Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
698/10.1T2AVR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
CRÉDITO
FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
SUB-ROGAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47°, N° 4, A), 48°, B) E 129°, N° 2 DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE); 593º DO C.CIV.; 322° DA LEI N° 35/2004.
Sumário: Concorrendo o crédito dos trabalhadores com o crédito do FGS, resultante de sub-rogação nos direitos daqueles, na medida do que lhes pagou, na respectiva graduação relativa não há que ter em conta o disposto no art.º 593º, nº 2 do CC, devendo tais créditos ser graduados a par.
Decisão Texto Integral: I - 1) - A requerimento de C…, foi, no Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga (Aveiro), por sentença de 11/06/2010, proferida ao abrigo do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas[1], transitada em julgado, declarada a insolvência da sociedade “R…, L.dª ”, com sede ...

2) - Foram apreendidos para a massa os seguintes bens:

1. Bens móveis (equipamento industrial e de escritório e um veículo automóvel);

2. Bem imóvel, correspondente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …, sobe o qual constam inscritos os seguintes ónus:

a) hipoteca voluntária inscrita por ap. de 13.07.1989 em benefício do Fundo da E.F.T.A. para o desenvolvimento industrial de Portugal para garantia do montante máximo de Esc.: 57.400.000$00, sendo o capital de Esc.: 35.000.000$00, juro anual de 18%, com agravamento de sobretaxa de 2% em caso de mora até ao montante de 2.100.000$00, e Esc.: 1.400.000$00 de despesas.

b) hipoteca legal inscrita por ap. de 14.10.1998 em benefício do Centro Regional da Segurança Social do Centro, para garantia da quantia de Esc.: 26.647.011$00 correspondente a dívida de contribuições referentes aos meses de Setembro e Dezembro de 1996 a Maio de 1998 e juros de mora vencidos até Outubro de 1998.

c) hipoteca legal inscrita por ap. de 20.07.2009 em benefício do Centro Regional da Segurança Social do Centro, para garantia do montante máximo de € 132.175,77, sendo o capital de € 108.856,78 por dívida de contribuições referentes aos meses de Junho de 1998, Maio a Novembro de 2006, Fevereiro de 2008 a Maio de 2009, e juros de mora vencidos até Julho de 2009 no montante de € 23.318,99.

3) – Por sentença proferida em 08/06/2012, feita a respectiva classificação, os créditos julgados verificados foram assim graduados, para serem pagos:

A) Pelo produto do imóvel:

1° - Crédito dos trabalhadores, acrescidos dos juros a calcular à taxa legal para juros civis sobre cada um dos créditos reconhecidos a título de capital desde a data do termo do prazo para reclamação até pagamento ou realização do rateio final (cfr. arts. 47°, n° 4, a), 48°, b) e 129°, n° 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

2° - Crédito da Fazenda Nacional a título de IMI no montante de € 1.276,66, acrescidos dos juros a calcular à taxa legal para juros civis sobre o capital de € 1.220,46 desde a data do termo do prazo para reclamação até pagamento ou realização do rateio final (cfr. arts. 47°, n° 4, al. a), 48°, b) e 129°, n° 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

3° - Crédito do Banco B...

4° - Crédito da Segurança Social no montante de € 238.640,36.

5° - Crédito da Segurança Social no montante de € 48.354,58.

6° - Créditos comuns.

7° - Juros dos créditos comuns vencidos após a declaração de insolvência.

8° - Créditos subordinados reconhecidos a A…, I… e L...

B) Pelo produto das verbas n° 3, 12, 13, 32 e 44:

1° - Crédito do Banco B…

2° - Crédito dos trabalhadores, rateadamente se necessário. 

3° - Crédito do Instituto da Segurança Social no montante supra indicado em 5°.

4° - Créditos comuns.

5° - Créditos subordinados.

C) Pelo produto das demais verbas móveis:

1° - Crédito dos trabalhadores, rateadamente se necessário.

2° - Crédito do Instituto da Segurança Social no montante supra indicado em 5°.

3° - Créditos comuns.

