Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
337/06.5TTVIS.2.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: INCIDENTE DE REVISÃO
INCAPACIDADES TEMPORÁRIAS
CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 580º E 619.º A 625.º DO C.P.CIVIL, APLICÁVEL EX VI DO ART.1º, Nº2, A) DO C.P.TRABALHO
Sumário: 1 – Se o despacho final proferido no incidente de revisão não se pronunciou sobre as incapacidades temporárias de que padeceu a sinistrada e tendo em conta a natureza imperativa dos direitos em causa e a oficiosidade do seu conhecimento, aquela decisão não produz efeitos de caso julgado ou, dito de outra forma, não houve formação de caso julgado.

2 – Se aquando da apresentação, por parte da sinistrada, do requerimento a solicitar o pagamento da indemnização por incapacidades temporárias, não existia uma decisão judicial transitada em julgado que tivesse apreciado tal pedido, aquele despacho final não se reveste de força e autoridade do caso julgado, inexistindo qualquer impedimento legal à determinação do pagamento à sinistrada da quantia de € 2.483,43 a título de indemnização por incapacidades temporárias.
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 337/06.5TTVIS.2.C2

Acordam[1] na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

M..., residente em ... deduziu o presente incidente de revisão alegando encontrar-se pior das lesões sofridas no acidente de trabalho em causa nos presentes autos.

Foi, depois, proferida decisão com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, decido que a sinistrada M... se encontra, por efeito do acidente dos autos, afectada de uma IPP de 88,44%, desde 13-01-2017 - data da apresentação do requerimento para revisão – pelo que a pensão a que tem direito, já actualizada, é de €6.568,83 (seis mil quinhentos e sessenta e oito euros e oitenta e três cêntimos), devida desde 13-01-2017 a qual é anualmente atualizável, pelo que se atualiza tal pensão para €6.687,07 (seis mil seiscentos e oitenta e sete euros e sete cêntimos), desde 01-01-2018, condenando-se a Ré seguradora no pagamento de tais montantes.

Condena-se ainda a responsável Ré seguradora a proceder ao pagamento à sinistrada da quantia de €4.279,20 (quatro duzentos e setenta e nove euros e vinte cêntimos) a título de subsídio de elevada incapacidade.

A referida pensão anual deve ser paga, adiantadas e mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, sendo que os subsídios de férias e de Natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, deverão ser pagos, respetivamente, nos meses de Maio e de Novembro.

As prestações já vencidas deverão ser pagas de uma só vez, acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4%, sobre a data de vencimento de cada prestação mensal, até integral pagamento, sendo devidos juros à mesma taxa sobre o subsídio de elevada incapacidade desde 13-01-2017 até integral pagamento.

                                                             *

A Ré Seguradora interpôs recurso desta decisão que foi objeto do acórdão de fls. 575 e segs. e que, julgando a apelação procedente, fixou em €3.784,52 o subsídio por elevada incapacidade a pagar pela Ré à Autora.

  Posteriormente foi proferida a decisão de fls. 747 e segs. com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, determina-se que a Ré F..., S.A proceda ao pagamento à sinistrada M... a quantia de €621,14 (seiscentos e vinte e um euros e catorze cêntimos) a título de despesas de deslocações, de €331,63 (trezentos e trinta e três euros e sessenta e três cêntimos) a titulo de despesas médicas e medicamentosas documentadas nos autos e a quantia de €2.483,43 (dois mil quatrocentos e oitenta e três euros e quarenta e três cêntimos) a título de indemnização por incapacidades temporárias, sendo esta quantia de indemnização acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data de vencimento de cada prestação mensal e sobre as restantes quantias, desde a presente data, tudo até integral pagamento.”

  A Ré seguradora, notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso concluindo que:

1. Proferiu o Tribunal a quo despacho condenando a Ré F..., S.A a proceder ao pagamento à sinistrada de €2.483,43 a título de indemnização por incapacidades temporárias.

2. O despacho assenta a sua resolução no facto de ter “fixado no relatório do GML que consta de fls. 476 a 478 verso, em consequência de tais sequelas decorrentes do acidente dos autos a Autora padeceu de ITA desde 07-01-2010 até 23-03-2010 (76 dias) e de ITP de 70% desde 24-03-2020 a 31-05-2010 (69 dias) e de ITP de 60% desde 01-06-2010 a 30-06-2010”.

3. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu olvida que a sentença referente ao processo de revisão a que diz respeito o “relatório do GML que consta de fls. 476 a 478 verso” não fixou qualquer período de incapacidade temporária.

