Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
750/14.4TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: SENTENÇA PENAL
EFEITOS
ACÇÃO CÍVEL
CONEXÃO
ANULAÇÃO
CASAMENTO
SIMULAÇÃO
Data do Acordão: 03/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – COVILHÃ – INST. CENTRAL – 2ª SEC. F. E MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1618º, 1631º, 1635º, AL. D) E 1639º, Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL; 3º, Nº 1, AL. P), E 5º, Nº 1, AL. G), ESTES DA LEI 60/98, DE 27 DE AGOSTO; E 77º, Nº 1, AL. A) DA LEI 3/99, DE 13 DE JANEIRO. ARTº 623º NNCP.
DATA DO ACÓRDÃO: 01/03/2016
Sumário: I – Nos termos do actual artº 623º do NCPC (Lei nº 41/2013, de 26/06) – antigo artº 674º-A do CPC -, ‘A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração’.

II - Se uma pessoa for condenada em matéria penal, com trânsito em julgado, não tendo sido apreciada a questão da responsabilidade civil decorrente desse facto, nem por isso na acção cível que venha a propor-se poderá ter-se como apurada a culpa por parte do condenado, vigorando apenas uma presunção juris tantum de que o autor do facto agiu com culpa, presunção que pode, portanto, ser ilidida.

III - Nos termos do artº 1618º, nº 1 do C. Civil, a vontade de contrair casamento importa aceitação de todos os efeitos legais do matrimónio, sem prejuízo das legítimas estipulações dos esposos em convenção antenupcial.

IV - Quando tal não se verifique, ocorre uma causa de anulabilidade do casamento, conforme artº 1631º, al. b) do C. Civil – anulabilidade do casamento por falta de vontade -, designadamente quando o casamento tenha sido simulado – artº 1635º, al. d) do C. Civil.

V - Esta causa de anulabilidade do casamento (simulação do casamento) consiste, pois, num acordo firmado pelos outorgantes do casamento no sentido de não se sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que decorrem da celebração do casamento, isto é, de não assumirem a condição e o estado de casados entre si.

VI - Verificando-se uma situação desta natureza, não pode considerar-se como existente um dado casamento, a não ser para fins ilegais, pelo que se impõe obter a anulação desse casamento.

VII - Um desses casos de ‘casamento ilegal’ é o chamado ‘casamento de conveniência’, ou casamento contraído com o único objectivo de proporcionar a um dos seus outorgantes – porque estrangeiro – uma vantagem ilegal, como seja, p. ex., a obtenção de uma autorização de residência ou de obter um visto de residência em Portugal…, conduta esta que se enquadra num tipo legal de crime, conforme artº 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4/07 (Aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional).

Decisão Texto Integral:       

      Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

            Na Comarca de Castelo Branco - Covilhã - Inst. Central - 2ª Sec. Fam. e Men. - J1, o Digno Agente do Ministério Público, em representação do Estado Português, veio, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1639º, nº 1 do Código Civil; 3º, nº 1, al. p), e 5º, nº 1, al. g), estes da Lei 60/98, de 27 de Agosto; e 77º, nº 1, al. a) da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, intentar a presente acção de declaração de anulação de casamento civil celebrado entre os RR. e contra os RR., P…, residente em …, e A…, natural de Anápolis, Brasil, e residente na Rua ...

Formula os seguintes pedidos:

- Declarar-se anulado o casamento civil celebrado entre os réus no dia 16 de Outubro de 2008, na Conservatória do Registo Civil de C…; e

- Ordenar-se o averbamento da anulação do casamento nos respetivos assentos de nascimento dos réus, bem como no respetivo assento de casamento.

Alegou, para tanto e muito em resumo, que no dia 16 de Outubro de 2008, na Conservatória do Registo Civil de C…, foi celebrado o casamento civil entre os réus, P… e A…, averbado na referida Conservatória do Registo Civil, tendo sido lavrado o assento de casamento com o nº … do ano de 2008.

Acontece que os Réus contraíram esse dito casamento com falta absoluta de consenso, acordando entre si não se sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que, essencialmente, decorrem do vínculo matrimonial.

