Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8990/17.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
CONTRATO ATÍPICO
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 405, 798, 799, 801, 810, 812 CC.
Sumário: I- O contrato de fornecimento de café em regime de exclusividade, acompanhado do comodato de bens móveis, deve ser qualificado como um contrato atípico, misto, de natureza comercial, envolvendo elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e do contrato de compra e venda.

II- Tendo a ré deixado de adquirir café à autora, existe um incumprimento definitivo da contraente compradora, que fundamenta a resolução contratual da contraente vendedora.

III- A faculdade de redução equitativa de clausula penal nos termos do artigo 812 do CPCivil, só deve efectuar-se em casos excepcionais, como forma de evitar abusos manifestos, tendo o devedor da indemnização o ónus de peticionar a redução e alegar e provar os factos que demonstrem a desproporcionalidade entre o valor da clausula e o dos danos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I- RELATÓRIO

 T (…), Ldª,veio instaurar contra M (…), a presente acção declarativa comum pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 3.374,37, acrescida dos juros de mora, à taxa comercial, desde a citação até integral pagamento.

Alega, para tanto, que, no dia 7 de Maio de 2002, celebrou com a ré um contrato de fornecimento de café e demais produtos da autora, em regime de exclusividade, mediante a entrega antecipada de um desconto global, atentas as obrigações a que a ré se obrigou.

O contrato foi celebrado pelo prazo de 7 anos, tendo a autora entregue à ré o valor de € 2.743,39, acrescido de IVA, correspondente a uma máquina de café, um moinho e um conjunto de esplanada. Por força desse contrato, a ré obrigou-se a adquirir à autora, em regime de exclusividade, café e seus sucedâneos da marca “Tenco”, designadamente a adquirir a quantidade mínima de 215 Kg por ano, no período total da vigência do contrato, para consumos do estabelecimento comercial.

Como contrapartida das obrigações assumidas pela ré, de adquirir a quantidade anual de 215 kg de café, em regime de exclusividade, a autora concedeu-lhe um desconto de € 2.743,39, através de uma máquina de café, um moinho e um conjunto de esplanada, bens que são propriedade da autora, constituindo garantia de cumprimento e que seriam transferidos para a ré com a verificação do cumprimento contratual.

Ficou ainda convencionado pelas partes que, no caso de a ré não cumprir com o estipulado e comercializar produtos da concorrência poderia a autora denunciar o contrato, levando à restituição por parte da ré do valor dos bens entregues em depósito.

Sucede que a ré nem sempre tem vindo a cumprir com a compra de 215 kg de café e não manteve a exclusividade da compra de produtos da autora.

Com efeito, até ao momento, a ré apenas adquiriu 1141 kg de café e a dada altura deixou de adquirir café à autora.

Do contrato celebrado entre as partes consta que o não cumprimento por parte da ré na aquisição da quantidade de café contratada, bem como a violação da exclusividade, seria causa da resolução do contrato.

Ficou ainda acordado entre as partes que a resolução do contrato por motivo imputável à ré conferia à autora o direito de exigir a restituição do valor dos bens, correspondente à quantia de € 2.743,39, acrescida de IVA.

A autora interpelou várias vezes a ré para proceder ao cumprimento das suas obrigações, sendo que, em 23 de Maio de 2010, a ré foi interpelada do não cumprimento referente à aquisição mínima de café, bem como da prorrogação contratual até aquisição efectiva da quantidade acordada pelas partes.

No dia 27 de Fevereiro de 2014, a ré veio alegar a falta de assistência técnica, porquanto a máquina de café teria uma deficiência na reposição da água, nada referindo em relação ao incumprimento contratual.

Mais refere que o contrato foi resolvido peticionando o valor acima referido.

*

A ré contestou, confirmando a celebração do contrato junto com a petição inicial, bem como a entrega por parte da ré dos bens identificados, aos quais foi fixado o valor referido pela autora, confirmando, também, o prazo de duração do contrato, referindo que o mesmo teve o seu termo em 7 de Maio de 2009.

Acrescentou que a quantidade de 215 kg/ano foi fixada unilateralmente pela autora, não tendo a ré negociado tal cláusula do contrato, pelo que a autora actua excedendo os limites da boa fé, abusando do direito.

Por outro lado, a ré desconhece a quantidade de café que adquiriu à autora, não tendo violado o pacto de exclusividade.

Para além disso, algum tempo depois de o contrato ter cessado os efeitos, a partir de meados de 2009, a máquina começou a apresentar diversas avarias, sendo que a sua reparação orça em € 456,00.

Por diversas vezes, a ré tentou junto dos vendedores da autora que lhe fosse colocada uma máquina nova e um toldo novo, de modo a que o contrato fosse renovado ou que lhe reparassem a máquina.

Alega, ainda, a ré que se a autora pretendia que o contrato fosse renovado deveria ter sido estipulada uma cláusula que contemplasse tal pretensão, devendo também a autora entregar à ré outros bens iguais aos que tinha entregue com o contrato inicial, o que não aconteceu.

Quanto ao pacto de exclusividade, a ré nunca o violou, só deixando de adquirir café à autora quando as anomalias referidas não foram reparadas nem os equipamentos substituídos.

Durante a vigência do contrato, nunca a ré foi interpelada pela autora pelo facto de não estar a cumprir com a aquisição das quantidades de café acordadas, assim como pelo facto de estar a violar o pacto de exclusividade.