4° - Créditos subordinados

As custas da insolvência e demais encargos pela massa insolvente saem proporcionalmente precípuas do produto de todos os bens (art. 172° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

4) - Em sentença de 12/10/2012, proferida em autos de habilitação apensos aos da mencionada insolvência, o Fundo de Garantia Salarial foi habilitado para intervir e prosseguir nos nestes, designadamente, em sede de pagamentos, em substituição dos trabalhadores:

5) - Passando a definir a preferência do F.G.S. na graduação de créditos, em resultado da habilitação, a Mma. Juiz do tribunal “a quo”, concluiu que “feita a interpretação do art.º 322.º da Lei n.º 35/2004 de 29/07, à luz do regime da sub-rogação legal estabelecido no art.º 593.º do Código Civil, designadamente do seu n.º2,” “…os créditos dos trabalhadores ainda em débito terão de ser pagos com precedência em relação ao crédito do FGS.”.

II - Desta decisão, na parte em que afirmou a referida preferência relativa dos créditos dos trabalhadores, apelou o Fundo de Garantia Salarial, que, a finalizar a sua alegação de recurso, apresentou as seguintes conclusões:

III - Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do CPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B35862[2]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber a ordem pela qual devem ser graduados, no caso de concorrerem entre si, que é o que aqui sucede, os créditos privilegiados dos trabalhadores e o crédito do Fundo de Garantia Salarial, resultante da sub-rogação a que se reporta o artigo 322° da Lei n° 35/2004.

IV - O circunstancialismo processual e a factualidade assente a considerar na decisão a proferir, são os enunciados em I supra.

V - No Acórdão desta Relação, de 22/03/2011, que foi por nós relatado e que o Apelante cita (Apelação nº 480/08.6TBCTB-E.C1), expressou-se o entendimento que assim se sumariou: “I - Tendo o Fundo de Garantia Salarial satisfeito parte dos créditos laborais que os trabalhadores detinham sobre a entidade patronal, o crédito que assim adquire por sub-rogação nos direitos destes, nos termos do art.º 322.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, caso concorra, em insolvência, com o crédito remanescente, que tais trabalhadores aí reclamem, não vê a respectiva graduação condicionada pelo disposto no art.º 593º, nº 2, do Código Civil.

II - Assim, esses créditos do FGS e tais créditos dos trabalhadores, uns e outros dotados dos privilégios previstos no art.º 377.º do Código do Trabalho, devem ser graduados a par, ficando sujeitos a rateio.”.

Salvo o devido respeito por outro, este entendimento é o que se pensa ser o mais adequado à interpretação das normas jurídicas em causa e o mais justo, aplicando-se, pois, “mutatis mutandis”, ao caso “sub judice”  - o artº 333º do CT, aprovado Lei n.º 7/2009, de 12/2, considerado na sentença de graduação de 08/06/2012, é correspondente ao artº 377º do CT de 2003, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 - o que se disse nesse Acórdão, de que se passa a transcrever o trecho que mais releva para o presente caso[3]: «De harmonia com o citado art.º 322º, o Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente, nos privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos.

Decorre expressamente deste preceito, pois, bem assim como do estatuído, quanto aos efeitos das sub-rogação, no art.º 593º, nº 1, do Código Civil (CC), que o privilégio dos créditos que o FGS adquire, nos termos do supra citado regime, por força dos pagamentos que efectua aos trabalhadores, é o privilégio que tais créditos possuíam quando na esfera jurídica destes credores originários.

Assim, na graduação a fazer em insolvência em que se verifique o concurso de tais créditos, deverão, em princípio, os créditos do FGS e os créditos salariais dos trabalhadores, porque igualmente privilegiados, ser graduados a par, procedendo-se a rateio entre eles (art.º 745.º, n.º 2 do CPC e 175º do CIRE).

Outra era a solução na vigência do DL nº 219/99 de 15 de Junho (após as alterações introduzidas pelo DL nº 139/2001, de 24/04), pois que, no seu art.º 6º, nº 4, resolvia de modo diverso a posição relativa dos créditos do Fundo e dos créditos laborais, em caso de concurso, estabelecendo que os créditos do Fundo seriam “…graduados imediatamente a seguir à posição dos créditos dos trabalhadores de acordo com a graduação estabelecida no artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho…”.