Com o casamento não se pretenderam vincular aos deveres recíprocos de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.

Que os RR, na sequência do casamento, não mantiveram qualquer relacionamento como se de marido e mulher se tratassem, fazendo vidas completamente separadas, vivendo o 1º Réu na cidade da Guarda e a 2ª Ré na cidade do Fundão.

Visaram, tão só, um único objetivo, que era proporcionar à 2ª Ré, A…, a obtenção de autorização de residência, evitando, dessa forma, a decisão da sua expulsão do espaço Shengen, já proferida contra ela, e com essa autorização de residência poder passar a viver e a circular livremente no espaço Shengen.

Que a 2ª Ré, A…, na sequência do casamento entregou, no dia 05 de Janeiro de 2009, no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Delegação Regional de C…, um pedido de concessão de cartão de residência pelo facto de ter contraído casamento com um cidadão português, juntando a tal requerimento certidão do assento de casamento celebrado entre os Réus.

Acontece que por tal falta absoluta de consenso dos réus em contrair casamento e tendo sido celebrado com o referido objetivo, foi instaurado processo-crime contra os ora réus, o qual foi registado com o nº …, e por decisão transitada em julgado a 09/12/2013 foram os mesmos condenados pela prática de um crime de casamento por conveniência, p. e p. pelo artigo 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, cada um deles na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e seis meses.

Invoca-se o disposto no artigo 1631º, al. b) do Código Civil, segundo o qual é anulável o casamento celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade, anulabilidade invocável dentro dos três anos subsequentes à celebração do casamento ou, se este era ignorado do requerente, nos seis meses seguintes ao momento em que dele teve conhecimento – artigo 1644º do mesmo diploma.

E, ainda, o que dispõe o artigo 1635º, al. d) do Código Civil, segundo o qual o casamento é anulável por falta de vontade quando tenha sido simulado, o que se verifica.


II)

Contestaram os RR. alegando, muito em resumo, que em Março de 2008 os RR. conheceram-se no bar de alterne ‘Setps Bar’, sito em Caria, no âmbito da actividade de alterne que a Ré desempenhava no dito bar e iniciaram um namoro entre ambos.

Que a Ré a partir de 01 de Abril de 2008 passou a trabalhar como empregada doméstica para o sr. J…, e deu entrada, em 13/06/2008, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de um pedido de legalização nos termos e para os efeitos do art. 88º, nº 2 da Lei 23/2007 de 04 de Julho.

Que os RR. contraíram matrimónio em 16/10/2008 e passaram a fazer vidas conjuntas, porque gostam um do outro e por pretenderem constituir família.

Que fixaram a sua residência de morada de família, desde o casamento até inícios de Janeiro de 2009, no Sítio ...

Daí mudaram, temporariamente, de residência para Rua …, onde pernoitaram durante 2 ou 3 dias, tendo fixado definitivamente a sua morada de família em Rua ...

Que o Réu trabalha na agricultura, na Zona da Guarda (S…) durante a semana, auferindo um salário com o qual auxilia nas despesas da casa, pelo que se desloca a casa ao fim de semana e/ou quando tem folgas.

Que durante o ano de 2012 a Ré esteve emigrada na Suiça, pelo que estiveram separados durante alguns meses e o R. esteve durante o ano de 2013 no norte do país a tratar um problema de saúde em casa da irmã, tendo estado separados durante estes períodos.

Concluem que os RR. vivem, efectivamente, como homem e mulher, fazendo vida em comunhão de leito, teto e mesa, fazendo vida de casados, sendo vistos pelo público e familiares como tal.

Que quando a Ré se casou com o Réu aquela esperava legalizar-se através do contrato de trabalho, tendo a intenção de recorrer da decisão de indeferimento 29/09/2008.

Ainda rematam: o casamento contraído entre os RR. não o foi com a exclusiva intenção de proceder à legalização da Ré, pelo que não deve ser anulado, uma vez que não se verificam os pressupostos de que a lei faz depender tal efeito.

Terminaram pedindo a improcedência da ação.