Todos os factos alegados pela autora para justificar o pagamento da indemnização dizem respeito a um período de tempo em que o contrato já não está em vigor.

Por fim, a ré deduz reconvenção, pedindo que a autora seja condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre os bens identificados no artigo 7º da petição inicial, por efeitos do estipulado no artigo 8º do contrato celebrado entre as partes, bem como a pagar-lhe, a título de indemnização, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 500,00 e a ver reduzida a cláusula penal por si peticionada à medida do incumprimento da ré, caso se considere o mesmo provado.

Para o efeito, alega que os bens que lhe foram entregues pela autora ficaram a pertencer-lhe, por força do disposto na cláusula 8ª do contrato. Acresce que a autora não substituiu, nem reparou os equipamentos avariados, o que implicou que a ré fosse obrigada a desperdiçar café, situações que criaram na autora estados de intranquilidade e mau estar, o que constitui violação aos seus direitos de personalidade.

*

*

Foi proferido despacho saneador e de fixação dos temas da prova no qual foi admitido o pedido reconvencional.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, conforme consta dos autos.

Na sentença recorrida foi decidido:«Pelo exposto:

 Julgo a acção totalmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 3.374,37 (três mil trezentos e setenta e quatro euros e trinta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa comercial, desde a citação até integral pagamento;

 Julgo a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo a reconvinda do pedido.

Custas pela ré (cfr. artº. 527º do Código de Processo Civil)…»(sic).

 

                                                 *

Inconformada com tal decisão, veio a ré interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos autos e com efeito meramente devolutivo.

A ré com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:

(…)

A autora respondeu às alegações da recorrente e apresentou contra-alegações nas quais alegaram as seguintes conclusões:

(…)

                                                                     *

          Após os vistos legais e  nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.

***

          II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objecto do recurso

          O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

          Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, resulta que em resumo a recorrente indica os seguintes pontos a analisar::


A- Impugnação da matéria de facto.

B- (Im)procedência do pedido (ausência de resolução contratual).

C-   Redução da clausula penal

                                                           ***

          III- FUNDAMENTOS DE FACTO

Visando analisar o objecto do recurso, cumpre enunciar os factos provados e não provados pelo tribunal a quo, tendo-se, no entanto, em conta que essa enunciação terá uma natureza provisória, visto que o recurso versa sobre a matéria de facto pugnando pela sua alteração.

Nesse contexto, cumpre referir que a sentença recorrida consignou a seguinte matéria de facto (factos provados e não provados):« .. Considerando o objecto do litígio e os temas de prova, estão provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:

1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica, de forma habitual e com escopo lucrativo, à produção, comercialização e distribuição de café e seus sucedâneos, sendo titular da marca “TENCO”;

2. A ré dedica-se com fim lucrativo ao serviço de restauração e bar, no qual revende produtos da autora;

3. No dia 7 de Maio de 2002, a autora e a ré celebraram contrato de fornecimento de café e demais produtos da autora, a que chamaram “depósito”, em regime de exclusividade, mediante a entrega, antecipadamente, de um desconto global atentas as obrigações a que a ré se obrigou cumulativamente;

4. O referido contrato foi celebrado pelo período de 7 anos, iniciando-se a sua produção de efeitos na data da sua celebração, tendo a autora entregue à ré o  valor de € 2.743,39, acrescido de IVA à taxa em vigor, correspondente a uma máquina de café Guilieta, um moinho e um conjunto de esplanada;

5. Por força desse contrato, a ré obrigou-se a adquirir à autora, em regime de exclusividade, café e seus sucedâneos da marca “TENCO” e a adquirir a quantidade mínima de 215 kg por ano, no período total da vigência do contrato, para consumos do estabelecimento comercial;

6. Como contrapartida das obrigações assumidas pela ré, de adquirir a quantidade anual de 215 kg de café, em regime de exclusividade, a autora concedeu-lhe um desconto global de € 2.743,39, através dos seguintes bens:

- 1 máquina de café II grupos Guilieta;

- 1 moinho normal;

- 1 conjunto de esplanada:

7. Bens que são propriedade da autora, constituindo garantia de cumprimento e que, nos termos acordados, seria transferida para a ré com a verificação do cumprimento contratual;

8. Ficou ainda convencionado pelas partes que no caso de a ré não cumprir com o estipulado contratualmente e comercializar produtos da concorrência poderia a autora denunciar o contrato, levando à restituição por parte da ré do valor dos bens entregues em depósito correspondentes à quantia de € 2.743,39, acrescidos de IVA e juros à taxa legal aplicável;

9. O total de café a adquirir durante a vigência do contrato perfaz um total de 1505 kg de café;

10. Até Novembro de 2017, a ré adquiriu 1141 kg de café;

11. A ré deixou de adquirir café à autora;

12. Consta do contrato celebrado entre a autora e a ré que o não cumprimento por parte desta na aquisição de café contratada bem como da violação da exclusividade, depois de devidamente interpelada para o efeito, seria causa de resolução do contrato;

13. Ficou ainda acordado entre as partes que a resolução do contrato, por motivo imputável a ré, confere à autora o direito a exigir daquela a restituição dos valores dos bens que recebeu em depósito correspondente à quantia de € 2.743,39;