4. Também a juntas médica realizada após o referido relatório do GML (que foi realizada em três diligências distintas) não fixou qualquer período de incapacidade temporária.

5. Afigura-se inquestionável a força probatória do auto de exame por junta médica, mesmo sujeita ao princípio da livre apreciação pelo juiz.

6. O Sinistrado representado por Mandatário poderia ter recorrido da sentença de 22-10-2018 (a mesma foi alvo de recurso, mas por parte da ora Recorrente, no que ao subsídio de elevada incapacidade diz respeito), o que não o fez.

7. Assim, o despacho em crise que condena a F... (dois anos depois!) a pagar incapacidades temporárias nunca fixadas em sentençaviolaclaramente o princípio do caso julgado,

8. Apresentando-se como uma forma, não admissível, de “corrigir” o teor de sentenças já transitadas em julgado.

9. O Tribunal da Relação de Évora, acórdão de 01/07/2016 referente ao processo 92/11.7TTPTM-A.E1, pronunciou-se expressamente sobre a força do caso julgado no que à fixação de incapacidades (temporárias ou permanentes) diz respeito: “Os efeitos da anterior decisão, quanto à incapacidade do sinistrado e ao valor da pensão, terão que ser acatados e respeitados, por força do caso julgado, até que se inicie o incidente de revisão”.

10. O despacho recorrido viola, assim, os artigos 580º e 619.º a 625.º do C.P.Civil, aplicável ex vi do art.1º, nº2, a) do C.P.Trabalho , bem como viola também os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, princípios classificadores do Estado de Direito Democrático e da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e demais de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, alterando-se a decisão recorrida nos termos ora expostos, no que se fará assim a ACLAMADA JUSTIÇA!”

A sinistrada não apresentou resposta.

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que antecede, no sentido de que a apelação deverá ser julgada improcedente.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

a) - Factos provados

Os constantes do relatório supra.

b)- Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C., na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013, de 28/06).

Assim, cumpre apreciar a questão suscitada pela Seguradora recorrente, qual seja:

Se o despacho recorrido viola o princípio do caso julgado e os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

A Ré recorrente alega que o despacho que a condenou a pagar à sinistrada €2.483,43 a título de indemnização por incapacidades temporárias, olvida que a sentença referente ao processo de revisão a que diz respeito o “relatório do GML que consta de fls. 476 a 478 verso” não fixou qualquer período de incapacidade temporária; a junta médica realizada após o referido relatório do GML (que foi realizada em três diligências distintas) não fixou qualquer período de incapacidade temporária; a sinistrada poderia ter recorrido da sentença de 22-10-2018, o que não o fez; o despacho em crise que condena a F... (dois anos depois!) a pagar incapacidades temporárias nunca fixadas em sentençaviolaclaramente o princípio do caso julgado, apresentando-se como uma forma, não admissível, de “corrigir” o teor de sentenças já transitadas em julgado; o despacho recorrido viola também os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. 

Vejamos:

Conforme resulta da leitura do despacho final proferido no incidente de revisão, decidiu-se que a sinistrada se encontrava afetada de uma IPP de 88,44%, fixando-se a pensão a que tinha direito, bem como o subsídio por elevada incapacidade, a cargo da seguradora responsável.

Nesta decisão a Ré seguradora não foi condenada a pagar à sinistrada qualquer quantia a título de indemnização por incapacidades temporárias, fazendo-se apenas referência na mesma de que os peritos médicos, reunidos em junta médica, foram de parecer que se mantiveram inalteradas as restantes incapacidades anteriormente atribuídas e constantes de fls. 130.

Significa isto que tal decisão não se pronunciou sobre as incapacidades temporárias de que a sinistrada padeceu e que foram fixadas no relatório do GML constante de fls. 476 a 478 v.º (mantidas nos autos de exame por junta médica constantes de fls. 514 a 515 e 533 a 534).

Ora, <<a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação>> - artigo 628.º do CPC, sendo que, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artigo 621.º do CPC) e transitada em julgado a sentença que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (caso julgado material) nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º - artigo 619.º do mesmo Código.

<<O caso julgado, tornando a decisão em princípio imodificável, visa exatamente garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação (pode, é verdade, suceder que, por virtude da força do caso julgado, fiquem as partes definitivamente amarradas a uma decisão que não corresponda à correta interpretação e aplicação da lei ao objeto do seu litígio)>>[2].

“O caso julgado é uma consequência da caracterização dos tribunais como órgãos de soberania”, sendo uma “exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social” e a “expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica” – TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo Civil, 2.ª Edição, Lisboa, 1997, p. 568.

