Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/12.6JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: AUTO-INCRIMINAÇÃO DO ARGUIDO
GARANTIA
PROVAS
PRINCÍPIO DA DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL
RECURSO
NULIDADE SANÁVEL
Data do Acordão: 10/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR (3.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 61.º, N.º 1, ALÍNEA D), 343.º, N.º 1, 125.º, 127.º, 340.º, 120.º, N.ºS 2, ALÍNEA D), E 3, ALÍNEA A), TODOS DO CPP
Sumário: I - A garantia do arguido contra a sua auto-incriminação não impossibilita que o mesmo colabore, de modo livre, na aquisição da prova.

II - O exercício do poder de apreciação do condicionalismo legal inscrito no n.º 1 do artigo 340.º do CPP, isto é, o juízo de necessidade ou desnecessidade de prova requerida é insindicável por via de recurso directo; dito de outro modo, a nulidade prevista no último segmento da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do referido diploma, consubstanciada na omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade - a arguir nos termos do alínea a) do n.º 3 do mesmo artigo -, constituirá o substrato fundamentador da impugnação recursória.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:     


                                                                                                                                       I. Relatório:                                                                                                                         A) No âmbito do processo comum (tribunal colectivo com júri) n.º 144/12.6JALRA que corre termos no Tribunal Judicial de Tomar, 3º Juízo, foi proferido acórdão, em 4/3/2013, cujo DISPOSITIVO é o seguinte:
“4. DECISÃO:
4.1 Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação procedente, porque provada, e, em consequência, decide:
a) Condenar o arguido A... como autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e j), ambos do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;
b) Condenar o arguido A... como autoria material e na forma consumada de um crime de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão;
c) Condenar o arguido A..., operando o cúmulo jurídico das penas supra impostas, na pena única de 20 (vinte) anos de prisão; e,
d) Condenar o arguido A... a pagar seis U.C.’s de taxa de justiça e as custas do processo.
4.2. Mais se decide ordenar que a secção proceda à notificação prevista no art.º 186.º, do Código de Processo Penal, com a respectiva cominação.
4.3. O Tribunal julga ainda o pedido cível totalmente procedente e, em consequência, decide:
a) Condenar o demandado A... a pagar aos demandantes E... e mulher, F... , a indemnização total de € 110.000 (cento e dez mil euros); e,
b) Condenar o demandado a suportar as custas cíveis.
4.4. Por ora, o arguido A... recolherá ao Estabelecimento Prisional, continuando a aguardar o trânsito em julgado da presente decisão em prisão preventiva, visto que subsistem e saíram reforçados com o julgamento os pressupostos de facto e de direito da medida imposta, não se mostrando ultrapassados os limites temporais.
4.5. Após trânsito em julgado, remeta boletim para efeitos de registo criminal e comunique com cópia à DGRSP.
4.6. Cumpra o disposto no art.º 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
4.7. Notifique.

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B) Inconformado com a decisão, apenas no que diz respeito ao crime de furto em causa nos autos, dela recorreu, em 25/3/2013, o Ministério Público, defendendo a sua substituição por outra que o condene pela prática do referido ilícito, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. No dia 24/04/2012, cerca das 12H50, o arguido, A..., encontrou-se com a vítima, G..., atraindo este “…para uma zona situada junto do armazém da sociedade comercial denominada x..., em Tomar, em terra batida, zona escolhida pelo arguido por saber que se tratava de um local isolado e ermo, sendo que àquela hora todos os trabalhadores estariam ausentes a almoçarem.”
2. Procurou razões até se envolver e empurrá-lo, fazendo-o cair para o fundo de uma ribanceira, onde, apertando-lhe o pescoço com as mãos, o matou por asfixia
3. De seguida, “retirou dos bolsos das calças que o G... vestia as chaves do veículo do mesmo e dois telemóveis a este pertencentes, de marca NOKIA, com os números operativos (...) e (...), e guardou-os consigo, assim os fazendo seus, com intenção de os vir a utilizar para contactar os familiares do G..., simulando que o mesmo estava vivo”.
4. Agiu com intuito concretizado de se apoderar das chaves do veículo do mesmo e dois telemóveis, como quis, sabendo que tais objectos lhe não pertenciam e agia contra a vontade do dono.
5. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
6. Não pode cindir-se esta matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, como melhor resulta dos pontos 2.1.11, 2.1.15, 2.1.33, 2.1.37, 2.1.54, 2.1.80, 2.1.81, 2.1.82 – no atinente à imputada prática do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
7. Existe queixa apresentada por E..., pai da vítima, manifestando o desejo de procedimento criminal contra o arguido pelo furto dos telemóveis, como consta no requerimento de fls. 539 dos autos que deu entrada neste tribunal de Tomar e Serviços do M.º P.º no dia 09/10/2012.
8. Direito de queixa que foi exercido tempestivamente e pelo respectivo titular – artigos 113.º e 115.º, ambos do Código Penal.
9. Ao contrário do decidido e porque tempestivamente exercido o direito de queixa pelo respectivo titular, assiste ao M.º P.º inteira legitimidade para exercer acção penal e acusar, como acusou, o arguido.
10. Ao não entender assim, considerando não existir queixa, violou o tribunal a quo o disposto pelos artigos 113.º e 115.º, ambos do Código Penal, e ainda o disposto pelo artigo 49.º, do Código de Processo Penal.
11. Pelo exposto, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que, face aos elementos de prova juntos aos autos e considerando a legitimidade do M.º P.º, julgue a acusação procedente, por provada, e condene o arguido, A..., além dos restantes crimes, também pela prática do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código penal, nos autos em epígrafe identificados.
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C) Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 1/4/2013, o arguido, defendendo a sua substituição por outra que o absolva, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida enferma do vício de insuficiência de matéria de facto para a decisão, nos termos do art. 410º, nº 2, al. a), do CPP, visto que a mesma ao assentar numa mera indeterminação, não apresenta factos que sustentem os elementos subjectivos do ilícito como a intenção de matar, ou circunstâncias qualificativas, como a premeditação e motivo fútil.
            2. A decisão recorrida enferma do vício de erro notório (inexistência) na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, al. c), do CPP, visto que não considerou prova necessária e não efectuada para a descoberta da verdade, considerou prova contaminada ou violadora do princípio de privilégio à não auto-incriminação, desconsiderou as máximas da experiência comum, da lógica e da ciência, deu como provados factos assente sem sustentáculo probatório algum ou com deficiente valoração.
            3. Ao dar como provados os concretos pontos de facto elencados em IV.1 a IV.17, o Tribunal errou, visto que assentou o seu juízo decisório em presunções contrárias às regras da experiência comum e sem sustentáculo probatório algum, bem como a concretas provas que impunham decisão diversa de recorrida, devendo os mesmos ser dados como não provados.
            4. Ao valorar prova violadora do princípio do privilégio à não auto-incriminação, o Tribunal violou os art.s, entre outros, 32º, n.ºs 1 e 8 da CRP, 60º, 61º, al. d), e) e f), 126º, 150º, 356º, nº 7, do Código do Processo Penal.
            5. Ao não ordenar a realização de diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, o Tribunal violou o art. 340º, nº 1, do Código do Processo Penal.
            6. Ao suscitarem-se dúvidas razoáveis no julgador sobre a factualidade constante da acusação, o Tribunal ao decidir em desfavor do arguido questões como o móbil, modo de cometimento, as alegadas agressões, a premeditação e as combinações, violou o princípio do in dubio pro reo.
            7. Ao decidir ao arrepio das regras da experiência comum, o Tribunal violou os art.s 127º e 355º, do Código do Processo Penal, bem como, em consequência, os art.s 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al.s e) e j), e 254.º, n.º1, al. a), do Código Penal.
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D) Os dois recursos foram, em 2/4/2013, admitidos, conforme fls. 980 e 981.
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            E) O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 3/5/2013, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, defendendo a sua improcedência, e apresentando as seguintes conclusões:
1. No dia 24/04/2012, cerca das 12H50, o arguido, A..., encontrou-se com a vítima, G..., atraindo este “ … para uma zona situada junto do armazém da sociedade comercial denominada “ x... “em Tomar, em terra batida, zona escolhida pelo arguido por saber que se tratava de um local isolado e ermo, sendo que àquela hora todos os trabalhadores   estariam  ausentes  a  almoçarem.”
2. Aí, depois de lhe provocar a morte por asfixia, “ retirou dos bolsos das calças que o G... vestia as chaves do veículo do mesmo e dois telemóveis a este pertencentes, de marca “NOKIA “com os números operativos (...) e (...), e guardou-os consigo, assim os fazendo seus, com intenção de os vir a utilizar para contactar os familiares do G..., simulando que o mesmo estava vivo.
3. Ao contrário do afirmado pelo recorrente, a decisão recorrida não enferma do vício  de  insuficiência  da  matéria  de  facto  para  a  decisão, nos termos   do  art.º  410.º , n.º  2  , al. a)  do  CPP  , visto  que  a  mesma  não   assenta em  qualquer  indeterminação  ,  apresenta  factos  que  sustentam  os  elementos   subjetivos  do  ilícito , mormente  quanto  à  intenção  de  matar  e às  circunstâncias  qualificativas,   premeditação  e  motivo  fútil.
4. A decisão recorrida não enferma de erro notório na apreciação da prova, nos  termos  do  art.º  410  .º, n.º 2 ,   al. c)  , do  CPP , pois  considerou toda  a  prova  necessária  para  a   descoberta   da   verdade  e   sem  qualquer   violação   do  princípio  de  privilégio  à  não   auto  incriminação.
5. Da mesma forma que se balizou e fez correta aplicação das regras da experiência comum, da lógica e da ciência, dando como  provados  os  factos  em  inteira   coerência  e  sem  qualquer deficiente  valoração ,  mormente   quanto  aos   concretos  pontos  de  facto  elencados pelo   recorrente   em   IV.1  a  IV.17.       
6. Não se apura qualquer violação do princípio de privilégio à não auto  incriminação,  com  inteira  observância  do    disposto  pelos    art.ºs   32.º  , n.º s   1  e  8  ,  da   CRP ;  60 .º  61.º   , als. d) e  f) ; 126 ,  150.º  , 356.º  , n.º  7  ,  do  CPP .
 7. Ao contrário do afirmado pelo  recorrente, não  foram   omitidas   pelo  julgador   quaisquer  diligências  de   prova  essenciais à  descoberta  da   verdade, mormente a  reconstituição , perante a  nova versão dos  factos  que  apresentou  em  julgamento.
 8. Sendo certo que esta já constava no manuscrito que redigiu no estabelecimento  prisional , cfr. factos  dados  como  provados 2.1.62 a 2.1.65,  que   entregou  à  testemunha ,H... ,  a  qual   não  cumprindo  o solicitada, entrega  ao  amigo, I..., acabou por permitir  a  apreensão pela Polícia Judiciária.
9. Sem qualquer violação do disposto pelo art.º 340.º, n.º 1, do CPP.
10. As conjeturas lançadas pelo recorrente carecem de qualquer sentido ou  fundamento  para  as alegadas  dúvidas   razoáveis   sobre  a   factualidade   constante   da acusação.
11. Caindo pela base a alegada violação do princípio “in dubio pro reo”,ao  dar   como  provado o móbil ; modo de cometimento,  as  alegadas   agressões ,  a  premeditação  e as combinações.
12. Não se verifica qualquer violação dos art.º s 127.º e 355.º do CPP , bem  como   em   consequência  os  art.º  s  131.º  ; 132.º, n. º s  1  e  2  als. e) e  j)   e   254.º  , n.º 1    al.  a),  do  C. Penal,  por  falta de   criteriosa   aplicação  das   regras  da   experiência  comum.
13. O grau de culpa do arguido é muito elevado e as exigências dprevenção, quer   geral  quer  especial , são candentes.
14. Pelo exposto e perante a gravidade dos factos e da culpa do agente, bem andou o tribunal ao condenar o arguido, como autor material , pela  prática de:
- um crime de homicídio  qualificado  ,  p.  e  p.  pelo art.º s  131.º   e  132 ,  n.º  2 , als. e )  e j)   do Código Penal , na  pena de  19 ( dezanove ) anos   de   prisão  ,
- um crime de profanação   de  cadáver,  p.  e  p.  pelo art.º s  254.º ,  n.º 1  , al. a)   do Código Penal , na  pena de  18 (dezoito)  meses  de   prisão;
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 20 ( vinte ) anos  de  prisão  efectiva.
15. Que se mostra bem doseada e equilibrada.
16. Sendo certo que o M.º P.º também recorreu e pugna pela procedência das  acusações nos  termos da motivação a que  deu  oportuna entrada, igualmente e por  maioria  de razão  pugna  pela negação de provimento do recurso  e confirmação o acórdão recorrido na  parte  condenatória  supra  exposta.
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F) Já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 17/6/2013, douto parecer, no qual acompanhou, por um lado, o recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª instância, e, por outro lado, considerou que deve ser improcedente o recurso trazido aos autos pelo arguido.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo o arguido, em 23/6/2013, exercido o direito de resposta.
Colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.
O arguido/recorrente encontra-se em prisão preventiva, à ordem destes autos, desde 29 de Abril de 2012, conforme fls. 21, 22, 1113, 1114 e 1118.
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II. Decisão Recorrida:
            “1. RELATÓRIO.
1.1. Em processo comum com intervenção do Tribunal do Júri e com base em factos arrolados a fls. 555 a 570, que se dão aqui por integralmente reproduzidos, a Digna Magistrada do Ministério Público acusou o arguido A..., filho de B... e de C... , natural da freguesia e concelho de Entroncamento, nascido a 7 de Novembro de 1968, divorciado, encarregado de venda, residente na (...), Tomar, presentemente preso preventivamente à ordem destes autos no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria, imputando-lhe a autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de:
- Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e j), ambos do Código Penal;
- Um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; e de,
- Um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal.
1.2. E... e mulher, F..., residentes na Rua (...), em Tomar, vieram a fls. 625 deduzir pedido cível contra o arguido A....
Em síntese, referiram que são os pais do falecido G..., o qual era solteiro e não tinha descendentes. O G... tinha um óptimo relacionamento com os pais, que dependiam daquele, tendo estes sofrido um enorme desgosto, desespero e dor com a morte do filho. Os demandantes nasceram em 29/12/1930 e 28/2/1932 e vivem na aldeia de (...), a cerca de 10 quilómetros da cidade de Tomar, onde praticamente não existem transportes públicos, centro de saúde ou sequer um supermercado. Os demandantes padecem de diversos problemas de saúde e carecem de acompanhamento médico periódico. O falecido G... conduzia os pais às compras ou realizava as compras para estes, levava-os às consultas médicas a Coimbra e Lisboa e nas deslocações de lazer. Os demandantes não velaram o corpo do filho. O G... nasceu no dia 12/12/1968 e era uma pessoa considerada por todos na terra onde vivia. Sofreu dores aquando da agressão pelo arguido. Os demandantes tiveram em 2011 um rendimento de € 11.237,72. O arguido tinha uma situação financeira estável.
Peticionaram o pagamento do montante global de € 110.000, sendo € 50.000 pela perda do direito à vida e € 10.000 pelos danos não patrimoniais do seu filho e € 25.000 a cada um dos demandantes pelos danos morais sofridos, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
1.3. O arguido apresentou a contestação de fls. 651, oferecendo o merecimento dos autos e arrolando testemunhas.
1.4. A questão prévia da ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal quanto ao crime de furto simples.
Como se aludiu, a acusação pública imputa ao arguido, entre outros, a prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal.
Este ilícito reveste natureza semi-pública na medida em que depende de queixa (vd. n.º 3 do citado artigo). De acordo com o disposto no art.º 113.º, n.º 1, do Código Penal, tinha legitimidade para apresentar queixa o proprietário dos bens subtraídos, isto é a herança de G... (o qual acabara de falecer às mãos do arguido imediatamente antes da subtracção), representada pelos seus herdeiros.
Não haverá lugar à transmissão do direito de queixa nos termos previstos no n.º 2, desse art.º 113.º, porque o G... terá falecido imediatamente antes da subtracção dos bens, pelo que nunca pode exercer qualquer direito de queixa.
A queixa não está sujeita a qualquer tipo de formalismo, mas tem que constar dos autos (quod non est in actiis non est in mundo). É igualmente necessário que haja uma qualquer manifestação de vontade expressa, clara e inequívoca por parte do titular do direito no sentido de ser desencadeado o procedimento criminal contra outrem (vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, ano V, tomo II, pág.216).
No caso dos autos, este Tribunal entende que tal não sucedeu. Apesar de se reconhecer ao pai da vítima ( E...) legitimidade para tal acto – enquanto herdeiro de seu filho – nota-se que nunca expressou a vontade de desencadear o procedimento quanto à subtracção de bens do seu filho. No momento em que o E... foi ouvido apenas estava em causa o desaparecimento do seu filho, suspeitando-se de um eventual sequestro. A manifestação de procedimento criminal refere-se apenas a tal crime e circunstância, como é natural – cfr. fls. 31 a 34. A notícia da subtracção de bens da vítima apenas surge no decorrer do inquérito e o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação não foi informado e questionado sobre a vontade de exercer a queixa quanto a tais factos.
Temos, assim, que nos presentes autos inexiste qualquer manifestação de vontade expressa, clara e inequívoca no sentido de ser desencadeado o procedimento criminal, isto é queixa quanto à subtracção de objectos, pelo que o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal quanto ao crime de furto simples.
Termos em que se declara a ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal e, em consequência, se determina a extinção do procedimento criminal movido ao arguido A... quanto a tal crime de furto simples.
1.5. Não há outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
1.6. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo.
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2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
2.1. Julga-se provada a seguinte factualidade:
2.1.1. O G... e o arguido A... mantinham uma relação de grande amizade desde há cerca de 22 anos.
2.1.2. O arguido A... foi recebido e viveu num anexo da casa de habitação da família de G... durante cerca de 2 anos, antes de se casar.
2.1.3. G... emprestou ao arguido A... uma quantia pecuniária não concretamente apurada.
2.1.4. Pelo menos desde o início do ano de 2012, G... instou o arguido A... a devolver-lhe a quantia que lhe emprestara.
2.1.5. O arguido A... decidiu matar o G... porque este insistiu no pagamento dessa quantia e este não podia, nem queria, devolver tal quantia.
2.1.6. Na concretização desse propósito, o arguido decidiu atrair o G... para um local ermo e isolado, a fim de aí o matar, por asfixia.
2.1.7. Na sequência e em execução do plano que gizou, na manhã do dia 23 de Abril de 2012 o arguido contactou G..., pedindo-lhe que se encontrasse consigo no dia seguinte, à hora do almoço, sob o pretexto de conversarem um com o outro.
2.1.8. G... concordou em encontrar-se com o arguido no dia 24 de Abril de 2012, junto às instalações da sociedade comercial denominada “ (...)”, sitas na Zona Industrial de Tomar.
2.1.9. Por esse motivo, no dia 24 de Abril de 2012, pelas 7 horas e 25 minutos, G... informou o seu chefe de trabalho, AA... , de que provavelmente teria de se ausentar do serviço à hora de almoço, alegando que iria acompanhar o seu pai a uma consulta médica.
2.1.10. Naquele mesmo dia 24 de Abril de 2012, pelas 12 horas e 30 minutos, no seu local de trabalho, sito em Tomar, G... encontrou AA... e disse-lhe que iria acompanhar o pai a uma consulta médica, após o que saiu, deixando a sua bancada de trabalho por arrumar, as suas gavetas pessoais abertas, a máquina com que trabalhava ligada e diversos registos por preencher, porquanto ainda iria voltar na parte da tarde para retomar o seu trabalho.
2.1.11. Na sequência do acordado entre ambos, no dia 24 de Abril de 2012, pelas 12 horas e 50 minutos, o arguido e G... encontraram-se junto das instalações da sociedade comercial denominada “ (...)”, as quais distam cerca de 400 metros das instalações da firma “ x...” onde aquele trabalha.
2.1.12. O arguido fez-se transportar no seu veículo automóvel com matrícula Y..., de marca comercial Opel, modelo Astra, e G... fez-se transportar no respectivo veículo automóvel com matrícula K....
2.1.13. Nos bolsos das calças que vestia naquela ocasião, o arguido escondeu um par de luvas, em lã, com palma em borracha, de cor azul e cinza, que levou consigo com o intuito de as calçar, para melhor concretizar o seu propósito de estrangular G..., e, desse modo, matá-lo.
2.1.14. Quando chegou às instalações da (...), a vítima G... estacionou o seu veículo automóvel, após o que entrou no interior do veículo automóvel conduzido pelo arguido, que já ali se encontrava.
2.1.15. De modo e com um pretexto não apurado, o arguido A... convenceu o G... a acompanhá-lo, no veículo daquele, para uma zona situada junto do armazém da sociedade comercial denominada “ x...”, em Tomar, em terra batida, zona escolhida pelo arguido por saber que se tratava de um local isolado e ermo, sendo que àquela hora todos os trabalhadores estariam ausentes a almoçarem.
2.1.16. Chegados à área próxima da “ x...” o arguido imobilizou o veículo que conduzia.
2.1.17. Em seguida, o arguido e G... saíram do interior do veículo automóvel com matrícula Y....
2.1.18. A dada a altura, o arguido iniciou uma agressão física ao G....
2.1.19. No desenrolar desse confronto físico, o arguido empurrou G... na direcção de uma ribanceira existente naquele local, pelo que G... caiu no fundo dessa ribanceira.
2.1.20. O arguido A... foi no encalço de G... e, no fundo da referida ribanceira, continuando aquele a sua agressão e este tentou defender-se, pelo que o arguido sofreu escoriações na zona da boca, do lábio e no lado esquerdo da face, hematomas e escoriações no pescoço e na zona do tórax, escoriações na palma e no dorso das duas mãos, hematomas no braço direito, escoriações na perna direita e hemorragia subconjuntival da metade lateral do globo ocular direito.
2.1.21. Também G... sofreu, em consequência directa e necessária das agressões físicas que lhe foram infligidas pelo arguido, ferimentos e lesões físicas não concretamente apuradas, mas que sangraram.
2.1.22. Por esse motivo, e devido à luta que mantiveram, as calças de ganga que o arguido vestia naquela ocasião ficaram manchadas com sangue de G....
2.1.23. A dado momento, o arguido logrou deitar G... no solo, ficando este com as costas encostadas no chão, após o que o arguido se sentou sobre G..., conseguindo, assim, imobilizá-lo.
2.1.24. Em seguida, o arguido, sempre movido pelo propósito de matar G..., colocou as suas duas mãos em redor do pescoço deste e apertou-o com força, pretendendo asfixiá-lo.
2.1.25. Contudo, G... logrou retirar as mãos do arguido do seu pescoço e conseguiu virar-se, ficando deitado com a zona do abdómen no chão.
2.1.26. No decurso dessa luta, o arguido conseguiu sentar-se sobre as costas de G... e, desse modo, imobilizá-lo mais uma vez.
2.1.27. Tendo assim logrado manietar G..., o arguido colocou as suas duas mãos em redor do pescoço do mesmo, apertando-o com força.
2.1.28. O arguido manteve as suas duas mãos em volta do pescoço de G..., apertando-o com força durante algum tempo, até se aperceber que este tinha desfalecido e estava inanimado, não esboçando qualquer reacção.
2.1.29. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido, G... entrou em asfixia por estrangulamento e morreu.
2.1.30. Só quando se certificou que já tinha causado a morte a G..., porquanto este já não respirava, nem mostrava quaisquer sinais vitais, o arguido retirou as suas mãos do pescoço do mesmo.
2.1.31. Depois de se ter assegurado de que tinha tirado a vida a G..., o arguido arrastou o cadáver do mesmo até perto de uns arbustos, onde o escondeu, após o que abandonou o local descrito, fazendo-se transportar no seu veículo automóvel, ali deixando o corpo de G..., propondo-se deslocar-se posteriormente àquele local, a fim de recolher o cadáver da vítima, para depois se desfazer dele.
2.1.32. Em consequência dos factos acima descritos, as luvas que o arguido usava na ocasião ficaram manchadas com sangue de G....
2.1.33. Antes de abandonar o local, o arguido retirou dos bolsos das calças que G... vestia as chaves do veículo do mesmo e dois telemóveis a este pertencentes, de marca Nokia, com os números operativos (...) e (...), e guardou-os consigo, assim os fazendo seus, com a intenção de os vir a utilizar para contactar os familiares de G..., simulando que o mesmo estava vivo.
2.1.34. Na posse dos telemóveis do G..., a partir da tarde do dia 24/4  também no dia 25/4, o arguido A... digitou e enviou mensagens telefónicas (SMS) para a namorada e um amigo daquele como se fosse o próprio G... quem enviava tais mensagens.
2.1.35. Não querendo ser responsabilizado pela morte de G..., o arguido decidiu obstar a que tal morte fosse conhecida por terceiros.
2.1.36. Em concretização desse seu propósito, e ainda no dia 24 de Abril de 2012, depois de ter tirado a vida a G..., o arguido dirigiu-se para sua casa, sita na (...) Tomar, onde despiu as roupas que vestia, após o que se dirigiu para o seu local de trabalho, a fim de despistar qualquer suspeita da sua responsabilidade na morte de G..., caso a mesma viesse a ser conhecida.
2.1.37. No dia seguinte, 25 de Abril de 2012, pela manhã, o arguido escondeu um dos telemóveis que retirara a G... no interior de um depósito de recolha de lixo-papelão, situado na Rua (...), em Tomar.
2.1.38. Pela hora de almoço daquele mesmo dia 25 de Abril de 2012, o arguido regressou ao local onde havia abandonado o cadáver de G..., a fim de o recolher e, posteriormente, escondê-lo, a fim de se desfazer do mesmo, como previamente planeara.
2.1.39. Nessa ocasião, o arguido fez-se transportar, uma vez mais, no veículo com matrícula Y....
2.1.40. Ali chegado, o arguido aproximou-se do cadáver de G..., pegou no mesmo, colocou-o sobre os seus ombros e transportou-o para junto do seu veículo automóvel, onde envolveu o cadáver de G... num lençol, para assim dissimular o cadáver da vítima.
2.1.41. Depois de ter coberto o cadáver de G... no dito lençol, o arguido colocou-o no interior da bagageira do seu veículo automóvel, ali o escondendo.
2.1.42. Em seguida, o arguido iniciou a marcha do seu veículo automóvel e dirigiu- se até local desconhecido, transportando na bagageira da viatura o cadáver de G....
2.1.43. O arguido A... escondeu o cadáver de G... em local não concretamente apurado, de forma a não ser descoberto.
2.1.44. O cadáver de G... não foi descoberto até hoje, sendo certo que o arguido A... é conhecedor do local onde se encontra escondido.
2.1.45. No dia 26 de Abril de 2012, pelas 8 horas e 25 minutos, o arguido telefonou para o chefe de escritório da sua entidade empregadora, R..., dizendo-lhe tinha um assunto e problemas a resolver e não ia trabalhar naquele dia, não fornecendo quaisquer outras explicações para a sua ausência ao serviço.
2.1.46. Em seguida, pelas 8 horas e 30 minutos, o arguido dirigiu-se para a casa da sua mãe, C..., sita em Tomar, levando consigo uma mala de viagem, de cor preta.
2.1.47. No dia 26 de Abril de 2012, pelas 9 horas e 15 minutos, o arguido contactou telefonicamente o seu colega de trabalho, V.., pedindo-lhe que fosse buscar um telemóvel que deixara na prateleira do local de trabalho de ambos e o deitasse fora, em Tomar, o que V.., por estranhar tal pedido e ter recebido instruções em contrário dos seus superiores hierárquicos, não o fez.
2.1.48. Nesse mesmo dia 26 de Abril de 2012, pelas 10 horas, D..., esposa do arguido, contactou telefonicamente o referido R..., questionando-o sobre se o arguido tinha ido trabalhar, referindo estar preocupada, dado que não tinha notícias do marido desde que o mesmo tinha saído de casa, pelas 8 horas daquele dia.
2.1.49. Também no dia 26 de Abril de 2012, pouco depois das 10 horas, o arguido telefonou à sua esposa, D..., a partir de uma cabine telefónica situada no Entroncamento, com o número (...) e despediu-se daquela, dizendo- lhe que tratasse da sua vida, que não se esquecesse de tratar da declaração de IRS e que ele (o arguido) iria tratar da vida dele.
2.1.50. Ainda no dia 26 de Abril de 2012, pelas 14 horas, o arguido dirigiu-se à residência do seu tio BB..., situada no Entroncamento, com quem não falava há vários meses, dizendo-lhe que estava envolvido em problemas, uma vez que estava implicado no que acontecera a um seu amigo de nome G....
2.1.51. Nessa ocasião, o arguido disse ao seu tio BB... que, devido ao seu envolvimento no desaparecimento de G..., estava receoso da actuação da Polícia, rejeitando, contudo, a ajuda que BB... lhe ofereceu no sentido de ambos se dirigirem à Polícia e esclarecer a situação.
2.1.52. O arguido pediu a BB... que telefonasse para a sua mãe, C..., para que esta o fosse buscar.
2.1.53. Na sequência de tal telefonema, C... dirigiu-se à casa de BB..., a fim de ir buscar o arguido, regressando, depois, os dois para a casa da mesma, sita em Tomar.
2.1.54. Naquele mesmo dia 26 de Abril de 2012, o telemóvel com o número operativo (...), que o arguido subtraiu a G... foi encontrado pela Polícia Judiciária num depósito de recolha de lixo-papelão, situado na Rua (...), em Tomar, onde o arguido o deitara.
2.1.55. No dia 27 de Abril de 2012, no decurso de uma busca domiciliária efectuada no interior da residência do arguido, sita na (...), em Tomar, foram encontradas e apreendidas as peças de vestuário que o arguido vestiu nos dias 24 e 25 de Abril de 2012, as sapatilhas que o mesmo calçava no dia 25 de Abril de 2012 e a toalha que o mesmo usou para limpar essas sapatilhas.
2.1.56. No dia 27 de Abril de 2012, no decurso de uma busca domiciliária realizada no interior da casa da mãe do arguido, sita na Rua (...), em Tomar, foi encontrado o manuscrito constante de fls. 124 a 135 da autoria do arguido, e, no mesmo dia, no interior da casa da uma irmã do arguido, já falecida, sita em Tomar, foi encontrada uma mala de viagem, de cor preta, pertencente ao arguido, em cujo interior o mesmo tinha já guardado bens de primeira necessidade, designadamente, roupa, calçado e artigos de higiene pessoal, porquanto planeava ausentar-se para local desconhecido e, assim, eximir-se à actuação da Justiça.
2.1.57. No dia 28 de Abril de 2012, na cidade de Tomar, o arguido solicitou a presença da polícia, tendo sido conduzido à Esquadra de Tomar da P.S.P..
2.1.58. As luvas que o arguido usou nos termos acima descritos, foram encontradas e apreendidas pela Polícia Judiciária no dia 28 de Abril de 2012, no espaço onde o arguido guardava os seus pertencentes, no balneário do seu local de trabalho, sito em Tomar, onde o arguido as deixara.