III

            Terminados os articulados teve lugar uma audiência prévia, na qual, além do mais, foram verificados os pressupostos da ação, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova  

            Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com a gravação da prova testemunhal produzida – acta de fls. 136/137.

            Proferida a sentença, nela foi decidido julgar-se a ação procedente, com a declaração de anulação do casamento havido ente os RR.


IV

            Dessa sentença interpuseram recurso os RR., em cujas alegações formulam as seguintes conclusões:

V


            Contra-alegou o Digno Agente do Ministério Público (Recorrido), onde também formula as seguintes conclusões:

1ª – Os factos consideradas provados e não provados não merecem qualquer reparo, decorrendo quer do teor da decisão penal transitada em julgado e cujos fundamentos factuais não foram ilididos, quer da prova obtida segundo o princípio da imediação ante a audição das testemunhas em audiência, já nestes autos.

2ª – Carecem de fundamento as conclusões 3ª e 4ª do recurso interposto, pois se baseiam em inverdades.

3ª – Deve manter-se na íntegra a decisão recorrida.


VI

            O recurso foi admitido em 1ª instância, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, tendo como tal sido aceite nesta Relação.

            Nada obsta ao conhecimento do seu objecto, o qual passa pela apreciação da impugnação apresentada quanto à decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto; e pela reapreciação da decisão de direito, caso a anterior questão logre obter provimento.

            Na pretendida impugnação os Recorrentes impugnam os seguintes factos constantes da sentença recorrida:

- devem ser considerados provados os factos não provados dos nº 3 a 6 e 10;

- consequentemente, deve ser considerada não provada a factualidade dos nº 2 e nº 4 da matéria provada, todos constantes da sentença recorrida.

Para alicerçar esta impugnação os Recorrentes aludem a depoimentos testemunhais, que referem, tal como lhes é imposto pelo artº 640º, nº 2, al. a) do nCPC, pelo que nada obsta a tal apreciação.

            Para o efeito já procedemos à audição de toda a prova testemunhal gravada (em suporte de CD) e também já analisámos a sentença penal condenatória constante da certidão junta aos presentes autos a fls. 14/23, com trânsito em julgado ocorrido em 9/12/2013.

            Na fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida consta, como tal, que essa decisão se baseou na dita sentença penal condenatória – extraída do Processo Comum (Tribunal singular) nº ...

            Com efeito, nos termos do actual artº 623º do NCPC (Lei nº 41/2013, de 26/06) – antigo artº 674º-A do CPC -, ‘A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração’.   

Os referidos preceitos regulam o caso de ter havido condenação por ilícito criminal e não ter sido exercido, nessa acção, o direito civil conexo.

Que eficácia deve atribuir-se a esse caso julgado na acção cível que venha subsequentemente a propor-se e com base nos mesmos factos?

Se uma pessoa for condenada em matéria penal, com trânsito em julgado, não tendo sido apreciada a questão da responsabilidade civil decorrente desse facto, nem por isso na acção cível que venha a propor-se poderá ter-se como apurada a culpa por parte do condenado, vigorando apenas uma presunção juris tantum de que o autor do facto agiu com culpa, presunção que pode, portanto, ser ilidida.

A decisão proferida em processo penal constitui, assim, uma presunção juris tantum (ilidível mediante prova em contrário de terceiro) da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação penal.

Com efeito e, como sustenta Lebre de Freitas, “... não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença” - In “Código de Processo Civil Anotado, 2.º volume, pag. 691”.

Também Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª edição - 2004”, pag. 562/563, defende que a norma do artigo 674.º-A do CPC “estabelece a relevância ‘reflexa’ do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza cível, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo nomeadamente em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza ‘prática’ de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada”.

“... A eficácia ‘erga omnes’ da decisão penal condenatória é, ..., temperada com a possibilidade de os titulares de relações civis conexas – terceiros relativamente ao processo penal – ilidirem a presunção de que o arguido cometeu efectivamente os factos integradores da infração que ditou a sua condenação”.

