II, 1943, pág. 31.
   Cf., ainda, Abel Pereira Delgado, ob. cit., pág. 87 e, de entre vários, o acórdão do STJ de 14.12.2006-processo 06A2589, publicado no “site” da dgsi.
[7] Vide Abel Pereira Delgado, ob. cit., pág. 82 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 03.5.2005-processo 05A1086 e 13.3.2007-processo 07A202, publicados no “site” da dgsi (e, o 2º, na CJ-STJ, XV, 1, 116), onde se reproduz aquele entendimento.
[8] Vide A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Coimbra 1975, pág. 137.
[9] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 06.3.2003-processo 03B103, publicado no “site” da dgsi.

[10] Relativamente ao acordo de preenchimento da livrança assinada em branco pelos executados, cf. II. 1. ii) - 11., supra.   
[11] Tal alegação desempenha a função de excepção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução/oposição de mérito à execução.

   Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 28.5.1996, 24.5.2005-processo 05A1347, 14.12.2006-processo 06A2589, 12.02.2009-processo 07B4616 e 22.02.2011-processo 31/054TBVVD-B.G1.S1; da RG de 08.10.2020-processo 1932/12.9TJVNF-A.G1, RP de 10.10.2019-processo 11901/18.0T8PRT-A.P1, RC de 07.02.2017-processo 7809/15.9T8CBR-A.C1, RL de 22.10.2020-processo 18694/19.1T8LSB-A.L1-2 e RE de 24.4.2014-processo 1544/12.7TBLLE-B.E1, publicados, o primeiro, no BMJ, 457º, 401 e, os restantes, no “site” da dgsi. 
[12] Cf., por exemplo, os arestos mencionados na “nota 1”, supra

[13] Que assim reza: “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.”

[14] Sobre os pontos 11. e 12. da fundamentação, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 20.10.2015-processo 60/10.6TBMTS.P1.S1, 19.10.2017-processo 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1, 19.6.2019-processo 1025/18.5T8PRT.P1.S1 (que reproduziu e confirmou o acórdão da RP de 07.01.2019), 04.7.2019-processo 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1 e 24.10.2019-processo 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2; da RG de 24.9.2020-processo 7754/17.3T8VNF-B.G1, RP de 19.01.2015-processo 7460/10.0TBMTS-A.P2, 07.01.2019-processo 1025/18.5T8PRT.P1 e 11.5.2020-processo 56/19.2T8LOU-B.P1, RC de 04.10.2018-processo 19570/16.5T8LSB.L1-8, 16.10.2018-processo 2793/16.4T8ACB-A.C1 e 07.10.2020-processo 95/18.0T8VLF-A.C1 (subscrito pelo relator e pelo 1º adjunto do presente acórdão), publicados no “site” da dgsi.

   Contra este entendimento, sufragado na jurisprudência, tem-se manifestado a Prof.ª Carolina Cunha, designadamente, na ob. cit. - cf. a “nota 2”, supra.