14. A autora interpelou várias vezes a ré para a mesma proceder ao cumprimento das suas obrigações;

15. No dia 23 de Junho de 2010, a autora enviou à ré a carta com o teor do documento de fls. 12, da qual consta que “Vimos, muito respeitosamente, informar V. Exªs que, na esteira das comunicações que temos vindo a fazer, não se mostra cumprida a aquisição mínima de café estabelecida no contrato celebrado entre V. Exªs e esta empresa a 07-05-2012. Assim, Informamos, que os efeitos do aludido contrato se mantêm e prorrogam até que se mostre adquirida a quantidade mínima de café contratada, nos termos clausulados, nomeadamente pela aquisição mínima mensal de café, em regime de exclusividade”;

16. No dia 27 de Fevereiro de 2014, depois de sucessivas interpelações da autora para o cumprimento, a ré enviou à autora a carta com o teor do documento de fls. 13, da qual consta que “Em Maio de 2012 fui obrigada a retirar o toldo que tinha no estabelecimento porque ocupava a via pública. Entretanto, e porque me foi transmitido que a legislação foi alterada, solicitei em Março do ano transacto ao v/ vendedor a colocação de um novo toldo não tendo até ao momento obtido uma resposta concreta do mesmo, ou seja, se colocam ou não. Isto para mim é fundamental dado que a entrada do estabelecimento está totalmente desprotegida quer no Inverno quer no verão. Outra questão que quero colocar a V. Exªas é a da assistência à máquina de café, que também o v/vendedor não tem conseguido resolver. Isto é, a máquina tem uma deficiência na reposição de água, a qual tem que ser feita manualmente. Face ao exposto, solicitava uma resposta de V. Exºas que terá forçosamente que ser rápida – no máximo de 15 dias – a qual, a não acontecer, me levará a tomar as medidas adequadas as quais passarão forçosamente pela aquisição de café a outro fornecedor”;

17. No dia 3 de Março de 2014, a autora respondeu que apesar das reparações dos bens entregues para uso no estabelecimento comercial serem da responsabilidade exclusiva da ré, que por mera cortesia iria proceder à revisão e se necessário à reparação do equipamento, conquanto alertando-se de que ainda se encontrava em incumprimento contratual pela falta de aquisição mínima do café;

18. No dia 13 de Setembro de 2017, o ilustre mandatário da autora enviou carta à ré, da qual consta que “Encontram-se em incumprimento o contrato celebrado entre V. Exas e a n/ Cliente, verificando-se omissão de aquisição da quantidade mínima contratada e exclusividade. Assim, informamos V. Exas que dispõe do prazo de 5 dias para procederem à aquisição do café em falta, e respectivo pagamento, e manterem as aquisições acordadas. Findo o prazo concedido sem que a aquisição seja efectuada, incumprido definitivamente e resolvidos os contratos sendo devido à n/ Cliente, indemnização contratualmente fixada no valor de € 2.743,39 acrescido de IVA à taxa legal em vigor.”;

19. A autora resolveu o contrato celebrado com a ré;

20. A ré estava a iniciar o seu negócio;

21. A ré aceitou a estipulação da quantidade de café referida no contrato;

22. Pelo menos desde 2014, a máquina de café entregue pela autora à ré começou a apresentar diversas avarias: a máquina tirava o café aguado, a água para o café tinha que ser reposta manualmente e não automática, pois que o respectivo automatismo avariou e o tubo que mostrava o nível da água já tinha impurezas (“verdete”);

23. A máquina já apresentava sinais de ferrugem e começou a apresentar problemas eléctricos, desligando amiúdes vezes o quadro eléctrico;

24. A reparação da máquina orça em € 456,00;

25. O toldo apresentava sinais de deterioração, obrigando a que o mesmo fosse retirado;

26. Por diversas vezes, a ré tentou junto dos vendedores da autora que lhe fosse colocada uma máquina nova e um toldo novo ou que lhe reparassem a máquina que lá estava;

27. De 07.05.2002 a 07.05.2009, a ré apenas adquiriu café à autora;

28. A ré só deixou de adquirir café à autora quando as anomalias referidas em 22 e 23 não foram reparadas nem os equipamentos substituídos;

29. A autora não reparou ou substituiu os equipamentos avariados;

30. Tal situação obrigou a ré a desperdiçar café porque os clientes reclamavam pelo facto de o café não ser servido em condições;

31. As situações descritas criaram na autora estados de intranquilidade e mal-estar;

32. A cláusula 8ª do contrato celebrado entre as partes estipula que “Cumpridas as obrigações emergentes deste contrato, o(s) bem(s) dados em depósito passam a pertencer ao Segundo Outorgante”;

33. Segundo a cláusula 9ª do referido contrato “O depositário deve conservar o(s) Bem(s) no melhor estado de conservação”.

*

Para além das expressões conclusivas, que contenham matéria de direito ou que estejam em manifesta contradição com os factos dados como provados, não se provou que:

1. A ré compra produto de marca concorrente, levando a danos nos equipamentos;

2. A ré mistura café da concorrência;

3. A quantidade de café contratada – 215 kg/ano foi fixada unilateralmente pela autora;

4. Foi o vendedor da autora que estimou, unilateralmente, a quantidade anual de café a adquirir pela ré, não tendo havido negociação de tal cláusula;

5. Entre 07.05.2002 e 07.05.2009, a autora nunca alegou qualquer incumprimento por parte da ré….»(sic).

                                                 *

O Sr. Juiz da 1ª instância decidiu invocando a seguinte motivação de facto:«… O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base nos documentos juntos aos autos, conjugados com a análise crítica e ponderada da prova testemunhal ouvida em audiência de julgamento, depoimento de parte da ré e regras da experiência comum e do normal acontecer.