            No apontado sentido, e entre outros, podem ver-se: o ac. da Rel. de Coimbra de 28/11/2006, Proc.º nº 85/06.YRCBR; da Rel. de Lisboa de 25/02/2010, Proc.º nº 667/2002.L1-8; da Rel. de Coimbra de 17/05/2011, Proc.º nº 540/07.0TBMDL.C2, disponíveis em www.dgsi.pt/jtr...; veja-se, ainda, o seguinte aresto do STJ, igual disponível no mesmo site:


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Nº Convencional:JSTJ00000819
Relator:LEAL HENRIQUES
Descritores:CASO JULGADO PENAL
ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
PEDIDO CÍVEL
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Nº do Documento:SJ200112050020523
Data do Acordão:05-12-2001
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:7 V CRIM LISBOA
Processo no Tribunal Recurso:94/94
Data:13-01-2000
Texto Integral:N
Privacidade:1
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Meio Processual:REC PENAL.
Decisão:NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática:DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional:CPC95 ARTIGO 674 A.
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Sumário :No julgamento do pedido cível que se efectuar depois de, no mesmo processo, ter transitado a decisão penal condenatória, esta tem o valor de mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria.
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            Mas mesmo que assim não devesse ser considerado, da prova testemunhal produzida, designadamente dos depoimentos prestados pelas testemunhas D…, I… e M…, pessoas que residem no mesmo prédio no qual também vive a Ré desde há cerca de 7 anos (a Ré vive num sótão arrendado desse prédio e as ditas testemunhas vivem em frações desse prédio), resulta muito claro que não existiu um casamento efectivo entre a Ré e o Réu, pois que nunca viveram juntos e muito menos como marido e mulher, na medida em que a Ré sempre viveu sozinha nesse local, onde recebe habitualmente a visita diária de vários homens, quer de dia quer de noite, sendo que o Réu também poderá ser apenas uma dessas ditas suas visitas ocasionais e por curtos períodos de tempo.

            Nunca a vizinhança soube ou conheceu a Ré como sendo casada de facto nem lhe é conhecido um marido ou um homem que tenha o comportamento dessa natureza, com ela vivendo como tal e comungando nas despesas comuns.

            As demais testemunhas ouvidas ou nada sabem da vida da Ré, não conhecendo ou conhecendo mal o Réu, ou depuseram de forma que não são credíveis os seus depoimentos, e até se afigura ser tendenciosa a forma como depuseram algumas delas, como é o caso de M… que é a dona do sótão onde vive a Ré e de quem recebe uma ‘renda’, interessando-lhe tal proveito, apesar dos incómodos que são causados à vizinhança pelo modo de vida da Ré no sótão onde vive.

            Nessa medida, e constando dos factos provados na sentença penal que ‘... a arguida, que conhecera o arguido P…, propôs-lhe que se casassem para, dessa forma, poder obter autorização de residência em Portugal, obstando assim à decisão do SEF de expulsão do país, proferida contra si, tendo o arguido P…, com o objectivo de auxiliar a arguida, aceite casar com esta, mas nunca tendo sido intenção dos arguidos constituir família e passar a viver como cônjuges; assim, e em execução desse plano previamente traçado por ambos, contraíram matrimónio entre si, no dia 16 de Outubro de 2008, pelas 11 horas, na Conservatória do Registo Civil de C... Porém, na sequência de tal casamento, nunca os arguidos mantiveram qualquer relacionamento como se de marido e mulher se tratassem, fazendo vidas complemente separadas, ...”, forçoso seria e é concluir-se no sentido de deverem ser dados como provados os pontos da matéria de facto que foram assim considerados, designadamente os pontos 2 e 4 da sentença, que são os impugnados pelos Recorrentes.

            Aliás, nem se entende esta impugnação apresentada pelos Recorrentes, na medida em que não impugnam o ponto 3 dos factos dados como provados e onde consta que ficou provado que ‘3. Não tendo na sequência do casamento os réus mantido qualquer relacionamento como de marido e mulher se tratassem, fazendo vidas completamente separadas, vivendo o 1º réu na cidade da Guarda e a 2ª ré na cidade do Fundão’.