2.1.59. Sujeitas a exame pericial, na luva da mão esquerda usada pelo arguido foi encontrada a presença de sangue e material biológico pertencente a G....
2.1.60. Também na forra que serve de protecção da bagageira do veículo com matrícula Y..., onde o arguido escondeu e transportou o cadáver de G..., foi detectada a presença de sangue e material biológico pertencente a G....
2.1.61. De igual modo, nas calças de ganga que o arguido vestia no dia 24 de Abril de 2012, dia em que matou G..., na luva da mão direita que utilizou conforme acima se descreveu e na toalha que o arguido usou para limpar as sapatilhas que usou no dia 25 de Abril de 2012, foi encontrada uma mistura de vestígios biológicos compatíveis com o perfil de ADN de G... e do arguido.
2.1.62. No dia de 2 de Maio de 2012, estando já preso preventivamente, o arguido manuscreveu a carta de que existe cópia a fls.315 e 316 dos autos, dirigida a um seu amigo de nome I..., pedindo-lhe que o ajudasse, dando-lhe instruções precisas e detalhadas para comprar um telemóvel que depois o mesmo deveria utilizar para telefonar aos pais de G....
2.1.63. Nessa carta, o arguido pede ao seu amigo I... que telefonasse aos pais de G..., falando com sotaque de Português do Brasil, a fim de se fazer passar por um Cidadão Brasileiro, e dizer “ele está aqui connosco”, para lhes fazer crer que G... estava vivo.
2.1.64. O arguido entregou a referida carta, no dia 2 de Maio de 2012, a H..., quando esta o foi visitar ao Estabelecimento Prisional, pedindo-lhe que entregasse tal carta ao seu amigo I....
2.1.65. Tal carta não chegou a ser entregue ao seu amigo I..., mas foi antes entregue à Polícia Judiciária, por razões estranhas à vontade do arguido.
2.1.66. A vítima G... mantinha com os seus pais, E... e F... uma relação de grande proximidade, telefonando-lhes diariamente, no período da tarde e, sempre que se ausentava ou se demorava, disso dava conhecimento aos respectivos progenitores.
2.1.67. G... contactava diariamente, pela hora de almoço, a sua namorada, LP...
2.1.68. No dia 24 de Abril de 2012 e ao contrário do que era habitual, G... não contactou os pais, nem a respectiva namorada, o que lhes causou estranheza, pelo que o seu progenitor decidiu denunciar às entidades policiais o desaparecimento do seu filho.
2.1.69. O arguido efectuou um disparo com uma arma de fogo nas instalações da firma ao final da tarde da sexta-feira que antecedeu o desaparecimento do G..., a qual foi trazida e levada pelo arguido quando terminou o dia de trabalho.
2.1.70. Ao agir do modo acima descrito, o arguido actuou sempre com o propósito concretizado de matar G....
2.1.71. O arguido sabia que ao colocar as suas duas mãos em volta do pescoço de G..., apertando-o com força até o mesmo entrar em asfixia, impedia G... de respirar e de pedir socorro e sabia que, desse modo, praticava factos adequados a provocar-lhe a morte, resultado que quis e logrou alcançar.
2.1.72. O arguido sabia ainda que com tal comportamento causava, como consequência directa e necessária, a morte por asfixia de G..., o que quis e conseguiu.
2.1.73. O arguido quis agir do modo descrito, como efectivamente agiu.
2.1.74. O arguido decidiu e planeou matar G..., pelo menos, 24 horas antes do momento em que efectivamente o matou, quando lhe pediu que se encontrasse consigo, planeando antecipadamente, com insensibilidade e indiferença, o local e a hora do encontro com G... e o modo como o iria matar, persistindo na resolução de tirar a vida à vítima.
2.1.75. Sabia também o arguido que atacando G... da forma descrita, num local ermo e isolado, tornava impossível a defesa por parte deste, quer pela surpresa do ataque, quer pela violência desse mesmo ataque e sabia que tornava impossível que a vítima fosse socorrida, o que quis.
2.1.76. Depois de ter tirado a vida a G..., o arguido quis ainda desfazer-se do cadáver do mesmo, ocultando-o, de modo a que o cadáver não fosse encontrado, nem fosse descoberto o crime que cometera.
2.1.77. Ao esconder o cadáver de G... em local não apurado, o arguido agiu com o propósito concretizado de impedir que fosse encontrado, o que bem sabia não estar autorizado a fazer.
2.1.78. Ao esconder e ao desfazer-se do cadáver de G... o arguido agiu com total insensibilidade, bem sabendo que ofendia o sentimento moral colectivo de respeito devido aos mortos, o que quis e logrou alcançar.
2.1.79. Agiu o arguido, ainda, com o propósito de, dessa forma, impedir a descoberta do cadáver pelas autoridades policiais e assim obstar à sua perseguição criminal, não obstante saber ter sido ele quem tinha causado a morte de G....
2.1.80. Ao retirar as chaves do veículo e os dois telemóveis pertencentes a G..., o arguido agiu com o intuito concretizado de se apoderar dos mesmos e fê-lo sempre sem autorização e contra a vontade do respectivo proprietário.
2.1.81. O arguido agiu bem sabendo que tais chaves e telemóveis não lhe pertenciam e, todavia, quis integrá-los na respectiva esfera patrimonial, o que conseguiu.
2.1.82. Ao agir do modo supra descrito, o arguido actuou, sempre, com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus descritos comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal.
2.1.83. A... é o elemento mais velho de uma fratria de três elementos.
O pai era empregado da Câmara Municipal de (...) e a mãe trabalhava como doméstica. Na perspectiva do arguido, o seu crescimento decorreu no seio de uma família instável e muito pouco afectuosa. O pai, descrito como pessoa pacífica e influenciável, com hábitos de bebidas alcoólicas acentuados, era facilmente provocado pela mãe e nestas circunstâncias, frequentemente, surgiam, desacatos no seio familiar.
2.1.84. Tanto o arguido como a sua cônjuge descrevem a progenitora como uma mulher e mãe hostil, fria, maltratante, controladora e dominadora, para com os elementos da família, mas também no seio do grupo religioso a que pertenceu e ao qual obrigou os restantes membros do agregado familiar a pertencer. Na descrição que o arguido faz do seu processo de desenvolvimento e acompanhamento educativo está patente a desvinculação, frieza e distanciamento afectivo que nutre pelos seus progenitores, cuja incidência recai, sobretudo sobre a figura materna, descrevendo-a de forma muito depreciativa, afirmando ter sido criado distanciado de afectos maternais e não se recordar de alguma vez a mãe lhe dar um beijo ou outro tipo de carinhos. Tal distanciamento afectivo foi progressivo e acentuou-se aos 16 anos de idade quando A..., contrariando os princípios religiosos da mãe, decidiu praticar desporto e inscrever-se no União de (...), onde foi jogador de futebol. Numa fase posterior habilitou-se com o curso de treinador, passou para o Clube Futebol (...), actividade que mantinha à data dos factos.
2.1.85. A... frequentou o ensino, com aproveitamento escolar, até ao 6º ano de escolaridade. No 7.º ano reprovou duas vezes e aos 15 anos abandonou a definitivamente a escola. As vivências escolares não são nem relembradas nem descritas de forma enfática, sendo também dada pouca relevância aos seus colegas de escola com quem parece nunca ter tido, relações de afecto e proximidade significativas. Precocemente ingressou no mundo laboral, inicialmente e durante um ano, como ajudante de estofador, passando posteriormente para uma serração e desta para uma fábrica de construção de placas de platex. Em 1991, com cerca de 23 anos de idade e a namorar a posterior cônjuge, ainda a integrar o agregado familiar paterno, decidiu emigrar para Inglaterra onde esteve a trabalhar três meses na indústria hoteleira. Após regresso a Portugal, reintegrou-se na indústria fabril e, mais tarde, ingressou numa empresa de madeiras, na qual trabalhava à data dos factos e onde desempenhava as funções de encarregado de armazém.
2.1.86. Viveu em casa do G... e foi desta casa e família que saiu para se casar e foram os pais de G... que o acompanharam a Igreja, assumindo o papel que em circunstâncias normais, teria sido exercido pelos seus próprios progenitores. O A... não participou o seu casamento aos pais. Os contactos entre o arguido e os seus progenitores somente tinha lugar quando o arguido estava com necessidade de dinheiro e apesar de residirem distanciados apenas a cerca de 8 Km, os pais nunca foram a casa do filho, nunca foram convidados por este e tão pouco promoveu e/ou consentiu a aproximação dos seus filhos aos avós paternos.
2.1.87. À data dos factos A... integrava o seu agregado familiar, constituído pela cônjuge, D... de 38 anos de idade, empregada do supermercado “ (...)” em (...) e os dois filhos do casal de 15 e 11 anos de idade. Habitavam moradia de construção recente, com boas condições de habitabilidade, tendo a habitação sido adquirida com recurso a crédito bancário.
2.1.88. Até à data da detenção a sobrevivência da família era assegurada pelo vencimento auferido por ambos os membros do casal, cerca de 1000 euros o arguido e 700 a sua cônjuge, o que perfazia cerca de 1700 euros mensais. Presentemente a família vive do ordenado da cônjuge do arguido, contando com a ajuda dos progenitores da mesma. Neste âmbito até à data da prisão de A..., D... julgava ter a sua situação financeira em ordem, sem dívidas especiais, referindo que até essa altura não eram percecionadas dificuldades na família.
Contudo, já no decorrer da prisão preventiva de A..., constatou a existência de ilegalidades na conta bancária e a existência de outros créditos avultados, que o marido terá contraído sem seu conhecimento.
2.1.89. A... e D... divorciaram-se no pretérito mês de Dezembro.
2.1.90. Nada consta do C.R.C. do arguido A... a fls. 207.
2.1.91. Os demandantes E... e mulher, F..., são os pais do falecido G..., o qual era solteiro e não tinha descendentes.
2.1.92. O G... tinha um óptimo relacionamento com os pais, que dependiam daquele, tendo estes sofrido um enorme desgosto, desespero e dor com a morte do filho.
2.1.93. Os demandantes nasceram em 29/12/1930 e 28/2/1932 e vivem na aldeia de (...), a cerca de 10 quilómetros da cidade de Tomar, onde praticamente não existem transportes públicos, centro de saúde ou sequer um supermercado.
2.1.94. Os demandantes padecem de diversos problemas de saúde e carecem de acompanhamento médico periódico. O falecido G... conduzia os pais às compras ou realizava as compras para estes, levava-os às consultas médicas a Coimbra e Lisboa e nas deslocações de lazer.
2.1.95. Os demandantes não velaram o corpo do filho.
2.1.96. O G... nasceu no dia 12/12/1968 e era uma pessoa considerada por todos na terra onde vivia.
2.1.97. O G... sofreu dores aquando da agressão pelo arguido.
2.1.98. Os demandantes tiveram em 2011 um rendimento de € 11.237,72.
*
2.2. Factos não provados.
Não se dão como provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão, designadamente que:
- O arguido A... e o G... foram abordados por indivíduos com sotaque do Brasil, que levaram o G... até à zona industrial ou que ameaçaram o arguido;
- Os elementos da Polícia Judiciária tenham agredido o arguido ou que qualquer dos ferimentos que o arguido apresentava após a sua detenção tenham resultado de qualquer agressão da polícia ou da realização de trabalhos de limpeza do quintal;
- O arguido tinha uma “situação financeira estável”;
- O arguido A... transportou o corpo do G... até à Nazaré; ou que,
- O arguido A... lançou o corpo do G... ao mar.
*
2.3. Motivação.
A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação livre, global e crítica dos seguintes meios de prova:
a) Nas declarações do demandante e assistente (relatou o desaparecimento de seu filho e as buscas infrutíferas que empreendeu, começando logo no dia 25 de Abril com a ajuda do arguido; bem como a circunstância do seu filho lhe relatar o empréstimo de vários milhares de euros ao arguido);
b) No depoimento das testemunhas J... (inspector da P.J., relatou as diligências de prova em que participou, nomeadamente a recolha de indícios em casa do arguido, no seu carro, posto de trabalho e até num caixote do lixo onde foi localizado um telemóvel, bem como os locais que visitou sob indicação do arguido), L... (idem), M..(idem), N.. (idem), I... (idem), O..(idem), S...(idem), Q...(idem), R...(empregado de escritório na firma x... e colega do arguido; referiu que no dia 24/4 o arguido saiu para almoçar cerca das 12,30 horas e o encontrou na cidade de Tomar pelas 13,45 horas, tendo-lhe dado boleia até ao local de trabalho; relatou que o arguido voltou a sair durante cerca de meia hora nessa tarde; declarou que depois do desaparecimento do G... visionou as imagens do sistema de circuito fechado da x..., tendo detectado a passagem do veículo do arguido pelas 12,45 horas por detrás das instalações e passados 20 minutos viu o mesmo veículo passar no sentido contrário, mas que já não dispõe dessas imagens; confirmou que o arguido já não foi trabalhar no dia 26/4; teve notícia do arguido A... ter efectuado uns disparos com uma arma de fogo, nas instalações da firma, na sexta-feira que antecedeu o desaparecimento do G...), CC... (fiel de armazém na firma (...), referiu que viu o seu colega G... na manhã do dia 24/4, mas que o procurou após o almoço sem sucesso; tentou telefonar-lhe mas não foi atendido, tendo apenas recebido mensagens SMS “Já te ligo” e no dia seguinte “Eu tou bem tou com uma amiga”; relatou ainda o bom relacionamento da vítima com os seus pais e as consequências para estes com o desaparecimento do filho), AA... (colega do G..., referiu que o viu sair na hora do almoço e que lhe terá dito que ia com o pai a uma consulta), D... (ex-mulher do arguido, referiu que o A... saiu de casa no dia 26/4 dizendo que ia trabalhar e sem lhe dar qualquer instrução ou conselho de segurança; confirmou a sua surpresa ao saber da existência de novas dívidas do arguido), BB... (tio do arguido, referiu que o arguido A... o foi procurar quando já se comentava o desaparecimento do G..., falando-lhe de uns “brasileiros”, mas que recusou ir à polícia e claramente revelava recear mais a polícia do que os “brasileiros”), X.. (guarda da P.S.P. que recebeu instruções para ir a um café a solicitação de uma pessoa; quando aí chegou deparou-se com o arguido, o qual espontaneamente se dirigiu a si de mãos em punho para o algemarem e dizendo-lhe logo que estava na hora de se entregar), V.. (colega do arguido na x..., referiu que recebeu um telefonema do arguido no dia 26/4 em que o mesmo dizia que tinha a vida estragada por ter sido o último a ver o G... vivo e lhe pediu para deitar fora um telemóvel que deixara no local de trabalho; falou com os seus superiores e recebeu instruções para não mexer no telemóvel, o qual veio a ser apreendido pela P.J.; referiu que o arguido ainda ao procurou em sua casa, mas o mesmo nunca esboçou qualquer sinal de preocupação pelo desaparecimento do seu amigo), DD..., EE..., FF.... (amigos do G... e família, relataram o seu modo de vida e as consequências do seu desaparecimento), LP.. (namorada da vítima; referiu que o G... lhe falara no empréstimo que fizera ao seu grande amigo A... de vários milhares de euros e que estava à espera de ser pago em breve; referiu que tentou contactar a vítima à hora do almoço e ao longo da tarde, sem sucesso; apenas recebeu uma mensagem telefónica SMS cerca das 15 horas que dizia “Estou a ser perseguido pelo GG...” – um antigo namorado da testemunha) e HH... (colega do arguido na x..., referiu que o arguido efectuou um disparo com uma arma de fogo nas instalações da firma ao final da tarde da sexta-feira que antecedeu o desaparecimento do G...; tal arma de fogo foi trazida e levada pelo arguido quando terminou o dia de trabalho) que depuseram com convicção e coerência, revelando conhecerem vários factos directamente e de forma credível;
c) Nos documentos de fls. 12, 14, 40, 41, 124 a 135, 146 a 149, 171 a 178, 207, 245, 354, 355, 371 (e respectivo suporte documental que foi reunido no apenso A), 242 e 635 a 650;
d) Nos relatórios de exame de fls. 52 a 60, 152 a 163, 219 a 247, 250 a 258, 322, 351, 352, 367, 368, 495 a 500, nos autos de apreensão de fls. 77, 117, 118, 136, 137, 150, 167, 168, 314 a 316 e no relatório social de fls. 767; e,
e) Nas declarações do arguido A... no decurso da audiência e conjugadas com as declarações que prestou no primeiro interrogatório judicial a fls. 163 a 164, com as quais foi confrontado (inicialmente assumiu a morte do seu melhor amigo e a ocultação do cadáver, bem como a forma como se verificou a sua morte por asfixia, mas no decurso da audiência referiu que o G... foi levado por um “brasileiro” armado e embuçado e que nunca mais o viu, nem alertou as autoridades porque estava com receio; assumiu inicialmente a morte do seu amigo perante a Juíza de Instrução Criminal e a sua Defensora por ter sido agredido e ameaçado por elementos da Polícia Judiciária).
*
Não se deram como provados quaisquer outros factos por falta de prova bastante, segura e credível, ou por contradição com os factos provados.
*
2.4. Breve apreciação crítica da prova.
A motivação do Tribunal resultou da conjugação dos indicados meios de prova e das regras da experiência comum, devendo sublinhar-se alguns aspectos centrais.
Em primeiro lugar, cumpre justificar porque razão o Tribunal não procedeu à prova por reconstituição – art.º 150.º, do Código de Processo Penal. Uma vez que a morte do G... não terá sido presenciada por nenhuma testemunha, teria interesse proceder à reconstituição do facto de forma a testar de forma mais evidente a versão da acusação. É verdade que o arguido se prontificou inicialmente a colaborar com as autoridades e poderia ter sido aproveitada a sua colaboração inicial. A Policia Judiciária ainda realizou uma reportagem fotográfica com a colaboração do arguido e que está documentada nos autos, mas não tem o valor da prova por reconstituição, desde logo porque não foi um acto realizado na presença do defensor do arguido e sujeito ao pleno contraditório.
O Ministério Público também nada determinou quanto a esta questão, enviando o processo para julgamento sem realizar a prova por reconstituição dos factos, sem ter descoberto e examinado o cadáver e procedido ao seu exame e sem qualquer testemunha presencial da morte do G....
Apesar das provas produzidas na audiência serem categóricas e esclarecedoras, cumpre consignar que o Tribunal teria todo o interesse em ordenar a realização dessa prova, como forma de contribuir para um melhor esclarecimento da Verdade.
Não obstante, pela própria natureza das coisas, percebeu-se que a colaboração do arguido seria imprescindível para a realização dessa prova e o A... apresentou no decurso da audiência uma versão em que nega os factos essenciais da acusação e que tinha relatado no inquérito, particularmente perante a Mma. Juíza de Instrução Criminal. À luz deste desenvolvimento recente, a prova por reconstituição seria agora de muito reduzida utilidade (já não havia ninguém que pudesse ou quisesse reconstituir os factos centrais da morte do G...), pelo que não se ordenou a sua realização.
Em segundo lugar, quanto à verificação da morte do G..., seu modo e autoria, o Tribunal considerou uma multiplicidade de indícios. É certo que não se logrou identificar o local onde o cadáver foi ocultado, mas tal não é um impedimento absoluto ao esclarecimento dos factos, nem pode levar à negação da Verdade material quando existem sobejos elementos que permitem apurar os principais eventos de forma segura e conscienciosa.
Na verdade, já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/4/2006 (“Caso Joana”, disponível para consulta na base de dados da DGSI, proc. n.º 06P363) não se deixou impressionar com tal circunstância:
"Percorrida" a prova testemunhal, verificamos que não existe prova directa dos factos, nomeadamente por alguém ter visto cometer o crime.
Acresce que nem sequer existe prova directa do homicídio, pois que não apareceu o corpo morto da menor.
Em que é que se baseou então o Tribunal para dar como provados os factos? É o que passamos a expor.
Define o art. 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que "constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis". Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos - arts. 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331).
A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
A prova indirecta (ou indiciária) não é um "minus" relativamente à prova directa.
Pelo contrário, pois se é certo que na prova indirecta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova directa intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. No entanto, a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.
A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Com efeito, o art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) "a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão".
Também o Tribunal Constitucional (Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1), chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que "esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso».
A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça".
O princípio da livre apreciação da prova tem duas vertentes: na sua vertente negativa significa que na apreciação (valoração, graduação) da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente pré-estabelecidos - tem o poder/dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador; na sua vertente positiva, significa que os factos são dados como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material probatório validamente constante do processo, quer ele provenha da acusação, quer da defesa, quer da iniciativa do próprio (Ac. da Relação de Coimbra de 9.2.2000, in C.J., ano XXV, tomo 1, p. 51).
(…)
Como resulta dos factos provados (e é do domínio público) nunca foi encontrado ou visto o corpo da menor CC, nem mesmo parcialmente.
Todavia, os dois arguidos foram condenados por crimes que têm como elemento típico e necessário a morte da vítima.
Este é motivo para reflexão.
Não encontrámos nenhum caso semelhante que tenha sido julgado nos tribunais portugueses.
A doutrina e a jurisprudência portuguesas são parcas em informação sobre esta problemática, o que não sucede no Brasil, onde o tema é largamente debatido e até tem solução legal, possivelmente por aí haver uma criminalidade mais violenta.
O Código de Processo Penal do Brasil dispõe no art.º 158.º que «Quando a infracção deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, directo ou indirecto, não podendo supri-lo a confissão do acusado», mas o art.º 167.º refere que «Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta».
UU Hungria, nos "Comentários ao Código Penal", V, 63-65, reflectiu sobre este tema assim:
«Prova da materialidade do homicídio. O homicídio é, tipicamente, um crime material: é inconcebível sem que se verifique o evento morte de um homem. Como em geral nos crimes que deixam vestígios, é base essencial da acusação, na espécie, o exame de corpo de delito, isto é, a constatação da materialidade do crime.
Nem mesmo a confissão do acusado, sem outro elemento de convicção, supre a falta do corpus delicti pois o confitente pode ter-se equivocado ou ser um mórbido auto-acusador, ou ter sido coagido a declarar-se autor do crime. Por se haver desatendido a isso, com violação, aliás, do artigo 158 do Código de Processo Penal, é que ocorreu o famoso erro judiciário de Araguari, de que resultou a condenação dos irmãos Naves pelo suposto homicídio de Benedito Pereira Caetano, que, anos depois, retornava, vivo e são, da Bolívia, para onde se mudara, levando dinheiro subtraído a seus pais. A confissão dos acusados havia sido extorquida pela violência de um delegado militar.(3) O exame de corpo de delito pode ser directo (mediante a inspecção ocular e autópsia do cadáver, para averiguação da causa mortis, meios que a produziram, etc.) ou indirecto (por meio de testemunhas, quando os vestígio do crime não possam ser pericialmente verificados).
Será possível o êxito de um processo penal por crime de homicídio sem que apareça o cadáver da vítima? Dizia Carrara: "Não se pode afirmar que existe crime de homicídio, enquanto não esteja averiguado que um homem tenha sida morto por obra de outro. E não se pode dizer que um homem haja morrido, enquanto não se encontra o seu cadáver ou, pelo menos, os restos deste, devidamente reconhecidos."
Tal critério é demasiadamente rigoroso, e poderia, na sua irrestrição, conduzir à impunidade de manifestos autores de homicídio. Haja vista o caso citado por IRURETA GOYENA: dois indivíduos, dentro de uma barca no rio Uruguai, foram vistos a lutar renhidamente, tendo sido um deles atirado pelo outro à correnteza, para não mais aparecer. Foram baldadas as pesquisas para o encontro do cadáver. Ora, se, não obstante a falta do cadáver, as circunstâncias eram de molde a excluir outra hipótese que não fosse a da morte da vítima, seria intolerável deixar-se de reconhecer, em tal caso, o crime de homicídio. Faltava a certeza física, mas havia a absoluta certeza moral da existência do homicídio. Conforme justamente observa GOYENA, não se deve confundir o "corpo de delito" com o "corpo da vítima", e para a comprovação do primeiro basta a certeza moral sobre a ocorrência do evento constitutivo do crime. Somente enquanto seja possível formular-se dúvida, ainda que mínima, em torno à morte da desaparecida vítima de uma violência, que se deve afastar a possibilidade de imputação do homicídio.
Eloquente advertência em tal sentido foi um filme titulado Fúria, exibido, há alguns anos, nos cinemas brasileiros. O seu episódio central era um crime de multidão contra um indivíduo suspeito de kidnapping e que fora recolhido a uma cadeia pública. Os sediciosos atearam fogo à cadeia, que ficou reduzida a escombros.
Entre estes não foi encontrado o cadáver do prisioneiro, mas apenas um anel reconhecido como de seu uso. Deduziu-se, então, que o corpo do desgraçado fora totalmente consumido pelo fogo e, embora não estivesse excluída a hipótese de ter o prisioneiro conseguido salvar-se, fugindo, sem ser visto, por uma brecha que se abrira na parede de sua cela, os incendiários foram processados, e estavam a pique de ser condenados, quando, em plena sala de julgamento, surgiu a pseudovítima: a hipótese de sua fuga e salvamento, até então rejeitada, era a única verdadeira.
Se o fugitivo não tivesse voltado, movido por um impulso de generosidade, os sediciosos teriam sido injustamente condenados por homicídio consumado. Desde que seja formulável uma hipótese de inexistência do evento "morte", não é admissível uma condenação a título de homicídio. A verosimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um possível inocente.»
E Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 2, 19.ª edição, S. Paulo, 2002, pág. 66, também refere que «A prova do homicídio é fornecida pelo laudo de exame de corpo de delito (necroscópico). Quando não é possível o exame directo (o corpo da vítima não é encontrado ou desaparece), permite-se a constituição do corpo do delito indirecto por testemunhas, por exemplo, não o suprindo a simples confissão do agente (art.ºs 156 e 167 do CPP)»
Também Magalhães Noronha, Direito Penal, 2, 27.ª Edição, S. Paulo, 1995, pág. 18, diz o mesmo: «Prova-se o homicídio com o exame de corpo de delito, que, em regra, é directo. Na impossibilidade deste, é aceitável o indirecto, constituído por testemunhas. Irureta Goyena cita o caso de dois indivíduos que foram vistos lutando em um barco, tendo um deles arrojado o outro à corrente caudalosa, não havendo o corpo sido encontrado_J. Irureta Goyena, El delito de homicídio, 1928, p. 8. Por falta de exame directo é que não deixaria de haver imputação de homicídio.
Ressalve-se, naturalmente, o caso em que pode haver dúvida quanto ao resultado, impondo-se, então, a solução favorável ao acusado. Lembre-se, por exemplo, que mesmo a confissão do réu isolada não é prova bastante, como no caso que Carrara invoca de dois marujos de Chiaja que se acusaram de haver afogado dois jovens que, entretanto, se tinham salvado e viviam comodamente em Roma - Carrara, Programma, cit., § 1.088, nota 5_. Não só pode haver equívoco como auto-acusação falsa.»
Encontrámos em http://juris.tjdf.gov.br/revista/D647.doc uma sentença exaustiva sobre este tema, da Juíza de Direito do Distrito Federal de Brasília, Dr.ª Leila Cury, onde recolhemos os seguintes trechos:
A respeito do cabimento da realização de exame de corpo de delito indirecto quando torna-se impossível a realização do exame directo em face do desaparecimento do corpo da vítima, existe um caso concreto na literatura forense, ocorrido nos idos de 1964, mas bastante conhecido e citado na atualidade, relativo ao julgamento de LEOPOLDO HEITOR, acusado de matar e ocultar o corpo da vítima DANA DE TEFFÉ. Aquele acusado impetrou diversos habeas corpus visando sua soltura e/ou trancamento da respectiva acção penal, contudo, todos foram denegados, sendo certo que um deles, julgado pelo Pretório Excelso, teve como relator o Eminente Ministro Victor Nunes, de cujo voto extraio o seguinte trecho, litteris: "... Alega-se ainda que a materialidade não se poderia comprovar pela falta de corpo-de-delito, mas não é isso que acontece, pois o Código de Processo Penal, prescreve em seu art. 167, que esta prova pode ser feita por intermédio de testemunhas, isto é, indirectamente, e os tratadistas, como Espínola e outros, entendem ainda que para tanto basta apenas o depoimento de uma testemunha.
Ora, o Excelso Pretório já se pronunciou também a esse respeito, quando do julgamento de um dos "habeas corpus" impetrado pelo acusado Leopoldo Heitor, concluindo o Ministro Gonçalves de Oliveira por que, se assim fosse, muito fácil seria a qualquer criminosos eliminar a sua vítima, ocultar seu cadáver e fugir desse modo à sanção penal ..." (HC 40.540/RJ DJ 13.08.64, p. 02825 - destaquei).
Em época mais recente, outro caso bastante semelhante ao de DANA DE TEFFÉ e ao de M. ocorreu na Comarca de Uberlândia-MG, tendo como acusado DACI ANTÓNIO PORTE e como sua vítima MARIA DENISE LAFETÁ SARAIVA. Este fato foi julgado pelo Tribunal do Júri daquela Comarca mineira, ocasião em que DACI foi condenado a pena de 13 anos de reclusão.
(...)
Invoco novamente o entendimento doutrinário a respeito do mesmo assunto, trazendo, por oportuno, à colação, o pensamento de HENRIQUE FERRI, verbis: "... Num século de civilização aumentam paralelamente a sagacidade e as manhas dos criminosos; a ponto de para os descobrir e poder acusar, já não bastar apenas o senso comum, que, no entanto, não é tão comum como certas pessoas julgam, mas ser necessária toda a lógica, que, por isso, se tornou uma faculdade habitual de exercício judiciário (...) Esses crimes são tecnicamente concebidos, tecnicamente preparados e tecnicamente ocultados. Porque o mais importante destes crimes é a sua ocultação posterior, não só para evitar a condenação, o que é preocupação de todos os criminosos, mas, sobretudo, para assegurar o gozo do produto do crime ..." (Discurso de acusação, p. 167/168 - destaquei).
MITTERMAIER, a seu turno, in Tratado da prova em Matéria Criminal, p. 24, questionando o entendimento de CARRARA, assim como já o fizera HUNGRIA, afirmou o seguinte: "... que a certeza exigida como coisa essencial em matérias criminais não se pode encerrar em regras científicas ou legais, mas repousa no senso íntimo e inato que guia o homem nos actos importantes da vida (...) é um erro acreditar que a evidência material é a única fonte de certeza (...) a sentença criminal não é resultado de cálculo aritmético..." (destaquei).Em http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_desarquivando7.html pode ler-se um artigo intitulado "A verdade republicana" de Fábio K. Comparato, onde, a propósito dos crimes contra a humanidade se escreve: Os nossos militares decidiram, pois, recorrer a esse estratagema: os homicídios continuariam a ser praticados, mas seria dado completo sumiço aos cadáveres.