Foram consideradas as declarações prestadas pela ré que, apesar do seu interesse na causa, confirmou a celebração do contrato de fornecimento de café com a autora, embora não admitindo as quantidades de café em questão, esclarecendo, no entanto, que a autora lhe entregou os bens referidos nos factos provados, designadamente a máquina de café, o moinho e o conjunto de esplanada. Negou ter adquirido a terceiros outras marcas de café, admitindo, todavia, ter deixado de adquirir à autora café quando esta exigiu o pagamento das quantias em causa nos presentes autos.

Por outro lado, a ré descreveu pormenorizadamente o mau funcionamento da máquina de café, esclarecendo que, desde 2014, que a mesma não funcionava. Referiu os contactos que fez com a autora tendentes à resolução dos problemas apresentados pela máquina, referindo que a autora nunca reparou a máquina, motivo pelo qual resolveu pedir um orçamento para a reparação da mesma, conforme consta do documento de fls. 25.

Confirmou que enviou à autora a carta com o teor do documento de fls. 13.

Referiu, ainda, que os vendedores da autora deslocavam-se mensalmente ao seu estabelecimento comercial e alertavam-na de que estava em falta o consumo de café contratado, sabendo ela que não estava a comprar a quantidade de café constante do contrato que admitiu ter sido assinado por ambas as partes de comum acordo.

O tribunal atendeu, também, ao depoimento da testemunha (…)que, pelo facto de ter trabalhado como comercial para a autora, entre Março de 2017 e Janeiro de 2018, demonstrou ter conhecimento de alguns factos em causa nos autos.

Referiu que se deslocava ao estabelecimento da ré e que esta lhe transmitiu que a máquina de café apresentava problemas, advertindo-o de que enquanto a autora não resolvesse essa situação não adquiria mais café. Acrescentou que transmitiu à autora esta comunicação da ré.

Foi também considerado o depoimento da testemunha (…), chefe de vendas da autora, que, por esse motivo, demonstrou conhecimento dos factos em discussão.

Referiu que se deslocou ao estabelecimento da ré, em 2016 ou 2017, confirmando que esta não estava a cumprir com os consumos de café acordados no contrato celebrado com a autora, esclarecendo que a ré estava informada desse facto, tanto mais que os consumos de café estão discriminados nas facturas. Acrescentou que os vendedores da autora que se deslocavam ao estabelecimento da ré informavam-na das quantidades de café em falta. Confirmou que o café consumido pela autora está discriminado no documento de fls. 9 verso, 10 e 11, concluindo que a ré não consumiu 364 kg relativamente ao que estava contratado, que era 1500 kg de café. Para além disso, referiu que, desde 2017, que a ré não compra café à autora. Por outro lado, o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha (…), funcionário da autora desde 2004 a 2017, que, dadas as suas funções profissionais, também demonstrou conhecimento dos factos em causa nos autos. Tem conhecimento do contrato celebrado entre as partes e era ele que analisava os consumos de café. Foi ele que escreveu as cartas à ré para a avisar que não estava a cumprir com os consumos de café contratados, confirmando o teor do documento de fls. 12, por ele elaborado e subscrito. Era ele que advertia os vendedores para avisarem a ré de que ela não estava a cumprir com a aquisição de café contratada com a autora, que era de 1500kg. Confirmou o teor do documento de fls. 9 verso, 10 e 11, referindo que dele se pode extrair o consumo anual de café, por parte da ré, desde o início do contrato, concluindo que estão em falta 364 kg de café.

Explicou, também, que quando termina o contrato e o cliente não adquiriu a quantidade de café contratada, há uma prorrogação do contrato até que o cliente cumpra com a aquisição de café contratada.

Mais referiu que os contratos são negociados com os clientes, tendo estes autonomia para aceitar ou não, acrescentando que qualquer avaria do equipamento fornecido pela autora é da responsabilidade dos clientes, não se responsabilizando a autora por eventuais avarias dos equipamentos.

Foi considerado o depoimento da testemunha (…), que, por ser filha da ré, demonstrou conhecimento de alguns factos em causa nos autos.

Confirmou os problemas de funcionamento da máquina de café, esclarecendo que era difícil tirar um café em condições, havendo queixas dos clientes, acrescentando que a mãe, por diversas vezes, contactou a autora no sentido de resolverem as avarias da máquina de café, o que nunca aconteceu.

O tribunal atendeu, ainda, ao depoimento da testemunha (…), mecânico de equipamentos hoteleiros, amigo do marido da ré, que fez o orçamento para reparação da máquina de café em causa nos autos, confirmando o teor do documento de fls. 25, por ele elaborado e subscrito, referindo que a máquina de café estava “podre”, acrescentando que teve que emprestar à ré uma máquina de café.

Por sua vez, a testemunha (…), vendedor, trabalhou para a autora de Março de 2016 a Março de 2017, confirmou que, por várias vezes, a autora se queixou que a máquina de café deitava água, o que ele próprio comunicou à autora. Explicou que a autora disponibilizava equipamento aos clientes e garantia assistência às máquinas, excepto nos casos de má utilização das mesmas.

Foi ainda considerado o depoimento da testemunha (…), senhorio da ré, que frequenta diariamente o estabelecimento comercial desta há 7 anos, que referiu que nunca bebeu um café que não fosse tirado pela segunda vez, uma vez que os cafés saem sempre queimados e torrados, facto de que também se queixam outros clientes do estabelecimento da ré.