            Pelas apontadas razões também se consideram como devidamente dados como ‘não provados’ os factos como tal enunciados na sentença, designadamente os pontos 3, 4, 5, 6 e 10 (abaixo enunciados), pois que nenhuma prova credível foi produzida no sentido desses factos estarem verificados, muito pelo contrário, conforme antes já se deixou referido, pois que nunca os RR. viveram sequer juntos e como se de marido e mulher se tratassem, o que nunca ninguém, da vizinhança da Ré, pôde testemunhar.

            Mas os Recorrentes ainda suscitam a questão de que o ponto 2 da matéria de facto dada como provada (2. Acontece que os réus contraíram casamento com falta absoluta de consenso, acordando não se sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que, essencialmente, decorrem do vínculo matrimonial; com o casamento não se pretenderam vincular aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.) ser matéria não alegada pelo M.º P.º, pelo que, dizem, não poderia ter sido considerada como tal.

            Não se pode entender esta argumentação, já que tal matéria consta dos pontos 3º e 4º da petição inicial, sendo o referido facto uma reprodução textual dessa dita alegação.

            Pelo que também improcede tal argumentação dos Recorrentes.

            Face ao que improcede a impugnação à matéria de facto apresentada, mantendo-se essa matéria tal como consta da sentença recorrida e que é formada pelos seguintes pontos:

Matéria de facto provada:



            Prosseguindo a nossa apreciação, nos termos do artº 1618º, nº 1 do C. Civil, a vontade de contrair casamento importa aceitação de todos os efeitos legais do matrimónio, sem prejuízo das legítimas estipulações dos esposos em convenção antenupcial.

            Quando tal não se verifique, ocorre uma causa de anulabilidade do casamento, conforme artº 1631º, al. b) do C. Civil – anulabilidade do casamento por falta de vontade -, designadamente quando o casamento tenha sido simulado – artº 1635º, al. d) do C. Civil.

            Esta causa de anulabilidade do casamento (simulação do casamento) consiste, pois, num acordo firmado pelos outorgantes do casamento no sentido de não se sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que decorrem da celebração do casamento, isto é, de não assumirem a condição e o estado de casados entre si.

            Verificando-se uma situação desta natureza, não pode considerar-se como existente um dado casamento, a não ser para fins ilegais, pelo que se impõe obter a anulação desse casamento.

            Um desses casos de ‘casamento ilegal’ é o chamado ‘casamento de conveniência’, ou casamento contraído com o único objectivo de proporcionar a um dos seus outorgantes – porque estrangeiro – uma vantagem ilegal, como seja, p. ex., a obtenção de uma autorização de residência ou de obter um visto de residência em Portugal…, conduta esta que se enquadra num tipo legal de crime, conforme artº 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4/07 (Aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional).

            Ora, é manifesto que o caso que temos em apreciação reflete precisamente o único propósito, pelos RR., de ser celebrado um casamento de conveniência, precisamente porque a Ré havia sido alvo de uma decisão de expulsão do país, decretada pelo SEF, pretendendo-se, dessa forma, que a Ré pudesse obter a revogação dessa mesma decisão e obter uma autorização de residência em Portugal.

            Donde terem os RR. sido já condenados pela prática do crime de casamento por conveniência, p.p. no artº 186º, nº 1 da Lei nº 23/2007, de 4/07.

            Como os Prof.s Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira escrevem, em ‘Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª edição, pgs. 278, ‘simulam-se casamentos para adquirir uma nacionalidade estrangeira, para obter uma autorização de residência ou de trabalho em país estrangeiro e, assim, evitar uma expatriação, para adquirir uma situação vantajosa decorrente do estado de cônjuge ou até para contornar uma disposição legal. Decerto que qualquer destes motivos pode determinar as pessoas a casar e os motivos dos contraentes são irrelevantes, no casamento como nos negócios jurídicos em geral. Se embora determinados por um destes motivos os nubentes têm disposição de fazer e fazem realmente vida em comum, não há simulação e o casamento é válido. Mas se apenas pretendem prosseguir o fim visado e recusam a ‘comunhão de vida’ que constitui a essência do casamento, este é simulado: a declaração que prestam perante o conservador do registo civil de que querem casar um com o outro não corresponde à sua vontade real”.