No começo dos anos 90 do último século, as instâncias internacionais decidiramse, afinal, a enfrentar o problema. Uma Resolução da Assembleia Geral das Nações, datada de 18/12/92, bem como a Declaração de Viena e o Programa de Acção adoptado na Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, condenaram, pela primeira vez, a prática de desaparecimentos forçados, qualificando-os como uma forma disfarçada de homicídio. Finalmente, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 definiu esse ato como crime contra a humanidade (art. 7, alínea/).
E em http://www.edmarger.com/article_CorpusDelicti.htm há uma referência ao Supremo Tribunal de Justiça do Estado de Indiana (E.U.A.) de cujo enunciado de princípios se pode retirar que não é preciso um corpo para estabelecer o crime de homicídio quando há a evidência de uma morte e uma evidência adicional que permite a inferência de que a morte foi o resultado da acção criminal de alguém.
Esses factos podem ser provados apenas por provas circunstanciais. E aí também se menciona uma decisão de um tribunal da Califórnia onde se escreveu que o facto do assassino poder dispor do corpo da vítima com sucesso não o habilita a uma absolvição, essa é uma forma de sucesso que a sociedade não recompensa.
Entre nós, só encontrámos a seguinte referência em Luís Osório, Notas ao Código Penal, III, pág. 58, sobre os crimes em que a morte da vítima é elemento típico: «A morte é elemento essencial em todo o crime consumado. Nalguns casos há talvez presunção de morte - vid. arts. 332.º e 344.º, § 2.º». Todavia, os crimes enunciados nestes artigos do C. Penal de 1886 referem-se ao cárcere privado e à ocultação de menor de 7 anos, quando o autor do crime não mostra "onde existe" o encarcerado ou o menor, pelo que a morte não é um elemento típico, mas a sua presunção constitui uma agravante.
A criminalidade moderna e os meios que hoje existem para fazer desaparecer totalmente os vestígios de um cadáver impõem que não se exija um exame directo ao corpo da vítima no caso de crime que tenha como resultado ou como pressuposto a morte de outrem. Na verdade, a impossibilidade de proceder a exame directo tornaria impune certos actos de enorme gravidade, quer patrocinada pela alta criminalidade, quer pelo criminoso comum que, por engenho ou sorte ocasional, conseguiu desfazer-se de todos os vestígios dos seus actos hediondos.
É evidente que o risco de condenar alguém por homicídio sem a presença física do cadáver ou de algum vestígio material que possa seguramente certificar a morte da vítima (por exemplo, o aparecimento de um órgão vital) coloca na primeira linha a hipótese do erro judiciário.
O erro judiciário pode sempre vir a ser corrigido, pois a lei prevê a existência de um processo de revisão de sentença transitada em julgado, que ocorre, por exemplo, face à descoberta de novas provas. Mas a reparação do mal pode revelar- se tardia e totalmente insatisfatória.
Todavia, o erro judiciário existe em qualquer caso penal e não é um exclusivo dos crimes de homicídio, pelo que não faz sentido não condenar o agente por homicídio só porque não foi examinado directamente o cadáver, como não o faz não condenar alguém por crime de violação só porque não foi possível o exame directo à vítima.
Na ponderação entre os riscos da impunidade e do erro judiciário, há que optar por uma solução de compromisso que assegure simultaneamente as exigências de repressão do crime e a de presunção de inocência do condenado: no caso em que um crime tenha como elemento típico a morte da vítima (v.g., o crime de homicídio), ou como pressuposto prévio a sua morte (v.g., o crime de profanação de cadáver), a morte deve ser provada por exame pericial directo, mas, na impossibilidade de proceder a tal exame e não havendo norma legal que o imponha, devem ser admitidos outros meios de prova que indiquem "a certeza moral sobre a ocorrência do evento" (UU). Haverá, portanto, uma exigência acrescida quanto à avaliação da prova.
O desaparecimento do cadáver do G... não impede a verificação da sua morte. Apenas exige uma cuidada análise de todos os elementos produzidos no decurso da audiência. Ora, todos os elementos apontam conclusivamente no sentido da violenta morte do G... e do envolvimento do arguido A..., devendo destacar-se apenas alguns dos mais evidentes, como:
- O mero desaparecimento do G... em circunstâncias extraordinárias, dado que era uma pessoa muito ligada à sua família e com a sua vida pessoal estabilizada, pelo que não se iria ausentar ou desaparecer inopinadamente;
- A dívida que o arguido contraíra perante a vítima, o desejo que esta manifestara perante o seu pai e a namorada em receber tal importância, aliada às notórias dificuldades financeiras, o qual ocultara à mulher a existência de novos empréstimos;
- Os indícios de preparação do encontro com a vítima, já de véspera, e com a indicação de não voltar ao local de trabalho na parte da tarde (o arguido sempre pautou a sua actuação por redobrados esforços em retardar o conhecimento do desaparecimento da vítima, esforços esses que se iniciaram com uma justificação para a falta ao trabalho da vítima na parte da tarde, certamente enganada quanto ao destino que o arguido lhe traçara);
- O surgimento de sangue da vítima numas luvas que o arguido deixou no seu posto de trabalho e ainda de mais e abundante sangue na mala do veículo automóvel do arguido;
- Os sinais de ferimentos físicos que o arguido evidenciava aquando da sua detenção;
- A intensa actividade telefónica empreendida pelo arguido com o envio de mensagens através do telemóvel da vítima para amigos e para a namorada (havia que dar descaminho ao cadáver e para aproveitar o decurso do tempo para se dissiparem todos os indícios do homicídio);
- A fuga empreendida pelo arguido quando sentiu que a perseguição se desencadeara cedo demais e seguia no seu encalce (andou fugido de casa em casa durante vários dias);
- O estratagema que elaborou atabalhoadamente quando se sentiu perseguido e encurralado (ficcionando o aparecimento de uns indivíduos brasileiros responsáveis por todo o mal); ou,
- O estratagema que elaborou ainda mais atabalhoadamente quando se arrependeu da confissão que apresentara (acusando agora de forma leviana os elementos da Policia Judiciária de o agredirem e de lhe extorquirem a confissão).
Perante tão categóricos sinais da culpa do arguido, que dizer da versão da defesa?
A versão da defesa é simplesmente insubsistente e grotesca, porque o arguido A... aposta deliberadamente no absurdo, na contrariedade e na mentira.
É possível perceber vários momentos na actuação do arguido A...:
1) Começa por planear detalhada e calculadamente a forma como há-de actuar. Induz a vítima a justificar a sua falta ao trabalho na parte da tarde do dia 24 de Abril. Consegue atrair a vítima e consumar o homicídio num curto espaço de tempo, apoderando-se dos telemóveis desta, vai até à cidade de Tomar onde deixa o veículo do G.... Regressa à boleia dos colegas em aparente normalidade.
Consegue ocultar a morte e o cadáver da vítima. Entretanto, vai acalmando um amigo do G... e lançando falsas pistas à namorada da vítima (com uma alegada perseguição de um seu ex-namorado);
2) O arguido executou o plano que traçara com notável sucesso, pois assassinou o seu melhor amigo e logrou ocultar o seu cadáver – algo que é muitíssimo raro de suceder no nosso país, como é referido no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça. Porém, a dada altura, tornou-se evidente para o próprio A... que é impossível cometer um crime destes e não deixar pontas soltas: You can fool all the people some of the time, and some of the people all the time, but you cannot fool all the people all the time – ABRAHAM LINCOLN.
Logo no dia 25/4 começa a sentir a pressão dos acontecimentos, quando o pai da vítima lhe bate à porta a perguntar pelo filho. Depois junta-se um primo da vítima, especialista da Polícia Judiciária. Nesta altura o arguido ainda não tinha feito desaparecer todas as pontas e é evidente que começa a esboçar um novo plano.
Surgem agora uns “brasileiros” mascarados e armados que o sequestram e levam o G....
Já enquadrado nesta nova estratégia, o arguido A... surge a folhas 124 a 135 a “desabafar para o papel”. O arguido não procura a polícia, não esboça qualquer preocupação com o seu melhor amigo, nem dá indicações de segurança à sua família (supostamente ameaçada pelos “brasileiros”) quando se esconde e desaparece. Não há dúvida que está com receio, mas é da polícia, como percebeu o seu tio BB....
Esta versão nem merece qualquer esforço crítico: a ideia de 2 estrangeiros andarem a aterrorizar o arguido e a vítima em Tomar, sem serem vistos por ninguém, e o comportamento concludente do A... tornam esta versão insubsistente.
Os papéis de fls. 124 a 135 apenas atestam a personalidade manipuladora do arguido que apenas se esqueceu de os endereçar às autoridades, mas deixou-os em local de fácil e pronta localização . . .;
3) Sem ter onde se refugiar, sentindo-se acossado e perseguido pelas autoridades, não resta ao arguido entregar-se às autoridades. Confrontado com o absurdo da inopinada intervenção dos brasileiros, decide confessar o homicídio. Mas não se dá por vencido: como único sobrevivente, pretende impor a sua verdade, misturando verdades e mentiras. Ainda aposta na confusão e na dissimulação, nomeadamente na descrição da luta com a vítima ou no lançamento do corpo desta ao mar;
4) Finalmente, no decurso da audiência, o arguido revela outra personalidade e outra versão: insiste na insustentável intervenção dos “brasileiros” e aleivosamente responsabiliza os elementos da Policia Judiciária pela sua confissão (com a negligência e/ou cumplicidade da Mma. J.I.C., do M.P. e da sua defensora ?!). Nesta fase, o arguido já não quer convencer ninguém. Apenas tenta lançar a confusão e aproveitar-se das suas constantes mentiras. Quer convencer o Tribunal que é mentiroso. Logo, o que disse perante a J.I.C. também não merece confiança.
Tão pouco há que analisar longamente esta versão. Como é evidente, quem acusa tem que apresentar provas e o arguido não apresentou qualquer prova do que alegou. Nomeadamente, nem sequer apresentou queixa contra os inspectores da Policia Judiciária. Cumpre esclarecer que os inspectores da Policia Judiciária são agentes do Estado que exercem as suas funções com profissionalismo e isenção, não pautando o exercício das suas funções por agressões aos suspeitos, pois sabem que esses métodos são ilegais, contraproducentes e podem levar à destruição de uma investigação. Os inspectores da Policia Judiciária não tem qualquer interesse em prejudicar o arguido – pessoa que nem sequer é das suas relações –, nem estarão dispostos a terminar as suas carreiras por causa do Sr. A....
Os inspectores da Policia Judiciária também não são estúpidos: ao verem o arguido A... com sinais evidentes de uma possível agressão, a última coisa que queriam seria o surgimento de novos e recentes ferimentos no corpo deste.
Também não há notícia dos inspectores da Policia Judiciária agredirem alguém e depois tirarem fotografias do seu corpo para juntarem ao processo . . . e de enviarem o “agredido” para ser prontamente examinado pela Sra. Perita Médica .
Por último, cumpre salientar o que é evidente: o arguido sempre disse o que quis.
A Policia Judiciária nunca acreditou na espontaneidade e verdade de tudo o que o arguido contou. Por exemplo, quanto à ida à Nazaré para largar o corpo do G.... A Policia Judiciária percebeu logo o engodo desta parte da “estória” do A..., pois era inverosímil que lograsse transportar o corpo desde a estrada até ao mar, naquele local e àquela hora, sem que o corpo (não lastrado) não voltasse a aparecer e sem sinais de contacto do calçado com a água do mar. A Policia Judiciária sempre soube que tal parte da “estória” era falsa e sempre soube que a localização do corpo era muito importante para a investigação. O arguido é a única pessoa que tem esse conhecimento. Pela lógica do arguido, se a Policia Judiciária sabia que estava a mentir, parece que lhe devia ter batido ainda mais.
Mas a Policia Judiciária simplesmente consignou o entendimento que havia nesta parte uma dissimulação por parte do arguido. Quer dizer, a Policia Judiciária usou de violência para com o arguido para obter uma confissão na qual não acredita e que não lhe interessa?!
Como já se referiu, a aposta do arguido no decurso da audiência foi simplesmente na confusão que o mesmo criou. Tal confusão não colhe, pois os numerosos indícios recolhidos comprometem inequivocamente o arguido A... na morte do G....
Quanto à forma exacta como o G... veio a morrer, o Tribunal teve que considerar, em grande medida e com natural prudência, as declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial, porquanto existe concordância com outros elementos recolhidos, nomeadamente a hora em que a vítima desapareceu, a sua localização na Zona Industrial de Tomar, o avistamento do veículo, a presença de sangue no veículo (não é necessariamente compatível com a morte por asfixia, mas poderá estar relacionada com a contenda física ou outra circunstância
não apurada), a localização dos telemóveis, etc. …
O Tribunal teve presente, como referiram vários elementos da Policia Judiciária, que há clara correspondência entre factos relatados pelo arguido e que só alguém envolvido na morte do G... poderia saber e os meios probatórios recolhidos.
Nomeadamente quando a polícia localiza um dos telemóveis da vítima num caixote do lixo da cidade de Tomar e o arguido indica precisamente tal local como o sítio onde abandonara o telemóvel.
As condições de vida pessoais e inserção social do arguido resultaram do teor do relatório social.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO E SUBSUNÇÃO JURÍDICA.
3.1. Qualificação jurídico-penal dos factos quanto ao crime de homicídio.
Como vimos, o despacho de acusação imputa a prática por este arguido do crime de homicídio qualificado previsto e punível pelo art.º 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e j), do Código Penal.
Preceitua o art.º 131.º, do Código Penal, que:
“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”
Naturalmente visando proteger a vida humana como bem jurídico fundamental, a lei elegeu-a como primeira destinatária da tutela penal.
É elemento objectivo do tipo legal o matar outrem. Objectivamente e em síntese, apurou-se que o arguido A... agrediu violentamente a vítima G....
Esta agressão traduziu-se na asfixia da vítima, dado que o arguido lhe apertou as mãos à volta do pescoço até não esboçar qualquer reacção, o que evidencia que quis causar-lhe a morte.
Como refere TERESA SERRA: Elemento subjectivo geral do tipo, o dolo é uma entidade complexa portadora de sentidos diversos, consoante a sua valoração é objecto da ilicitude ou da culpa: em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, o dolo é portador do desvalor da atitude pessoal contrária ao direito, especificamente ligado à realização dolosa do tipo (in Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 32).
Tendo querido causar-lhe a morte, o que o arguido conseguiu, cometeu o crime de homicídio, pois agiu deliberadamente nesse propósito, isto é com dolo directo (art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal).
*
3.2. Idem, qualificação do crime.
Será que o crime é qualificado pelo art.º 132.º, do Código Penal, como defende o Ministério Público?
Qualquer homicídio é, por princípio, censurável e denota a perversidade do seu autor, mas a lei apenas consagra uma moldura penal mais gravosa quando ocorrem determinadas circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade ou perversidade. TERESA SERRA refere ainda que o legislador foi mais longe e, encarando os diversos meios que se lhe ofereciam para construir tipos (em sentido amplo) cujo desvalor relativamente ao tipo fundamental e aumentado por circunstâncias agravantes que podem ter a ver com o aumento da ilicitude e/ou da culpa, optou claramente pela chamada técnica dos exemplos padrão (“Regelbeispieltechnick”) – vd. ob. cit., pág. 59.
São várias as circunstâncias qualificativas apontadas pelo Ministério Público. Há que buscar nos exemplos padrão e nas circunstâncias concretamente apuradas pela especial censurabilidade ou perversidade da conduta deste arguido.
A primeira das circunstâncias que podem revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número 1 do artigo 132.º ocorre quando o homicídio é determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.
Em vista dos factos apurados, entende-se que se verificam cumulativamente a primeira e a última destas situações: a avidez e o motivo fútil. Na verdade, apurou- se que o arguido A... planeou e executou a agressão mortal sobre a vítima, porque lhe devia dinheiro e queria eximir-se ao pagamento da dívida.
Poderá dizer-se que o homicídio por avidez é aquele que se consuma sob a égide da ganância, da cobiça, na mira de obtenção de bens ou lucros ou de quaisquer outras vantagens de natureza material (LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in O Código Penal de 1982, tomo II, pág. 27).
Por outro lado, o motivo é fútil quando notavelmente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime de que se trata.
Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral (NELSON HUNGRIA, citado por LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, idem, pág. 28).
Como é evidente, o homem médio não se determina a tirar a vida a outro homem, para mais um seu grande amigo, de longa data, que outrora o acolheu em sua casa, para evitar pagar uma dívida. Apesar de não se ter apurado o montante exacto da dívida, supõe-se que a dívida nem seria avultada em face das condições pessoais da vítima (modesto trabalhador por conta de outrem).
Ora, se todos os homicídios são censuráveis, este tipo de motivos revela-se especialmente censurável, porque totalmente estranho ao sentir da sociedade.
Entende-se, por conseguinte, que o motivo subjacente à conduta do arguido foi a avidez e foi igualmente fútil. No contexto de facto apurado, é especialmente censurável.
O Ministério Público também considera que a conduta do arguido revela frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas – alínea j).
A frieza de ânimo é uma das manifestações possíveis da premeditação, como resulta da redacção inicial do art.º 132.º, do Código Penal, que depois se foi desenvolvendo e modificando.
A jurisprudência tem caracterizado esta circunstância de vários modos:
- A " frieza de ânimo " significa uma calma imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. Age desta forma o réu que sem o mínimo de exaltação provada abate friamente a vitima depois de lhe dizer, cerca de quatro minutos antes, " que ela ainda se sairia mal ", " que a trazia debaixo de olho " (Ac. do STJ de 28.6.86, BMJ 358-260);
- (1) A frieza de ânimo - a que se refere o mesmo art. 132.º, n.º 2, al. g) – significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar.
(2) De qualquer forma, só qualificado o homicídio o motivo fútil ou frieza de ânimo quando a apreciação do caso concreto mostre que o agente actuou com especial censurabilidade ou perversidade, exigidos no n.º 1 do mesmo parceiro incriminador. (Ac. do STJ de 12-07-1989, BMJ 389-310);
- (1) O marido que empurra a mulher para um tanque cheio de água, com a intenção de a matar por afogamento bem sabendo que ela não sabe nadar e que fica à espera da ocorrência do evento, comete o crime por acção elegendo também acidentalmente um meio omisso. (2) Ao fazê-lo, em virtude da ofensa da mulher ao chamar-lhe «chibano de merda», comete o arguido o crime de homicídio qualificado por motivo fútil - art. 132º, nºs 1 e 2, als c) e g) do C Penal de 1982, e com frieza de ânimo, não a socorrendo. (Ac. do STJ de 31.1.90, AJ n.º 6)
- Frieza de ânimo é «qualidade do que é moralmente frio, tibieza, indiferentismo, sangue-frio, insensibilidade, indiferença», significando «uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar». (Ac. do STJ de 1.3.90, BMJ 395-218);
- (1) Actua com premeditação o agente que mantém a resolução de matar, pelo menos desde que iniciou uma viagem de mais de 100 km até ao local onde se encontrava a vítima que viria a ofender. (2) Essa actuação revela ainda frieza de ânimo, ou seja, vontade de matar ainda de modo frio, deliberado, calculado, analisado e a manter-se durante algum tempo até à consumação. (3) Verificando-se mesmo, por parte da arguida, reflexão sobre os meios necessários para a execução e, por isso, ela já foi munida da pistola e logo disparou como vinha planeado. (Ac. do STJ de 12.12.90, AJ n.º 13/14);
- (1) A frieza de ânimo - art. 132º, n.º 2, g) do C Penal de 1982 - significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a intenção de matar. (2) Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cautelosos, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (Ac. do STJ de 24.4.91, BMJ 406-381);
- A frieza de ânimo traduz uma actuação insensível, de indiferença, incompatível com estados emotivos e emocionais. (Ac. do STJ de 14.10.92, Processo n.º 42918);
- (1) Ao contrário do que acontecia com o C Penal de 1886, a actuação «frigido pacatoque animo» pode, só por si, integrar a premeditação a que faz apelo o art. 132º do C Penal de 1982. (2) Não pode porém esquecer-se que todo o crime pressupõe uma certa dose de paixão, a frieza de ânimo tem de resultar de circunstâncias inequívocas em que transpareça claramente. (Ac. do STJ de 8.7.93, Processo n.º 44541);
- Age com frieza de ânimo e reflexão sobre o meio empregado o mesmo arguido que, antes do disparo, se dirigiu a sua casa situada em frente do local onde o ofendido estava sentado, preparou a arma e escolheu um cartucho de zagalotes. (Ac. do STJ de 5.1.94, Processo n.º 45806);
- (1) O ciúme não é incompatível com a frieza de ânimo no crime de homicídio voluntário, salvo nos casos de flagrante delito da infidelidade. (2) Isto porque a motivação pode levar o agente a uma reflexão sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso. (Ac. do STJ de 17. 5.95, Acs STJ III, 201);
- Há frieza de ânimo quando o arguido, na execução do seu desígnio anteriormente formado, mantêm-no depois de acompanhar a vitima até ao seu local de trabalho. (Ac. do STJ de 26.6.96, Processo n.º 533/96);
- (1) A frieza de ânimo de que fala a al. g) do n.º 2 do art. 132 do CP de 1982 para integrar o conceito de "premeditação" aí previsto como qualificante do crime de homicídio, está ligada à formação e manutenção da resolução criminosa e ao modo da sua execução. (2) Não é a falta de motivação na formação da resolução que preenche esse conceito. Ele vai antes fundamentar-se no desvalor com que ao formá-la lenta, reflexiva, deliberada e persistentemente, o agente encara a vida humana e a reduz a mera coisa que quer e pode eliminar. (3) Este desvalor associado agora a uma mecanização assim programada da acção dirigida à sua execução é que nos dá os contornos jurídico-penais da "frieza de ânimo" (Ac. do STJ de 17.10.96, Processo n.º 634/96);
- (1) A frieza de ânimo ocorre quando a vontade se revela formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. (2) O arguido age com frieza de ânimo quando se prova que o arguido decidiu definitivamente tirar a vida à ofendida, muitos dias antes dos factos, aguardando apenas o momento mais propício para o concretizar. (Ac. do STJ de 21.5.97, Processo n.º 107/97);
- Traduz frieza de ânimo, o facto de não obstante a vítima ser tia do arguido e pessoa de avançada idade, que o havia acolhido em sua casa em duas ocasiões diferentes, não se ter o mesmo inibido de usar para com ela de grande crueldade, desferindo-lhe no corpo várias pancadas com o rolo da massa, nomeadamente duas que a atingiram na cabeça, fazendo-a cair no chão e depois, amordaçando-a com um "naperon", para que não gritasse, acabando por lhe cravar ainda uma faca de cozinha no peito, que deixou espetada, provocando-lhe assim, desse modo, a morte (Ac. do STJ de 22.5.97, Processo n.º 152/97);
- Frieza de ânimo é uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar. (Ac. do STJ de 2.10.97, Processo n.º 689/97);
- (1) Frieza de ânimo é a acção com evidente sangue frio, insensibilidade, indiferença, calma ou imperturbada reflexão ao assumir a resolução de matar a vítima. (2) Cometeu o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. p. pelos art.ºs 22, 23, n.ºs 1 e 2, 73, n.º 1, ais. a) e b), 131 e 132, n.ºs 1 e 2, als. c) e g), do CP, o arguido que: - se muniu de uma espingarda caçadeira e se dirigiu para junto da casa de habitação do assistente, a aguardar a chegada deste, acoitando-se debaixo de uma oliveira; - de noite, empunhou a referida espingarda, apontando-a na direcção do assistente, quando este se encontrava distante de si cerca de 15 metros, e disparou dois tiros seguidos, tendo os chumbos atingido o visado na cabeça e no braço direito, provocando-lhe múltiplas lesões; - após os disparos se pôs em fuga; - agiu com a intenção de tirar a vida ao assistente, não conseguindo o seu propósito por aquele ter sido prontamente socorrido ; - actuou com a finalidade de tirar desforço da discussão e envolvimento físico havido cerca de duas horas antes entre ele, por um lado, e o assistente e um seu irmão, de outro. (Ac. do STJ de 18.2.98, Processo n.º 1414/97);
- A "frieza de ânimo" é um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução. (Ac. do STJ de 15.4.98, BMJ 476-238);
- A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução. (Ac. do STJ de 30.9.99, proc. n.º 36/99);
- Comete o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e g), do CP, o arguido que, sem qualquer justificação ou perturbação de ânimo, aproveitando-se da circunstância de a vítima estar diminuída fisicamente, em resultado de um acidente que sofrera, a ataca pela retaguarda, de surpresa, arremessando-lhe às costas uma pedra com o peso de 5 Kg., e que, após derrubar a mesma, desfere-lhe múltiplas pancadas na cabeça, no pescoço e na face, com o referido objecto, só parando depois de se certificar da sua morte. (Ac do STJ de 15.12.99, Processo n.º 1022/99);
- O agir frigido pacto que animo (com frieza de ânimo) tem sido relacionado pela jurisprudência mais com a conduta prévia do homicida, que de forma calma mas determinada decide tirar a vida a outrem, do que com o seu comportamento posterior aos factos criminosos. No presente caso, os quatro disparos sobre a vítima, com uso de arma de fogo que o arguido manejava por hábito profissional, em evidente posição de superioridade, dois deles à queima roupa, encontrando-se a vítima sob o efeito do álcool, sem qualquer motivo, desinteressando-se completamente sobre o estado em que a deixou, gemendo com dores, pois fora atingida em órgãos vitais, revela uma completa insensibilidade, roçando mesmo o total desprezo pela vida do seu semelhante. Trata-se de conduta revestida de especial censurabilidade, mesmo não se dando como demonstrada a frieza de ânimo, tal como descrita na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º, do CP. (Ac. do STJ de 9.2.00, Processo n.º 990/99);
- Age de modo a revelar tanto na preparação, como na execução do crime, especial censurabilidade ou perversidade, movido por "motivo fútil" e com "frieza de ânimo", o arguido que não estando habilitado a conduzir veículos automóveis, após ocasionar um acidente de viação, ressentido e desagradado com o facto de não lhe ter sido permitido retirar a sua viatura do local sem que alguém se responsabilizasse pelos danos por si causados, já depois dos seus padrinhos terem resolvido pacífica e serenamente o problema, no espaço de uma hora, após abandonar o local do acidente, dirige-se a casa, mune-se de uma espingarda de caça, desloca-se a casa do outro condutor acidentado, sai da viatura, e mesmo tendo-lhe sido recomenda calma pela sua madrinha, que com o seu marido aí se encontravam por outros motivos e que o avistara, apoia a arma no tejadilho da viatura em que se deslocara, e sem nunca pronunciar uma palavra, ao divisar o outro condutor, dispara em sua direcção a uma distância de sete metros, visando-lhe a região do tórax, assim lhe causando a morte. (Ac. do STJ de 2.3.00, Processo n.º 1192/99);
- Age com marcada frieza de ânimo o arguido, cuja família e a da vítima andavam inimizadas fazia já meses, com discussões e agressões mútuas de alguns dos seus elementos, que se aproveita do momento em que a vítima ficou sozinha, ocupada em cortar mato, sem possibilidade de reagir à inesperada aproximação daquele munido da pistola e de dele se defender, para, movido pela intenção de o matar, se aproximar até uma distância que lhe permitia tiro certeiro e alvejá-la atingindo-a por 3 vezes em zonas vitais, fugindo logo que a viu prostrada e já agonizante, sem que sequer se tivesse travado qualquer discussão. Na verdade, verifica-se frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana. (Ac. do STJ de 28.6.01, Processo n.º 1568/01-5). – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/2002, disponível para consulta na base de dados da DGSI, proc. n.º 02P3316.
Em face dos factos provados, percebe-se de forma inequívoca que o arguido A... é um indivíduo calculista. Não actuou de forma impulsiva ou irreflectida, mas antes elaborou um complexo plano para tirar a vida ao seu melhor amigo. A complexidade e a reflexão do arguido revelam-se na preparação e nos detalhes da execução e da ocultação do crime de homicídio. O sucesso inicial do arguido é a verdadeira testemunha dessa frieza de ânimo. Note-se que o arguido logrou atrair a vítima a um local propício à execução do crime, conseguiu consumar o crime numa brevíssima janela de oportunidade (intervalo para o almoço em que o próprio e os seus colegas se ausentavam do local de trabalho), deslocou o veículo da vítima, fez-se transportar até à cidade de Tomar (onde reapareceu aos colegas de forma aparentemente normal, sem levantar suspeitas e com um possível álibi: tinha ido almoçar), conseguiu ocultar a morte do G..., montou uma “cortina de fumo” com mensagens de telemóvel (criando junto dos amigos da vítima a ilusão de quase normalidade durante algumas horas ganhando tempo precioso) e, por último, impediu até hoje a localização do cadáver da vítima. Só esta circunstância, apesar de não ser inédita, evidencia um dos objectivos criminais raramente alcançados: a ocultação de um cadáver. No nosso país, são raríssimos os casos em que as autoridades descobrem um homicídio, identificam inequivocamente o seu autor, mas não conseguem recuperar o cadáver. Estas circunstâncias são não os frutos do acaso ou do improviso, mas antes atestam o prévio empenhamento, a demorada reflexão e a fortíssima intensidade do propósito assumido pelo arguido antes, durante e após a execução do crime.
Também se verifica a circunstância do arguido ter persistido na intenção de matar durante mais de 24 horas, em vista deste planeamento prévio e da própria actuação preliminar, nomeadamente ao atrair a vítima de véspera para o fatídico encontro, quando já tinha assumido a intenção de lhe tirar a vida.
Por conseguinte, entende-se que também se verifica esta outra circunstância qualificativa do crime de homicídio, sendo que, concorrendo várias circunstâncias, uma servirá para a sua qualificação e outra será sopesada na determinação da medida concreta da pena a aplicar.
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3.3. Quanto ao crime de profanação, neste caso ocultação de cadáver, também se entende verificada a previsão do art.º 254.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pois o arguido A..., após cometer o homicídio deliberadamente ocultou o cadáver do G..., levando-o para local incerto, logrando assim evitar que fosse encontrado e, pelo menos, retardando o esclarecimento do homicídio.
Neste caso, há uma circunstância particularmente censurável. Ao contrário do que sucede habitualmente quando é identificado o autor de um homicídio, em que há arrependimento ou resignação do agente e este indica a localização do cadáver às autoridades, minimizando assim as consequências da sua conduta, neste caso o arguido A... optou por iludir as autoridades dizendo inicialmente que tinha largado o corpo ao mar e era irrecuperável, mas veio-se a descobrir que tal versão era falsa (como o próprio agora o admite) e que o corpo não é recuperado apenas porque o arguido – único conhecedor do seu paradeiro – se nega a indicar a sua localização.