Estas declarações foram confirmadas pelo depoimento da testemunha (…), cliente habitual do estabelecimento comercial da ré, que referiu que várias vezes se queixou de o café não estar bem tirado, acrescentando que a ré lhe referia que a máquina de café não estava a funcionar bem.

Relativamente aos factos não provados assim se consideraram por não ter sido feita prova suficiente acerca da sua verificação…»(sic).

                             

                                                           ***

IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO


1- Alteração da matéria de facto

 

Nas alegações de recurso veio a apelante, requerer a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, peticionando que não se considere provado o ponto 19º da matéria de facto, invocando que não existe nos autos nenhum meio de prova do facto constante desse ponto, não havendo declaração escrita ou verbal emitida durante a vigência do contrato no sentido da resolução.

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm actualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

 Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

“1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) Indicação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nela realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exacta das passagens da gravação erradamente valoradas.

          O recorrente, sob pena de rejeição do recurso, deve determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorrectamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

          Para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RC (Relator: CARLOS MOREIRA) de 10-09-2019:«Sumário:        I - A não discriminação, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, quer do início e fim dos depoimentos na gravação, quer, muito menos, das concretas passagens dos mesmos em que o recorrente funda a sua pretensão, implica a liminar rejeição do recurso sobre a decisão da matéria de facto – artº 640º nº 1 al. b) e nº2 al. a) do CPC.

II - A simples discordância, por exegese diferenciada, do teor dos depoimentos não impõe – salvo lapso material ou erro lógico patente do julgador na apreciação dos mesmos – a censura da sua convicção…»

                   

                     Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.

          Para outros desenvolvimentos, vide o  Ac da RC (Relator: CARVALHO MARTINS) de 02-12-2014: «Sumário:..   3- Não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento. A efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 662° do N.C.P.Civil), impõe que o Tribunal da Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido. É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no art. 607°, n°5 do N.C.P.Civil…»

                     Conforme defende  Abrantes Geraldes, in In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo  fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 396 do Código Civil). O tribunal da Relação quando reaprecia a prova deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com os outros meios de prova e verificar se foi ou não cometido erro de apreciação da prova que deva ser corrigido (vide, A. Geraldes, in Recursos, pág. 299).

          No caso dos autos a recorrente impugnou a matéria de facto e indicou a factualidade impugnada, a prova a apreciar e a decisão sugerida, estando assim respeitados os pressupostos de ordem formal para proceder á reapreciação desse segmento da decisão.

                                                           *

         

Conforme resulta das alegações de recurso, a recorrente argumenta que analisando o depoimento das testemunhas indicadas pela autora não foi dito ter existido nenhuma declaração de resolução e que a carta remetida indicada no ponto 18 (onde se declara uma alegada resolução), data de 13-9-2017 e não poderia resolver um contrato dado o mesmo ter o prazo de 7 anos e ter sido assinado em 2002

No ponto 19º consta dado como provado que a autora resolveu o contrato celebrado com a ré.

No caso, considera-se que a impugnação da matéria de facto é procedente porque se trata de uma mera conclusão e não de um facto e nessa medida não deverá integrar a factualidade dada como provada.

Em conclusão, a factualidade a atender no âmbito da apelação em julgamento é a fixada pelo tribunal a quo com a excepção do ponto 19º .

                                                           *


D- (Im)procedência do pedido (ausência de resolução contratual).


Nas alegações de recurso a recorrente invoca que a ré não deve ser condenada no pagamento de qualquer indemnização porque a autora não resolveu o contrato durante a vigência do contrato, visto que o contrato foi celebrado em Maio de 2002 e tinha a duração de 7 anos e a carta onde consta uma declaração de resolução data de 2017, numa altura em que o contrato já tinha cessado os seus efeitos.

Concretizando a recorrente alega que os fundamentos que conduziram à condenação da Ré foram a não aquisição, por parte desta e durante a vigência do contrato, da quantidade mínima anual de café convencionada (1505kg) sendo que, a Ré apenas adquiriu a quantidade de 1141kg, faltando 364kg, incumprindo, desta forma, o contrato. Apesar de admitir ter existido incumprimento por parte da Ré, pois que, não adquiriu, durante a vigência do contrato, a quantidade de café contratada, não houve qualquer resolução durante a vigência do contrato e que a existência de uma declaração de resolução do contrato, contradiz as comunicações que a Autora enviou à Ré, nomeadamente, as cartas de 23.06.2010, de 03.03.2014.

Alega que é verdade que, existe a declaração de resolução que consta no ponto 18 da fundamentação de facto, mas tal declaração foi já emitida depois de o contrato ter cessado os seus efeitos, pelo que, já não pode ser considerada como declaração de resolução do contrato, mas, apenas, como declaração de resolução da concessão da faculdade de a Ré poder continuar a adquirir café até perfazer a quantidade acordada.

Também alega que, de acordo com o Ponto 15 da Fundamentação de Facto, em 23.06.2010, a Autora enviou à Ré uma carta na qual declarava que “(…) os efeitos do aludido contrato se mantêm e prorrogam até que se mostre adquirida a quantidade mínima de café contratada(…)”. Porém, esta declaração unilateral, não pode ser encarada como a renovação do contrato ou celebração de um novo, pois que, nada foi negociado e estipulado a esse respeito.