Assim, no domínio do DL nº 219/99 de 15 de Junho (após a redacção do DL nº 139/2001), ainda que o FGS tivesse satisfeito apenas parte dos créditos salariais que os trabalhadores possuíssem sobre a entidade patronal, em caso de concurso com o remanescente que estes reclamassem, os créditos adquiridos por sub-rogação pelo FGS, em função de tais pagamentos, eram sempre graduados depois destes créditos dos trabalhadores.

Contrariando o entendimento perfilhado na sentença recorrida, defendido pelo Apelado, bem como pelo Ministério Público, sustentam os Apelantes que, por força do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, o crédito remanescente que reclamaram devia ter sido seriado em primeiro lugar e o crédito sub-rogado do FGS em segundo lugar.[4]

Preceitua o nº 1 do art.º 593º do CC, que “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.”.

De acordo com o disposto no nº 2 deste art.º 593º, no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.

Regra alguma existe, salvo o devido respeito, nem vemos como extrair esse entendimento do plasmado nas normas citadas na decisão recorrida, que imponha a preferência do crédito do FGS relativamente aos créditos salariais reclamados pelos trabalhadores.

Na sentença afirma-se, merecendo a nossa concordância, que «…quando o Fundo de Garantia Salarial reclama nos autos o pagamento está apenas a "ocupar" a posição jurídica daqueles trabalhadores a quem adiantou o pagamento dos seus créditos laborais. Isto é, tudo se passa como se fossem os trabalhadores a concorrer na graduação…». Mas conclui-se, depois, na sentença, sem que nesta se encontre explicação cabal para tal, que “…face à legislação vigente, deve entender-se que primeiro se paga na totalidade o crédito do FGS, procedendo-se o rateio dos créditos dos trabalhadores ainda em débito…”. Cita-se em abono de um tal entendimento - é o que faz o FGS -, o Acórdão de Relação de Lisboa de 20/11/2007 (processo nº 8484/2007-8), mas, em boa verdade, nem esse Acórdão - que também é citado na reprodução que se faz, no Acórdão da Relação do Porto de 17/02/2009 (Agravo nº 7363/08 - 2ª Sec.),[5] de um trecho da decisão que aí era objecto de recurso -, tira uma tal conclusão, nem esta é passível de ser extraída do explanado no texto desse aresto de 20/11/2007.

A sub-rogação apenas legitima o Fundo a reclamar as importâncias pagas e a invocar a garantia, no caso, os privilégios creditórios, que acompanham os créditos, mas, esses privilégios não conferem ao FGS, relativamente aos trabalhadores que com ele concorram, reclamando a parte dos créditos salariais que aquele Fundo não satisfez, qualquer preferência que lhe dê primazia no pagamento a fazer-se pelo produto dos bens que integram a massa insolvente.

Tendo o FGS, ainda que pague a totalidade daquilo que a lei lhe impõe, pago apenas um parte dos créditos que cada trabalhador possui sobre a entidade patronal - o que será a situação normal face às limitações decorrentes do citados art.ºs 319º e 320º - ou seja, havendo sub-rogação nos direitos dos trabalhadores na parte em que estes tenham sido pagos por aquele Fundo, os créditos salariais que restarem por satisfazer aos trabalhadores mantêm os privilégios que a lei lhes confere.

Salvo o devido respeito não se pode fundar a apontada preferência do FGS na circunstância de este, pretender, como é legítimo, reaver da massa insolvente aquilo que pagou/adiantou aos trabalhadores, nem, também, no facto de se preverem na lei, como receitas do “Fundo”, entre outras, (...) as provenientes da recuperação de créditos pagos aos trabalhadores no exercício das suas atribuições. Esse desiderato pode também ser alcançado - embora que em condições mais adversas, concede-se -, sem a existência de qualquer preferência sobre os créditos salariais reclamados pelos trabalhadores, caso o FGS seja graduado a par destes, ou mesmo, imediatamente a seguir a eles, sendo, até, esta última situação que ocorria na vigência do DL nº 219/99, após a alteração introduzida pelo DL nº 139/2001.

