Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/09.5T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
REVELIA
Data do Acordão: 02/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Legislação Nacional: DL Nº269/98 DE 1/9, DL Nº107/2005 DE 1/7
Sumário: I - Nas acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, reguladas pelo Dec. Lei nº 269/98, de 1/9, se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz limitar-se-á a conferir força executiva à petição, excepto quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente;

II - O pedido é manifestamente improcedente quando resulta dos factos que a pretensão deduzida pelo autor não se justifica ou que a lei o não acolhe;

III - Neste tipo de acções, o tribunal não deve conferir força executiva à petição inicial não contestada, sem antes analisar a viabilidade do pedido, sempre que sobre alguma das questões suscitadas na petição tenha sido proferido já, pelo Supremo Tribunal de Justiça, acórdão uniformizador de jurisprudência de cariz contrário ao sufragado pelo autor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

A (…) S.A., intentou, no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Albergaria-a-Velha, da Comarca do Baixo Vouga, a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Dec. Lei nº 269/98, de 1/9, contra:

- B (…) e marido, C (…), pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe as importâncias de € 2.100,75, € 8.962,08 e € 145,92, acrescida de € 1.808,51 de juros vencidos até 22/8/2009 e de € 72,34 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre as ditas quantias de € 2.100,75, 8.962,92 e 145,92 se vencerem às taxas anuais de 23,99%, 19,14 e de 19,01%, respectivamente, desde 23 de Agosto de 2009 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.

Alegou, para tanto, em síntese, que celebrou com os Réus três contratos de mútuo, cujas prestações estes não pagaram integralmente.

Devidamente citados, os Réus não contestaram.

Verteu-se, seguidamente, sentença nos autos que, conferido parcialmente força executiva ao requerimento, condenou os Réus a pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução, correspondente a:

a) 15 prestações de capital não pagas acrescidas de juros moratórios à taxa de 23,99%, desde 10/03/2008 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de  4%, sobre estes juros recair;

b) 48 prestações de capital não pagas acrescidas de juros moratórios à taxa de 19,14%, desde 10/01/2009 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes recair;

c) 3 prestações de capital não pagas acrescidas de juros moratórios à taxa de 19,01%, desde 10/10/2008 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes recair.

Inconformada com o assim decidido, interpôs a Autora recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de os RR regularmente citados não terem contestado, deveria o Senhor Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões;

2ª – Aliás, neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu recente Acórdão da 2ª Secção, Processo 153/08.0TJLSB-L1 onde se refere que: “Não tendo o Apelado, D.... contestado, apesar de citado pessoalmente, o tribunal recorrido, deveria limitar-se a conferir força executiva à petição, nos termos do artº 2º, do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do diploma preambular do Decreto-Lei nº 269/98, de 01-09, e não a analisar, quanto a um dos réus, da viabilidade do pedido, uma vez que este não era manifestamente improcedente (isto é, ostensiva, indiscutível, irrefutável).

Concluindo, nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações, emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se o réu citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, por não ser possível nenhuma outra construção jurídica;

3ª – Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene os RR, ora recorridos, na totalidade do pedido, como é de inteira Justiça”.

Não foi apresentada contra-alegação.


...............


O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal cinge-se a saber se, perante a falta de contestação dos Réus, devia o Tribunal “a quo” ter-se limitado a conferir força executiva à petição inicial.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


...............


OS FACTOS E O DIREITO

A sentença recorrida não discrimina os factos provados, mas, porque os Réus não contestaram, todos os factos alegados na petição inicial são de considerar provados, os quais aqui se dão como reproduzidos.

Estamos em presença de uma acção especial destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação, aprovada pelo Dec. Lei nº 269/98, de 1/9, com as alterações resultantes do Dec. Lei nº 107/2005, de 1/7.

Neste tipo de acções baseadas no modelo da acção sumaríssima, mas simplificado, aliás em consonância com a normal simplicidade desse tipo de acções, em que é frequente a não oposição do demandado (vide preâmbulo do citado Dec. Lei nº 269/98), não existe despacho saneador e as provas são oferecidas na audiência, estando limitado o número de testemunhas a apresentar a três ou a cinco, conforme o valor da acção ficar aquém ou ultrapassar o da alçada do tribunal de 1ª instância, respectivamente (artº 3º, nº 4).

Nos termos do artº 2º do regime aprovado por aquele diploma legal, «se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente».

De acordo com este preceito, o juiz, perante a não contestação do réu, deve limitar-se a conferir força executiva à petição. Só assim não será quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido, ou parte dele, seja manifestamente improcedente.