          Em resumo, entende a ré que o contrato celebrado, após o decurso dos 7 anos deixaria de produzir efeitos dado não existir acordo de renovação e inversamente a autora defende que o contrato na data da resolução estava em vigor.

A vida suscita uma infinidade de factos, ao passo que o direito constitui um conjunto limitado de regras.

          O que equivale a dizer que a decisão da presente acção pressupõe, antes de mais, uma tomada de posição relativamente à classificação ou qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes.

          O princípio da liberdade contratual - cfr. artigo 405, nº1 e nº2, do Código Civil - desdobra-se em vários segmentos, e de entre eles, destacamos, dada a relevância para o caso em apreço, a possibilidade dada às partes de, na regulamentação convencional dos seus interesses, se afastarem dos contratos típicos ou paradigmáticos disciplinados na lei - celebrando contratos atípicos - ou de incluírem cláusulas divergentes da regulamentação supletiva constituída no Código Civil.

          Os contratos deste tipo, uma vez que não possuem estatuto legal específico, têm de se reger pelas disposições aplicáveis aos contratos em geral, mais concretamente pelas disposições dos contratos nominados com que apresentem mais forte analogia.

          De alguma forma relacionada com esta classificação aparece a noção e contrato misto : resultam da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contrato distintos (fusão), ou da participação num contrato de aspectos próprios de outros contratos (cúmulo).

          Em lugar de realizarem um ou mais contratos nominados, as partes, porque os seus interesses assim o exigem, celebram por vezes contratos com prestações de natureza diversa, mas encontrando-se ambas as prestações compreendidas em espécies típicas regulamentadas na lei.

          Neste caso, entendemos, estar perante um contrato atípico (e não vários contratos correlacionados entre si), uma vez que as diversas prestações a cargo das partes integram um processo unitário e autónomo de composição de interesses, ou um esquema económico unitário (para maiores desenvolvimentos, vide Ac RC de 16/1/1996, in Cj 1996, T.1, pág.7 a 11; Galvão Telles, Direito Das Obrigações, 2ª ed., pág. 75 e ss).

          Por outras palavras, estamos, in casu, perante um contrato bilateral inominado, válido em face do princípio da atipicidade ou da liberdade contratual fixada pelo artigo 405, do C.C.

          Estamos perante um contrato de natureza comercial, complexo, que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador.

          Neste sentido, vide AC STJ 600/06.5TCGMR.G1.S1, Relator:          FONSECA RAMOS, 15-01-2013 (disponível na base de dados da DGSI, local de origem de toda a jurisprudência citada): Sumário :        I. O contrato de compra e venda de café, celebrado entre um vendedor e um comerciante dono de um estabelecimento de café, em regime de exclusividade, obrigando o comprador a consumos obrigatórios de determinadas quantidades de café, durante um certo período de tempo, mediante a contrapartida da disponibilidade de bens destinados do vendedor ao comprador durante o período de vigência do contrato, sendo estabelecida sanção para o incumprimento, exprime a existência de um contrato misto, complexo, avultando e prevalecendo a celebração de um contrato de fornecimento; nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.6.2009, Proc. 257/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt. “Estamos, pois, perante um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, finalmente, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador.”

          E igualmente, vide o AC do STJ de 4.6.2009, Proc. 257/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt. “Estamos, pois, perante um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, finalmente, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador.”

As principais obrigações a que as partes se vincularam foram assim: a autora, vender à ré quantidades mensais de café da marca por si comercializada até atingir a quantidade global convencionada; e a ré, a comprar tais quantidades de café, mediante o pagamento do preço fixado, e a não adquirir café de outras marcas.
      Decorre da factualidade apurada que entre as partes foi celebrado um contrato de fornecimento de café, contrato esse que a autora alega ter resolvido por incumprimento da ré, mas a ré invoca que a resolução ocorreu já quando o contrato não estava em vigor.

          Resulta da prova produzida que a ré não respeitou a obrigação de consumir café da marca referida no contrato numa dada quantidade, tendo deixado de fazer esse consumo e nos termos das clausulas 3, 7 e 12 do contrato, havendo resolução, a autora podia exigir á ré a restituição do valor dos bens que recebeu em depósito, no valor de 2.743,39 euros acrescida de IVA á taxa legal e juros de mora.

 Aliás, esta «nuance», da exclusividade contratual, exclui a classificação deste contrato como sendo um contrato de compra e venda de mercadorias, ou melhor um contrato de fornecimento tipificado na lei (artigos 463 a 476, do Código Comercial, e supletivamente, artigos 874 a 939, do CC).

          De acordo com o predito contrato, a violação da obrigação de exclusividade, e de o consumo mínimo de café por mês, não ser atingido, determina que o infractor incorra na obrigação de indemnizar.

Entende a ré que o contrato celebrado após o decurso dos 7 anos deixaria de produzir efeitos dado não existir acordo de renovação e inversamente a autora defende que o contrato na data da resolução estava em vigor, dado que enviou á ré uma carta onde consta que «..os efeitos do contrato se mantem e prorrogam até que se mostre adquirida a quantidade mínima de café contratada, nos termos clausulados ..» e a ré não respondeu a essa carta e continuou a adquirir café á autora. Acresce que existe uma carta da ré para a autora datada de 2014 (enviada após a carta que indica a prorrogação) na qual a ré pede á autora a colocação de um novo toldo e pede assistência á máquina de café.

 Neste contexto, cumpre analisar se o contrato se renovou em função do comportamento das partes posterior ao termo inicialmente estipulado.