Esta atitude do arguido apenas revela a persistência e a reiteração do crime de ocultação de cadáver. O cadáver do G... foi ocultado por uma conduta do arguido A.... E a ocultação do cadáver do G... persiste porque o arguido quer que o mesmo continue oculto, visto que se nega a indicar a sua localização. A circunstância de ter morto o seu melhor amigo e transportado o corpo do mesmo na bagageira para local incerto necessariamente faz presumir que o arguido A... está conhecedor dessa localização e ainda hoje quer a ocultação do cadáver. Haverá que ter sempre bem presente esta circunstância, pois os efeitos do crime não se esgotaram no momento em que o crime se consumou.
Ainda hoje perdura no sentimento da comunidade, dos seus amigos e, em especial, da família, a privação do luto e exéquias condignas. O sentimento moral colectivo continua a ser ultrajado com a atitude e persistência do arguido.
Por conseguinte, é igualmente de julgar procedente a acusação nesta parte.
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3.4. Escolha e medida das penas.
Apurada a comissão dos ilícitos criminais importa concretizar as sanções a aplicar.
Como vimos, a lei preceitua a sanção abstracta para o crime de homicídio qualificado a pena de 12 a 25 anos de prisão. O crime de profanação de cadáver é punido com a pena de pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
Os artigos 70.º e 71.º, do Código Penal, indicam os critérios para a escolha e a determinação da pena a aplicar.
O primeiro critério e limite a considerar é o da culpa do agente. A pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pág. 227). Trata-se de uma consequência do princípio da culpa, que estabelece o limite superior da pena a aplicar.
Também as preocupações de prevenção geral e especial devem ser atendidas para efeito de determinação da pena, ponderando-se as consequências a nível social e as expectativas de reintegração e socialização do arguido.
Atendendo às várias alíneas do n.º 2, do art.º 71.º, há, em especial, que realçar:
a) o grau de ilicitude dos crimes;
b) o dolo directo e intensíssimo;
c) as condições pessoais do arguido (pessoa integrada familiar e socialmente); e,
d) a inexistência de antecedentes criminais.
Diga-se ainda que a integração familiar e social do arguido, apesar de ser atendível, não deverá ser especialmente considerada, visto que o próprio A... revelou uma extraordinária indiferença pela boa integração familiar e social da vítima.
Quanto à opção pela pena não privativa da liberdade no caso do crime de ocultação de cadáver é de afastar terminantemente. A moldura penal ajusta-se à grande amplitude de condutas previstas no art.º 254.º, n.º 1, do Código Penal. Ora, a conduta do arguido traduz a mais séria manifestação de desprezo pelo bem jurídico tutelado pela Lei, dentro da ampla previsão normativa. A fixação da pena concreta terá necessariamente que se aproximar do limite máximo da estatuição, visto que o arguido optou por afrontar da forma mais vil e escandalosa o respeito pelo sentimento moral colectivo. Só assim se poderá premiar de forma minimamente justa a intensidade e a persistência da conduta do arguido. Quanto a este crime, o arguido teve todas as oportunidades para se arrepender e suavizar as consequências das suas acções. O Tribunal respeita o exercício dos direitos de defesa do arguido, mas a recusa em entregar o cadáver da vítima ou indicar a sua localização não merecerá especial contemplação.
Por outro lado, impõe-se agora ponderar do concurso de circunstâncias qualificativas do crime de homicídio. Se uma das circunstâncias que evidenciam a especial censurabilidade ou perversidade funciona como qualificativa do crime, a outra terá que ser agora valorada na fixação da pena concreta.
Assim, ponderado todo o circunstancialismo evidenciado pela matéria de facto apurada, particularmente a personalidade do arguido, as necessidades de prevenção especiais e gerais deste tipo de grande violência e porque a pena também tem que reflectir o sentimento social de profunda reprovação que decorre da deliberada privação do valor da vida humana, o Tribunal entende que a pena de 19 anos de prisão é a que se mostra adequada aos factos apurados e à subsunção jurídica do crime de homicídio. Relativamente ao crime de profanação de cadáver entende-se justa e adequada a pena de 18 meses de prisão.
*
3.5. Porque tais penas estão em concurso, nos termos do disposto no art.º 77.º, do Código Penal, há que sopesar todas as conhecidas circunstâncias, para alcançar a pena única, cujos limites abstractos oscilam entre os 19 anos (pena mais elevada) e os 20 anos e 6 meses (soma de todas as penas).
Novamente sopesando as apontadas circunstâncias apuradas, particularmente o aviltamento a que votou e vota a memória e o corpo do seu melhor amigo, o Tribunal fixa em 20 anos a pena única de prisão a impor ao arguido A....
*
3.6. O pedido cível dos demandantes E... e mulher, F....
Em primeiro lugar, cumpre considerar desde já os demandantes habilitados e legitimados para exercerem em juízo os direitos próprios e os que competiam a seu falecido filho, G..., pois demonstraram ser os seus únicos herdeiros – cfr. art.ºs 2331.º e 2333.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil.
Em segundo lugar, para haver responsabilidade civil é necessário que haja:
a) o facto;
b) a ilicitude;
c) a imputação do facto ao lesante;
d) o dano;
e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I., 4.ª edição, pág. 471).
Estes requisitos estão presentes, como vimos, na factualidade apurada e consubstanciam a obrigação de indemnizar (art.ºs 483.º, n.º 1, e 562.º a 564.º, do Código Civil).
O facto ilícito é o acto praticado pelo arguido e demandado A... que foi causal da morte do G..., isto é a asfixia. Este deverá indemnizar os demandantes pelos danos próprios sofridos e pelos danos do seu filho.
*
3.6. Quanto à perda do direito à vida, temos que, em consequência da brutal agressão de que foi vítima, o G... foi privado daquele que é considerado o primeiro direito de todo o ser humano: a vida.
Este direito está tutelado pelo direito de várias formas, incluindo a compensação pela sua privação que se transmite aos sucessores do titular. Escusado será dizer que o montante da indemnização não procura sequer quantificar aquilo que é incalculável. Trata-se apenas da atribuição de um montante pecuniário que, não sendo meramente simbólico como por vezes se quer fazer crer, procura mitigar e compensar uma perda que é irreparável.
Não vamos relembrar o percurso jurisprudencial na matéria, desde a menção ao valor de um veículo médio novo (qual seja) até ao montante acolhido pela comissão arbitral na sequência da trágica queda da ponte de Entre-os-Rios, o qual oscila entre a inovação e actualização e o imobilismo fixado em valores da(s) década(s) passada(s).
Em vista do circunstancialismo evidenciado pelos autos, quer seguindo a teoria da objectivação (que reflecte a igualdade do bem jurídico da vida humana, independentemente da idade ou de qualquer outra distinção subjectiva - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2000 – disponível para consulta na base de dados da DGSI), quer relevando as circunstâncias especiais da vítima (ainda relativamente jovem, com a expectativa de uma longa vida), temos que o montante peticionado de € 50.000 não peca por excesso e terá que ser atendido.
*
3.7. Cumpre agora analisar os danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes.
O nosso ordenamento jurídico prevê expressamente a indemnização dos danos não patrimoniais, embora a sua formulação e sistematização não seja isenta de reparos (vd. entre outros, ALMEIDA COSTA, in Direito das Obrigações, Almedina, 6.ª Edição, pág. 504).
Nos termos do art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil, só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Assim, para que o dano seja indemnizável é necessário que o mesmo tenha uma determinada relevância jurídica, sendo irrelevantes, designadamente, os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala (ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 503).
No caso dos autos, encontram-se demonstrados factos suficientes para a atribuição de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, designadamente o desgosto e sofrimento causado pela perda de seu filho e que merecem a tutela do direito.
Tendo presentes as disposições legais em sede de obrigação de indemnização (art.º 562.º a 564.º e 496.º, do Código Civil), o circunstancialismo evidenciado pela matéria de facto (particularmente o grau de proximidade e convivência familiar; a angústia e sofrimento com o desaparecimento do seu ente querido; a longa e angustiante procura do esclarecimento sobre o seu desaparecimento; bem como a privação do cadáver do seu filho que continua até hoje oculto pelo demandado, privando-os de um luto condigno), decide-se arbitrar a peticionada compensação de € 25.000 a cada um.
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3.8. Ainda em sede de danos não patrimoniais, mas do próprio G... (filho), afigura-se que deverá haver lugar ao seu ressarcimento.
Na verdade, a vítima ainda experimentou brevemente a experiência da traição do seu melhor amigo. Foi atraída a um local e atacada mortalmente pelo arguido-demandado, devendo presumir-se o choque e a aflição que sentiu nos últimos momentos de vida às mãos de tão inesperado algoz.
Pelas mesmas razões de direito, afigura-se que esse dano também merece a tutela legal e a quantia de € 10.000 também se mostra ajustada à gravidade da conduta do A....
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3.9. Sobre as quantias apuradas venceram-se e vencer-se-ão juros à taxa legal desde a data da notificação do pedido, à taxa legal que estiver em vigor (art.ºs 483.º, n.º 1, 562.º, 563.º, n.º 1 e 2, 805.º, n.º 2, al. b), 806.º, n.º 1 e 2 e 559.º, n.º 1, do Código Civil).”

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III. Apreciação dos Recursos:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a conhecer são as seguintes:
A) Recurso interposto pelo Ministério Público:
- Saber se o Tribunal violou o disposto pelos artigos 113.º e 115.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 49.º, do Código de Processo Penal.
B) Recurso interposto pelo Arguido:
1 – Saber se o acórdão recorrido enferma do vício a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, em virtude de assentar numa mera indeterminação, não apresentar factos que sustentem os elementos subjectivos do ilícito como a intenção de matar, ou circunstâncias qualificativas, como a premeditação e motivo fútil.
2 – Saber se o acórdão recorrido enferma do vício a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, por não ter considerado prova necessária e não efectuada para a descoberta da verdade, ter considerado prova contaminada ou violadora do privilégio à não auto-incriminação, ter desconsiderado as máximas da experiência comum, da lógica e da ciência, e ter dado como provados factos assentes sem sustentáculo probatório algum ou com deficiente valoração.
3 – Saber se há erro de julgamento, por terem sido dados como provados os pontos de facto elencados em IV.1 a IV.17, na sequência do tribunal ter assentado o seu juízo decisório em presunções contrárias às regras da experiência comum e sem sustentáculo probatório algum, além de existirem concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida, devendo aqueles ser dados como não provados.
4 – Saber se, ao valorar prova violadora do princípio do privilégio à não auto-incriminação, o Tribunal violou os artigos, entre outros, 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, 60.º, 61.º, als. d), e) e f), 126.º, 150.º, 356.º, n.º 7, todos do CPP.
            5 – Saber se, ao não ordenar a realização de diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, o Tribunal violou o artigo 340.º, n.º 1, do CPP.
            6 – Saber se, ao suscitarem-se dúvidas razoáveis no julgador sobre a factualidade constante da acusação, o Tribunal, ao decidir em desfavor do arguido questões como o móbil, modo de cometimento, as alegadas agressões, a premeditação e as combinações, violou o princípio in dubio pro reo.
            7 – Saber se, ao decidir ao arrepio das regras da experiência comum, o Tribunal violou os artigos 127.º e 355.º, ambos do CPP, bem como, em consequência, os artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e j), e 254.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
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Na medida em que a procedência do recurso do arguido pode levar a uma alteração da matéria de facto com implicação directa no recurso do Ministério Público, este será conhecido em segundo lugar.
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A) Recurso interposto pelo Arguido:
1) e 2) Dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), do CPP:
Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:                     
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;                                    b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.                                                                                 Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.                             
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.          
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).       
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).                                                              
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).                            
De realçar que não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal deveria ter apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.   
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Feitas estas considerações de índole geral, vejamos o caso concreto.
No que diz respeito ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, o recorrente alega o seguinte:
III.1 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
            Independentemente da apreciação que tenha sido feita da prova para dar como provados os factos acima mencionados, a pergunta que se faz é a de saber se é possível ser motivo de crime de homicídio que alguém mate outra pessoa em virtude de lhe dever e não querer pagar “quantia pecuniária não concretamente apurada” (2.1.3, 2.1.4, 2.1.5)? É que, do ponto de vista estritamente jurídico, nem em crime menos grave, v.g. furto ou até roubo, se vê como tal seria possível.
            Com todo o respeito, o facto de alguém matar outra pessoa, mais a mais, alguém com quem tinha uma relação de amizade há mais de 22 anos (facto 2.1.1.) e com quem, aliás, residira durante cerca de dois anos (facto 2.1.2.), com premeditação e tudo por uma alegada dívida de uma quantia pecuniária indeterminada, fere as mais elementares regras da experiência comum e da lógica, dada a sua total implausibilidade.
            Se o móbil de um crime de homicídio é dinheiro, as regras da experiência comum e da lógica só têm um sentido possível: alguém mata para obter dinheiro de alguém, ou porque não paga ou, por modos eventualmente imagináveis, se subtrai tal quantia; nunca porque se deve.
            Deste modo para ultrapassar, este sentido de implausibilidade, é obrigatório que exista algo mais, como referido na douta decisão, que “seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.”
            É que uma quantia pecuniária não concretamente apurada (€10.00, €120,00, €1.000,00, €5.000,00????) pode ser tudo ou nada, é uma mera abstracção, e a pergunta que necessariamente fazemos, desde logo para inferir de elementos subjectivos do ilícito em presença, é se tal indeterminação poderá servir de apoio a uma decisão desta natureza que condena uma pessoa a 20 anos de prisão por homicídio.
            Com todo o respeito, parece-nos que não.
            É notório que o Tribunal, certamente percebendo que não tinha matéria para tal, lá foi criando uma habilidade argumentativa que é a de servir-se das regras da experiência comum (em modo contra-natura) para atribuir fundamento às circunstância agravantes, v.g. o motivo fútil, referindo que o alegado comportamento do arguido não é o do “ homem médio [que] não se determina a tirar a vida a outro homem, para mais um seu grande amigo, de longa data, que outrora o acolheu em sua casa, para evitar pagar uma dívida. Apesar de não se ter apurado o montante exacto da dívida, supõe-se que a dívida nem seria avultada em face das condições pessoais da vítima (modesto trabalhador por conta de outrem).”
            Com todo o respeito, este raciocínio só pode ser uma brincadeira do Tribunal, que é a de, não usar as regras de experiência em apoio à prova indiciária que carreou (na medida em que não há outra), mas antes negar tais regras, procurando pela negação das mesmas, gerar factos probandos, sem sustento em qualquer outro elemento de prova.
            Constitui uma clara inversão dos termos da natureza e função de tais regras de experiência, já de si frágeis, de tal modo que a acompanhar o entendimento que lhe foi dado pelo Tribunal o resultado só pode ser um: o caminho da arbitrariedade (vide, v.g. Ac. do TRE de 19-02-2013, Relator Desembargador António João Latas, Proc. nº 425/09.6GEPTM.E1)
            Daí que não podemos deixar de concluir que a decisão padece da inexistência de um móbil para o crime de homicídio, e padece, portanto, de factos que forneçam ao tal “homem médio” a que a decisão recorrida se reporta, um motivo, uma explicação, uma justificação, sob pena de a mesma assentar apenas em suposições coloridas (corroídas pela dúvida) sem qualquer representação na realidade.
            Depois a outra questão que, mais uma vez nos salta à vista e que nos colocamos, é a de saber como é que alguém decide premeditar atrair outrem a “local ermo e isolado” (pelo que foi dito pelas testemunhas não tão ermo e isolado como isso) para matar o desaparecido por asfixia, para depois previamente se envolver em confrontos físicos com essa mesma pessoa.
            É que isto não cabe na cabeça de ninguém!! Já percebemos que o Tribunal não usa as máximas da experiência comum do modo e quando se lho exige, mas como lhe convém.
            Mas pensemos, se o arguido pretendesse matar o desaparecido, o que obviamente não se concede, não seria mais fácil premeditar dar-lhe um tiro, já que se deu como provado que o arguido até tinha uma arma em dias pretéritos. Não seria mais fácil premeditar usar uma arma (que naturalmente não se andasse a exibir aos colegas de trabalho, seria demasiado estúpido) que não as próprias mãos. Não seria mais fácil até pensar: quando lá chegar arranjo uma pedra e dou-lhe com ela; aquilo é perto do meu trabalho, levo para lá um martelo ou uma outra ferramenta e dou-lhe com ela.
            E onde estão os factos que confiram consistência, designadamente a descrição da constituição física de arguido e do desaparecido para aferir desde logo da plausibilidade de alguém como o arguido ter força e meios para concretizar o cometimento de um crime por estrangulamento?
            Poderia continuar-se a fazer um exercício de imaginação quanto ao que seria a normalidade das coisas, pensar-se em quase tudo, v.g. uma discussão que redundaria numa das hipóteses antecedentes, que certamente ninguém aventaria a hipótese constante da decisão de alguém pretender atrair outrem a um local para o matar por asfixia e por uma quantia pecuniária não concretamente apurada.
            E não se aventaria por uma razão simples, é um absurdo e uma invenção.
            Daí que não podemos deixar de concluir que a decisão padece da inexistência de um modo (que seja real, não fantasioso) de cometimento do crime de homicídio, e padece, portanto, de factos que façam, mais uma vez, ao tal “homem médio” acreditar e confiar na decisão condenatória (bastando para tanto uma outra explicação compreensível e verosímil de como morreu - se morreu - o desaparecido), sob pena de a mesma também neste ponto assentar em meras suposições coloridas, sem qualquer representação na realidade das coisas.”
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            Temos presente que o vício ora em causa só se pode ter como existente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão fixada em termos de solução de direito correcta, ou seja, só estamos na sua presença quando o tribunal deixou de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir.
            Daqui decorre que a citada insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido apreciou a prova produzida, pois, nesse caso, apenas poderá existir erro de julgamento da matéria de facto.
            Revertendo ao nosso caso, o recorrente considera, em síntese, que a decisão padece da inexistência de um móbil para o crime de homicídio e da inexistência de um modo (que seja real, não fantasioso) de cometimento do crime de homicídio, adiantando quecertamente ninguém aventaria a hipótese constante da decisão de alguém pretender atrair outrem a um local para o matar por asfixia e por uma quantia pecuniária não concretamente apurada.
            O recorrente não demonstra que faltem factos que justifiquem a decisão recorrida, simplesmente considera que determinados factos constituem “absurdo e invenção”.
            Os factos (“pretender atrair outrem a um local para o matar por asfixia e por uma quantia pecuniária não concretamente apurada”) estão presentes no acórdão recorrido e justificam a decisão recorrida, em conjugação com os demais dados como provados.
            Estamos, portanto, no âmbito da pura discordância em relação à forma como a prova produzida em audiência foi apreciada pelo tribunal.           
            Por conseguinte, não padece o acórdão recorrido de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto.
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No que diz respeito ao vício do erro notório na apreciação da prova, o recorrente alega o seguinte:
            “III.3 – Erro notório na apreciação da prova
            III.3.1 – A prova necessária à descoberta da verdade
            O problema que nos merece mais censura na decisão recorrida, designadamente no seu texto, situa-se ao nível da apreciação da prova, ao modo como foi obtida e produzida, e às justificações avançadas para que a mesma não fosse sequer realizada.
            Não se trata apenas de um vício, mas de algo de chocante, mais a mais, quando se está em presença de um julgamento por homicídio.
            Para além da menção relativa aos meios de prova acima indicados na motivação, o Tribunal remete-se para uma auto justificação por não ter procedido a uma diligência de prova como o é a reconstituição de facto (art. 150º, do CPP), e que para todos os efeitos, reputava como necessária.
            Ora isto, com todo o respeito, é uma novidade, é algo mesmo nunca visto.
            Com um longo lamento, o Tribunal destaca a necessidade de tal diligência de tal modo que, encabeçando a apreciação crítica da prova, afirma “Uma vez que a morte de G... não terá sido presenciada por nenhuma testemunha, teria interesse proceder à reconstituição de facto de forma a testar mais evidente a versão da acusação” [nosso negrito e sublinhado]
            Aprecia-se criticamente a prova, não a efectuada, mas precisamente aquela que ficou por realizar, pese embora necessária, e para quê? Para despistar a versão da acusação, sendo certo que, quem assim fala, não pode deixar de desconfiar da mesma, do mesmo modo que, com todo o respeito, desconfiamos da presente decisão.
            E, como se verá adiante, a um olhar mediano e desinformado, de quem sem grandes considerações morais ou lógicas, logo se apercebe de que algo está mal, há algo de profundamente incorrecto nisto, se constata que tal diligência, mesmo que não efectuada de modo integral, era/é absolutamente essencial.
            Mais, o caso concreto demandava que se tivessem realizado, não uma, mas várias reconstituições de facto (vários testes à realidade das coisas, vários testes à versão da acusação, até vários testes à versão da defesa), dar consistência e realismo à decisão, para infirmar ou confirmar, v.g. a impossibilidade/possibilidade lógico-física de se produzir a “realidade que se deu como provada”.
            Ou seja, importava verificar da impossibilidade/possibilidade física de alguém, arguido ou outrem, a pé ou em veículo de qualquer espécie ou natureza, não só efectuar o percurso dado como provado, na linha temporal igualmente dada como provada, ocorrendo ainda, no seu permeio, tempo para agressões físicas, diálogos e discussões, encobrimentos e ocultação de cadáver, tudo, portanto, no lapso temporal de uns assombrosos 40 minutos em meio urbano e industrial.
            Era preciso testar a versão da acusação, a acima mencionada, mas também a versão da defesa suficientemente explanada em audiência, sob pena da matéria de facto dada como provada ser percebida como um mero conjunto de devaneios e divagações, que é o que actualmente ocorre.
            Com todo o respeito, a única explicação para tal diligência não ter sido efectuada é porque a versão da acusação (e, em consequência, a decisão), submetida à natureza das coisas, revelar-se-ia humanamente impossível, contra todas as regras da experiência e das leis da física, de tal modo que, a ter sido efectuada, o que não foi, percorrendo e efectuando v.g. as distâncias e comportamentos alegadamente percorridos e praticados pelo arguido, mesmo que a passo anormalmente acelerado, a mesma certamente ruiria sobre si própria.
            Para o entendimento do “homem médio” o que consta da matéria de facto dada como provada é uma impossibilidade física, e em consequência, até prova em contrário, uma inverdade e uma invenção.
            Continua o Tribunal que “O Ministério Público também nada determinou quanto a esta questão, enviando o processo para julgamento sem realizar a prova de reconstituição dos factos, (...)” e que, prossegue “cumpre consignar que o Tribunal teria todo o interesse em ordenar a realização dessa prova, por forma a contribuir para um melhor esclarecimento da verdade.” [nosso negrito e sublinhado]
            Continua ainda “Não obstante, pela própria natureza das coisas, percebeu-se que a colaboração do arguido seria imprescindível para a realização dessa prova e o A... apresentou no decurso da audiência uma versão em que nega os factos essenciais da acusação (..) (Já não havia ninguém que pudesse ou quisesse reconstituir os factos centrais da morte de G...).
            Ou seja, o Tribunal diz que considera essencial para o esclarecimento da verdade a realização de uma reconstituição de facto, diz que se reporta aos factos centrais da morte do desaparecido, apressa-se a condenar uma pessoa a 20 anos de prisão, e depois a culpa é da falta de colaboração do arguido???
            (Apelamos para a atenção dos Venerandos Desembargadores que o arguido, para além de ser acusado do crime de homicídio, ao longo da audiência foi também acusado de não ter efectuado diligências de prova que a Policia por inércia não fez, como ir buscar registos de videovigilâncias ao seu posto de trabalho, de não ter feito queixa de agressões das autoridades às autoridades num crime público de abuso de poderes ou tortura…)
            Continuamos:
            Então a prova é imprescindível para afastar a versão do arguido explicada em audiência, ou era para atestar da veracidade da acusação ??
            Mas o absurdo persiste num ponto, já falado e que retomamos, que se refere à apreciação relativa à circunstância agravante frieza de ânimo.
            E com todo o respeito, já o dissemos, só pode ser mais uma brincadeira do Tribunal. É negada ao arguido a possibilidade de se realizar uma reconstituição de facto, desde logo para se demonstrar da impossibilidade física quanto a percursos percorridos e comportamentos praticados, e sem qualquer pudor, atribui-se à panóplia de ocorrências alegadas e dadas (mal) como provadas, “a tal brevíssima janela de oportunidade (no intervalo para o almoço) (..)”, e constitui precisamente tal para fundamento de um juízo daquela natureza.
            Com todo o respeito, a “penitência” do Tribunal, primeiro quanto à não realização de uma diligência de prova essencial, e a decisão, depois, sobre a qualificação do crime, é algo que só pode gerar perplexidade ao recorrente.
            Não se trata pois de um julgamento, por natureza, normal, parece-nos mais, com todo o respeito, um escândalo, porque se há prova necessária a ser feita, deve o Tribunal pugnar pela sua realização, o que infelizmente e notoriamente, não o fez.
            Agora, analisemos a situação, então não sabemos nós que uma reconstituição de facto pode ser efectuada por “actores”, desde logo para despistar impossibilidades e pseudo-realidades que, à primeira vista e à percepção mais avisada, se dão muitas vezes erroneamente por adquiridas? E a culpa é do arguido?
            Já para não falar da inexistência de factualidade dada como provada quanto a elementos espácio-temporais (metros ou quilómetros percorridos, tempo consumido, etc.) que confiram alguma consistência, algum vislumbre de verdade, à decisão e nos levem, pelo menos, a acreditar que estamos perante ocorrências reais e não meras invenções/divagações dispersas, não sabemos nós que a percepção humana (mesmo a de quem julga) tende a errar, a exemplo das distâncias, tempos, designadamente em meio urbano e industrial, como seria o caso?
            O arguido, contra si próprio o referindo, não pode deixar de destacar que a reconstituição de facto, mesmo que em secções da linha de tempo em que terão ocorrido os alegados factos, não era de reduzida utilidade, era absolutamente crucial para a descoberta da verdade, dai que, com todo o respeito, é forçoso concluir que a douta decisão enferma de um erro manifesto.
            Tais reconstituições de facto não foram efectuadas, como o demandou, aliás, o juízo decisório a final, redundando a mesma, com todo o respeito, num juízo falível, lacunar, sem consistência, que não pode deixar de merecer total censura, na medida em que, com tal prova ou à falta dela, foi um homem condenado a 20 anos de prisão.
            III.3.2 – A investigação não realizada e a decisão sem hipóteses possíveis
            Outro aspecto que nos merece total censura é a espécie de apreciação comparativa (colagem), ao Caso Joana.
            Não tendo sido encontrado o corpo da alegada vítima/desaparecido, socorre-se do expendido naquele caso, como se os mesmos, por tal circunstância, pudessem ser iguais!!!
            Não descuramos que as analogias são uma importante ferramenta de análise, correlacionando ideias, mas isto no domínio do abstracto, nunca num julgamento de um caso concreto como este!
            Com algumas curiosidades, contudo, começando por aquela em que tendo sido a reconstituição de facto “a prova rainha” naquele caso Joana, a mesma foi negada, como já referido, no presente caso.
            No que toca à ausência em ambos os casos de prova directa, sendo, portanto necessário recorrer a prova indirecta ou indiciária, não pode o recorrente deixar de acompanhar o excurso ali expendido de que “a prova indirecta (ou indiciária) não é um minus relativamente à prova directa (..)” e que “exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.”
            Mais se dirá, que, ressalvando o destaque dado no caso Joana à importância e cautelas da prova indiciária, e na presente decisão acompanhadas, nada mais, no entender do recorrente, une os presentes casos.
            Não se pode pretender tornar igual, aquilo que é diferente em todos os demais aspectos, para além da inexistência de um corpo, sob pena de se negar justiça ao caso concreto que se encontra em audiência.
            Contudo, não vemos é como um Tribunal considera necessário um meio de prova como o era a reconstituição de facto, meio determinante e obrigatório para colocar a verdade a par com a realidade física objectivada (aquela que permitia testar como mais evidente a tese da acusação e até a da defesa), e depois, aliando-se tranquilamente ao excurso anterior, considere que foram afastadas todas as outras “hipóteses igualmente possíveis.”
            Não só não foram afastadas todas as hipóteses igualmente possíveis, há mais hipóteses como se verá, como a prova indiciária que acima se referiu, sustento da decisão condenatória, padece de vícios insupríveis tais, a exemplo do modo da sua obtenção (em contradição com o principio basilar do Direito Penal de privilégio do arguido à sua não auto-incriminação) que deveria também ter sido imediatamente posto em crise pelo Tribunal, negando-se-lhe qualquer valoração.
            Explicamos:
            A douta decisão de que se recorre, para negar a versão apresentada pelo arguido que afirmou ter sido sujeito durante a investigação a pressões dos agentes da Policia Judiciária na obtenção de prova e viciadoras do princípio de não auto-incriminação, socorre-se da apologia da virtude destes agentes.
            O recorrente não pode deixar também aqui de acompanhar a decisão condenatória na referência que faz de que na sua quase totalidade os inspectores da Policia Judiciária são gente séria que exerce com profissionalismo e isenção as suas funções e que, por regra não agridem suspeitos, nem usam métodos ilegais, mormente de obtenção de prova.
            O problema coloca-se precisamente nas “maçãs podres” que, salvo o devido respeito, deambulam em todas as organizações, sendo certo que também a Policia Judiciária não está imune a tal facto.
            Veja-se o exemplo do caso Joana, trazido à colação, em que precisamente dois agentes desta Policia foram recentemente condenados por forçar a obtenção de prova, a qualquer preço, recorrendo ao logro e à ameaça, quando não mesmo, em muitos outros casos, à tortura.
            Sobre este ponto, o arguido não pede muito, basta fazer pesquisa booleana, “policias+Portugal+tortura”  no Google.
            Contudo, o aspecto mais grave no caso presente, referenciado em pontos antecedentes e agora retomados (as hipóteses possíveis e a prova indiciária viciada) reporta-se ao facto, esse sim referenciado por diversas testemunhas (e até pelo próprio Tribunal), desde logo alguns dos agentes da Policia Judiciária e outros testemunhas, foi a intervenção directa e indirecta em todas as fases da investigação de um familiar e primo direito da vítima – Z..., conhecido por “ Z...” – também ele agente da Policia Judiciária de Leiria que, ao longo de todo o procedimento investigatório, actuou na sombra, qual “fantasma da ópera”, acompanhando presencialmente diligências, introduzindo-se nos locais de recolha de prova, recolhendo mesmo “prova”, entregando-a aos colegas encarregues da mesma, contaminando tudo à sua volta, construindo cenários, destruindo a verdade, e muito mais grave, no limite até do absurdo (isto porque se trata de uma investigação de homicídio e afinal estamos a falar de agentes treinados da Policia Judiciária) arrasando a investigação e a busca de outras hipóteses possíveis.
            Damos apenas um exemplo porque há muitos mais, D... refere que quem foi a casa dela recolher a carta oriunda da prisão e a roupa foi o primo Z... (o Z...) do desaparecido (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218 minuto 09.40s a 10.38s e 13.27s a 16.00s).
            Como é que isto foi possível? Como é que a hierarquia da Policia Judiciária permite que inspectores que tinham uma ligação emocional ao desaparecido, não possuíam qualquer delegação ou autorização para investigar, estão presentes depois em todas as diligências de investigação no presente caso?