“A solução da validade do casamento simulado era a tradicional,mas veio a prevalecer na doutrina a orientação contrária  e foi esta que o Código consagrou, com boas razões, no artº 1635º, al. d).”.

Donde resulta, pois, que estando provada a simulação do casamento havido entre os RR., o qual não foi mais do que um casamento dito por conveniência, para assim poderem lograr evitar a expulsão da Ré do país, já que esta é de nacionalidade brasileira (ver fls. 62 a 67), sem que jamais tenham assumido a condição de casados um com o outro, impõe-se a declaração de anulabilidade desse casamento, como foi pedido pelo M.º P.º e como foi decidido na sentença recorrida, o que importa, pois, confirmar e se decide.

Neste sentido, entre outros, veja-se o Ac. Rel. de Lisboa de 29/04/1993, Proc.º nº 0070212, onde também se escreve:

“A questão fundamental suscitada no recurso consiste na interpretação da expressão "casamento simulado".

Para determinar o sentido dessa expressão, dever-se-á recorrer, como o fez a sentença, ao conceito expresso no art. 240, n. 1 do Código Civil, nos termos do qual "se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado".

E na verdade o art. 1577 do Código Civil define o casamento como o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida.

É portanto um contrato, mas um contrato sui generis em que para a sua celebração é essencial que "cada um dos cônjuges queira a plena comunhão de vida com o outro como meio de constituir a família" - cfr. Direito de Família, pag. 169, do Prof. Antunes Varela.

Ora, como refere o Prof. Varela, obr. citada, pag. 17, a interpretação da lei, "obriga a uma permanente reconstituição histórico-racional do conflito de interesses"... " subjacentes a cada norma, à inventariação das várias soluções teoricamente possíveis desse conflito e à descoberta das razões determinantes da opção real ou presuntivamente feita na lei".
... "Só através do constante processo dialéctico que a interpretação envolve entre a lei e a vida ... se torna possível a determinação do elemento capital da interpretação, que é a chamada ratio legis".

A relevância da simulação como fundamento de anulação do casamento começou por não ser considerada admissível em razão da certeza e estabilidade do vínculo matrimonial, alicerçada numa relação orgânica destinada à tutela do interesse familiar, ao qual se deviam subordinar os interesses individuais das partes.

Porém, com o advento da guerra de 1939-45 surgiram situações de tal forma críticas que muitas pessoas se serviram, como expediente, do casamento, para se livrarem dos perigos a que se achavam expostas ou para fugirem a providências ou perseguições, institucionalizadas pelos beligerantes, que os ameaçavam (caso de internamentos ou trabalho obrigatório).

E, então, a jurisprudência e a doutrina, perante tais situações de manifesto estado de necessidade, passaram a admitir que nestes casos o casamento era nulo por falta de consentimento em que o intuito simulatório era indubilitável.

Daqui resultou uma orientação generalizada oposta áquela da irrelevância da simulação no casamento.

Tal orientação encontra-se consagrada no art. 1635, d) do Código Civil.

Considerando, assim, a razão de ser da lei, o sentido da expressão "casamento simulado" não pode ser outro que não seja aquele em que há falta absoluta de consenso, em que a vontade dos cônjuges não se dirigia à criação do vínculo matrimonial, com os correspondentes direitos e obrigações.

Ou, como refere o Prof. Varela, obr. citada, pag. 257, "a simulação no casamento consiste especialmente no acordo das partes em se não sujeitarem às obrigações e não exercitarem os direitos que, essencialmente, decorrem do matrimónio".

Por conseguinte, deste conceito que se perfilha de "casamento simulado", não é elemento essencial o intuito de enganar terceiros.”.

Pelo que improcede o presente recurso, impondo-se a confirmação da sentença recorrida, o que se decide.


VII

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

            Custas pelos Recorrentes.

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em 01/03/21016

Relator: Des. Jaime Carlos Ferreira

Adjuntos: Des. Jorge Arcanjo

                   Des. Manuel Capelo