No caso, existe um contrato escrito e, findo o prazo estipulado nesse contrato (que seria suposto ter caducado dado não estar prevista nenhuma renovação), tudo continuou a processar-se como antes, visto que a ré continuou a consumir café fornecido pela autora e até solicitou a entrega de um novo toldo e arranjo da máquina. A relação contratual originariamente existente, continuou a existir e a ser executada, exactamente nos mesmos termos, sem qualquer oposição de nenhuma das partes.

A continuação, ao longo de vários anos após o fim do prazo do contrato (o contrato foi celebrado em 2002 e tinha a duração de 7 anos), da disciplina contratual, sem qualquer objecção das partes, deve efectivamente,  ser valorada como comportamento concludente no sentido de ter ocorrido renovação ou repristinação da relação contratual originariamente existente ou uma repristinação tácita do contrato.

Neste sentido, e para outros desenvolvimentos, vide o AC STJ 4094/07.0TVLSB.L1.S1 Relator:        LOPES DO REGO Data do Acordão:10-10-2013, Sumário :         1. A execução, de forma continuada, ao longo de vários meses, da mesma disciplina contratual, originariamente acordada, sem qualquer objecção das partes – que persistem exactamente na execução material das mesmas situações jurídicas – pode e deve, segundo um critério prático, ser tomada como comportamento concludente no sentido de ter ocorrido renovação ou repristinação da relação contratual originariamente existente, abrangendo o termo fixado no contrato inicialmente celebrado por escrito.

2. Tal reiteração continuada no cumprimento da disciplina contratual – desde logo, à luz do princípio da boa fé, que implicava para a parte interessada na precarização do contrato ( originariamente assumido como sujeito a um prazo de duração anual) o dever acessório ou lateral de advertir a contraparte de que o prolongamento factual da execução do contrato não implicava a sujeição do mesmo ao referido prazo anual, sendo antes possível a denúncia discricionária do contrato a todo o tempo, de modo a evitar que se sedimentasse no outra parte a confiança na estabilidade da relação contratual que permanecia em execução – deve ser razoavelmente interpretada como envolvendo uma renovação ou repristinação tácita do contrato, prescindindo os interessados da forma convencional que inicialmente haviam estipulado para o possível acordo de renovação.

3. Nesta peculiar situação, deve ter-se por ilidida a presunção estabelecida no nº1 do art. 223º do CC – o que implica, como consequência adequada, que as partes, por força do seu comportamento material e em concretização do princípio da autonomia da vontade – prescindiram da exigência formal originariamente estipulada para o acordo de renovação.».

          E vide o AC STJ 130250/13.7YIPRT.L1.S1, Relator:     LOPES DO REGO,        14-07-2016 :«Sumário :  I. Deve ter-se por tacitamente renovado o contrato de mediação imobiliária quando ocorreu uma manutenção, ao nível prático-económico, da relação de mediação, durante cerca de 6 anos, sendo o seu prosseguimento conhecido e consentido por ambos os contraentes, e implicando que a A./mediadora tivesse efectivamente continuado a prestar serviços próprios da sua actividade à R., traduzidos na publicitação, mediação e finalização das vendas dos lotes originariamente previstos no contrato celebrado por escrito, cooperando ainda com a A. nessa sua actuação prática, trocando correspondência e facultando-lhe elementos para agilizar a negociação das ditas fracções.

II. Quer se tenha a exigência de forma escrita para a renovação do contrato de mediação imobiliária, no termo do prazo originariamente estipulado, como legal ou meramente convencional, não há obstáculo à referida renovação tácita, inferida dos comportamentos concludentes atrás referidos – que, por um lado, sempre implicariam o afastamento da presunção contida no nº 1 do art. 223º do CC; e, por outro, assentando o comportamento concludente da R. em documentos escritos, juntos aos autos, o carácter formal da declaração não impedia que a mesma se pudesse ter por tacitamente emitida.»(sic).

          Assim, o contrato continuou em vigor até á resolução contratual que ocorreu com o envio da carta á ré indicada no ponto 18 da matéria de facto, improcedendo este segmento do recurso.

          Ora, demonstrado que a Ré violou a obrigação, de consumir o mínimo estipulado quanto á quantidade de café, teremos de concluir que a mesma incumpriu o contrato que celebrou com a autora.

 Daqui decorre que se presume a sua culpa relativamente a esse incumprimento, o qual a faz incorrer na obrigação de ressarcir o prejuízo que lhe causou, por reflexo das regras provisionadas nos artigos 798º e 799º do Código Civil. Como evidência da disciplina contida no artigo 801º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma, a autora tem direito a resolver o contrato, bem como a perceber indemnização pelos danos que haja sofrido

         

                                                           ***

C- Redução da clausula penal

E alega por fim que entendeu a Meritíssima Juíza não reduzir a cláusula penal fixada pelas partes, e que fazendo apelo à justiça, ao bom senso, à razoabilidade e à proporcionalidade, e, à  boa-fé na execução dos contratos, que o artigo 812º nº 2 do Código Civil, prevê a redução da cláusula penal em caso de cumprimento parcial de acordo com a equidade e sendo manifestamente excessiva.   Alega que tendo a ré cumprido com mais de 75% da obrigação de aquisição da quantidade de café acordada, penalizá-la como se nada tivesse sido cumprido, traduz-se numa injustiça. Assim, peticiona que pelo menos a indemnização seja reduzida à medida do seu incumprimento, isto é, proporcionalmente, tendo em conta que cumpriu com 75,82% da sua obrigação de aquisição da quantidade de café contratada, ficando por adquirir/cumprir 24,18%.