            Ora, com todo o respeito por melhor opinião, como pode o recorrente acreditar numa decisão condenatória que assenta em tais pressupostos? Como aceitar que sejam dados como provados factos assentes em prova obtida (e contaminada) pela intervenção de agentes da Policia Judiciária limitados na sua isenção e independência.
            Nenhuma jurisdição civilizada permitiria tal contaminação e interferência, “importa ser, mas também há que parecer”, caso contrário sobrará apenas a dúvida, como aliás, está a acontecer.
            Como acreditar em investigadores que, logo no início (o arguido foi culpado disto também), abandonaram linhas de investigação igualmente possíveis, sendo certo que no processo e no decurso da audiência foram aventadas outras hipóteses, v.g. o facto da vítima, paralelamente ao seu trabalho, desenvolver outros negócios menos claros com indivíduos de nacionalidade brasileira e angolana, visível até pelas quantidades de dinheiro que exibia constantemente, muito acima do rendimento que auferia no seu trabalho habitual; o facto também de se relacionar amiúde com mulheres brasileiras de actividade discutível; o facto de se encontrar constantemente envolvido em esquemas de legalidade duvidosa; há documentos no processo; há depoimentos no inquérito.
            Por muito que se ache que se está perante pessoas e investigadores honestos, como pensamos que o são na sua maioria, não se pode deixar de concluir, face às evidências, que os mesmos se virão constrangidos a admitir como boa uma versão, negligenciando e não explorando todas as outras.
            E, com todo o respeito, não se trata aqui de uma mera elucubração do recorrente.
            V. Exas. não poderão deixar de constatar a persistente e inusitada presença deste agente da Policia Judiciária, Z..., quase sempre no local errado, há hora errada, assumindo funções e actuações, que pela natureza do caso exigiam o seu natural afastamento; constatarão também que agentes da Policia Judiciária que efectuaram apenas uma única diligência ao longo da investigação (veja-se bem, num caso de homicídio de meados 2012), num primeiro momento, dizem que já não se lembram de qual o colega que os acompanhava, para depois dizerem que afinal era o Z..., que os acompanhava, tal é evidente o seu comprometimento; (gravação em sistema digital existente neste tribunal Q...//passagem 20130222160908_82104_6521 minuto 03.56s a 08.15s e minuto 08.30s a 21.50s).
            Constatarão ainda a existência de documentos (v.g. fls. 514, ou declarações em inquérito de G... pai, a fls. 5) ou depoimentos existentes no processo ou mencionados em audiência, que apelavam para “outras hipóteses possíveis” mas que viram ser-lhes negada (já não falando da investigação) a instância em sede de audiência, prefigurando-se na mente do julgador uma decisão de condenação antecipada e prévia à mesma; assistirão com surpresa, a juízos efectuados, no limite do racional e muito para além do que é a mera convicção do julgador, na desconsideração total e absoluta do que foi dito pelas testemunhas ….
            Com todo o respeito, errou a Policia Judiciária, e errou, consequentemente, o Tribunal.
            O que nos leva a concluir ainda que, toda a prova indiciária obtida (contaminada) mediante a contribuição ou participação de Z..., primo da vítima, perito criminalista da Policia Judiciária, sem delegação para o efeito, e como esperamos, afastado pela hierarquia da investigação face à sua proximidade “emocional” com o caso, devia ter sido anulada pelo Tribunal, e em consequência não valorada.
            II.3.3 – Em concreto, o erro notório na apreciação da prova
            Ao nível da apreciação da prova a decisão merece-nos mais uma vez total censura. A “bota não bate com a perdigota” e as máximas da experiência comum, da ciência e da lógica, absolutamente cruciais no presente caso, encontram-se algures num caixote do lixo de uma qualquer sala ou gabinete do Tribunal de Tomar.
            Vejamos os erros notórios, que face à sua dimensão, nos obriga a tê-los como meramente exemplificativos:
            O primeiro erro, já aqui testemunhado, refere-se ao alegado móbil do crime e à “quantia pecuniária não concretamente apurada”, condenando-se uma pessoa com base num motivo inverosímil, indeterminado, num valor suposto que pode ir de pouco mais de zero até ao infinito.
            O segundo erro, também aqui já testemunhado, é o modo de cometimento do crime, a asfixia, mais uma vez, inverosímil e hipotética, contrariando grosseiramente as regras da experiência comum e da lógica.
            O terceiro erro, o desconsiderar-se que se quisesse o arguido matar o desaparecido certamente não teria escolhido e planeado para um dia de trabalho e junto ao seu posto de trabalho (“ao lado do local ermo e isolado”), tal tipo de actuação, mais a mais, sendo amigo do mesmo e com ele passando vários momentos da sua vida, que, como foi por demais relatado, até possuía câmaras de videovigilância conhecidas dos funcionários.
            O quarto erro, ainda que se admitindo, o que não se concede, que houve agressões entre o arguido e o desaparecido, pergunta-se onde está a prova que demonstre ter sido o arguido o agressor? Quem agrediu e quem se defendeu? V. Exas. Venerandos Desembargadores certamente não a encontrarão.
            O quinto erro, é o de saber onde está a prova que diga que foi o desaparecido que concordou encontrar-se com o arguido e não o contrário, ou que o arguido planeou, gizou o que quer que fosse. V. Exas. Venerandos Desembargadores certamente não a encontrarão.
            O sexto erro, ainda que se admitindo, o que não se concede, que o que está descrito na duvidosa acusação (palavras do Tribunal) é verdade, onde está a prova que afasta “uma das hipóteses possíveis”, v.g. a ocorrência de uma discussão que redundou num acidente. Também V. Exas. Venerandos Desembargadores, com todo o respeito, não lograrão encontrá-la.
            O sétimo erro, é o de saber como é que o Tribunal explica que o arguido por um lado queria fugir, e por outro, queria “desabafar para o papel” para que esse papel fosse encontrado pelas autoridades. É no mínimo contraditório. Será que o Tribunal é assim “tão-tão” vidente que se consegue colocar na mente de alguém verdadeiramente aterrorizado e de condição escolar baixa, para avaliar o que ia na alma do arguido? Parece-nos que não.
            O oitavo erro, é aquele em que o arguido é acusado (entre outras coisas, foi também acusado de não reunir prova) de não apresentar queixa pelas agressões sofridas por agentes policiais.
            Trata-se de algo que gera perplexidade e merece alguma reflexão.
            Três Juízes, um Procurador da República, obrigados por dever de oficio, ao ouvirem de um cidadão, qualquer que seja a sua condição, que agentes da Policia Judiciária o espancaram no dia 28 de Abril, mandaria o mínimo que ordenassem a extracção imediata de certidão para inquérito – estamos a falar de um crime público que vai de abuso de poderes até tortura ou outra coisa feia, que juntassem CD´s das declarações dos colegas de trabalho do arguido – três, nada menos e isto no espaço confinado de uma carrinha -, que disseram preto no branco que o arguido não tinha quaisquer lesões na cara, na boca, etc. etc,, nem a roupa suja! Ainda as declarações da mulher D... que disse que o marido no dia 24 não tinha nada, que no dia 25 andaram na horta a queimar balsas (silvas) e tinham as mãos e pernas arranhados das mesmas, e ainda do agente da PSP X.., que no dia 28 de Abril algemou e entregou o arguido à Policia Judiciária, de manhã, em que ele não tinha nada, nenhuma lesão, estava normal, e para acabar, as declarações da mulher do arguido D... referindo que só conseguiu ver o marido dois dias depois em que andou sozinho com a Policia Judiciária, num vaivém, urinado, “mijado de medo”, e aí então o viu pela primeira vez já com as tais lesões descritas na perícia do INML, à qual adiante faremos referência suficiente.
            E então face a isto a culpa é do arguido? Estamos nós como o Cândido de Voltaire “no nosso melhor dos mundos”, com todo o respeito, parece-nos que não.
            Venerandos Desembargadores, compreende-se o entendimento do Tribunal, a ideia de existirem policias a espancar cidadãos para lhes arrancar confissões ou coagi-los a fazê-las, é algo de tal modo repugnante e chocante, que a primeira reacção é a negação. Não pode ser verdade. Isto não pode existir num pais civilizado como o nosso em pleno século XXI. Palavras da Mma Juíza do Colectivo “Vivemos num Estado de Direito Democrático, isso não é possível”!
            É possível, e a gravação existente em sistema digital do Tribunal de Tomar, atesta-o.
            O nono erro, que revisitamos, é o Tribunal valorar prova assente numa flagrante e grosseira violação do privilégio do arguido à sua não auto-incriminação. Como é que é possível, no tal Estado de Direito Democrático que a Mma Juíza falava, que agentes da Policia Judiciária, violando as mais sagradas regras desse mesmo Estado, andem cerca de 48 horas com o arguido de um lado para o outro, rodeado de agentes, sem possibilidade de contacto com um familiar ou defensor, a fazer reportagens fotográficas e sabemos lá mais o quê, ferido e sem auxilio médico algum, “mijado de medo”, e tudo isto é aceite assim pacificamente?
            Se havia uma reconstituição de facto a fazer (a tal que ainda estamos à espera) não seria de contactar imediatamente o Ministério Público para obter as necessárias autorizações e garantias. O Código do Processo Penal é algo apenas para inglês ver? Se a impunidade atinge este nível, se não se respeitam leis e princípios basilares, respeita-se quem? Os Juízes?
            No mínimo, tais provas – isto é se podemos chamá-las de tal – teriam que merecer castigo severo, e o mais óbvio é a sua não valoração.
            Estes os erros manifestos, entre outros, da decisão recorrida, de uma decisão, com todo o respeito, que não conseguiu ver para além da superfície, do chavão gasto, e do seu próprio medo.”
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Relembre-se que só é possível falar de erro notório na apreciação da prova quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Por isso mesmo, não é de incluir neste vício a sindicância que um recorrente pretende efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida em audiência, valoração a ser feita de acordo com o estabelecido no artigo 127.º, do CPP.
Ora, os nove erros atrás apontados em concreto (e é isso que, para agora, interessa) não se referem ao teor da decisão em si (perceptível ao homem médio), antes colocam em crise a valoração que o Tribunal recorrido fez da prova.
            Estamos, portanto, e uma vez mais, no âmbito da pura discordância em relação à forma como a prova produzida em audiência foi apreciada.           
            Por conseguinte, não padece o acórdão recorrido de erro notório na apreciação da prova.
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3) Do erro de julgamento:
            O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, nºs 3 e 4, do CPP, considerando que a mesma “padece de flagrante erro de julgamento, em alguns pontos, fundada num juízo arbitrário, sem sustento em qualquer prova, ainda que indiciária, e em outros, fundada em prova meramente circunstancial”.
            Nessa medida, entende que determinados factos dados como provados devem ser dados por não provados.
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Importa reter que o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.          Quando está em causa este vício, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412.º, do CPP.   
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.                                                             E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.:
«3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:                                                                                                                                a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;                        b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;                               c)-As provas que devem ser renovadas».                                                                             A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.                                                  Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.                                                                                                    Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.                                 Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.                                        Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Acórdão de 14/7/2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:             
- Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;                                                                         - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou                                                                                                         - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas.                                                                              Mas tal não basta.                                                                                                                  Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.                                                                                                              Este é o cerne do dever de especificação.                                                                                                                                    ****
            Vejamos, então, se são indicadas pelo arguido/recorrente provas concretas que possam impor decisão diversa da recorrida.
            A apreciação que irá ser feita terá por base três aspectos essenciais.
Em primeiro lugar, convém deixar claro que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância.
E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no art.º 127.º, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se, princípio este a ter sempre presente, quando nos movemos no âmbito da impugnação de facto, em sentido amplo, ao qual nos dedicaremos mais em pormenor, aquando do conhecimento da última questão suscitada no recurso.
Em segundo lugar, convém ter bem presente que o arguido, aquando do primeiro interrogatório judicial, prestou declarações (auto de fls. 259/276, datado de 30 de Abril de 2012).
Pois bem, do disposto no artigo 355.º, do CPP, preceito que enuncia os princípios de proibição de valoração de prova, resulta, segundo a norma do n.º 1, que «não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência», com ressalva, nos termos do n.º 2, quanto às «provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas».
É o que acontece, justamente, com as declarações anteriormente prestadas perante o juiz, as quais podem ser lidas quando houver contradições ou discrepâncias com as feitas em audiência (artigo 356.º, n.º 3, do CPP).
Ora, permitindo, ainda, o artigo 357.º, do CPP, a leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido perante um juiz, ainda que, note-se, prestadas no decurso de 1.º interrogatório judicial de arguidos detidos e contidas no respectivo auto, quando houver contradições ou discrepâncias sensíveis entre elas e as feitas em audiência, que não possam ser esclarecidas de outro modo, não constitui violação de qualquer preceito legal a circunstância de o tribunal de 1.ª instância valorar, enquanto manifestação do princípio da livre apreciação da prova, o teor das respectivas declarações do arguido no primeiro dos referidos actos processuais.
Nem poderia ser de outra forma, sob pena de estar criado um acto inútil, o que a lei não quer, e de ser aberta a porta a uma estratégia de defesa na fronteira de um verdadeiro estratagema que consistiria na possibilidade de alguém assumir a prática de certos factos perante um juiz de direito, num primeiro momento, para depois, mais tarde, em julgamento, sem mais, isso ser colocado em causa.
Em terceiro lugar, saliente-se que o depoimento de uma testemunha não pode ser compreendido só através de certas frases e de afirmações de cariz subjectivo, fora do contexto global em que estas estão inseridas.
Diga-se, ainda, que as conclusões e suposições, assim como a referência a “conversas informais” (estamos a pensar nos testemunhos dos agentes policiais), são sempre inevitáveis numa narração de factos, sob pena de ser exigido a quem depõe um exercício de auto-censura, inibidor de um raciocínio que deve ser espontâneo e não sincopado, decorrente de várias interrupções e chamadas de atenção.
Importante é que as mesmas sejam expurgadas no momento da avaliação do Tribunal.
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            Dito isto, sem dúvida que não é possível ajuizar da justeza da impugnação da matéria de facto trazida aos autos pelo ora recorrente sem ter presente o que foi dito em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, uma vez que, como resulta do acórdão recorrido, as respectivas declarações foram relevantes para a convicção do Tribunal a quo (consta da acta de audiência de discussão e julgamento de fls. 775/779 o seguinte Despacho: “O tribunal determina a leitura do auto de interrogatório judicial do arguido a fls. 259, visto que há notórias e absolutas contradições em face do relato anteriormente efectuado, particularmente quanto à autoria do imputado homicídio, conforme o disposto no artigo 357.º, n.º 1, al. b), do CPP. Notifique.”; e aí mais consta que não houve qualquer oposição ao decidido e que o respectivo auto foi lido em voz alta).
            Assim sendo, para uma melhor apreensão da prova produzida em audiência de julgamento, passamos a reproduzir o que consta do citado auto, a fls. 263/266:
            “Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações:
            Inquirido disse:
            Era amigo de G... desde há 22 anos, sendo certo que chegou a residir na casa do referido G... e dos seus pais durante um ano, apenas tendo saído dessa residência no dia do seu casamento.
            No dia 23 de Abril de 2012, o referido G... deslocou-se ao local de trabalho do arguido (Empresa x...) e combinaram encontrar-se no dia seguinte, dia 24 de Abril, pelas 12 horas e 50 minutos. Nessa ocasião, o referido G... disse-lhe que pretendia que o arguido o levasse a um local. Não obstante o arguido ter assuntos pessoais para tratar nesse dia e a essa hora, não perguntou a G... o motivo pelo qual o mesmo precisava daquela boleia.
             No dia 24 de manhã, o arguido e G... encontraram-se e confirmaram o encontro a ter lugar na hora do almoço. Mais uma vez o arguido não perguntou ao referido G... o motivo pelo qual precisava de boleia.
            À hora do almoço, conforme o acordado, encontraram-se junto à empresa (...), num local visível nas fotografias de fls. 220. Aí, G... deixou o seu carro, entrou no carro do arguido, conforme fotografias de fls. 221, e acompanhou o arguido até ao local visível em fls. 222 e 223. Nesse local, o referido G... solicitou ao arguido que lhe emprestasse a quantia de 1500 euros, tendo-lhe dito que pretendia entregar essa quantia a uma pessoa que não identificou.
            O arguido respondeu que apenas emprestaria tal quantia se o referido G... devolvesse a verba de 120 euros que lhe tinha emprestado. Na sequência desta troca de palavras, ambos começaram a discutir, sendo que o referido G... acusou ainda o arguido de estar envolvido com uma mulher de nacionalidade brasileira com quem o aludido G... mantinha também um relacionamento amoroso.
            O arguido refere desconhecer a identidade dessa mulher de nacionalidade brasileira e apenas saber que o referido G... estava envolvido com a mesma, desde Agosto de 2011, e utilizava um telemóvel com o n.º 92 para contactar com a mesma.
            No decurso dessa discussão, G... tentou agredir o arguido com um murro, mas este conseguiu desviar-se e empurrar G... por uma ribanceira abaixo, conforme fotografia de fls. 223. No fundo dessa ribanceira, iniciaram uma luta corpo a corpo, sendo que o arguido conseguiu deitar G... ao chão (ficou deitado de barriga para cima) e colocar-se por cima do mesmo, imobilizando-o. Utilizando as suas próprias mãos, o arguido colocou-as no pescoço de G... e tentou asfixiá-lo. Não obstante, G... conseguiu virar-se e colocar-se de barriga para baixo. Nesse momento, o arguido meteu as mãos aos bolsos e retirou um par de luvas que calçou e com as mesmas voltou a apertar o pescoço de G..., tendo também feito uso da roupa que G... utilizava para com a mesma o asfixiar. Refere que foi na sequência desta sua conduta que G... veio a desfalecer ficando inanimado.
            Esclarece ainda que utilizou aquelas luvas para não deixar marca e que se tratavam de luvas do trabalho que tinha comprado há três dias e que por acaso se encontravam nos seus bolsos.
            Confrontado com fotografias de fls. 224 a 226, refere que foi nesse local onde lutou com a vítima e onde acabou por esconder o corpo.
            Confrontado com fotografias de fls. 227 a 231, confirma que as mesmas correspondem à sequência cronológica dos factos por si praticados após ter abandonado o corpo no mato.
            Esclarece ainda que deitou o telemóvel da vítima no lixo para não deixar nada suspeito que o pudesse incriminar.
            Pelo mesmo motivo deitou fora a roupa que envergava no dia 24.
            No resto do dia 24 foi trabalhar e depois foi para casa, tendo feito a sua vida normal.
            No dia 25 de manhã, deitou o outro telemóvel da vítima no ecoponto também com o intuito de não deixar nada suspeito que o pudesse comprometer com os factos.
            No dia 25 à tarde, após o almoço, regressou ao local onde tinha deixado o corpo de G... e, colocando-o por cima dos ombros, transportou-o para junto do seu veículo, conforme fotografias de fls. 233 a 235.
            Com o auxílio de um lençol, embrulhou o corpo de G... e colocou-o dentro da bagageira do veículo, conforme fotografia de fls. 236.
            Depois, deslocou-se para a praia do Norte, na Nazaré. Aí chegado, pelas 14:30/14:40, retirou o corpo do interior da bagageira do veículo e voltou a transportá-lo aos ombros para junto do areal, conforme fotografias de fls. 237 a 239. Neste percurso, parou duas vezes para descansar, bem como para evitar ser visto por terceiros.
            Por fim, acabou por largar o corpo de G... a partir de uma rocha e para zona de rebentação, conforme fotografia de fls. 239.
            Ainda ficou cerca de meia hora naquele local a verificar se o corpo de G... era levado pelo mar. Depois, regressou a casa, tomou banho e lavou de imediato a roupa que tinha envergado nesse dia 25 de manhã e que é visível nas fotografias 5 e 6 de fls. 252 e 253.
            A roupa que utilizou no dia 25 da parte da tarde deitou-a fora.
            A roupa que utilizou no dia 24 é aquela visível nas fotos 10 e 11 de fls. 255.
            O calçado que utilizou no dia 25 é aquele visível a fls. 256.
            Confrontado com as fotografias de fls. 171 a 178, refere que nas mesmas são visíveis as lesões com que ficou, na sequência da luta com G....
            Confrontado com os documentos de fls. 124 a 135, refere que foi o arguido quem escreveu integralmente tal texto e que o seu conteúdo, no essencial, não corresponde à verdade. No entanto, refere que há um grupo de brasileiros, cuja identidade desconhece, e “por um motivo ou outro” o iam perseguir e por esse motivo sentia-se apavorado e aterrorizado.
            Porém, nunca foi ameaçado por ninguém de nacionalidade brasileira.
            Escreveu esse texto no dia 27 de Abril para ter um álibi.
            No dia 26, percebeu que já andavam no seu encalce, uma vez que se apercebeu que andava polícia na casa da sua irmã.
            Nesse mesmo dia, a partir de uma cabine telefónica da estação do Entroncamento, telefonou à sua esposa, dizendo-lhe para tratar do IRS e para a mesma seguir com a sua vida.
            Além disso, pediu à sua mãe para ligar para o seu local de trabalho, avisar que iria trabalhar na segunda-feira, bem como saber se tinha o adiantamento do subsídio de férias.
            No dia 27, à noite, um colega de trabalho informou-o que as suas contas bancárias estavam “congeladas”.
            Refere que fez a mala contendo roupa e artigos de higiene, a fls. 136 a 137, uma vez que lhe passou tudo pela cabeça, inclusive fugir. Refere ainda que enviou o SMS para despistar.
            Por último, refere que actuou com medo que G... lhe fizesse mal e nunca teve intenção de o matar.
            Quanto à sua situação sócio económica e familiar, disse:
            Trabalha para a empresa (...), auferindo cerca de 800 euros, dos quais eram descontados cerca de 200 euros para pagamento de uma dívida contraída junto da Unibanc. Tem ainda dívidas junto da Cetelem, Credibom e Barclays, tudo no valor aproximado de 7000 euros, estando ainda a amortizar crédito bancário para aquisição de habitação própria, sendo a prestação mensal no valor de cerca de 300 euros. A sua esposa trabalha no (...), em (...), e aufere presentemente cerca de 700 euros. Tem um filho de 10 anos e uma filha de 14 anos.
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            É chegado o momento de apreciar, em concreto, a impugnação da matéria de facto ora em causa.
            Por mera questão de facilidade na exposição do nosso raciocínio e, ainda como forma de evitar repetições, tendo em conta como são apresentados os argumentos no recurso, iremos começar por fazer uma apreciação em conjunto de alguns dos factos, deixando, para mais tarde, uma análise específica para aqueles que o justifiquem.
                                                                       ****
            Merecem uma abordagem conjunta, os seguintes factos (é citada a respectiva alegação, para melhor compreensão):
            1) “IV.2 - O dinheiro como móbil do crime
            No ponto 2.1.5 é dado como provado que o arguido decidiu matar G... porque este insistiu no pagamento da quantia não concretamente apurada.
            É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.”
                                                                       ****
            2) “IV.3 – O modo do cometimento do crime – a asfixia
            No ponto 2.1.6 é dado como provado, para além do mais, que o arguido decidiu matar G..., por asfixia.
            É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            Decidir matar alguém, no contexto oferecido pela acusação, não é um absurdo, é apenas ridículo, reiterando aqui o que já foi referido sobre este tema.”
                                                                       ****
            3) “IV.4 – A decisão de atrair G... para local ermo e isolado e a combinação
            Nos pontos 2.1.6, 2.1.7., 2.1.8, é dado como provado, para além do mais, que o arguido atraiu G... a local ermo e isolado, combinando com o mesmo, e aquele concordando com ele.
            Mais uma estranheza da matéria de facto dada como provada, já que resultou das declarações do arguido, bem como dos depoimentos dos elementos da Policia Judiciária, que esteve num local preciso onde se deslocou com o desaparecido, a pedido deste.
            Porque não então identificar o local preciso como sendo a zona lateral da empresa x... que não é afinal um local, nem ermo, nem isolado? Trata-se de uma zona industrial com várias fábricas, designadamente a x... e uma serração, sendo falso portanto que se trate de local ermo e isolado.
            Por outro lado, pergunta-se: onde está a prova que de modo incontroverso diga que foi o arguido que atraiu o desaparecido para o tal local a 400 metros, na lateral da x..., ou que foi o mesmo que combinou em encontro? Não há prova, porquanto o que há são apenas registos de contactos telefónicos entre ambos, o que era coisa habitual, já que eram muito amigos, reafirmado pelo arguido, corroborado pela sua ex-mulher D... e por todas as outras testemunhas amigas comuns da família do G... e ainda pelos colegas de trabalho de ambos.
            Além do mais, o arguido, por várias vezes, instado pelo Mmo. Juiz sobre tais factos foi peremptório em afirmar que foi o G... que se deslocou ao seu emprego na x... no dia 23 de Abril, pela 16 horas e 40 minutos, a pedir-lhe para este lhe prestasse um favor no dia seguinte (24 de Abril), que era levá-lo a um determinado sitio devido a um encontro com uma moça de nacionalidade brasileira e por isso no dia 24 foi ter com ele à empresa onde o G... trabalhava (gravação em sistema digital existente neste tribunal – A...//passagem 20130220102200_82104_65218, minuto 06.40s a 08.30s).
            E se a combinação fora, por mera hipótese, efectuada pelo arguido, por que razão o desaparecido (2.1.9. e 2.1.10.) se preocuparia em informar o seu chefe de trabalho II... de que teria de se ausentar à hora de almoço. Será que no entendimento do Tribunal também foi o arguido que disse ao desaparecido para mentir ao chefe dizendo que ia a uma consulta médica com o pai? E se tinha sido o arguido a combinar, por que razão o desaparecido, mentindo ao chefe, supõe logo que vai atrasar-se para além da sua hora do almoço? (gravação em sistema digital existente neste tribunal – II...//passagem 201302221114435_82104_65218, minuto 01.10s a 02.34s).
            Os tais saltos lógicos que o Tribunal não se dá minimamente ao trabalho de explicar.
            Se o combinado era encontrarem-se no local ermo e isolado a 400 metros da x..., o arguido por exemplo podia deslocar-se a pé e em poucos minutos do seu emprego naquela empresa até esse local, sendo, pelo menos para ele e se houvesse quaisquer intenções predeterminadas, absolutamente desnecessária a paragem intermédia na (...). Não nos parece?
            Pergunta-se portanto: onde está a prova indiciária ou a regra da experiência comum que infirme a declaração do arguido em como foi o desaparecido que tudo combinou? Com todo o respeito, não a vislumbramos, há limites para a convicção do julgador, pelo menos um: a arbitrariedade.
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            4) “IV.5 – O transporte pelo arguido no seu veículo da (...) para o local junto da x....
            Nos pontos 2.1.11. e 2.1.12., 2.1.14., 2.1.15, 2.1.16., 2.1.17., é dado como provado, para além do mais, que na sequência do acordado entre ambos (agora o arguido já não atraiu, nem combinou, foi acordado entre ambos!), no dia 24 de Abril encontraram-se na (...) cada um na sua viatura, que depois o G... entrou na viatura do arguido e foram juntos, a convencimento do arguido, para o tal local ermo e isolado.
            Mais uma vez não se compreende em que prova se apoia o Tribunal para afirmar que o arguido convenceu o desaparecido a entrar no seu carro para irem para o tal local. Já sabemos que eram amigos de longa data, pelo que afirma-se como despropositado a ideia de um convencimento.
            Depoimentos vários, como o de D... e LP.. revelaram que era até habitual o arguido emprestar o carro ao desaparecido e trocarem de carro. (gravação em sistema digital existente neste Tribunal LP..//passagem 20130222164852_82104_65218, minuto 34.54s a 37.10s).
            Mas mais importante, o arguido confessou em audiência que efectivamente se deslocou à (...) e depois passou nas traseiras da x... acompanhado do desaparecido e de dois brasileiros que os abordaram violentamente, destacando até que seria uma estupidez pretender querer fazer mal ao seu amigo indo expor-se às câmaras de vigilância existentes na x... (gravação em sistema digital existente neste tribunal A...//passagem 20130220102200_82104_65218
            R..., colega e chefe do arguido na firma x..., referiu que naquele dia 24 visionou as imagens do sistema de circuito fechado da x... (imagens que não existem nem constam do processo, mas que ele refere terem sido entregues à Policia Judiciária – Pergunta-se onde estão?), tendo detectado a passagem do veículo do arguido pelas 12,45 horas por detrás das instalações e passados 20 minutos viu o mesmo veículo passar no sentido contrário (gravação em sistema digital existente neste tribunal. R...//passagem 20130221095730_82104_65218, minuto 42.00s a 48.55s), sendo certo que a testemunha R...não conseguiu das imagens visionar quem eram os ocupantes, em que número ou quem conduzia.
            Como mera curiosidade ocorrida em audiência, mas que dá bem a ideia do que de grave ali se passou, durante as declarações do arguido chegou o mesmo a ser “admoestado” pelo Mmo. Juiz Presidente pelo facto de, em virtude dos inspectores da Policia Judiciária não terem tido o discernimento de ir recolher essas imagens, que ele arguido deveria tê-lo feito (gravação em sistema digital existente neste tribunal A...//passagem 20130220120232_82104_65218 minuto 28.14s a 32.10s e minuto 48.00s a 48.30s).
            Contudo, face às declarações de R...que declarou ter entregue as imagens aos agentes da Policia Judiciária, o mistério adensa-se, “tudo está bem em terras de sua Majestade”!!!, sendo certo que constitui sempre uma novidade um arguido num julgamento ser severamente criticado por não ter junto prova que fazia falta aos autos e que pela inércia policial não se logrou obter.
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            5) “IV.7 – O par de luvas levado com intuito de estrangular
            No ponto 2.1.13. é dado ainda como provado que o arguido levou um par de luvas com o intuito de as calçar e para melhor concretizar o seu propósito de estrangular G... e, desse modo, matá-lo.
            É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            Tanto assim é que nem o próprio Tribunal se deu ao trabalho de alguma vez dar como provado que o arguido, a ser verdade o ali mencionado, o que não se concede, alguma vez sequer as tenha calçado. Onde? Na (...)? Antes ou depois das agressões?”
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            6) “IV.8 – As agressões físicas entre o arguido e G...
            Nos pontos 2.1.18., 2.1.19., 2.1.20., é dado como provado de que o arguido iniciou uma agressão física ao G... e no desenrolar desse confronto empurrou-o para uma ribanceira, onde ele caiu e depois foi ao fundo da ribanceira onde continuou a agredir G... e este a defender-se.
            É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            Além do mais, mesmo a admitir-se como verdadeiras essa sequência de agressões, o que não se concede, a pergunta que fica é a de saber em que prova se sustenta a decisão para afastar o inicio das agressões, não pelo arguido, mas pelo G..., e em que prova se fundamenta para referenciar uma ribanceira (porventura no tal local ermo e isolado que o Tribunal não quis especificar como sendo a 400 metros da x... e a que a Policia Judiciária nem sequer se deu ao trabalho de infirmar ou confirmar tal realidade), donde toda a matéria de facto ali explanada é uma mera construção criativa. (gravação em sistema digital existente neste tribunal S...//passagem 20130222150428_82104_65218 minuto 04.57s a 08.05s).”