Por isso, uma de duas: ou procede a interpretação que os apelantes fazem do disposto no art.º 593º, nº 2 do CC, caso em que o pagamento dos créditos por eles reclamados e julgados verificados terá primazia sobre o pagamento do crédito do FGS, ou, entendendo-se que essa interpretação não colhe, ter-se-á de concluir que, como acima se referiu, os créditos em confronto, gozando de igual privilégio, têm de ser graduados a par, cabendo fazer rateio entre eles, se tal se vier a mostrar necessário.

Importará, pois, ver se é de acolher a interpretação que os Apelantes fazem do disposto no art.º 593º, nº 2 do CC.

a) O art.º 593º, nº 2 do Código Civil.

No art.º 593º, nº 2 do Código Civil estabelecem-se os efeitos da chamada sub-rogação parcial, consignando-se que “no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.”.

Aparentemente, os dois créditos resultantes da sub-rogação parcial - o que fica a deter o sub-rogado e aquele que, do crédito global, sobra na titularidade do credor original - possuindo a mesma origem, deveriam ter tratados de igual modo em todos os aspectos.

Que assim não é, todavia, salienta o Prof. Inocêncio Galvão Teles, referindo que, em face do estabelecido no nº 2 do art.º 593º, o credor originário goza de preferência sobre o sub-rogado. Em consequência desta preferência, «em caso de insolvência do devedor, aquilo que for afecto ao pagamento do crédito global destina-se em primeiro lugar ao credor primitivo; só o excedente, se o houver, aproveita ao sub-rogado.».[6]

Saliente-se que esta observação do Professor Galvão Teles, relativamente à insolvência, não nos fornece quaisquer dados suplementares sobre a concreta situação de sub-rogação a que se reporta. Sabendo-se, obviamente, que respeita a uma sub-rogação parcial, seguro, no entanto, é que não podia ter subjacente, porque então inexistente, o regime de sub-rogação que veio a ser estabelecido para o FGS.

No domínio de legislações estrangeiras que com a nossa se aparentam na regulação da sub-rogação, a legislação italiana, não confere esta preferência ao credor originário.[7]

O Código Civil Francês, por seu turno, tem uma disposição muito semelhante à nossa, conferindo preferência ao credor primitivo.[8]

Também no Código Civil Brasileiro, essa preferência é afirmada de modo claro, ao referir-se, no art.º 351º, que “O credor originário, só em parte reembolsado, terá preferência ao sub-rogado, na cobrança da dívida restante, se os bens do devedor não chegarem para saldar inteiramente o que a um e outro dever.”.

Subjacente à preferência conferida ao credor originário no caso da sub-rogação parcial está a ideia de que esta não pode prejudicar este credor que, se previsse essa circunstância, não desejaria, provavelmente, que essa sub-rogação ocorresse, ideia esta plasmada no brocado latino “nemo contra se subrogasse censetur”.

Se o credor originário, não sendo obrigado a fazê-lo, aceita um pagamento parcial, a lei presume que pretenderá, todavia, ter preferência relativamente ao terceiro relativamente à parte do crédito que continua a deter.

Este entendimento subjacente à norma em análise, tem-se já notado, casa mal com a sub-rogação legal, situações havendo em que a preferência em causa é apontada como injusta.[9]

O antecedente do art.º 593, nº 2, no Código de Seabra, era o art.º 782º, que, ao invés do preceito actual, referia, expressamente, a preferência do credor originário sobre o sub-rogado, assim dispondo:

«O crèdor, que só foi pago em parte, pode exercer os seus direitos, com preferência ao subrogado, pelo resto da dívida.

§ único. Esta preferência, porém, compete ùnicamente aos crèdores originários, ou aos seus cessionários, e não a qualquer outro subrogado.».

O Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 07/11/1991[10], fazendo exemplar e exaustiva análise do art.º 593º, nº 2 do nosso Código Civil, com apoio nos seus antecedentes históricos, na doutrina e no direito comparado, refere a dado passo, citando Vaz Serra[11], e os estudos preparatórios do Código Civil, a propósito da regra “nemo contra se subrogasse censetur”:

«…parece desde logo que não deve observar-se no caso de sub-rogação por vontade do credor, quando o pagamento é feito por iniciativa do credor, que procura a realização imediata do seu crédito: afigura-se que ao credor não deve reconhecer-se, em princípio, preferência em relação ao sub-rogado. Aquela regra funda-se em que "o credor que é pago com os dinheiros de um outro não é obrigado a sub-rogá-lo senão na medida em que a sub-rogação não possa trazer-lhe prejuízo", como dizia Pothier (-); e este fundamento não é válido se o pagamento por terceiro é devido ao interesse e iniciativa do credor. É assim que, em França, a convenção contrária à dita regra se encontra muitas vezes na prática, "sobretudo quando o sub-rogado paga voluntariamente...Quando o pagamento é oferecido espontaneamente ao credor [e, com mais razão, acrescentamos, quando é devido ao interesse e iniciativa do credor] é o sub-rogado quem dita a lei do contrato..."» (47). Parece injusto que o credor que já recebeu parte do seu crédito do terceiro sub-rogado vá ainda ter preferência em relação a ele, pelo resto do crédito, se o devedor estiver insolvente. O mesmo poderá dizer-se se o pagamento é feito no interesse do devedor. Esta solução resulta já da fórmula proposta, ao estudar os efeitos da sub-rogação (na exposição sobre a cessão legal) - a sub-rogação não pode prejudicar os direitos do credor - entendida no sentido de que o credor só terá preferência quando da sub-rogação derive prejuízo para ele - o que não acontece nos exemplos mencionados, nos quais o credor recebeu do sub-rogado uma parte do seu crédito e não fica, com a sub-rogação e concorrência do sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro"».

Subsequentemente, salienta-se no Parecer, que a redacção do artigo que era proposta por Vaz Serra para o anteprojecto, não consignava o termo “preferência”, empregue no CC de 1867, mas antes a palavra “prejuízo” (art.º 6º, nº 3, do anteprojecto), em moldes semelhantes ao que depois foi consagrado no projecto, e semelhantes, também, com a redacção que veio a ser a da norma do nº 2 do art.º 593º do actual CC.

Não se mostrando muito favorável à regra “nemo contra se subrogasse censetur”, Vaz Serra reconhece-se-lhe, todavia, alguma utilidade que obsta à sua total eliminação, admitindo que ela se justificava em casos em que o credor poderia ser prejudicado com a sub-rogação, ficando, por via desta e da concorrência com o sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro. Observa, contudo, que situações existem, de sub-rogação parcial, em que, em rigor, o credor não é prejudicado. E exemplificando, adianta que, nos casos em que o credor “recebe um pagamento parcial de terceiro, que paga espontaneamente, não parece que sofra prejuízo com o concurso do sub-rogado, pois este vai concorrer apenas por uma parte do crédito, que o credor já recebeu desse mesmo terceiro.”.

Assim, conclui Vaz Serra, justificar-se-ia, pois, que em vez da fórmula do art. 782º do Código de 1867, se adoptasse antes a de que a sub-rogação não prejudica os direitos do credor.[12]

Em consonância com tal entendimento, propõe, sem utilização do termo “preferência”, que o preceito projectado tenha a seguinte redacção (semelhante à do já referido nº 3 do art.º 6º, bem como àquela que viria a ser o art.º 144º, nº 2, do articulado geral do anteprojecto sobre o direito das obrigações, bem assim, ainda, como à redacção do nº 2 do art.º 593º do actual Código Civil): “No caso de pagamento parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo estipulando-se o contrário.”[13].

Assim, parece ser de concluir, que a legitimidade da dita preferência poder-se-á afirmar nas situações de cumprimento parcial, ou similares, em que, por via da sub-rogação parcial e da concorrência do sub-rogado, o credor originário fique prejudicado, ou seja, fique em pior situação do que aquela que teria se não tivesse ocorrido essa sub-rogação.

Como se refere no Parecer que se vem acompanhando, “só em similar hipótese de cumprimento parcial será porventura inaceitável o tratamento paritário de sub-rogado e credor.

Obrigado à totalidade da prestação, mas cumprindo apenas numa parte, intoleravelmente se legitimaria aquele a disputar ao último o resíduo de satisfação que era ainda dever seu proporcionar-lhe.”.

