Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
413/06.24GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS DO TIPO
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
MOTIVAÇÃO DO RECURSO
ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 06/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: 153º, Nº1 DO CP,127º 412º, 428º,431ºDO CPP
Sumário: 1.Tendo o recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto, cumprindo nomeadamente os requisitos previstos no nº3 e respectivas alíneas e nº4 do artigo 412º do CPP, impõe-se ao tribunal da Relação apurar pela análise, que pressupõe a audição da gravação, das passagens indicadas pelo recorrente e outras que tiver por necessárias à boa decisão da causa de declarações e depoimentos prestados, se ocorreu erro de julgamento relativamente ao ponto de facto especificado pelo recorrente como incorrectamente julgado.

2.O tribunal da Relação deve alterar a decisão da matéria de facto quanto ao ponto de facto especificado pelo recorrente como incorrectamente julgado quando reapreciados os elementos de prova pertinentes conclui com a necessária segurança que o ponto de facto especificado como incorrectamente julgado pelo tribunal recorrido não está de acordo com os elementos probatórios apreciados na sua globalidade.
3.Tratando-se de um crime de perigo concreto e não de um crime de resultado, o crime de ameaças apenas supõe que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, não exigindo a prova de que o resultado se tenha verificado no concreto ameaçado.

4. Não se verifica o crime de ameaça quando o agente, individuo de sexo masculino, dirigindo-se a individuo de sexo feminino, profere a seguinte expressão: «se fosses um homem até te trincava».
Decisão Texto Integral: A - Relatório:

No âmbito do processo comum singular supra numerado do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, os arguidos:

P solteiro, nascido a 25 de .. de 1978, natural da freguesia de Santa Maria, concelho de Viseu, filho de J e de M ajudante de estucador, residente…. ,Viseu, titular do Bilhete de Identidade n.º 126…, emitido em 2005/…/…, pelo Arquivo de Viseu

e

C solteiro, nascido a 8 de …. de 1977, natural da freguesia de Santa Maria, …Viseu filho de J e de M pedreiro, residente em… Viseu, titular do Bilhete de Identidade n.º 120

Foram condenados:

o arguido P como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º/1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa de € 600 (seiscentos euros), a que correspondem 80 (oitenta) dias de prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal);

o arguido P  como autor material de um (1) crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.º/1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros), a que corresponde a prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal) de 60 (sessenta) dias;

o arguido P  como autor material de um (1) crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.º/1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros), a que corresponde a prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal) de 60 (sessenta) dias;

o arguido C como autor material de um (1) crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.º/1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros), a que corresponde a prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal) de 60 (sessenta) dias.

Efectuado o cúmulo jurídico das penas de multa parcelares aplicadas ao arguido P, de acordo com o disposto no artigo 77.º do Código Penal, sendo considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, vai o arguido condenado na pena de multa unitária de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), ou seja, na multa de € 1.000 (mil euros), fixando-se a respectiva pena de prisão subsidiária (artigo 49.º/1 do Código Penal) em 166 (cento e sessenta e seis) dias.


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A Digna Procuradora junto do Tribunal de Viseu, não se conformando com a decisão, interpôs o presente recurso peticionando que se lavre acórdão que revogue a sentença recorrida e absolva os arguidos do crime imputado e formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1° O presente recurso é circunscrito á condenação de cada um dos arguidos como autor de um crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153º nº 1 do Código Penal, sendo ofendida B

2° Fundamenta-se nos arts. 410, nº 1, 412, nºs 1,  2 e 3 e 428,  todos do CPP, abrangendo matéria de facto e de direito.

3° São os seguintes os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados:

«I - Que no dia 30 de Maio de 2006, pelas 21:00 horas, em Travassos de Cima, área desta comarca, também o arguido P, dirigindo-se à queixosa B, disse de forma intimidativa: "se fosses um homem até te trincava"; (ponto incluído no item 5 dos factos provados);

" - que o dito arguido ao actuar da forma acima descrita, o fez de forma livre, voluntária e consciente (ponto incluído no item 6 dos factos provados) ;

III - que o arguido P actuou de tal forma com o propósito de causar receio à queixosa Belmira, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal receio, como efectivamente causou (ponto incluído no item 7 dos factos provados);

IV- que o arguido C actuou com o propósito de causar receio à queixosa B, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal receio, como efectivamente causou (ponto 8 dos factos provados)

V- que os arguidos bem sabiam que as suas condutas (no que à ofendida Belmira concerne) eram proibidas e punidas pela lei penal (ponto incluído no item 9 dos factos provados).»

4° Porquanto, não foi produzida prova em audiência de julgamento que permita sustentar tais factos, tal como aliás resulta ostensivamente da própria fundamentação da sentença.

5° Na verdade, não se vê como é que com base nos depoimentos que invocou para o efeito (depoimentos das testemunhas I,R, M e da própria ofendida B) o Mmº Juiz pode dar como provado que também o arguido P proferiu a expressão use fosses um homem até te tnincava", quando ninguém (sequer a própria ofendida) imputa tal expressão ao arguido P, como, aliás, consta da própria fundamentação da sentença e como resulta á evidência da audição dos depoimentos de tais testemunhas que, por razões de economia processual, infra se localizarão e se transcreverão na parte relevante.