                                                                       ****
            7) “IV.11 – O deitar ao solo o desaparecido para o asfixiar
            Nos pontos 2.1.23, 2.1.24., 2.1.25, 2.1.26., 2.1.27., 2.1.28., 2.1.29., 2.1.30., 2.1.32. é dado como provado, em síntese, que o arguido mandou para o solo o desaparecido, sentou-se sobre ele, imobilizando-o, colocou as mãos em redor do pescoço, apertou-o, depois o desaparecido voltou-se, e o arguido sentou-se sobre as costas do mesmo, mais uma vez colocou as mãos sobre o pescoço do mesmo, apertou-o outra vez, estrangulou-o e G... morreu.
            É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            Deixam-se apenas perguntas, servindo as mesmas à falta de prova favorável ou desfavorável como fundamentos que impõem decisão diversa da recorrida, desde logo questionando-se: em que momento é que o arguido calçou as tais luvas que levara premeditadamente para asfixiar G...? Antes ou depois das alegadas agressões? E quando o desaparecido se virou de costas, como é que foi o estrangulamento? Foi por trás, apertando a cervical, as vértebras? Sendo G... pessoa mais corpulenta e forte que o arguido, como foi? O arguido pregou-lhe uma rasteira, apanhou-o desprevenido?”
                                                                       ****
            8) “IV.13 – Os telemóveis e os contactos posteriores
            Nos pontos 2.1.33., 2.1.34., 2.1.35., 2.1.37., 2.146., 2.1.47., 2.1.48., 2.1.49., 2.1.50., 2.1.51., 2.1.54., 2.1.56., 2.1.62., 2.1.63., 2.1.64., é dado como provado que o arguido tirou telemóveis ao desaparecido, que digitou e enviou mensagens
            O arguido confessou que teve na sua posse tais telemóveis e que os mesmos lhe foram dados por indivíduos de nacionalidade brasileira que o abordaram a si e ao desaparecido junto à (...) usando de métodos violentos e coagindo-o a, sob ameaça à sua família, mulher e filhos, a utilizar os mesmos.
            Cabe na convicção do Tribunal acreditar ou não na versão do arguido, contudo, o que é inaceitável é circunscrever toda a actuação policial, e depois judicial, apenas a uma hipótese possível, a única, quando o processo é fértil em informação que apontava para a presença de indivíduos de nacionalidade brasileira ligados ao desaparecido, com conhecimento até da Policia Judiciária que, por uma vez pelo menos, se dirigiu à casa de alterne “Indra” (logo abandonando essa linha de investigação).
            E como, com todo o respeito, a decisão de que recorre sustenta a sua fundamentação em exercícios de imaginação criativa, já o dissemos para lá dos limites do que é a livre convicção objectiva do julgador (fundada em regras objectivas da experiência e senso comum) também nós, com recurso à mesma fonte, não podemos deixar de admitir (leiam-se os jornais) que a zona centro, palco dos factos alegadamente ocorridos nos presentes autos, é um verdadeiro supermercado de prostituição e alterne, liderado por máfias essencialmente brasileiras, que conduzem este e outros esquemas ilícitos.
            Pois bem, em que é que andava metido o desaparecido para ter tanto dinheiro? Nem a Policia Judiciária, nem o Tribunal o sabem porque nada foi investigado.”
                                                                       ****
            9) “IV.16 – A intenção de matar
            Nos pontos 2.1.70. 2.1.71., 2.1.72., 2.1.73., 2.1.82., é dado como provado, em síntese, que o arguido teve intenção de matar por asfixia e que o mesmo levava à morte de G....
            Os elementos subjectivos do ilícito adquirem-se por inferência à luz dos demais factos e comportamentos do arguido. Mas como inferir algo a partir do nada? O móbil do crime dado como provado mais do que irrealista é absurdo.            
            O modo do cometimento do crime, mais do que absurdo, é ridículo. Mesmo que por mera hipótese se admitisse como verdadeiros alguns dos demais factos dados como provados, o que não se concebe, o que fica? Um mero acidente?”
                                                                       ****
            10) “IV.17 – A premeditação, o motivo fútil e a frieza de ânimo
            Nos pontos 2.1.74, e 2.1.75. é dado como provado que o arguido planeou antecipadamente o encontro e o modo como iria matar G....
            Já tivemos oportunidade de referir o quão gritante é a utilização contrária que é feita das regras de experiência comum.
            Falámos na altura de uma brincadeira do Tribunal, que, sabendo da dificuldade de enquadrar a realidade objectiva das coisas nos factos que tem em mão para trabalhar, se socorreu dessa habilidade argumentativa nunca vista.
            Se as regras da experiência comum existem para atribuir alguma liberdade ao juízo judicial e à formação da sua convicção, a aplicação que delas foi feita no presente caso é irregular. Constitui uma novidade certamente.
            Só que o mais grave é que nem sequer, como já igualmente acima referido, existe prova de tal facto. É uma criação judicial, para não usarmos palavra ainda mais dura.
            Há registos de contactos telefónicos entre arguido e desaparecido, nada existindo, contudo, que permita vislumbrar quem combinou o quê, para quê, e para quando.
            E falando em indícios, tudo indicia (mesmo desconsiderando as declarações do arguido em audiência) o contrário e que quem combinou tal encontro foi o desaparecido, bastando para tal enquadrar que foi o mesmo que pediu ao chefe que provavelmente se iria atrasar na hora do almoço. E depois, se fosse objectivo do arguido o encontro no tal local ermo e isolado a 400 metros do seu local de trabalho (dá para ir a pé) para quê os veículos, para quê a ida à (...)?”
                                                                       ****
            Quanto aos factos acabados de elencar, podemos encontrar um denominador comum entre eles - o recorrente limita-se a criticar a valoração da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo, sem avançar qualquer dado objectivo no sentido de impor uma decisão diversa.
            Para tanto, considera que certos factos constituem “invenção”, além de fazer várias perguntas sem cuidar de dar respostas e citar certas passagens da gravação da audiência que, quanto muito, permitem apenas uma outra abordagem da prova.
            Ora, sabendo nós que, em sede de erro de julgamento, cabe ao recorrente demonstrar que existe prova que imponha uma outra decisão, na falta de um elemento inequívoco nesse sentido, nada justifica uma alteração da matéria de facto, tanto mais que se revelam inócuas considerações de mero teor subjectivo.
            Isto bastaria para considerar inglória a impugnação apresentada pelo recorrente.
            De qualquer das formas, entendemos por bem, adiantar algo mais.
            Assim, não se argumente que há factos inventados pelo Tribunal.
            Começando pelo ponto 2.1.5, onde é dado como provado que o arguido decidiu matar G..., porque este insistiu no pagamento da quantia não concretamente apurada, todos estamos de acordo que não há prova directa, sendo cristalino que ele existe em função de prova indirecta.
Acontece que, como não poderia deixar de ser num caso como o dos autos (imputação de um crime de homicídio e de um crime de profanação de cadáver, no qual o arguido, em julgamento, nega a prática dos factos, depois de os ter assumido em primeiro interrogatório judicial), o Tribunal a quo teve que fazer apelo à chamada prova indirecta ou indiciária.
Conforme é referido por Germano Marques da Silva, “ Curso de Processo Penal”, pág. 82, é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se ao tema da prova, enquanto a prova indirecta se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência comum, uma ilação quanto ao tema da prova. De acordo com André Marieta, “La Prueba em Processo Penal”, pág. 59, são dois os elementos de prova indiciária: a) o indício, que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado. O indício, em resumo, constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra de experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar; b) a presunção, que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto. A presunção, em síntese, é a conclusão do silogismo constituído sobre uma premissa maior – a lei baseada na experiência, na ciência ou no sentido comum – que, apoiada no indício – premissa menor – permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.                                                  Acontece que nada impede, antes impõe o bom senso da comunidade que, devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjugação dos indícios, permita fundamentar a condenação – cfr. Mittermaier, “Tratado de Prueba em Processo Penal”, pág. 389.
            Caso contrário, o julgador seria um interveniente acrítico no processo, um mero receptor de mensagens.
Significa isto que o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314.                                                   Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Constituem, antes, parcelas de um processo de pensamento lógico de que o julgador não pode prescindir, sob pena de não ser a prova apreciada e valorada em toda a sua extensão.
            A intenção de matar resultou da existência de uma dívida, das insistências que existiam para obter o seu pagamento e da vontade de não a pagar, independentemente do montante em causa, por mais insignificante que pudesse ser.
            Ainda que seja possível discordar dele, estamos perante um facto resultante de uma análise lógica (na perspectiva do Tribunal a quo).
            E sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.
            No que tange ao ponto 2.1.6, onde é dado como provado, para além do mais, que o arguido decidiu matar G..., por asfixia, é inequívoco que não há prova directa, sendo cristalino que ele existe também em função da prova indirecta, agora em conjugação com certas declarações do arguido.
            Na realidade, recorde-se que o arguido, no primeiro interrogatório judicial, disse que “utilizando as suas próprias mãos,(…) colocou-as no pescoço de G... e tentou asfixiá-lo. Não obstante, G... conseguiu virar-se e colocar-se de barriga para baixo. Nesse momento, (…) meteu as mãos aos bolsos e retirou um par de luvas que calçou e com as mesmas voltou a apertar o pescoço de G..., tendo também feito uso da roupa que G... utilizava para com a mesma o asfixiar. Refere que foi na sequência desta sua conduta que G... veio a desfalecer ficando inanimado.”
            O facto não surgiu do nada.
Teve por base o que o próprio arguido disse, em determinada altura do processo, sendo certo que um interrogatório do arguido está sujeito à crítica do juiz que poderá considera-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras (“Psicologia Judiciária”, Volume II, Enrico Altavilla, pág. 12).
            No que concerne aos pontos 2.1.6, 2.1.7., 2.1.8, onde é dado como provado, para além do mais, que o arguido atraiu G... a local ermo e isolado, combinando com o mesmo, e aquele concordando com ele, está demonstrado que houve vários contactos telefónicos entre os dois amigos, o que era normal acontecer.
            O Tribunal recorrido, em sede de livre apreciação da prova, e face à globalidade dos factos apurados, formou a sua convicção no sentido de que o encontro foi sugerido pelo arguido.
            Ora, a versão de que foi G... (filho) quem marcou o encontro não tem qualquer fundamento, a não ser o que resulta das declarações do arguido que, nessa medida, não mereceram credibilidade, sendo, por isso, para o caso, insuficientes para o efeito pretendido.
            Relativamente aos pontos 2.1.11. e 2.1.12., 2.1.14., 2.1.15, 2.1.16., 2.1.17., onde é dado como provado, para além do mais, que na sequência do acordado entre ambos, no dia 24 de Abril encontraram-se na (...) cada um na sua viatura, que depois o G... entrou na viatura do arguido e foram juntos, a convencimento do arguido, para o tal local ermo e isolado, o arguido esquece o que disse no primeiro interrogatório judicial, ou seja, “à hora do almoço, conforme o acordado, encontraram-se junto à empresa (...), num local visível nas fotografias de fls. 220. Aí, G... deixou o seu carro, entrou no carro do arguido, conforme fotografias de fls. 221, e acompanhou o arguido até ao local visível em fls. 222 e 223.”
            No tocante ao ponto 2.1.13., onde é dado ainda como provado que o arguido levou um par de luvas com o intuito de as calçar e para melhor concretizar o seu propósito de estrangular G... e, desse modo, matá-lo, mais uma vez, o recorrente coloca de lado o primeiro interrogatório judicial, do qual consta que “esclarece ainda que utilizou aquelas luvas para não deixar marca e que se tratavam de luvas do trabalho que tinha comprado há três dias e que por acaso se encontravam nos seus bolsos.”
            No que diz respeito aos pontos 2.1.18., 2.1.19., 2.1.20., onde é dado como provado que o arguido iniciou uma agressão física ao G... e no desenrolar desse confronto empurrou-o para uma ribanceira, onde ele caiu e depois foi ao fundo da ribanceira onde continuou a agredir G... e este a defender-se, de novo, o recorrente omite, novamente, o primeiro interrogatório judicial, do qual consta que “No decurso dessa discussão, G... tentou agredir o arguido com um murro, mas este conseguiu desviar-se e empurrar G... por uma ribanceira abaixo, conforme fotografia de fls. 223. No fundo dessa ribanceira, iniciaram uma luta corpo a corpo, sendo que o arguido conseguiu deitar G... ao chão (ficou deitado de barriga para cima) e colocar-se por cima do mesmo, imobilizando-o. Utilizando as suas próprias mãos, o arguido colocou-as no pescoço de G... e tentou asfixiá-lo. Não obstante, G... conseguiu virar-se e colocar-se de barriga para baixo. Nesse momento, o arguido meteu as mãos aos bolsos e retirou um par de luvas que calçou e com as mesmas voltou a apertar o pescoço de G..., tendo também feito uso da roupa que G... utilizava para com a mesma o asfixiar. Refere que foi na sequência desta sua conduta que G... veio a desfalecer ficando inanimado.”
            Relativamente aos os pontos 2.1.23, 2.1.24., 2.1.25, 2.1.26., 2.1.27., 2.1.28., 2.1.29., 2.1.30., 2.1.32., onde é dado como provado, em síntese, que o arguido mandou para o solo o desaparecido, sentou-se sobre ele, imobilizando-o, colocou as mãos em redor do pescoço, apertou-o, depois o desaparecido voltou-se, e o arguido sentou-se sobre as costas do mesmo, mais uma vez colocou as mãos sobre o pescoço do mesmo, apertou-o outra vez, estrangulou-o e G... morreu, o recorrente olvida que, em primeiro interrogatório judicial, afirmou algo que já citámos, a propósito dos factos imediatamente anteriores e que nos dispensamos de repetir.
            Não se vislumbra, pois, qualquer invenção.
            Por fim, no que concerne aos pontos 2.1.33., 2.1.34., 2.1.35., 2.1.37., 2.146., 2.1.47., 2.1.48., 2.1.49., 2.1.50., 2.1.51., 2.1.54., 2.1.56., 2.1.62., 2.1.63., 2.1.64., onde é dado como provado que o arguido tirou telemóveis ao desaparecido, que digitou e enviou mensagens, aos pontos 2.1.70. 2.1.71., 2.1.72., 2.1.73., 2.1.82., onde é dado como provado, em síntese, que o arguido teve intenção de matar por asfixia e que o mesmo levava à morte de G... e aos pontos 2.1.74, e 2.1.75, onde é dado como provado que o arguido planeou antecipadamente o encontro e o modo como iria matar G..., não é avançada no recurso sequer uma única prova na qual uma alteração de facto possa ser sustentada, limitando-se o arguido a tecer críticas sobre a avaliação da prova constante do acórdão recorrido.
            Concluindo, tem de soçobrar, nesta parte, a impugnação de facto.
                                                                       ****
            Avancemos, agora, para a impugnação de facto que justifica uma análise específica.
            Quanto aos pontos 2.1.3, 2.1.4. e 2.1.5., onde é dado como provado que a vítima teria emprestado uma quantia pecuniária não concretamente apurada ao arguido, que aquele o instara a devolver-lha, e que, por tal facto, decidiu o arguido matá-lo porquanto aquele insistia no pagamento e o arguido não podia, nem queria devolver-lha (IV.1 – O dinheiro em divida), é alegado o seguinte:
            “Sobre estes pontos, referiu o arguido A... nas suas declarações em audiência (as possíveis, já que as declarações foram quase exclusivamente, tomadas de posição judicial) que não existia qualquer dívida, e que era normal existirem empréstimos mútuos de pequeno montante entre o mesmo e o desaparecido, o que era normal, destacando até o montante de 120 euros. (gravação em sistema digital existente neste tribunal A...//passagem 20130220144046_82104_65218 minuto 09.40s a 10.46s).
            Por sua vez, a testemunha LP.., alegada namorada do desaparecido, terá dito que o arguido deveria àquele muito dinheiro, sem certezas, mas pelo menos 15 mil euros. (gravação em sistema digital existente neste tribunal – LP..//passagem 20130222164852_82104_65218, minuto 2.19s a 4.47s).
            Contudo, LP.., num primeiro momento, referiu que o desaparecido falava que tinha emprestado muito dinheiro ao Sr. A..., contradizendo-se, logo a seguir ao dizer que não sabia nem conhecia o Sr. A..., não associando o nome de Sr. A... ao A..., para logo a seguir dizer que o A..., o A...como era conhecido, lhe devia muito dinheiro, pelo menos de uma vez 15 mil euros, mas que o G..., alegadamente tendo-lhe pedido o dinheiro, aquele protelou várias semanas dizendo que ia receber dinheiro (gravação em sistema digital existente neste Tribunal – LP..//passagem 20130222164852_82104_65218, minuto 04.47s a 5.20s).
            O estranho, contudo, de toda a decisão, é não ter feito constar da matéria de facto provada que a “quantia pecuniária não concretamente apurada” era afinal desse referenciado montante.
            Mais estranho ainda porque até o pai da vítima, G..., inquirido pelo Mmo. Juiz sobre a existência ou não de negócios entre o arguido e o seu filho, bem como o montante alegadamente em dívida, referiu que apenas o seu filho lhe tinha dito que havia uma divida – num primeiro momento, disse que aquele lhe havia dito que dava para comprar um carro, e depois, “que não queria mentir, mas lembro-me que foi 15 mil euros, uma coisa assim”, que não havia documentos, era tudo de boca e que só ele sabia (gravação em sistema digital existente neste tribunal – G...//passagem 2013020161832_82104_65218, minuto 2.43s a 5.30s).
            Mas será que, mesmo que se admita como verdadeiro que a vítima possa ter dito que o arguido lhe devia 15 mil euros, poderá daí extrair-se que efectivamente essa dívida existia? Será que alguém sabe de alguma coisa em concreto?
            É que a ex-mulher do arguido, D..., inquirida especificamente sobre estes pontos, foi peremptória em referir que não tinha qualquer conhecimento de divida alguma, chegando mesmo a acrescentar achar estranho que isso fosse verdade pelo facto de o desaparecido os convidar para almoçar e jantar fora várias vezes e no período em causa, pagando ele as contas, e sendo eles A... e G... muito amigos (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 11.19s a 12.47s).
            Mais a mais, ficou demonstrado que o arguido efectivamente tinha dívidas com o empréstimo da casa e créditos pessoais (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 11.19s a 11.27s) constituindo uma total surpresa para a sua mulher aquele tema de inquirição sobre dívidas do seu marido a G....
            Também a amiga de D..., H..., próxima do arguido, inquirida a esses pontos, referiu que não tinha conhecimento de haver da parte daquele quaisquer dívidas (gravação em sistema digital existente neste Tribunal H...//passagem 20130221165008_82104_65218 minuto 05.00s a 06.10s).
            E depois, pensemos bem, se o sustento probatório da decisão é a testemunha LP.. que credibilidade oferece o seu depoimento quando a mesma reconhece desconhecer os negócios paralelos que o desaparecido desenvolvia, por exemplo, em Angola (obliterados na investigação, pese embora reconhecidos), bem como o seu relacionamento amoroso com uma mulher de nacionalidade brasileira (reconhecido a fls.5, pelo próprio G... pai) a pouco mais de 400 metros da sua porta.
            Poderá fundar-se a prova de tais factos nas referências que LP.. faz quando a mesma, inquirida sobre a relação com o desaparecido fala numa relação de seis meses a um ano, dois anos … (quando até outras testemunhas, amigas dos pais do G... afirmam que o desaparecido vivia com os pais, era o apoio dos pais, dormia lá em casa em comunhão de mesa…) veja-se (gravação em sistema digital existente neste Tribunal das testemunhas EE...//20130221172807_82104_65218 minuto 00.35s a 03.15s); ( FF...//20130221173508_82104_65218 minuto 00.30s a 01.59s); ( DD...//20130221171142_82104_65218 minuto 04.00s a 04.39s); 
            Mesmo a admitir como bom que o desaparecido tenha dito algo ao pai ou à testemunha LP.., dizer algo não é, nem pode, só por si, ser sinónimo de verdade absoluta e de existência de uma dívida? Não tendo sido apurado qualquer elemento de prova relativamente ao passado do desaparecido, reconhecido como andando metido em vários esquemas, não obstante tal conduta fosse desconhecida pelos seus mais próximos? Com todo o respeito, não nos parece, que tal testemunho de LP.. (sem qualquer corroboração que se intitule como tal) possa conduzir, sem mais, a dar como provados os pontos 2.1.3, 2.1.4., e 2.1.5. É um salto lógico impossível.
            Tanto que o próprio Tribunal, tendo um montante para indicar na matéria de facto dada como provada, os tais 15 mil euros, “pelo menos”, se viu tolhido e enredado nessas incongruências, abandonando as “outras hipóteses possíveis” que lhe foram apontadas, optando como se viu pela “quantia pecuniária não concretamente apurada”.
            E então, “quantia pecuniária não concretamente apurada”, como já referido, pode ser nada e muita coisa! Pode ser €100, €100.000, ou até um €1.000.000, e subsume-se, sem mais, um crime de homicídio em pilares tão frágeis, quanto inexistentes!”
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            O recorrente limita-se, aqui, a discordar da credibilidade atribuída a certas testemunhas quanto à existência de uma dívida, cujo montante nem sequer ficou apurado.
            Acontece que as testemunhas G... (pai) e LP.., como resulta das gravações, foram bem assertivas quando disseram que G... (filho) se referia, por várias vezes, a uma dívida do arguido para consigo, embora desconhecessem os contornos exactos da mesma.
            A referida LP.. enfatizou, até, que G... (filho) solicitou ao arguido, com frequência, o pagamento daquela, o que sempre ia sendo protelado pelo arguido.
            Por sua vez, a testemunha D... disse não ter conhecimento de qualquer dívida do seu ex-marido para com G... (filho), tendo o depoimento da testemunha H... ido no mesmo sentido.
            O arguido negou a existência das mencionadas dívidas.
            Como é do conhecimento comum, entre amigos de longa data, não é estranho acontecerem empréstimos de dinheiro sem qualquer documento a comprovar tal realidade, sendo, por isso, compreensível que, nos factos provados, seja feita alusão a “quantia pecuniária não concretamente apurada”
            Dito isto, nada há de objectivo que imponha uma alteração da matéria de facto.
            O depoimento de D... não pode, seguramente, servir para o efeito pretendido, tendo em conta a parte final do facto provado 2.1.88., do qual resulta que a mesma, só depois do arguido ficar em prisão preventiva, se apercebeu de créditos avultados que o marido terá contraído sem o seu conhecimento.
            Por maioria de razão, se a ex-mulher do arguido não conhecia aqueles, a sua amiga H..., à míngua de algo que o justifique, também nada podia saber sobre o assunto.
             Resta a negação dos factos por parte do arguido.
            Quanto a esta, isolada, não pode servir para alterar a matéria de facto, pois resulta do acórdão recorrido que não mereceu credibilidade.
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            No que diz respeito aos pontos 2.1.13., 2.1.32., 2.1.58., 2.1.59., 2.1.61, onde é dado como provado, para além do mais, que o arguido escondeu um par de luvas que levou consigo e que as luvas tinham sangue que sujeito a exame pericial se determinou ser de G... (IV.6 – O par de luvas escondido no bolso das calças com sangue), é alegado o seguinte:
            “Sobre este ponto disse o arguido que as luvas de que a decisão recorrida fala (as tais que a decisão se apressa a dizer que tinham sangue do desaparecido mas que manifestamente omite – não há prova - sobre a questão de saber se alguma vez e em que momento e para quê foram calçadas para estrangular alguém) não eram suas, tendo ele luvas próprias para o seu trabalho.
            Começando pela perícia efectuada à referida luva a fls. 490 e seguintes, a primeira referência a fazer é que, o que da mesma se conclui é que não permite excluir que o sangue seja de um filho de G....
            Contudo, não deixa de esclarecer que o perfil conseguido com o ADN nuclear obtido resultou num perfil incompleto (não se percebe para quê comparações de ADN do pai G..., quando, certamente, haveria elementos biológicos do desaparecido – cabelos, etc., nos seus bens pessoais), e como tal merece algumas reticências fazer um juízo absoluto de certeza como sendo aquele sangue do desaparecido.
            Mas ainda que se dê por adquirido que se trata de sangue de G... e que entre este e o arguido existiram as tais agressões, o que não se concede, concluir daí sem mais (sem mais esse que inexiste) que ocorreu um homicídio (e não como já referido um acidente ou qualquer outro evento), é mais um salto lógico que a decisão recorrida não explica nem preenche.
            Por outro lado, a recuperação da luva é toda ela um mistério que merece de V. Exas. Venerandos Desembargadores atenção redobrada.
            Efectuada no dia 26 de Abril na x... uma busca de indícios por inspectores da Policia Judiciária, não encontraram quaisquer luvas ou outros objectos, apenas recolheram informações (gravação em sistema digital existente neste tribunal. JJ...//passagem 20130221095730_82104_65218, minuto 03.36s a 03.58s).
            Ouvidos os depoimentos dos colegas de trabalho, a exemplo de V.., nunca viu luvas nenhumas no alegado sítio onde se diz terem sido encontradas e que também as luvas andam por vezes em cima do empilhador (gravação em sistema digital existente neste Tribunal V..//passagem 20130221154648_82104_65218, minuto 06.50s a 09.25s e minuto 18.51s e 19.00s e).
            Acrescentou ainda a testemunha que “os dois pares de luvas, foi a primeira vez que as viu lá” depois, no local de trabalho quando lá foram buscá-las (gravação em sistema digital existente neste Tribunal V..//passagem 20130221154648_82104_65218 minuto 19.16s a 19.58s e minuto 29.00s a 30.15s).
            Só no dia 28 de Abril é que, com manifesta surpresa, o perito especialista da Policia Judiciária, faz a descoberta das referidas luvas em local por onde os colegas em momento anterior tinham andado (gravação em sistema digital existente neste tribunal. R...//passagem 20130221095730_82104_65218, minuto 18.42s a 21.10s)
            Ou seja, nós sabemos que devemos confiar nos polícias, que mais nos resta, senão confiar? Mas quando temos uma investigação atabalhoada, que desiste de investigar, pese embora a existência de indícios no processo, contaminada de pré-conceitos, de comportamentos policiais discutíveis sem direito a inquérito, de pessoas “emocionais” sem objectividade metidas na investigação e “onde não eram chamadas”, o que podemos esperar…?”
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            Nesta parte, e quanto à perícia feita, o arguido refere que merece algumas reticências fazer um juízo absoluto de certeza quanto ao seu resultado, mas não chega a afirmar que este exclui a conclusão a que chegou o Tribunal a quo.
            Logo, por aí, não colhe a pretensão do recorrente.
            Além disso, a conclusão a que chegou o Tribunal recorrido não se baseou só na mencionada perícia, sendo conveniente lembrar que o arguido, em primeiro interrogatório judicial afirmou que usou luvas que havia comprado poucos dias antes.
            No que tange à “descoberta das luvas”, a fls. 150, encontra-se um auto de apreensão executado na empresa “ x...”, assinado apenas pelo Inspector-Chefe M.., datado de 28/4/2012, onde é feita alusão, entre outras coisas, a um par de luvas de lã com palma em borracha azul com vestígios supostamente hemáticos.
            A recuperação das luvas é vista como um mistério pelo recorrente, daí surgindo críticas à investigação policial, meramente subjectivas. 
            Contudo, em termos concretos, nada é avançado que possa justificar uma alteração da matéria de facto.
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            No que concerne aos pontos 2.1.20., 2.1.21, onde é dado como provado que, em resultado das lutas acima referidas, sofreu o arguido e o G... as lesões ali descritas (IV.9 – As efectivas lesões no arguido), é alegado o seguinte:
            “Esta é matéria de facto central, que merece reflexão. Já a referenciámos antes, e retomamo-la novamente. É que, com todo o respeito pode-se compreender quase tudo, até que o Tribunal se sinta na obrigação de “salvar a pele” aos senhores polícias, o que não se compreende, contudo, é que decida contra todas as evidências ao ponto de negar o que de mais importante e até, diga-se, corajoso, a maioria das testemunhas que estiveram em contacto com o arguido disseram.
            R..., chefe do arguido na firma (...), referiu que no dia 24 de Abril o arguido saiu para almoço cerca das 12,30 horas e o encontrou na cidade de Tomar pelas 13,45 horas, tendo-lhe dado boleia, assim como ao Colega V.. e OO..., até ao local de trabalho (gravação em sistema digital existente neste tribunal R...//passagem 20130221095730_82104_65218, minuto 10.42s a 11.34 e minuto 37.36s a 38.12s), acrescentando que o dar-lhe boleia era habitual visto que tinham carrinha da empresa e recolhiam os colegas no local onde o arguido se encontrava.
            O outro colega V... disse que o A... estava normalíssimo quando apanhou boleia na carrinha da empresa, não havia olhos negros, nem escoriações na boca ou lábios, nem hematomas (gravação em sistema digital existente neste Tribunal V..//passagem 20130221154648_82104_65218 minuto 41.15s a 43.48s).
            D... ex-mulher do arguido referiu que no dia 24 de Abril o A... dormiu em casa viu-o nu e que este se encontrava normalíssimo sem quaisquer marcas; tinha umas arranhadelas nas pernas e nas mãos, uns dias antes de 24 de Abril (andaram na horta a queimar balsas – silvas - eu e ele tínhamos estado de férias uns dias antes) nos dias que esteve comigo não viu hematomas nem quaisquer outras marcas.
            Continua D... “marcas, só vi aqui em Tribunal em Tomar para ser presente à Juiz, ele foi detido num sábado 28 de Abril e na segunda-feira é que o viu aqui em Tribunal, tinha a cara completamente preta debaixo dos olhos, no nariz e um olho da cor do sangue” (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 34.50s a 37.10s e minuto 44.30s a 47.57s).
            X.. Policia de Segurança Pública de Tomar, no turno da manhã, algemou o arguido e este estava normal, normalíssimo, apenas com uns arranhões na mão, no rosto não tinha nada, não estava dorido (gravação em sistema digital existente neste Tribunal X.. //passagem 20130221152323_82104_65218 minuto 11.00s a 11.47s e minuto 19.16s a 19.58s).
            Disse ainda X.., agente da PSP, “chegou à esquadra com o arguido, havia um comunicado da Policia Judiciária para o arguido ser retido nas instalações, que posteriormente iriam lá buscá-lo, recordo que estava na esquadra um familiar do G..., Z..., estava identificado como Policia Judiciária, porque ele (esse familiar é que alertou uns dias antes a situação) (gravação em sistema digital existente neste Tribunal X.. //passagem 20130221152323_82104_65218 minuto 05.16s a 07.15s e minuto 14.23s a 15.40s).