Ora, efectuando o FGS o pagamento dos créditos salariais dos trabalhadores, a requerimento destes, nos termos dos citados art.ºs 317º, 318º e 323º, ainda que, face ao disposto nos aludidos art.ºs. 319º e 320º, assim não seja satisfeita a totalidade do que a cada um deles é devido pela respectiva entidade patronal, o FGS, cumpre a obrigação que a lei lhe comete.

Deste modo, tendo o FGS pago a parte que, segundo a lei lhe competia pagar ao trabalhador, nos termos dos citados preceitos, cumprindo, assim, plenamente, a sua obrigação, não parece que se possa concluir pela existência de uma situação similar à do cumprimento parcial, inexistindo, por outro lado, afigura-se, prejuízo dos credores originários, no sentido que se acima se veio a definir, pois que tais credores, em função da sub-rogação e da concorrência com o sub-rogado, não ficam em pior situação do que aquela em que estariam se a sub-rogação não ocorresse.

Repare-se, que, a não ser assim, sucederia que, por via do disposto no citado art.º 593º, nº 2 do CC - não vigorando o DL nº 219/99, que definia o lugar em que deveria ser graduado o crédito do FGS, por reporte ao lugar em que se graduavam os créditos dos trabalhadores (independentemente de estes terem sido, ou não, “sub-rogados parcialmente”) -, o trabalhador que não requeira o pagamento ao FGS, sem hipótese, pois, de invocar o preceituado nessa norma, posto que sub-rogação alguma existe relativamente ao seu crédito, verá este, apesar de gozar do mesmíssimo privilégio creditório que o dos créditos dos restantes trabalhadores a quem o FGS haja pago parte do que lhes era devido pela entidade patronal, graduado, para ser pago pela massa insolvente, a par do crédito do FGS, resultante dessa sub-rogação e, consequentemente, abaixo, desses outros credores.

Ou seja; caso se entendesse aplicável o disposto no art.º 593º, nº 2 do CC, os trabalhadores que tivessem já recebido parte do seu crédito preteririam, na graduação para o pagamento pelo produto dos bens da entidade patronal insolvente, não só o crédito do FGS, resultante da sub-rogação, como o crédito do trabalhador que nada recebera deste Fundo.

É uma questão de política legislativa conferir preferência, sobre os créditos do FGS, aos créditos dos trabalhadores que só parcialmente hajam obtido deste Fundo o pagamento das importâncias em dívida pela entidade patronal que veio a ser declarada insolvente. Foi essa, como se viu, a opção do legislador do DL nº 139/2001 de 24/04, ao alterar do modo que acima se referiu, a redacção do nº 4 do art.º 6º do DL nº 219/99, de 15/6. Revogado este DL nº 219/99, salvo o devido respeito por entendimento diverso, esse escopo não pode ser alcançado lançando mão do disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, porque não se verificam os pressupostos que determinam a sua aplicação.

A conclusão a que se chega é, pois, a de que, concorrendo o crédito dos trabalhadores e o crédito do FGS, resultante de sub-rogação nos direitos daqueles na medida do que lhes pagou, na respectiva graduação relativa não há que ter em conta o disposto no art.º 593º, nº 2 do CC, devendo tais créditos ser graduados a par, para serem pagos por rateio entre eles.».

Acrescente-se que, com fundamentação, que, na essência, não difere daquela que se acabou de transcrever, tirada do Acórdão desta Relação de 22/03/2011, o STJ, no seu Acórdão de 20/10/2011 (Agravo nº 703/07.9TYVNG.P1.S1), chegou a idêntica conclusão, como se pode constatar logo da leitura daquilo que aí se sumariou: «1. Ex vi do disposto no art.º art. 593.º do C.Civil, o Fundo de Garantia Salarial (sub-rogado) adquire os poderes que aos trabalhadores competiam na medida da satisfação dada ao seu direito e salientando-se que, no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos dos trabalhadores (credores), quando outra coisa não for estipulada.