Como se escreveu no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 16/7/2009 (www.dgsi.pt., Proc. 1256/08), citando Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, 932/933), o regime cominatório em causa é substancialmente diferente do efeito cominatório pleno que caracterizava a nossa lei anteriormente às alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12, e que embora o preceito apenas condicione o específico efeito cominatório à circunstância de o réu revel ter sido pessoalmente citado, não contemplando nenhuma das excepções ao efeito cominatório da revelia previstas no artº 485º do C. de Proc. Civil, algumas dessas excepções não poderão deixar de ter aplicação, não devendo ter lugar a prolacção da verdadeira condenação ali prevista «quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter ou quando estejam em causa factos para cuja prova a lei exija documento escrito».

Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª ed., 92, citado no mesmo aresto) refere tratar-se de uma forma sui generis de cominatório semi-pleno, parecendo não resultar do citado artº 2º que as normas de excepção das als. a), b) e d) do referido artº 485º sejam aplicáveis, pretendendo-se «a exemplo do que ocorria com o antigo processo sumaríssimo, o não funcionamento, na espécie, das excepções ao efeito cominatório da revelia a que se reporta o artº 485º do Código de Processo Civil».

Acrescenta, todavia, que o funcionamento do cominatório previsto no artº 2º em análise, pressupondo a citação pessoal do réu, que não ocorram de forma evidente excepções dilatórias e o pedido não seja manifestamente improcedente, não se afasta consideravelmente do disposto no aludido artº 485º: «basta que uma parte conteste os factos articulados pelo autor para que não funcione o efeito cominatório da aposição da fórmula executória, a incapacidade do réu traduz-se em excepção dilatória de oficioso conhecimento e a citação edital do réu implica a realização do julgamento».

No caso presente, os Réus, citados pessoalmente, não contestaram. Por isso, não se tendo sido julgadas verificadas excepções dilatórias, a sentença recorrida apenas podia deixar de atribuir força executiva à petição caso considerasse que o pedido formulado pelo Autor, ou parte dele, era manifestamente improcedente. Foi este caminho que o Tribunal “a quo” decidiu trilhar. E pensamos que o fez com acerto.

A pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou inviável porque a lei a não comporta ou porque os factos apurados – face ao direito aplicável – a não justificam. A «ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso a que a lei se reporta» (vide Salvador da Costa, ob. cit., 95/96). Segundo este mesmo autor, «extensivamente interpretado, o disposto no artigo em análise, naturalmente verificados os respectivos pressupostos, possibilita que o juiz indefira uma parte do pedido e declare a executoriedade da outra».

A sentença recorrida considerou que a acção não podia proceder quanto aos peticionados juros remuneratórios relativos às prestações vincendas, em conformidade com o decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 25 de Março de 2009 (D.R., 1ª Série, de 5 de Maio de 2009).

Como se escreveu no citado acórdão da Relação de Lisboa, a «jurisprudência uniformizada estabelece um precedente judicial qualificado, de natureza meramente persuasória», a decisão proferida contribui para a «unidade da ordem jurídica, face à autoridade que normalmente anda ligada às decisões dos supremos tribunais, designadamente quando eles se reúnem em pleno ou em plenário de secções para solucionar divergências jurisprudenciais» (Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., 394/395).

E muito embora a jurisprudência uniformizada não seja vinculativa para quaisquer tribunais, o seu acatamento pelas instâncias é assegurado de forma puramente indirecta: através da admissibilidade de recurso das decisões que a contrariem, independentemente do valor da causa e da sucumbência da parte (vide Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, 329).

Perante o aludido acórdão uniformizador, era patente que a pretensão da apelante, quanto aos peticionados juros remuneratórios não podia proceder, posição que sempre defendemos, mesmo antes da publicação daquele douto acórdão.

E se tal pretensão foi deduzida contra jurisprudência fixada pelo mais alto tribunal, era evidente que parte do pedido deduzido nesta acção pela Autora era manifestamente improcedente.

Por isso, bem andou o Tribunal “a quo” ao negar, nessa parte, força executiva à petição inicial.

Sumário:

1 - Nas acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, reguladas pelo Dec. Lei nº 269/98, de 1/9, se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz limitar-se-á a conferir força executiva à petição, excepto quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente;

2 - O pedido é manifestamente improcedente quando resulta dos factos que a pretensão deduzida pelo autor não se justifica ou que a lei o não acolhe;

3 - Neste tipo de acções, o tribunal não deve conferir força executiva à petição inicial não contestada, sem antes analisar a viabilidade do pedido, sempre que sobre alguma das questões suscitadas na petição tenha sido proferido já, pelo Supremo Tribunal de Justiça, acórdão uniformizador de jurisprudência de cariz contrário ao sufragado pelo autor.


...............


DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.