            Depois o Instituto de Medicina Legal e a perícia forense de dano corporal, em que o arguido se limitou a ser fotografado pela perita médica, com ela não trocando qualquer palavra, sendo portanto notório que a informação constante da perícia como história do evento, é ela mesmo uma história, ou imaginada pela Sra. Perita (que não nos parece crível, bastando ver a nada comum referência e habilidade da senhora perita, para não se meter em apuros, certamente, ao colocar na tal história a referência à presença do Inspector LL... naquele local), ou efectuada por um dos agentes presentes, provavelmente mesmo o Inspector LL.... (gravação em sistema digital existente neste tribunal A...//passagem 20130220144046_82104_65218 minuto 01.07.10 a 01.08.30).
                                                                       ****
            Começando pela parte final da alegação, diga-se que é feita uma interpretação do relatório de perícia de dano corporal (fls. 351/352 verso) sem qualquer apoio no processo.
            Tal documento, datado de 4 de Maio de 2012, encontra-se assinado pela Sra. Dra. U..., Assistente de Medicina Legal, nele constando de relevante para o que agora interessa, já que não estão em causa as lesões encontradas, o seguinte:
            “A. História do Evento
            A informação sobre o evento, a seguir descrita, foi prestada pelo examinando que se encontrou, durante o presente exame, acompanhado pelo Inspector LL..., da Polícia Judiciária de Leiria.
            (…)
            No dia 24-04-2012, pelas 13:10 horas, refere ter sofrido agressão, com agarrões e pontapés, que terá sido infligidas por um indivíduo seu conhecido.
            Do evento, terá resultado traumatismo do tórax, mãos e pernas.
            Na sequência do evento, não recorreu a assistência médica.
            (…)
            Estado actual
            A. Queixas
            Nesta data, o examinando não refere queixas relacionadas com o evento em estudo.
            (…)
            Quanto a isto, a argumentação usada, baseada nas declarações do arguido em julgamento (disse que não abriu sequer a boca, no exame médico) constitui um labéu sobre quem assinou o relatório e sobre o elemento policial presente na diligência.
            Simplesmente, por um lado, nunca o arguido arguiu a falsidade do documento e, por outro, fica por explicar o motivo pelo qual o arguido não pediu, em devido tempo, uma segunda perícia, o que retira toda a consistência ao alegado.
            Logo, pelo exposto, é claro que o relatório de dano corporal não impõe alteração da matéria de facto.
            Quanto ao mais, a circunstância das testemunhas R..., V.. e D... (num primeiro momento) não terem visto lesões, não assume especial relevo, pois estamos situados do dia 24 de Abril de 2012, numa altura em que, aparentemente, tudo decorria dentro da normalidade, sem que a atenção daquelas estivesse concentrada na procura de ferimentos.
            Do mesmo modo, o depoimento da testemunha X.. nada impõe, pois nada indica que a mesma estivesse com especial atenção quanto a possíveis lesões do arguido.
            É certo que D... (num segundo momento) afirma que viu o arguido no Tribunal, no dia 30 de Abril, antes do primeiro interrogatório, apresentando ele “a cara completamente preta debaixo dos olhos, no nariz e um olho da cor do sangue”.
            Todavia, do auto de interrogatório do arguido (fls. 259/276), não consta qualquer referência a tal descrição que, certamente, não passaria despercebida aos presentes e que motivaria indagação quanto à sua causa, tanto mais que, a fls. 265, é referido o seguinte: “confrontado com as fotografias de fls. 171 a 178, refere que nas mesmas são visíveis as lesões com que ficou, na sequência da luta com G....
            Tais fotografias (11) foram juntas aos autos, conforme fls. 170, no dia 28 de Abril de 2012, sendo certo que nelas não se vislumbra qualquer mancha negra na cara ou um olho da cor do sangue.
            É verdade que, no relatório de perícia de dano corporal (fls. 351/352 verso), já mencionado, datado de 4 de Maio de 2012, é referido que o examinando apresenta, na face, “hemorragia subconjuntival da metade lateral do globo ocular direito” (lesões e/ou sequelas sem relação com o evento), o que denota que o arguido poderia apresentar alguns dias antes uma lesão num dos olhos, reforçando isto a ideia de que deveria ter sido pedida, nessa altura, uma segunda perícia, para apurar a respectiva causa-efeito.
            Uma vez que tal não aconteceu, tendo até em conta que certas lesões só se manifestam decorridos alguns dias após as causas que as motivaram, nada de concreto existe que possa justificar alteração da matéria de facto.
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            No respeitante ao ponto 2.1.22, onde é dado como provado que devido à luta as calças de ganga que o arguido vestia ficaram manchadas com sangue de G... (IV.10 – As calças da ganga manchadas com sangue de G...), é alegado o seguinte:
            “Para além das alegadas agressões e lesões a que fizemos referência supra, não deixa de ser curioso que as calças de ganga a que se faz referência, na reacção de Gabriel-Bertrand como prova de certeza da existência de sangue, o resultado que deu, foi negativo para sangue. Portanto há um juízo pericial que limita certamente a convicção do julgador. Se havia outro material biológico de G... olhemos de perto a explicação do arguido relativamente à utilização dos telemóveis de G... e ao facto provável de que os mesmos andaram no seu bolso das calças.”
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            Quanto a este ponto específico, o recorrente salienta apenas, e pela negativa, um factor existente nas conclusões do relatório pericial de fls. 495/499 verso (vestígios biológicos e estudo comparativo com E... e com o arguido), datado de 19 de Julho de 2012, considerando-o curioso, sem, no entanto, explicar como o mesmo pode impor uma alteração da matéria de facto, tendo em conta tudo o mais que pode ser lido em tal documento e que é afirmado pela positiva, designadamente, que “o estudo dos vários poliformismos do DNA nuclear efectuado na forra da bagageira da viatura Opel Astra (secção C7) e nas manchas do polegar e anelar da luva esquerda encontrada na empresa x..., revelou a presença de um perfil genético singular de origem masculina (XY) que não permite excluir que este vestígio tenha sido produzido por um filho de E...” e que “o estudo dos vários poliformismos do DNA nuclear efectuado nos restantes vestígios analisados revelou (…) nas manchas das calças de ganga (forro do bolso esquerdo da frente) e da toalha (avesso) bem como nas luvas (luva esquerda: zaragatoa de limpeza interior; luva direita; mancha do anelar e zaragatoa de limpeza no interior), a presença de misturas de material biológico nomeadamente de origem masculina (XY), compatíveis com o perfil do arguido A... e com o perfil genético singular de origem masculina identificado na secção C7 da forra da bagageira da viatura Opel Astra e na luva esquerda (manchas no polegar e anelar), não se podendo excluir a possibilidade da existência de material biológico pertencente a outro(s) indivíduo(s)
            Logo, também aqui não pode proceder a pretensão do recorrente.
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            No que tange ao ponto 2.1.31., onde é dado como provado que o arguido, além do mais, arrastou o cadáver para uns arbustos, onde o escondeu (IV.12 – O arrastamento do cadáver para os arbustos), é alegado o seguinte:
            “É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            A presente decisão atinge mesmo foros quase surreais ao ponto de dar como provado algo que a própria Policia Judiciária definiu como não tendo sequer feito inspecção ao tal local ermo e isolado, sem recolha de vestígios, havendo apenas uns quantos arbustos, uns partidos, outros por partir, justificando-se para além do mais, na “Falta de Tempo” (gravação em sistema digital existente neste tribunal S...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 03.40s a 08.05s)
            Resta a tal prova de sangue na zona C7 da mala do veículo, que afinal perícia forense com método Gabriel-Bertrand nem o dá como sangue (é um mero vestígio biológico, até esperma ou outra coisa qualquer), sendo certo que depoimentos de LP.. e D... concorrem em referir que o arguido emprestou o veículo dias antes (para além das múltiplas vezes que o emprestava) ao desaparecido para efectuar uma mudança (gravação existente no sistema digital deste Tribunal.”.
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            No que concerne a este ponto, encontramos, de novo, a referência a uma “invenção”, além de uma crítica ao modo de investigação levado a cabo.
            Por isso mesmo, a análise que agora fazemos quase poderia ter sido englobada na apreciação conjunta anteriormente efectada.
            Tal não acontece, porque é feita uma referência concreta à perícia forense.
            Quanto à “invenção”, do primeiro interrogatório judicial consta que “confrontado com fotografias de fls. 224 a 226, refere que foi nesse local onde lutou com a vítima e onde acabou por esconder o corpo.”
            Por conseguinte, há suporte probatório para o facto.
            No tocante à perícia forense, nada é apontado no sentido de impor decisão diversa da que consta do acórdão recorrido, pois, também aqui, não é explicado como a observação feita tem força para inquinar as restantes conclusões.
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            No tocante aos pontos 2.1.36, 2.1.55., 2.1.61., onde é dado como provado que o arguido no dia 24 de Abril ainda foi a casa mudar de roupa, após o que foi para o local de trabalho (IV.14 – O arguido ainda foi a casa mudar de roupas), é alegado o seguinte
            “Falta a reconstituição de facto que não feita para se ter uma ideia do que é fazer tudo aquilo que lhe apontam, bem como ir ainda a sua casa a mais de 22 Km, para mudar de roupa.
            O arguido, em sede de audiência, negou tal facto, insistindo que foi para o trabalho à tarde exactamente com a mesma roupa da manhã. Não se conhece prova nos autos que contradiga o contrário, testemunhal ou de outra natureza.
            Da perícia às calças, já o dissemos, que efectuado teste Gabriel-Bertrand, juízo de certeza de detecção de sangue, tal foi negativo para sangue. Além do mais, o vestígio biológico ali existente nem se confirmou conclusivo quanto a ser de G....
            Além do mais, também esta prova se encontra totalmente contaminada pela dúvida.
            Diz D... que “No dia 26 de Abril a Policia judiciaria foi lá a casa, mexeu no computador nas gavetas nas coisas pessoais do A..., Não levou nada. No dia 27 ou 28 de Abril foram buscar a roupa, calças, fato de treino….. (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 09.40 a 10.38s)
            Porém,
            Acaba-se referindo que, mais uma vez se verifica a intervenção do inspector da Policia Judiciária Z..., primo do desaparecido a contaminar toda a prova, contra ou a favor do arguido, sendo ele a deslocar-se a casa da mulher do arguido no dia 28 de Abril para recolher a mesma (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218, minuto 11.19s a 11.27s)”
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            Aqui, como noutras partes do recurso, o recorrente insurge-se contra a “intervenção” de Z..., primo de G..., dando conta de, por via disso, existir uma contaminação da prova.
            Entendemos ser o momento de referir algo quanto a este argumento que vai surgindo ao longo do recurso.
            Vejamos.
            Estamos a falar de um primo de G..., residente na região (Tomar) em que ocorreram os factos e que trabalha na Polícia Judiciária.
            É natural que tenha andado à procura do primo, em simultâneo com a investigação que decorria, e que, por isso, a sua presença possa ter sido notada em alguns locais. Estranho seria que assim não fosse.
            Acontece que a testemunha L.., ao tempo com funções de chefia na Policia Judiciária na zona de Leiria, foi muito clara ao assumir que T..., seu funcionário (não é inspector), não participou na investigação (logo, não recolheu prova), até por razões emocionais e de isenção, sem prejuízo de, por conhecer a zona, ter prestado algumas informações genéricas.
            Mais disse que, apesar das suas funções, se envolveu, logo de início, pessoalmente nalgumas diligências de prova, justamente por ser um familiar de um seu funcionário que estava desaparecido.
            Nas diligências de prova constantes dos autos levadas a cabo pela Polícia Judiciária, não existe qualquer menção a T..., sendo certo que a sua veracidade nunca foi suscitada formalmente.
            É certo que D... chegou a afirmar que T... apareceu na sua casa para ir buscar o manuscrito que o arguido escrevera no Estabelecimento Prisional, na sequência de contacto telefónico anterior mantido com elementos da Polícia Judiciária.
            No entanto, é preciso ver que o respectivo auto de apreensão surge assinado por Q..., tendo este admitido que T... lhe indicou o caminho para o local (exemplo de informação genérica), o que permite supor, até, a presença deste no local, aquando da entrega do documento. Esta testemunha referiu, ainda, que o recebeu de D..., pessoa que, na altura, não conhecia.
            Há, sem dúvida, uma divergência quanto a quem recebeu o manuscrito, mas que não assume a dimensão que o recorrente lhe pretende atribuir.
            Sublinhe-se, porém, que o relevante aqui é a mensagem e não o mensageiro.
            Está apenas em causa um acto material (recepção de um documento escrito pelo arguido), a fim de ser junto ao processo devidamente formalizado por quem fazia parte da investigação.
            Nenhuma manipulação de prova se vislumbra.
            Quanto ao mais, nada é indicado que determine decisão diversa.
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            Relativamente aos pontos 2.1.38., 2.1.39., 2,1.40., 2.1.41., 2.1.42., 2.1.43., 2.1.60., 2.1.76., 2.1.77., 2.1.78., 2.1.79., onde é dado como provado que o arguido voltou ao local ermo e isolado a fim de o recolher, levando-o na bagageira do Opel Astra (IV.15 – A recolha e ocultação do cadáver, o sangue na mala do Opel Astra), é alegado o seguinte:
            “É “facto” que não merece sequer grandes considerações impugnatórias, é uma invenção e nessa medida não se trata de existência de prova nos autos que imponha decisão diversa da recorrida, mas prova totalmente inexistente, assente numa mera presunção judicial contrária às regras de experiência comum e da lógica.
            Além do mais, já se referiu que a perícia não só afastou vestígio para sangue, na reacção Gabriel Bertrand, como se revelou inconclusiva por perfil incompleto, sendo também circunstancial, na medida em que o veículo fora emprestado ao desaparecido dias antes da alegada ocorrência (fora também emprestado muitas vezes ao longo do tempo) para que o mesmo efectuasse uma mudança – dito por LP.. que conduziu o veículo (gravação existente no sistema digital deste Tribunal).
            Relativamente à sua viatura é relatado pela testemunha D... e pela testemunha LP.., que em fins de Fevereiro/Março o carro de A... foi emprestado a G... tendo a namorada LP.., andado com o carro. Esse carro foi utilizado para transportar edredons, etc. (cujas declarações se encontram na gravação em sistema digital existente neste tribunal – LP..//passagem 20130222164852_82104_65218 minuto 05.36s a 17.29s).
            Quanto aos elementos subjectivos do ilícito, profanação de cadáver estes adquirem-se por inferência à luz dos demais factos e comportamentos do arguido. Mas como inferir algo a partir do nada? Transporta-se um corpo inteiro na bagageira de um veículo, que não foi objecto (porque nada havia a fazer) de qualquer limpeza pelo arguido para eliminação de eventuais vestígios e não se encontra nada de relevante? E contudo, dá-se como provado que o arguido ocultou o corpo de G...? Foi feita alguma reconstituição de facto sobre se o arguido tinha constituição física para um trabalho dessa natureza? Foi feita alguma inspecção ao local, recolhendo vestígios que conduzissem a tal possibilidade? Não existe nada.”
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            Voltam os argumentos do “facto inventado” e da análise, pela negativa, da perícia forense, pelo que remetemos para o anteriormente exposto.
            Ora, do primeiro interrogatório judicial, consta que “No dia 25 à tarde, após o almoço, regressou ao local onde tinha deixado o corpo de G... e, colocando-o por cima dos ombros, transportou-o para junto do seu veículo, conforme fotografias de fls. 233 a 235.
            Com o auxílio de um lençol, embrulhou o corpo de G... e colocou-o dentro da bagageira do veículo, conforme fotografia de fls. 236.
            Depois, deslocou-se para a praia do Norte, na Nazaré. Aí chegado, pelas 14:30/14:40, retirou o corpo do interior da bagageira do veículo e voltou a transportá-lo aos ombros para junto do areal, conforme fotografias de fls. 237 a 239. Neste percurso, parou duas vezes para descansar, bem como para evitar ser visto por terceiros.
            Por fim, acabou por largar o corpo de G... a partir de uma rocha e para zona de rebentação, conforme fotografia de fls. 239.
            Ainda ficou cerca de meia hora naquele local a verificar se o corpo de G... era levado pelo mar. Depois, regressou a casa, tomou banho e lavou de imediato a roupa que tinha envergado nesse dia 25 de manhã e que é visível nas fotografias 5 e 6 de fls. 252 e 253.”
            Assim, não é verdade que nada existe.
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            4 – Da violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, 60.º, 61.º, n.º 1, als. d), e) e f), 126.º, 150.º, 356.º, n.º 7, todos do CPP:
O artigo 32.º, da CRP, no seu n.º 1, consagra que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, e, no seu n.º 8, que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
O artigo 60.º, do CPP, estipula que “desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei.
            No artigo 61.º, n.º 1, alíneas d), e), f), do CPP, pode ser lido o seguinte
            “1 – O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:
            (…)
            d) Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar;
            e) Constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;
            f) Ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele.”
            No artigo 126.º, do CPP, estão contidos os meios proibidos de prova, nos seguintes termos:
            “ 1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
            2 – São ofensivas de integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
            b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
            c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos por lei;
            d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
            e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
            3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
            4 – Se o uso dos métodos de obtenção de prova previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.
            O artigo 150.º, do CPP, consagra, por sua vez, o seguinte:
            “ 1 – Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
            2 – O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.
            3 – A publicidade da diligência deve, na medida do possível, ser evitada.”
            Por fim, do artigo 356.º, n.º 7, do CPP, consta o seguinte:
            “ 7 – Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
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            Vejamos se o Tribunal a quo valorou prova violadora do princípio do privilégio à não auto-incriminação, colocando em causa o disposto nos artigos acabados de elencar.
            A propósito desta questão, o recorrente alega, em concreto, o que passamos a citar:
            “V – Impugnação da Matéria de Direito:
            V.1. – Violação do princípio do privilégio à não auto-incriminação:
         Pouco mais haverá a dizer sobre este processo. Uma análise imparcial e isenta da prova obtida e produzida é quando bastará para ter uma ideia da dimensão das ilegalidades judiciais cometidas.
            Se isto é assim num crime de homicídio, com uma implicação brutal para a vida de uma pessoa, um cidadão, perguntamo-nos como será em outras situações menos graves?
            Desde reportagens fotográficas com o arguido a apontar para o vazio, rodeado de vários inspectores da Policia Judiciária, desacompanhado de advogado, um familiar ou outrem desinteressado. Desde perícias efectuadas sem que tenha existido qualquer diálogo entre o arguido e os peritos médicos (para avaliação de danos corporais o arguido apenas serviu de modelo fotográfico), reflectindo as mesmas algo que não foi proferido pelo arguido, mas por agentes da Policia Judiciária pela “porta do cavalo”. Desde todo um conjunto de depoimentos em audiência de agentes da Policia Judiciária que descaradamente, com a conivência e aceitação do Tribunal e à falta de investigação não feita, lá foram relatando as “conversas informais” tidas com o arguido.
            Há de tudo um pouco, até técnicas de manipulação de familiares do arguido (já este se encontrava detido), isto na tentativa inglória e inútil de que o mesmo se descaísse em alguma coisa. Sem qualquer apoio e ao arrepio dos seus direitos mais elementares, pressionando o arguido a deslocar-se a locais, “ao local ermo e isolado”, “à Nazaré”, sempre, apenas e só, sem conhecimento da família, acompanhado de escolta policial.
            Mais, já o arguido se encontrava detido no estabelecimento prisional de Leira, dois elementos da Policia Judiciária, ainda numa tentativa de manipular e arranjar “prova”, pressionam D... para que faça um “teatro”, junto do arguido, veja-se (gravação em sistema digital existente neste tribunal D...//passagem 20130221115826_82104_65218 minuto 14.20s a 15.00s e minuto 55.40s a 59.41s).
            Venerandos Desembargadores a panóplia de ilegalidades e a natural repugnância que advêm ao recorrente pelo modo como ocorreram, limitam-no até no direito à indignação e ao uso da palavra, porque não se trata de uma investigação mal conduzida, trata-se verdadeiramente de um escândalo!!”
                                                                       ****
            O privilégio contra a auto-incriminação significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso J. B. c. Suíça) – veja-se, para compreender a evolução que este instituto tem sofrido até hoje, o Acórdão do TRE, datado de 10/11/2011, Processo n.º 101/09.8GBMMN.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt.
            Simplesmente, é preciso notar, conforme resulta claro do Acórdão do STJ, datado de 5/1/2005, Processo 04P3276, relatado pelo Exmo. Conselheiro Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt, que “a possibilidade de colaboração co-determinante no processo, desde a fase de recolha da prova (aquisição da prova), até ao momento de administração relevante e contraditória (utilização) das provas encontra-se porém, na disponibilidade do arguido, que pode livremente colaborar na investigação e contribuir para aquisições probatórias substanciais autónomas das simples declarações que as proporcionam, e que, nessa medida, não podem ser eliminadas posteriormente pela invocação da garantia contra a auto-incriminação.
            E, nesta medida, os termos da colaboração prestada pelo arguido e as consequências derivadas no plano da aquisição probatória, não devem ser postos em causa, caso venha a invocar em momento posterior o direito ao silêncio, salvo se, como se referiu, a vontade e a determinação tiver sido perturbada, constrangida ou condicionada de tal modo que a situação possa ser enquadrada nas proibições de prova do artigo 126º do CPP.
            (…) Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, desde que, como se salientou, a colaboração ou as informações não estejam inquinadas por vícios do consentimento ou da vontade, suposto que o arguido foi informado dos direitos que lhe assistem e que integram o seu estatuto processual, ou pela utilização de métodos proibidos.
            Em tais circunstâncias, ou seja, se a contribuição do arguido para a aquisição probatória na fase processual de recolha estivesse afectada pela utilização de métodos proibidos, poderiam eventualmente ser discutidos os efeitos consequenciais - o chamado "efeito à distância", "Fernwirkung des Beweisverbot", ou, na formulação americana, "fruit of the poisonous tree".”
            Em resumo, a existência do privilégio ora em discussão não evita que o arguido possa colaborar, de modo livre, na aquisição da prova.
            E, face à prova produzida, à excepção da posição assumida pelo arguido em audiência de julgamento, nada há de concreto que indique que o arguido não tenha colaborado, com vontade própria, na aquisição probatória.                                                     
Aliás, o recorrente, salvo o devido respeito, incorre numa petição de princípio, pois dá por suposto o que pretende, precisamente, demonstrar.
Na verdade, dá por adquirido que os actos do arguido que precederam o primeiro interrogatório judicial, em grande parte documentados por fotografias, em sede de recolha de prova, foram o resultado de coacção (física e psicológica) de determinados elementos da Polícia Judiciária e que para avaliação de danos corporais o arguido apenas serviu de modelo fotográfico.
Acontece que tal não está demonstrado nos autos.
Tal matéria deveria ter sido suscitada em momento oportuno, de forma a ser discutida a questão em toda a sua profundidade (definir se existiu violência e, a ter acontecido esta, de que forma tal condicionou as declarações do interrogatório judicial, de maneira a permitir que tal matéria viesse a constar da matéria de facto destes autos).
Aderimos, nesta matéria, à posição contida no Acórdão do STJ, de 26/10/1998, Processo n.º 786/98 – 3ª Secção, segundo a qual “I - A prova produzida no inquérito tem como finalidade a recolha de indícios suficientes para fundamentarem a acusação e o seu recebimento posterior. II - Se o arguido entende que a prova produzida no inquérito é nula, porque foi obtida mediante sevícias da Polícia Judiciária, o momento oportuno para desencadear a declaração de nulidade é a abertura de instrução, com alegação dos factos em que as sevícias se traduziram e respectivas provas. Não o tendo feito, não pode ele em via de recurso do acórdão suscitar tal questão.
Bem se compreende que assim seja, perante a estrutura acusatória do processo criminal que postula a importância da questão do objecto do processo, ou seja, o princípio da acusação delimita naturalmente os poderes de cognição do tribunal de julgamento, que fica vinculado ao objecto traçado na acusação ou na pronúncia, havendo-a, e na contestação.
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5) Da violação do artigo 340.º, n.º 1, do CPP:
O recorrente considera que o Tribunal a quo violou o princípio da investigação (fls. 965/958), alegando, no essencial, que lamenta não ter sido efectuada uma reconstituição de facto para despistar a verosimilhança da tese da acusação.
Podemos ler, na Motivação do recurso, a este propósito, o seguinte:
“(…) Desculpou-se com o arguido (que já era culpado, senão mesmo condenado, antes mesmo do início da audiência) que não queria colaborar.
Mais grave ainda, disse que a reconstituição de facto era de reduzida utilidade. Reduzida utilidade? Num caso de homicídio? Mais a mais sem a existência de um corpo? Com todas as peripécias enunciadas na acusação que o Tribunal até classificou de inspirada? Com consequências para o arguido de 20 anos de prisão?
Reduzida utilidade é aquilo que se deixa no prato depois de desossar e comer um leitão assado ou um peru de natal! Nunca numa investigação e processo desta natureza!
Estaremos nós, Venerandos Desembargadores, a ver bem? É que a utilidade que, por mera hipótese fosse reduzida, neste caso, é importante.
O recorrente tem consciência que não houve um verdadeiro julgamento, houve um simulacro, uma formalidade (veja-se que o arguido esteve um dia inteiro, de manhã à noite, em pé, a responder a perguntas, veja-se ou ouça-se, nas gravações existentes no sistema digital deste Tribunal, o tratamento que lhe foi conferido, os juízos antecipatórios manifestados pelo Tribunal), mas mandaria a decência judicial que se fizesse alguma coisa.
Então, coloca-se ilegalmente o arguido a apontar para o vazio, aponta-se-lhe deslocações, diálogos, agressões, sobe e desce de ribanceiras, tira luvas e põe luvas, tira calças e põe calças, vaia casa, 22 Km, vem de casa, um vaivém, e o Tribunal mantém-se numa absoluta inércia e não se faz nada?
E, depois à pergunta feita pelo Mmo. Juiz Presidente se foi ele que se pronunciou a fls. 35 – história do evento – no tal exame médico-legal, tendo ele respondido que nunca falou com a perita médica, tendo sido provavelmente o Inspector LL... (o presente) que forneceu tais dados à médica, e o que daí resultou foi tratar o arguido como mentiroso? Foi inquirida a perita médica U...? Venerandos Desembargadores, não foi.
A defesa, apelidada de grotesca, mas indignada face aos obstáculos que lhe foram criados, ainda fez um esforço inglório de solicitar acareações de depoimentos de testemunhas (dever que prima facie incumbia ao Tribunal). Nada foi possível fazer!
Toadas as «hipóteses possíveis» foram sendo afastadas, limitando perguntas, direccionado testemunhos, não fazendo «ondas», de modo a que a decisão, manifestada nos estados de alma, nos desabafos audíveis e plenamente gravados no sistema digital deste Tribunal, nos juízos prévios (ainda nenhuma testemunha sequer tinha sido ouvida), e que perpassava na mente do Tribunal, seguisse os seus termos normais para uma condenação. Primeiro não houve investigação séria, depois nada foi feito pelo Tribunal.
(…).”
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Como é consabido, artigo 340.º, do CPP, consagra o denominado princípio da investigação ou da verdade material.
Este princípio significa, mesmo no quadro de um processo penal orientado pelo princípio acusatório (artigo 32°, n.º 5 da Constituição), que o tribunal de julgamento tem o poder-­dever de investigar por si o facto, isto é, de fazer a sua própria "instrução" sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos e declarações das partes, com o fim de determinar a verdade material (ver, neste sentido, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 1955, p. 49; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 72, Marques Ferreira, Meios de Prova, in CEJ, Jornadas de Direito Processual Penal e, também, os Acs. do Tribunal Constitucional n.º e 584/96 e 137/2002, in www.tribunalconstitucional.pt )
O princípio da investigação oficiosa consagrado no artigo 340.º, do CPP, está condicionado pelo princípio da necessidade, devendo ser limitado, por isso, aos meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa, motivo pelo qual o árbitro daquela não pode deixar de ser o próprio tribunal.
Dito isto, é nosso entendimento que o exer­cício do poder de apreciação do condicionalismo legal inscrito no n.º1, do artigo 340,º, do CPP, isto é, o juízo de necessidade ou desnecessidade da diligência de prova requerida parece-nos insindicável por via de recurso directo, ou seja, a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta, antes, uma nulidade relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d), do CPP, a arguir “antes que o acto esteja terminado” (artigo 120.º, n.º 3, al. a, do CPP), que servirá, isso sim, de eventual fundamento de recurso (art. 410.º, n.º 3 do CPP).
Na verdade, salvo o devido respeito, não faz sentido que um arguido, estando presente numa audiência de julgamento e devidamente representado por ilustre mandatário, antes da mesma chegar ao fim, apercebendo-se da importância de certos meios de prova ainda não alvitrados (pelo menos, na sua perspectiva), ao constatar que o Tribunal opta por se cingir apenas à prova previamente apresentada nos autos (acusação/pedido cível e contestação), não coloque à consideração do julgador, através do devido requerimento, a necessidade de ser produzida outra prova, para, mais tarde, pela via de recurso, alegar que o Tribunal omitiu diligências de prova de relevo.
Pois bem, lendo as actas relativas à audiência de discussão e julgamento (fls. 775/779, 781/786, 788/793, 851/853), constatamos que o ora recorrente não arguiu, então, qualquer nulidade quanto a omissão de diligências que entendesse pertinentes para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa, sendo certo, até, que se conformou, no acto, quanto ao indeferimento da acareação que havia requerido.
Por consequência, fica prejudicado o conhecimento desta questão.
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Importa, ainda, deixar claro, uma vez que, em conjugação com a alegada violação do princípio da investigação, são feitas considerações que colocam em causa a condução da audiência de julgamento, que uma das funções da acta de julgamento é exactamente a transcrição dos “requerimentos, decisões e quaisquer outras indicações que, por força da lei, dela devam constar”- artigo 362º, alínea f), do CPP, não devendo ser esquecido que a acta é um documento autêntico (Acórdão da Relação de Coimbra de 28-5-1997, Col. ano XXII, tomo 3, pág. 49).
Acontece que, nos termos do n.º 75.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados, “quando por qualquer razão, não lhe seja concedido a palavra ou o requerimento não for exarado em acta, pode o advogado exercer o direito de protesto, indicando a matéria do requerimento e o objecto que tinha em vista” e que segundo o n.º 3 do mesmo preceito legal “o protesto não pode deixar de constar da acta e é havido para todos os efeitos como arguição da nulidade, nos termos da lei” (n.º 3, do citado art. 75 º).
Ora, das actas de audiência de julgamento (já elencadas), não consta que o ilustre mandatário do ora recorrente tenha formulado qualquer protesto.
Por tal motivo, não há que conhecer, também, deste aspecto da questão.
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6) Da violação do princípio in dubio pro reo:
         O recorrente, na sua Motivação, alega o seguinte:
         Em síntese, decorre deste princípio de prova que se existirem dúvidas razoáveis no material probatório, as mesmas devem pender a favor do arguido, dando assim como não provados os factos que lhe são desfavoráveis, quando se puder constatar que o Tribunal decidiu contra o arguido apesar de não ter suporte probatório bastante.