Como refere Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 306, o fundamento deste instituto assenta no prestígio dos tribunais, pois que <<esse prestígio seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente>>; radicando ainda numa razão de certeza ou segurança jurídica, uma vez que <<sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa – fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas>>.

Assim sendo, tendo em conta que o despacho final proferido no incidente de revisão não se pronunciou sobre as citadas incapacidades temporárias de que padeceu a sinistrada e ponderando, ainda, a natureza imperativa dos direitos em causa[3] e a oficiosidade do seu conhecimento, aquela decisão não produz efeitos de caso julgado ou, dito de outra forma, não houve formação de caso julgado.

Como se escreveu no acórdão desta Secção Social de 02/05/2014, proferido no Processo 121/12.7TTFIG-A.C1, disponível em www.dgsi.pt:

<<I- Dada a natureza indisponível dos direitos emergentes de acidente de trabalho e a oficiosidade do processamento da respetiva ação, nada obsta a que a instância possa ser reaberta (para acolher a imperatividade legal) para conhecimento de direito que, por qualquer razão, não tenham sido apreciados na ação e sobre os quais não haja formação de caso julgado. II- Por conseguinte, se na sentença proferida não fora fixados juros de mora, havendo lugar a eles, sem que tenham sido concretamente pedidos, não havendo caso julgado sobre essa questão, a instância pode ser reaberta para a correspondente apreciação.>>

Acontece que aquando da apresentação, por parte da sinistrada, do requerimento a solicitar o pagamento, além do mais, da indemnização por incapacidades temporárias, não existia uma decisão judicial transitada em julgado que tivesse apreciado tal pedido, não se revestindo o já citado despacho de força e autoridade do caso julgado.

Não estamos, pois, como já referimos, perante uma situação em relação à qual já havia formação de caso julgado, pelo que, ao contrário do alegado pela recorrente, inexistia qualquer impedimento legal à determinação do pagamento à sinistrada da quantia de € 2.483,43 a título de indemnização por incapacidades temporárias, constante da decisão recorrida.

Acresce que, como já referimos, ao contrário do alegado pela recorrente, a junta médica foi de parecer que se mantiveram inalteradas as restantes incapacidades anteriormente atribuídas, incapacidades estas que não foram questionadas pela ora recorrente.

No sentido ora propugnado cfr. o acórdão da RL de 25/11/2020, disponível em www.dgsi.pt, no sentido de que:

<<1-Tendo o sinistrado requerido o pagamento de despesas médicas e indemnização por períodos de incapacidade temporária e não tendo sido proferida decisão sobre tais pedidos no âmbito do incidente de revisão da incapacidade que correu os termos legais, dever-se-á entender que o incidente inominado posteriormente suscitado (que constitui o desenvolvimento do primitivo pedido) não ofende autoridade do caso julgado.

2- A decisão que apreciou o incidente de revisão da incapacidade não constitui caso julgado sobre os indicados pedidos.>>

Em suma, pelos motivos expostos, improcede a exceção de caso julgado invocada pela recorrente, inexistindo, por isso, qualquer violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.

Na improcedência do recurso, impõe-se a confirmação do despacho recorrido em conformidade.

IV – Sumário[4]

1 – Se o despacho final proferido no incidente de revisão não se pronunciou sobre as incapacidades temporárias de que padeceu a sinistrada e tendo em conta a natureza imperativa dos direitos em causa e a oficiosidade do seu conhecimento, aquela decisão não produz efeitos de caso julgado ou, dito de outra forma, não houve formação de caso julgado.

2 – Se aquando da apresentação, por parte da sinistrada, do requerimento a solicitar o pagamento da indemnização por incapacidades temporárias, não existia uma decisão judicial transitada em julgado que tivesse apreciado tal pedido, aquele despacho final não se reveste de força e autoridade do caso julgado, inexistindo qualquer impedimento legal à determinação do pagamento à sinistrada da quantia de € 2.483,43 a título de indemnização por incapacidades temporárias

DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso, acorda-se em manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

                                                                                     Coimbra, 2021/03/19

                                   (Paula Maria Roberto)

                                                                              (Ramalho Pinto)

                                                                                       (Felizardo Paiva)

                                                             ***


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Ramalho Pinto
                        Felizardo Paiva

[2] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição. Coimbra Editora, pág. 705.
[3] A este propósito, cfr. o acórdão da RP, de 04/11/2019, disponível em www.dgsi.pt.
[4] O sumário é da responsabilidade exclusiva da relatora.