2. Quer isto dizer que, verificada a sub-rogação, porque na medida em que satisfez o crédito dos trabalhadores o Fundo de Garantia Salarial fica com o direito que originariamente pertencia àqueles, havemos de concluir que os trabalhadores terão legitimidade para reterem para si a parte do seu crédito que não foi pago pelo Fundo de Garantia Salarial e, deste modo, invocá-lo também perante a massa insolvente a par do Fundo de Garantia Salarial.

3. O crédito (parcial) dos trabalhadores e o crédito advindo ao FGS (sub-rogado), apesar da sua fragmentação continuam a manter a sua natural interligação, isto é, completam-se mutuamente; e esta sua unitária configuração há-de ser sempre tomada em consideração em todas os momentos jurídico-processuais em que esta especificada circunstância venha a ter relevância jurídico-positiva.

4. Neste enquadramento legal podemos, outrossim, ajuizar que o crédito parcial dos trabalhadores pode e deve ser exercido a par do crédito do credor sub-rogado, porque a isso se não pode deduzir a sua diversificada natureza jurídica e, antes pelo contrário, se lhe pode associar a sua destacada complementaridade.».

Assim, o crédito do FGS que legitimou a sua habilitação, fica, na graduação de créditos em causa, a par do referido crédito privilegiado dos trabalhadores, não havendo, entre eles, preferência que imponha primazia de pagamento.

Em conformidade com o entendimento expendido, revoga-se a sentença impugnada, na parte em que determina que “…os créditos dos trabalhadores ainda em débito terão de ser pagos com precedência em relação ao crédito do FGS.”, decidindo-se que o referido crédito do FGS, se deve considerar graduado a par do aludido crédito privilegiado dos trabalhadores, a serem pagos em rateio entre eles, se necessário.

Sumário: “Concorrendo o crédito dos trabalhadores com o crédito do FGS, resultante de sub-rogação nos direitos daqueles, na medida do que lhes pagou, na respectiva graduação relativa não há que ter em conta o disposto no art.º 593º, nº 2, do CC, devendo tais créditos ser graduados a par.”.

VI - Decisão:

Em face de tudo o exposto, na procedência do recurso, revoga-se parcialmente a sentença impugnada, ficando a valer a graduação e a consequente forma de pagamento que acima se apontou.

Custas pela massa insolvente.

Falcão de Magalhães (Relator)


[1] Código este aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, doravante designado por CIRE.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante se citarem sem referência de publicação.
[3] Por razões evidentes as notas do trecho ora transcrito não mantêm a numeração original.
[4] Nesse sentido invocam o Acórdão da Relação do Porto de 14/07/2010 (Apelação nº 147/08.5TBLSD-D.P1), que pode ser consultado em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[5] Consultável em “http://www.trp.pt/jurisprudenciacivel/civel08_7363.html”.
[6] Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 3ª edição, 1980, págs. 234 e 235.
[7] O art.º 1205º do Codice Civile, sob a epígarafe “Surrogazione parziale”, apenas estabelece que “Se il pagamento è parziale, il terzo surrogato e il creditore concorrono nei confronti del debitore in proporzione di quanto è loro dovuto, salvo patto contrario.”.
[8] Artº 1252º : «La subrogation établie par les articles précédents a lieu tant contre les cautions que contre les  débiteurs : elle ne peut nuire au créancier lorsqu'il n'a été payé qu'en partie ; en ce cas, il peut exercer ses droits, pour ce qui lui reste dû, par préférence à celui dont il n'a reçu qu'un paiement partiel.».
[9] Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1989, pág. 285.
[10] Relatado pelo Sr. Cons. Lucas Coelho e homologado em 15/04/1992, “in” BMJ nº 415, pág. 55 e ss..
[11] VAZ SERRA, “Sub-rogação nos Direitos do Credor”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 37 (Julho de 1953), págs. 17 e ss..
[12] “Cessão de créditos ou de outros direitos”, Boletim do Ministério da Justiça, número especial, 1955, págs. 5 e ss..
[13] O preceito correspondente, no articulado geral do anteprojecto sobre o direito das obrigações, foi o nº 2 do art.º 144º, com o seguinte teor: “No caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor, ou do seu cessionário, salvo se outra coisa se estipular.”.