Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
248/13.8JACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
RECURSO
PRAZO
JULGAMENTO
Data do Acordão: 05/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 219º Nº 1 CPP
Sumário: O prazo previsto no art. 219º, nº 1 do CPP é ‘meramente ordenador’, no sentido de que a lei não prevê sanção processual para a sua inobservância.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

           


I

           

No inquérito nº 248/13.8JACBR-A.C1, que corre termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca de Alvaiázere, o arguido A..., depois de submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por despacho de 27 de Novembro de 2013 foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva [enquanto aguardava a elaboração de relatório para aferir da possibilidade de aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica], medida de coacção que, por despacho de 29 de Novembro de 2013, foi substituída pelas medidas de coacção, de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, e de obrigação de não contactar por qualquer meio, ou por intermédio de terceira pessoa, com o ofendido, familiares deste e testemunhas que venham a ser indicadas, com excepção dos seus [do arguido] familiares e trabalhadores.

Por despacho de 18 de Dezembro de 2013 foi indeferido o requerimento do arguido solicitando autorização para se deslocar todos os dias úteis, das 7h às 10h e das 16h às 18h, ao escritório da empresa de que é accionista e administra.

Inconformado com os três referidos despachos, o arguido deles interpôs recurso, que deu entrada na Relação a 27 de Janeiro de 2014 [fls. 355].

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em 5 de Fevereiro de 2014 [fls. 357].

O arguido respondeu em 11 de Fevereiro de 2014 [fls. 362]. 

Os autos foram conclusos ao relator em 14 de Fevereiro de 2014 para exame preliminar, que proferiu o despacho a que alude o art. 417º, nº 7 do C. Processo Penal – já com o projecto de acórdão elaborado – em 26 de Fevereiro de 2014, aí se ordenando a ida do processo aos vistos e depois à conferência [fls. 376].

O processo foi aos vistos em 26 de Fevereiro de 2014 [fls. 377 a 378] e foi inscrito em tabela para a sessão de 12 de Março de 2014 – por não haver sessão em 5 de Março de 2014 – no dia 27 de Fevereiro de 2014 [fls. 379].  

Em 11 de Março de 2014 o arguido requereu a imediata declaração de exaurimento, por ultrapassagem do prazo para a decisão do recurso previsto no art. 219º, nº 4 do C. Processo Penal, ‘do prazo máximo de duração da prisão domiciliária, declarando-se, na conformidade, extinta a referida medida de coacção e substituída por qualquer outra julgada adequada a esconjurar dos perigos, alegadamente subsistentes, a que se refere o art. 204º do cpp.’.

Também em 11 de Março de 2014 o relator ordenou a vista ao Ministério Público [fls. 384].

Na mesma data o Exmo. Procurador-Geral Adjunto sugeriu o indeferimento do requerido [fls. 384 a 385].

Em 12 de Março de 2014, previamente à sessão para este dia designada, o relator proferiu despacho no qual, reconhecendo a ultrapassagem do prazo previsto no art. 219º, nº 4 do C. Processo Penal, considerou não trazer esta circunstância implicações n manutenção da medida de coacção e, em consequência, indeferiu o requerido e condenou o arguido nas custas incidentais [fls. 386 a 388].

Na sessão de 12 de Março de 2014 foi publicitado o acórdão da Relação que, conhecendo do recurso interposto, lhe negou provimento e confirmou os despachos recorridos [fls. 389 a 421].

Em 18 de Março de 2014 o arguido requereu a aclaração sobre a tramitação a que foi sujeito o requerimento de 11 de Março de 2014 – se a vista ao Ministério Público foi judicialmente ordenada ou se foi decidida pelo senhor escrivão –, requereu a declaração de invalidade do despacho do relator de 12 de Março de 2014 – por ter sido proferido com manifesto abuso de poderes – e invocou a nulidade do acórdão de 12 de Março de 2014 por estar dependente do conhecimento do mérito do requerimento de 11 de Março de 2014 por um colectivo [fls. 426 a 429].

Notificado o requerimento ao Ministério Público, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nada disse [fls. 431].

Em 30 de Abril de 2014 o relator proferiu despacho no qual, além do mais, procedeu à aclaração pretendida e, quanto à invocada nulidade do acórdão da Relação, determinou a ida dos autos à conferência, para sobre ela decidir.


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II


            Decidindo.

1. É entendimento do arguido que o acórdão da Relação de 12 de Março de 2014, confirmativo dos três despachos recorridos, é nulo porque o que nele se decidiu depende do expresso conhecimento por um colectivo – pela conferência – da requerida [requerimento de 11 de Março de 2014] imediata declaração de exaurimento, por ultrapassagem do prazo para a decisão do recurso previsto no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal, ‘do prazo máximo de duração da prisão domiciliária, declarando-se, na conformidade, extinta a referida medida de coacção e substituída por qualquer outra julgada adequada a esconjurar dos perigos, alegadamente subsistentes, a que se refere o art. 204º do cpp.’.

            É sabido que são as conclusões do recurso que constituem o limite do respectivo objecto (art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal) e por isso, as questões nelas levantadas são as que devem ser conhecidas pelo tribunal ad quem, seja por decisão sumária, seja por acórdão.