            Ao mencionar a dificuldade que sentiu na apreciação e despistagem da versão da acusação, o Tribunal manifestou o seu estado de alma quanto à mesma e à sua mais que plausível inveracidade.
            O Tribunal chamou-lhe até “acusação inspirada” tal a subjectividade de que a mesma enferma, sem suporte probatório consistente (até mais e na maioria dos factos, sem qualquer um).
            Na matéria de facto que para o caso releva (tudo o mais nos parece circunstancial ou irrelevante para a subsunção do tipo legal), o Tribunal na sua Motivação” lá vai dizendo que: G... pai falou em vários milhares de euros, D..., manifestou surpresa por dívidas do arguido ao desaparecido, LP.., regressa com os tais milhares de euros, e o Tribunal dá como provado “quantia pecuniária não concretamente apurada” (?). Ao invés do afirmado pelo arguido que não existiam quaisquer dívidas ao desaparecido, era até habitual emprestarem entre si dinheiro, ou por D... que não conhecia quaisquer dívidas do seu marido àquele, ou até pela vida financeira do arguido, tinha trabalho remunerado, empréstimo ao banco, créditos ao consumo, até mais ainda, a vida dupla do desaparecido (desconhecida do pai e da namorada) de que andava sempre com grandes quantias, não obstante o seu modesto salário, certamente o Tribunal sentiu dúvidas razoáveis que se evidenciam quando aquelas primeiras testemunhas, G... pai e LP.., adiantaram um valor concreto, os tais 15 mil euros que redundou afinal na “quantia pecuniária não concretamente apurada”.
            Dúvidas primeiro se existiria sequer qualquer dívida, a existir de que montante, e mais importante, dúvida que não pode deixar de ser tida quando se indica tal aspecto como móbil de um crime de homicídio.
            A dúvida é manifesta e razoável, e nada existindo mais nos autos que aponte em sentido contrário, o Tribunal não poderia deixar de ter decidido em favor do arguido, e dado como não provada a existência de qualquer móbil para o aventado crime de homicídio.
            Lá mais à frente, agora na “Breve apreciação crítica da prova”, continua o Tribunal: bom, temos desaparecimento de cadáver, é necessária uma cuidada análise de todos os elementos produzidos na audiência, mas com certeza tudo aponta para uma morte violenta de G... (qualquer que ela seja) e do envolvimento de A....
            Há uma morte violenta, tudo aponta para tal, diz, só que o problema é que o Tribunal não sabe lá muito bem o porquê, o quando, o como, e o onde.
            O porquê já se percebeu que não pode colher, nenhum Tribunal civilizado, à luz de uma justiça séria e credível, pode condenar seja quem for, seja pelo que for (nem uma mera ofensa à integridade física ou um furto) baseado num segmento como “divida que não quero pagar de quantia pecuniária não concretamente apurada”. Portanto, só nos resta concluir, salvo melhor opinião, que não existe porquê.
            O quando, poderá tê-lo sido (sempre admitindo como pressuposto que existiu a tal morte e ainda assim violenta) no dia 24 de Abril, data em que o arguido confessou ter estado e ter visto pela última vez com vida o G.... Portanto, poderá admitir-se um quando, só que incerto na medida em que ninguém sabe se morreu e quando.
            O como era a tal asfixia, a tal que só pode entender-se como uma criação judicial já que nenhuma prova concludente o permite dar como provado, nem se vislumbra prova indiciária ou outra, com regras de experiência comum ou sem elas, que permita concluir por um “como” desse tipo.
            O onde, esta é mais uma daquelas dúvidas insupríveis do Tribunal. Deixa-nos o “tal local ermo e isolado”, sendo incapaz de reafirmar um local preciso, identificado até pelo arguido quando, acompanhados das polícias, sem apoio jurídico, apontava o vazio e afirmava como o local onde viu G... com vida pela última vez. Portanto, temos um onde incerto que poderá ser aquele ou um outro na medida em que ninguém sabe o que se passou depois.
            As dúvidas quanto aos aspectos acima elencados são manifestos e razoáveis, constatadas pelos silêncios e omissões sobre esses pontos fulcrais ao longo da decisão recorrida, nada existindo nos autos que suporte entendimento contrário, pelo que o Tribunal não poderia deixar de ter decidido em favor do arguido, e dado como não provada, a ter existido, o móbil, o modo de cometimento do alegado homicídio, o local e a data, bem como, mais importante, qualquer uma intenção de matar.
            Donde, Venerandos Desembargadores, até aqui não podemos deixar de constatar que o Tribunal teve dúvidas manifestas (não são as nossas dúvidas) expressas na redacção da decisão, e como, na dúvida razoável, deveria ter decidido a favor do arguido dando como não provados factos, a exemplo das alegadas asfixia e premeditação.
            Na busca de uma fundamentação para a decisão de condenação por homicídio (sabendo nós já que as premissas do Tribunal são falsas já que não sabe se a morte é morte, em que circunstâncias, e sequer se é violenta) prossegue o Tribunal:
            Veja-se que o G... desapareceu inopinadamente – o G... foi referenciado por diversas testemunhas, incluindo o arguido e o G... pai, que desaparecia muitas vezes sem explicação, andando envolvido em negócios menos claros;
            A dívida que contraiu - a divida é a tal “quantia pecuniária não concretamente apurada” que a muito custo o Tribunal dá como provado (erroneamente é certo) e que, com todo o respeito, não vemos que possua sequer consistência jurídica para ser visto como móbil de um crime (no ridículo poderíamos até dizer que alguém matou alguém porque esse alguém lhe devia 50 cêntimos que não queria pagar de um empréstimo para uma pastilha elástica, tem que haver alguma seriedade, o julgado não é poker de dados, há-de haver alguma adequação à realidade das coisas;
            Os indícios de preparação (quais?) e a indicação de não voltar ao trabalho da parte da tarde - há aqui certamente um lapso da decisão já que foi o desaparecido que avisou e disse ao seu chefe que ir-se-ia ausentar na hora do almoço para ir à consulta com o pai, sendo certo que sobre este ponto, já o referimos mais do que uma vez que se trata de mais uma criação judicial, pura e simplesmente não há prova de tal facto;
            O sangue nas luvas que o arguido deixou no posto de trabalho - e que o técnico da Policia Judiciária, logrou encontrar dias após o alegado desaparecimento e depois, muito após, de outros inspectores responsáveis, e a quem efectivamente fora delegada a investigação nada viram (numa jurisdição civilizada todos os policias que tenham qualquer ligação com as vitimas são imediatamente advertidos de que se devem manter afastados de quaisquer diligências de prova ou até de consulta dos autos sob pena de contaminação e criação de dúvidas razoáveis na produção dessa mesma prova, não se tratando de pensar que policias criam e falseiam a prova, é apenas pensar que tal possibilidade não pode sequer constituir motivo de reflexão), isto já não falando da perícia inconclusiva por perfil incompleto;
            O sangue na mala do Opel Astra (apenas perícia secção C7) do carro - perícia não só afastou vestígio para sangue, na reacção Gabriel Bertrand, como se revelou inconclusiva por perfil incompleto, sendo também circunstancial, na medida em que o veículo fora emprestado ao desaparecido dias antes da alegada ocorrência (fora também emprestado muitas vezes ao longo do tempo) para que o mesmo efectuasse uma mudança – dito por LP.. que conduziu o veículo, em gravação existente no sistema digital deste Tribunal;
            Os sinais de ferimentos físicos que o arguido evidenciava - negado pelo arguido, tendo o mesmo referido ter sido agredido no dia 28 de Abril pelos agentes da Policia Judiciária M.., O.., LL... quando os mesmos ilegalmente, e sem apoio jurídico, o levaram ao “local ermo e isolado” para o fotografarem a apontar para o vazio, tendo sido corroborado pelos seus colegas de trabalho, V.. e José Fonseca, que no dia 24 de Abril, pela tarde, o viram e confirmaram não ter o arguido quaisquer lesões (mormente hemorragias conjuntivais), bem como o agente da PSP X.. que, no dia 28 de Abril, pela manhã, momentos antes de ser entregue à Judiciária nesse mesmo dia (antes portanto das agressões), afirmou também que o arguido não apresentava lesões do tipo da relatada na perícia de direito penal, encontrando-se no seu estado normal; sobre a perícia médico-legal em direito penal já tivemos oportunidade de relatar a preocupação dos agentes policiais em evitarem qualquer contacto verbal do arguido com a médica perita. Há mais pessoas que viram o arguido, a sua mãe, tio, padrinho, e outros ...
            A intensa actividade telefónica do arguido - explicada pelo arguido em audiência, e matéria não investigada pela Policia Judiciária, aliás como as demais que se impunham para compreensão das “outras hipóteses possíveis”, designadamente o relacionamento do desaparecido com indivíduos de nacionalidade brasileira e angolana e a explicação para as quantidades de dinheiro que o mesmo normalmente exibia;
            A fuga empreendida pelo arguido - explicada pelo arguido em audiência e basta ver que o arguido nunca se ausentou da sua área de residência, podendo tê-lo feito, sendo descabida tal afirmação;
            O estratagema dos brasileiros - matéria não investigada pela Policia Judiciária, sendo certo que a afirmação do arguido não era inconsistente havendo elementos para investigar, veja-se a documentação existente nos autos referentes a uma namorada brasileira MM..., bem como declarações em inquérito de G... pai que davam o seu filho como se relacionando com uma mulher desta nacionalidade;
            O estratagema da confissão arrancada com agressões da Policia Judiciária - os depoimentos prestados pelos seus colegas de trabalho, e pelo agente da PSP X.. a quem o arguido se entregou são esclarecedores, como o é a necessidade exibida pelos agentes de obterem relato médico no INML sem intermediação do arguido.
            Feita esta análise sumária, Venerandos Desembargadores, o que temos? Com todo o respeito, ao recorrente parece bem que nada. Tudo está assente em juízos sem sustentáculo probatório, e quando o arguido tenuemente dá a cara, não resiste a uma apreciação um pouco mais profunda a pouco mais que 10 centímetros abaixo da linha de água.
            Por falta de investigação, criam-se factos, preenchem-se lacunas, verdadeiros abismos lógicos e saltos quânticos, pelo mero exercício da imaginação, que tanto podiam ter pendido para um lado como para o outro.
            Confúcio escreveu que “não se atravessam abismos com dois passos”, mas a presente decisão recorrida fê-lo na medida em que evidenciando dúvidas razoáveis deu, ao arrepio do princípio acima mencionado, como provados factos contra o arguido.”
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Não se argumente que foi violado o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.      Dispõe a Constituição no n.º 2 do seu artigo 32.º que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», preceito que se identifica em geral, com a formulação do princípio da presunção de inocência constante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.11.º, n.º 1).
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.      O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.                                                  Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”.                        
Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.                                                           Lendo a fundamentação da decisão (processo de convicção do tribunal), facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com dúvidas sobre a matéria de facto.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância a todas as dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos.                                                                                                                            É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.          
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo, nessa parte.                                                                                            A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, (tal como sucede com a livre convicção) argumentada, coerente, razoável – neste sentido cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.                                                                             Assim, para a revogação da decisão, neste âmbito, importaria demonstrar, não só duas versões diferentes do mesmo facto, mas duas versões sérias, razoáveis e plausíveis e que, em tal contexto o tribunal acolheu aquela que desfavorece o arguido, isto é, não basta transmitir ao processo diversas versões vagas (difusas) dos factos tidas, em teoria, como possíveis, antes é necessário haver um mínimo de concretização das mesmas, através de dados objectivos, o que não aconteceu.
Nessa medida, as declarações feitas pelo arguido em audiência de julgamento (existir uma operação montada por uns brasileiros, ligados a uma namorada brasileira de G..., responsável pelo desaparecimento deste), indo ao encontro do “desabafo para o papel” de fls. 124/135, junto aos autos em 27/4/2012, nenhuma dúvida criaram no Tribunal a quo, na medida em que este valorou o que foi dito em primeiro interrogatório judicial (o arguido, então, após admitir ter escrito integralmente o texto, afirmou que o mesmo não correspondia à verdade, tendo-o escrito para ter um álibi).
Muito menos a carta de fls. 514, enviada para E..., com remetente em nome de uma tal MM..., fazendo alusão a G... (em resumo, é dito que o G... está bem, está a habituar-se a uma nova vida), junta aos autos em 12 de Outubro de 2012 criou qualquer dúvida no Tribunal recorrido, o que bem se compreende por ser desconhecida a exacta proveniência, sendo de estranhar, como é evidente que alguém que se encontra bem e a iniciar um novo rumo de vida não comunique pessoalmente com a família, de modo a tranquiliza-la e seja uma pessoa desconhecida a fazê-lo, para mais em termos ambíguos.
Aliás, o teor desta carta vai, em certa medida, ao encontro da mensagem manuscrita pelo arguido no Estabelecimento Prisional, apreendida nos autos em 3/5/2012, junta a fls. 315/316, em que pode ser lido o seguinte:
I..., preciso da tua ajuda. Preciso que fales com o NN... ou tu próprio consegues resolver isto para me safar a pele. (…)
Preciso de 1 gajo brasileiro para ir até ao Alentejo, têm de arranjar um cartão de telemóvel nem que seja da candonga e um telemóvel desligado. Depois, já no Alentejo ligam o telemóvel e ligam para este n.º (...). Perguntam: é da casa do sr. G...? O homem ou mulher responde: é sim. O brasileiro diz: vocês têm um filho chamado G... e é doido pelo sporting. O homem ou mulher responde: sim ou não (logo se vê)
Brasileiro diz: Têm, mas ele está aqui connosco, não está morto mas também sabemos que está 1 gajo preso inocente; e isso é muito feio. Nós estamos a levá-lo para Espanha e depois vamos para Marrocos.
Depois desta conversa para este número voltam a ligar para este numero (...).
E diz o brasileiro: Você é a Dona D...?
Resposta: Sim, sou eu.
Brasileiro diz: O seu marido está preso, mas é inocente. O G... está connosco.
Se não atender, deixar SMS.
Ir só por estradas nacionais, sem portagens; telemóvel só é ligado no local das chamadas, depois das ligações é desligado e deitado fora.
Se não conseguir arranjar nenhum telemóvel velho, o I... pede dinheiro à minha mãe para comprar 1 e para comprar o cartão mas tentem arranjar tudo na candonga e digam quanto é.
Por este serviço pago 2 500 euros. E depois, se isto correr bem e conseguir provar que estou inocente, porque estou, vou pedir uma indemnização grande e pago mais 10 000 euros.
I... é um favor que te estou a pedir, tu consegues fazer porque tu és um gajo bastante esperto. Ajuda o amigo
(…).
Depois disto tudo feito queimar este papel.
Ora, não foi criada qualquer dúvida razoável quanto à origem desta mensagem, cujo teor vai no sentido do arguido pretender apenas criar um cenário que se enquadrasse no mencionado “desabafo para o papel”, classificado pelo próprio, em primeiro interrogatório judicial, como álibi.
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            7) Da violação do disposto nos artigos 127.º e 355º, do Código do Processo Penal, bem como, em consequência, os art.s 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al.s e) e j), e 254.º, n.º1, al. a), do Código Penal:
            De acordo com o artigo 127.º, do CPP, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
            O artigo 355.º, do CPP, no seu n.º 1, consagra que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência” e, no seu n.º 2, que “ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.”
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            No que tange a esta última questão, o recorrente alega, em específico, o seguinte:
            “O art.º 127.º do Código de Processo Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
            Contudo, como decorre do acima exposto, o Tribunal violou manifestamente tal princípio na medida em que deu como provada factualidade que não apresenta sustentáculo probatório suficiente e, para além de uma dúvida razoável, bem como uma violação clara da aplicação (contra-natura, contra o tal homem médio) das máximas de experiência comum.
            Em consequência violou também os tipos legais de ilícito relativos aos crimes de homicídio e profanação de cadáver, ao condenar o arguido nesses tipos legais.
                                                                       ****
            Desde já, há que deixar claro que a invocação da violação do princípio ora em análise não pode servir para o recorrente sindicar a livre apreciação da prova produzida em audiência, realizada pelo tribunal recorrido.
            O tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em condições melhores para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.
            A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz. Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…
            À valoração do tribunal preside um juízo atípico, porque fundando-se nas regras da experiência, isto é em critérios generalizadores e tipificados, índices corrigíveis, critérios definidores de conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas sempre tendo presente a individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados[1].
            E se é certo que o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido como uma apreciação judicial arbitrária - ou, na expressiva fórmula de Paolo Tonini “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé[2] -, e que a livre convicção do juiz não pode ser meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável[3], certo é, também, que a “verdade material que se busca em processo penal, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um conhecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal -, se revelam particularmente fiáveis».[4]
            E assim, como ensina o insigne Professor, “a convicção judicial será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na “convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse».
            Consabidamente, a verdade que o direito encerra é a «processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente ao “pedaço de vida” acontecido) «na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa, de patente que é, não necessita de ser sublinhada».[5]
            Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.
            Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade.
            Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento.
            Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.
            Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.
No caso em apreço, a decisão recorrida encontra-se fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e perceptível, não sendo vislumbrada qualquer incorrecta apreciação da prova, não tendo resultado que a mesma seja inadmissível perante as regras da experiência comum.
Em resumo, o artigo 127.º, do CPP, indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
            A apreciação da prova deve ser fundamentada nas “regras da experiência” e na “livre convicção” do juiz, por decorrência directa do artigo 127.º, do CPP. Por isso, e porque o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, exige o “exame crítico das provas”, é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio, sendo certo que, para além das aludidas operações intelectuais, o tribunal deve respeitar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação mas respeitando as proibições de prova (artigos 125.º e 126.º, do CPP), as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (artigos 129.º e 130.º, do CPP), pericial (artigo 163.º, do CPP) e a documental (artigos 167.º a 169.º, do CPP).
            Ora, o acórdão proferido pelo Tribunal a quo assenta, pese embora a discordância manifestada pelo ora recorrente, em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova, nomeadamente a que resulta do artigo 355.º, do CPP.
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B) Recurso interposto pelo Ministério Público:
- Da violação do disposto pelos artigos 113.º e 115.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 49.º, do Código de Processo Penal:
O ora recorrente defende que “lhe assiste inteira legitimidade para exercer, como exerceu, a acção penal quanto ao crime de furto dos telemóveis pertencentes à vítima e pelo qual o arguido foi acusado e não poderá deixar de ser condenado.”
Mais alega que “apenas por evidente lapso, o Tribunal não considerou a expressa notificação ordenada pela Sr.ª Procuradora Adjunta para tal efeito, tal como consta do despacho de 02/10/2012, cfr. fls. 535 e queixa apresentada por E..., pai da vítima, tal como consta do requerimento de fls. 539 dos autos que deu entrada neste tribunal de Tomar e Serviços do M.P. no dia 09/10/2012”, motivo pelo qual o direito de queixa foi exercido tempestivamente pelo respectivo titular.
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Enquanto questão prévia, relembre-se o que consta do acórdão ora em crise:
“(…) No caso dos autos, este Tribunal entende que tal não sucedeu. Apesar de se reconhecer ao pai da vítima ( E...) legitimidade para tal acto – enquanto herdeiro de seu filho – nota-se que nunca expressou a vontade de desencadear o procedimento quanto à subtracção de bens do seu filho. No momento em que o E... foi ouvido apenas estava em causa o desaparecimento do seu filho, suspeitando-se de um eventual sequestro. A manifestação de procedimento criminal refere-se apenas a tal crime e circunstância, como é natural – cfr. fls. 31 a 34. A notícia da subtracção de bens da vítima apenas surge no decorrer do inquérito e o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação não foi informado e questionado sobre a vontade de exercer a queixa quanto a tais factos.
Temos, assim, que nos presentes autos inexiste qualquer manifestação de vontade expressa, clara e inequívoca no sentido de ser desencadeado o procedimento criminal, isto é queixa quanto à subtracção de objectos, pelo que o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal quanto ao crime de furto simples.
Termos em que se declara a ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal e, em consequência, se determina a extinção do procedimento criminal movido ao arguido A... quanto a tal crime de furto simples.”
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Assiste razão ao recorrente.
Com efeito, a fls. 539 dos autos, consta um requerimento, dirigido ao Exmo. Procurador-Adjunto, assinado por E... (data de entrada em juízo – 9/10/2012), cujo teor é o seguinte:
Cumpre-me informar Vª Exª que desejo procedimento criminal contra o arguido A..., pela subtracção dos dois telemóveis pertencentes ao meu filho G....
Logo, o direito de queixa foi exercido tempestivamente e pelo respectivo titular.
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Por consequência, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada nos pontos 2.1.11, 2.1.15, 2.1.33, 2.1.37, 2.1.54, 2.1.80, 2.1.81, 2.1.82, é de concluir que o arguido incorreu na prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
 Comete o crime de furto “quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia”.
O bem jurídico protegido pela norma é o direito de propriedade. Ou, como sustenta FARIA COSTA, em anotação ao artigo 203.º, do Comentário Conimbricense ao Código Penal, “o simples poder de facto sobre a coisa, tutelando-se desta forma a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa com um mínimo de representação jurídica... sendo o furto, sobretudo uma agressão ilegítima ao estado actual das relações jurídicas, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida, na sua exteriorização material”.
Para além da apropriação de bem móvel alheio, exige a lei, como elemento subjectivo do tipo de ilícito – impropriamente chamado dolo específico, uma vez que se trata de um elemento descritivo do tipo objectivo e não uma categoria da culpa propriamente dita – uma ilegítima intenção de apropriação. Trata-se de um elemento diferente da motivação do agente, significando que este se comporta com o animus sibi habendi, em relação a um bem que sabe não lhe pertencer.
Constituem assim elementos constitutivos do tipo de crime em apreço:
- a subtracção de uma coisa móvel; que tal coisa móvel seja alheia (elementos objectivos); e ainda, como elemento subjectivo do tipo, a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outrem da coisa.
A subtracção não se esgota com a mera apreensão da coisa alheia. É necessário que o agente subtraia a coisa da posse exercida pelo lesado e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro.
A subtracção consiste, tal como refere Beleza dos Santos, “na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente” – cfr. RLJ, n.º 58- p. 252.
A subtracção não se tem por completamente integrada com a simples contrectatio, ou mesmo com a aprehensio rei, pois, certamente, veríamos excluída da previsão do furto todas as situações em que a posse não fora sequer violada. Do mesmo modo, não se nos afigura curial exigir-se a ablatio, isto é, a deslocação da coisa de um lado para o outro pelo agente do furto a fim de consolidar a apropriação – cfr. Maia Gonçalves C. Penal Anotado, p. 604).
Assim, é imprescindível que o agente subtraia a coisa do domínio de facto anteriormente exercido sobre ela e a coloque sob o seu domínio, à sua disposição ou à disposição de terceiro.
O crime de furto consuma-se com a entrada da coisa furtada na esfera patrimonial do agente ou de terceiro, ou seja, o tipo basta-se com a consumação formal ou jurídica, desprezando a doutrina da posse pacífica ou consumação material (cfr. Ac. STJ de 26.01.95, CJ-STJ, t. I, pág. 190 e Ac. STJ de 22.05.97, CJ-STJ, t.II, pág. 224).
Quanto ao elemento subjectivo (do tipo objectivo), ou seja, a ilegítima intenção de apropriação, “é traduzido na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, a haver para si ou para outrem, comportando-se relativamente a ela com animo sibi rem habendi, integrando-a na sua esfera patrimonial” - cf. Ac. RE. de 29/11/94, CJ, T V, p. 292).
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A ilegitimidade traduz-se no conhecimento ou consciência do agente de que a coisa é alheia, pertencente a outrem, querendo apropriar-se dela ou fazer dela coisa sua sem que detenha direito ou título para o efeito, o mesmo é dizer, em violação de direito alheio.
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Aqui chegados, importa determinar a medida concreta da pena.
O artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe o seguinte:
“1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Como dispõe o artigo 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Quanto à medida da pena, em suma, e como já ensinava Beleza dos Santos, «a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração do delinquente» (R.L.J., 78, 26).
             De acordo com o direito vigente, o Tribunal deve partir da teoria da união, a qual exige se chegue a uma relação equilibrada dos diferentes fins de pena.
A pena deve determinar-se de modo a que garanta a função retributiva, esta equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade, sem pressuposto, limite último, e seja possível, pelo menos, o cumprimento também da revisão ressocializadorada da própria pena com respeito ao próprio arguido, a exemplo, deste modo, o fim da prevenção especial. Além disso, a defesa do Ordenamento Jurídico exige, por último, que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, que sirva ela de exemplo, de contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos. Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na Jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta.
A pena concreta é, pois, fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinada em função da culpa, intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e prevenção especial - dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4-113).
            Assim, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, no caso concreto (art. 71º, n.º 1, do C. P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2), designadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; a conduta anterior e posterior ao facto; a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto; as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
            Quando um tipo de crime prevê, em alternativa, uma pena privativa e uma pena não privativa da liberdade, de acordo com o artigo 70.º, do Código Penal, o critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.
O que o mesmo é dizer que a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso a pena de multa, depende, apenas, de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do “sentimento jurídico da comunidade” (seguindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, págs. 331 e 332).
Como bem explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2001 (processo n.º 3404/00-5ª) “subjaz à norma constante no art.º 70.º, do CP, toda a filosofia informadora do sistema punitivo vertido no Código Penal vigente, ou seja, a de que embora se aceitando a existência da prisão (ou pena corporal) como pena principal para os casos em que a gravidade dos ilícitos, ou de certas formas de vida, a impõem ou justificam, a recorrência deverá ter lugar quando, face ao circunstancialismo que se perfile, se não apresentem adequadas, suficientes ou convenientes, as sanções não detentivas, às quais não é de recusar elevada capacidade (ou potencialidade) ressocializadora. Tudo isto se insere no desiderato de se evitarem as curtas penas de prisão (ou a eventualidade da efectivação dessas penas) donde que, por regra, a alternativa por pena de multa se autorize nos casos em que aos ilícitos caiba pena prisional não demasiado elevada”.
Ora, no caso em apreço, justifica-se plenamente a preferência por uma pena de prisão, tendo em consideração a globalidade das circunstâncias apuradas.
A aplicação de uma pena de multa jamais promoveria a recuperação do delinquente e reprovaria suficientemente a sua conduta.
O grau de ilicitude é elevado.
O arguido agiu com dolo directo.
O arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta.
O arguido é pessoa integrada familiar e socialmente e não apresenta antecedentes criminais.
            Sopesados que estão todos os critérios e factores legais de determinação da concreta medida da pena (o grau de ilicitude, o dolo directo, as necessidades de prevenção, geral e especial, a inserção social do arguido, a sua idade, os seus antecedentes criminais) consideramos adequada a pena de nove meses de prisão.
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 Uma vez que esta pena está em concurso com as restantes penas já aplicadas, nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, há que alcançar uma pena única.
O critério da medida da pena resultante do cúmulo jurídico tem consagração legal na parte final do nº 1, do artigo 77.º. do Código Penal, na parte em que dispõe que “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, o que não significa que esta norma esgote na sua totalidade os factores a ponderar.
Como é consabido, a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares pressupõe o recurso às exigências de prevenção, geral e especial, e também ela encontra limite na medida da culpa.
Simplesmente, a determinação desta pena única, porque se trata de uma pena referida a uma multiplicidade de factos temporalmente encadeados (próximos ou afastados), exige a adopção de um critério complementar, consubstanciado na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente (posto que aqueles poderão ou não afirmar-se como um reflexo desta).
Claro que a gravidade relativa de cada um dos factos criminalmente relevantes deve ser considerada na determinação da correspondente pena parcelar, sendo, ainda, certo que, em sede de cúmulo jurídico de penas, o que essencialmente releva é a visão de conjunto.
 A visão individual de cada facto deve esbater-se perante a visão de conjunto, pois só esta permitirá correlacionar os factos entre si em ordem à verificação de uma verdadeira tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade, a primeira afirmando-se como verdadeiro reflexo de uma personalidade que optou decididamente pela senda do crime e a segunda a reflectir essencialmente uma resposta conjuntural a condições de vida mais adversas, a um circunstancialismo mais propício ao cometimento dos crimes, ou a qualquer outro estímulo exógeno que não permite afirmar os factos como produto da natureza intrínseca do arguido, isto é, da sua personalidade.
Assim, para a determinação da pena unitária, num primeiro momento, há que encontrar a moldura do concurso segundo os ditames do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.
No caso vertente todas as penas em concurso são penas de prisão efectiva, estabelecendo-se a moldura do concurso entre um mínimo de 19 (dezanove) anos de prisão, correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas, e um máximo de  21 (vinte e um) anos e 3 (três) meses de prisão, correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.     
Determinada esta moldura, há que encontrar, portanto, a pena única, o que pressupõe a mencionada visão de conjunto relativamente aos factos praticados, em interacção com a personalidade do agente.
Pois bem, é-nos dado verificar que os factos praticados surgem como algo esporádico na vida do arguido. Não estamos perante uma tendência intrínseca do arguido para a prática de crimes, antes no domínio da pluriocasionalidade, decorrente de circunstâncias próprias de um determinado momento.
Aqui chegados, devemos levar em consideração nesta matéria o critério seguido pelo STJ, através do qual se opera uma compressão das penas que, em regra, varia entre 1/3 e 1/6 da pena inicial, sempre sujeito a uma correcção final em função do número de penas a considerar, da sua gravidade relativa e daquilo que se oferece como ajustado no caso concreto, face à imagem do conjunto dos factos e à personalidade do delinquente (Cfr. Ac. do STJ de 18/06/2009, proc. nº 558/06.0TALSD.P1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt/jstj), ainda que em casos mais graves, de grande intensidade de culpa, essa compressão se possa limitar a uma fracção entre metade e dois terços das penas (cfr. Ac. do STJ de 16/11/2011, proc. nº 150/08.5JBLSB).
Os demais factos relativos às circunstâncias pessoais do arguido que se tiveram como provados não atenuam a sua culpa nem geram acrescidas expectativas de reinserção social.
Tudo isto pesa na concretização da pena única e aponta para os vinte anos e três meses de prisão como sua medida ajustada.
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            IV – DECISÃO:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em:
1) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, indo, em consequência, sem prejuízo das penas já aplicadas nos autos, o arguido A... condenado, pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, o que, nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, dá origem à pena única de vinte anos e três meses de prisão.
Sem custas.
 2) Negar provimento ao recurso interposto pelo Arguido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em seis UC.
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          Coimbra, 23 de Outubro de 2013

 (José Eduardo Martins - Relator)
   
     (Maria José Nogueira)

[1] - cfr. Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967/1968, n.º 4 - Os Princípios de Processo Penal.
[2] La Prova Penale, pág. 9 e segs.
[3] “A liberdade de apreciação da prova não pode estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis” - Paulo Saragoça da Mata, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, pág. 231.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, secção de textos da FDUC, 1988-9, págs. 140.
[5] Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 251.