          No contrato está previsto que no caso de não se consumir a quantidade de café acordada que a autora poderá denunciar o contrato e que a ré deverá restituir o valor dos bens que recebeu em deposito correspondente á quantia de 2.743,39 euros, mais IVA e juros á taxa legal

          Ao contrário do alegado pela recorrente não ficou assim assente que o contrato haja sido elaborado pela autora, sem nenhuma negociação da ré, a qual se limitaria a aderir ao seu teor.

          Estamos perante uma cláusula penal fixada por acordo das partes, como prevê o artigo 810º, nº 1, do Código Civil.

          A fixação da cláusula penal está legitimada pelo estabelecido no nº 1 do artigo 810º do Código Civil que estabelece que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal.

A cláusula penal insere-se no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização, compensatória ou moratória, pelo incumprimento ou retardamento no cumprimento da obrigação, com intuito de evitar dúvidas futuras e litígios entre elas, quanto à determinação do montante da indemnização (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª edição, revista e actualizada, pág. 75).

          A recorrente pugna pela sua redução nos termos do n.º 2 do art.º 812.º do Código Civil.

Este preceito permite a redução equitativa da cláusula penal nos seguintes termos:

“1. A pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer disposição em contrário.

2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.”

Dado que a redução aqui prevista limita os princípios gerais da autonomia privada e da liberdade contratual, o juiz só pode intervir quando for solicitado e quando reconheça que a cláusula é “manifestamente excessiva”, sob pena de inutilizar a sua própria função e razão da sua existência.

A redução só é admissível quando ela aparecer como evidentemente desproporcionada, em face das circunstâncias concretas.

Em face da natureza e da razão de ser da cláusula penal referida,  tem-se entendido que o credor fica dispensado de demonstrar a efectiva verificação dos danos em consequência do incumprimento do contrato e respectivos montantes.

O ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos recai sobre o devedor.

No caso dos autos, entende-se que esta clausula não poderá ser qualificada como excessiva ou desproporcionada, isto porque por um lado não são alegados factos concretos nem quaisquer fundamentos para se concluir pela invocada desproporcionalidade, ou seja, não esclarece a Ré em que se traduz essa invocada desproporcionalidade. Igualmente, entende-se que tal clausula não viola nenhum dos princípios da boa fé, porque se trata de um limite mínimo de consumo e contrapartida pela utilização dos equipamentos, e tal obrigatoriedade resulta do próprio teor e natureza do contrato o qual foi subscrito pelas partes.

Resulta que devido ao incumprimento contratual da ré a autora para além de não ter vendido a quantidade de café acordada e de não ter tido o lucro que auferiria, entregou a titulo de deposito, bens móveis como contrapartida da assinatura do contrato. De resto o consumo mínimo não foi atingido pese embora o contrato tenha tido vigência entre 2002 até 2017 data da resolução, o que impediu a ré de vender essa quantidade de café acordada.

Neste caso, quer num plano abstracto, quer num plano concreto não se poderá dizer que essa cláusula seja excessiva, visto que não são alegados factos consubstanciadores dessa desproporcionalidade.

Pelo exposto, considera-se que não se deverá proceder á redução da clausula penal acordada visto que não se vislumbra existir qualquer fundamento de desproporcionalidade.

          Neste sentido, vide o AC RP 821/10.6TVPRT.P1, Relator:          FERNANDO SAMÕES  10-07-2013:«Sumário:    I - Não é de alterar a matéria de facto sempre que se mostre apreciada e decidida segundo as regras e os princípios do direito probatório.

II - O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte.

III - Não abusa do direito o credor que condescende com a inexecução do contrato, durante cerca de três anos, e pede a indemnização estipulada como cláusula penal decorrente da resolução do contrato com base no incumprimento do devedor.

IV - O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva.».

          Assim, sobre a Ré impende a obrigação de indemnização, que in casu, atento o princípio do dispositivo e o teor do contrato corresponde ao montante peticionado pela Autora.

          Assim, resulta que nos termos contratuais assiste o direito á autora a que lhe seja restituído o valor dos bens que a ré recebeu, atento o expressamente acordado pelas partes a título de cláusula penal, decorrente de as partes terem assegurado antecipadamente a reacção legal perante o incumprimento contratual, isto é, a referida cláusula traduz-se numa estipulação pela qual as partes fixam o objecto da indemnização exigível ao devedor que não cumpre (vide. A. Varela, obra citada, pág. 137 e ss).
Resulta que no contrato consta de forma expressa que no caso de a ré não consumir as quantidades acordadas que deve restituir o valor dos bens que recebeu em deposito no valor peticionado.

          Por outras palavras, assim, por força do clausulado e do disposto no art. 810.º do Código Civil, dado que a Ré não cumpriu com as suas obrigações contratuais, tem a autora o direito de exigir daquela a quantia peticionada, assim como os prejuízos decorrentes da mora, que consistem nos juros peticionados – cfr. arts. 817.º, 798.º, 799.º, 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º todos do Código Civil.

Ante todo o exposto, julgando improcedente a apelação, acorda-se em confirmar a sentença recorrida.

III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

                    Coimbra, 23 de Junho de 2020.

Ana Vieira ( Relatora )

António Carvalho Martins

          Carlos Moreira                                                      

         


[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.