            A questão suscitada pelo arguido no requerimento de 11 de Março de 2014 não poderia constar das conclusões do recurso interposto porque tem por objecto uma questão nascida na fase de recurso, e quando este se encontrava já na Relação: a ultrapassagem do prazo fixado no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal para o julgamento do próprio recurso. Trata-se de uma questão nova que, no caso, surgiu até depois de proferido o despacho a que se refere o art. 417º, nº 7, do C. Processo Penal, constituindo por isso um incidente da ‘fase’ de recurso.

Como questão incidental, não integradora do objecto do recurso, podia ser conhecida pelo relator. 

            Podendo a questão ser conhecida pelo relator, não ocorre a invocada inexistência do despacho do relator por falta de jurisdição.

           

2. Por outro lado, o acórdão da Relação de 12 de Março de 2014 não dependia, por lhe ser questão prejudicial, do conhecimento do mérito da questão suscitada no requerimento de 11 de Março de 2014, atento o princípio geral que se extraí do nº 5 do art. 213º do C. Processo Penal. 

            Ainda assim, admitindo-se, quanto mais não seja, por hipótese de raciocínio, que a conferência deveria ter-se pronunciado sobre a questão de ser o prazo previsto no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal um prazo ‘ordenador’, sempre diremos o que segue.

                       

            A actual redacção do art. 219º do C. Processo Penal resulta da Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, entrada em vigor em 29 de Outubro de 2010, que deu nova redacção ao nº 1 e eliminou os nºs 3 e 4.

            A redacção vigente inclui no nº 1 o que antes constava do mesmo número [excepção feita à referência à legitimidade do Ministério Público para recorrer em benefício do arguido] e do nº 4. Por isso, ontem como hoje, o recurso da decisão que aplicar medidas de coacção é julgado no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos forem recebidos no tribunal ad quem.

            A necessidade de uma definição célere da situação do arguido, face à afectação de direitos fundamentais que o decretamento da maior parte das medidas de coacção significa, justifica este curtíssimo prazo para o julgamento do recurso.

            Acontece que o julgamento do recurso não é a mesma coisa que pensar a decisão. Se o legislador entendeu fixar um prazo para este específico recurso, já não cuidou de agilizar os demais procedimentos através da criação de um regime privativo, adequado à urgência pressuposta.

Estando o recurso da decisão que aplicou medida de coacção, de jure constituto, sujeito ao regime legal dos restantes recursos, designadamente, à vista do Ministério Público e, em caso de emissão de parecer, à resposta dos demais sujeitos processuais, estas ocorrências esgotam logo parte significativa do prazo. Depois, o relator precisa do tempo necessário para ponderar as questões suscitadas e elaborar o projecto de decisão [e para este efeito, concede o art. 417º, nº 9 do C. Processo Penal o prazo de quinze dias], sendo certo que, porque a decisão é de um tribunal colectivo, há ainda que assegurar os vistos e aguardar a colocação em tabela para a conferência.

Muito dificilmente pode, assim, ser respeitado o prazo.

A verdade é que o legislador – não ignorando certamente estas incidências – não estabeleceu qualquer consequência para a ultrapassagem do prazo designadamente, não a fulminou com a extinção automática da medida de coacção, como sucede no processo penal italiano [como dá nota, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade católica Editora, 2007, pág. 586]. E é precisamente este o sentido a dar ao termo ‘meramente ordenador’, usado relativamente ao prazo do art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal, por parte significativa da doutrina (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, pág. 320 e Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 2014, pág. 904). Este prazo, como qualquer prazo fixado na lei, é para ser observado. Porém, à sua ultrapassagem, a lei não fixa qualquer consequência processual.

No requerimento de 11 de Março de 2014 o arguido expressa o entendimento de que a ultrapassagem do prazo previsto no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal sem a imediata extinção da medida de coacção torna a norma inconstitucional, por violação dos arts. 20º, nº 4 e 5 e 32º, nº 2 da Constituição da República.

O direito à decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo e a afirmação de todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, são assegurados pela própria existência do prazo, como se referiu, excepcionalmente curto. E nem a falta de sanção processual para a ultrapassagem do prazo, designadamente, a de, como pretende o arguido, exaurimento do prazo máximo de duração da medida de obrigação de permanência na habitação, com a consequente declaração de extinção e sua substituição por outra medida cautelar considerada adequada, viola aquele direito e aquelas garantias, pois que a lei prevê outros mecanismos, céleres, para provocar a decisão em atraso.

Assim, entendemos que a ausência de específica consequência processual para a inobservância do prazo previsto no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal, não viola os arts. 20º, nº 4 e 5 e 32º, nº 2 da Lei Fundamental.


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            Em síntese conclusiva:

            - O acórdão da Relação de 12 de Março de 2014 não padece de nulidade por omissão de pronúncia;

            - O prazo previsto no art. 219º, nº 1 do C. Processo Penal é ‘meramente ordenador’, no sentido de que a lei não prevê sanção processual para a sua inobservância;

            - A imprevisão da referida sanção não torna a norma citada inconstitucional, por violação dos arts. 20º, nº 4 e 5 e 32º, nº 2 da Lei Fundamental.


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III


 

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em indeferir a invocada nulidade do acórdão de 12 de Março de 2014.

            Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.


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Coimbra, 14 de Maio de 2014

 (Heitor Vasques Osório - relator)

 (Fernando Chaves)