6° De todo o modo, tal expressão não encerra qualquer anúncio de um mal futuro, nem é idónea, ou adequada, a causar qualquer receio á «ofendida B», ao contrário do que foi dado como provado.

7° Na verdade a expressão: «se fosses homem, até te trincava», alegadamente dita em tom intimidativo pelos arguidos à ofendida, só pode significar que apenas não a agrediam por ser mulher, não sendo possível vislumbrar em tal expressão qualquer ameaça de agressão futura, já que a condição a que está sujeita (ser a «ofendida» homem) está desde logo arredada.

8° Donde resulta também a inadequação de tal expressão para causar qualquer receio á ofendida, constituindo a mesma, ao fim e ao cabo, uma bazófia, um mero insulto e não mais do que isso.

9° A atestá-lo está, aliás, o depoimento da própria ofendida que declarou não ter sentido medo em consequência das palavras que lhe foram dirigidas (segundo ela, apenas pelo arguido C), conforme depoimento infra localizado e transcrito, por razões de economia processual.

10° Em suma, mesmo dos factos dados como provados, não é possível extrair a conclusão de que os arguidos anunciaram á ofendida a intenção de lhe causarem qualquer mal que constitua crime (contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor) e esse é um requisito indispensável á verificação do crime de ameaças p.p. pelo artigo 153, nº 1 do CP, pelo qual os arguidos foram condenados.

11° Foi, pois, violado o referido normativo, pois que, apesar de nas considerações teóricas tecidas a propósito do seu preenchimento, o Mmº Juiz ter concluído pela necessidade do referido requisito, acaba por considerar o mesmo verificado, de forma manifestamente injustificada.

12° Por todo o exposto, e sendo certo que os autos contêm em si todos os elementos para proferir decisão, deverá o Tribunal de Recurso substituir a decisão recorrida por outra que:

- considere como não provados todos os factos atrás enunciados no artigo 3° e absolva os arguidos do crime de ameaças, em que é ofendida B, determinando-se a consequente alteração da pena unitária em que o arguido P foi condenado.


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Nesta Relação, o Exmº SrºProcurador-geral Adjunto emitiu douto parecer propugnando pela procedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417º do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu.

Foi efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada conferência.


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B - Fundamentação:

B.1.a) - Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1) No dia 30 de… de 2006, entre as 21:15 horas e as 21:30 horas, na localidade de … Travassós de Cima, Viseu, o arguido P dirigiu-se ao queixoso T. e, de seguida, desferiu-lhe uma pancada em zona não concretamente apurada do corpo do mesmo, pancada que lhe provocou dores;
2) O queixoso fugiu, tendo sido perseguido pelo arguido que novamente o agrediu, desferindo-lhe uma pancada em zona não concretamente apurada do corpo do mesmo, pancada que lhe provocou dores;
3) No inicio do mês de Janeiro de 2008 o arguido P disse a R e J que se o queixoso não fosse falar consigo e não desistisse da queixa, caso perdesse o julgamento ainda lhe fazia pior, dando-lhe umas chapadas mesmo à saída do Tribunal;
4) O arguido bem sabia que R e J contariam ao queixoso o que aquele lhes disse, tendo sido essa a sua intenção quando proferiu tais palavras e dessa forma intimidar, provocando medo no queixoso;
5) No dia 30 de … de 2006, pelas 21:00 horas, em Travassos de Cima, área desta comarca, os arguidos P e C, dirigindo-se à queixosa B, disseram de forma intimidativa: “se fosses um homem até te trincava”;
6) Os arguidos ao actuarem da forma acima descrita, fizeram-no sempre de forma livre, voluntária e consciente;
7) O arguido P actuou com o propósito de ofender corporalmente o queixoso Tiago, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar lesões e dores, como efectivamente causou e ainda com o propósito de causar receio ao queixoso T e também quanto à queixosa B, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a causarem tal receio, como efectivamente causaram;
8) O arguido C actuou com o propósito de causar receio à queixosa B, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal receio, como efectivamente causou;
9) Os arguidos bem sabiam que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;
10) O arguido P tem os antecedentes criminais que constam do seu C.R.C., junto a fls. 258 a 260, contando duas (2) condenações, pela prática de um crime de condução ilegal e uma outra de ofensa à integridade física simples;
11) O arguido C é primário;
12) O arguido P encontra-se desempregado, auferindo subsídio de desemprego;
13) Vive com a esposa e um filho;
14) Vive em casa arrendada, pagando mensalmente a quantia de € 125 de renda;
15) O arguido C é ajudante de estucador, auferindo o salário mensal de € 450;
16) Vive com a esposa, funcionária de lar;
17) Vivem em casa de renda, pagando mensalmente a quantia de € 300 de renda;


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B.1.b) - E como não provados os seguintes:

No dia 30 de … de 2006, entre as 21H15 e as 21H30 na localidade de … Travassos de Cima, Viseu, o arguido P dirigiu-se ao queixoso T e disse-lhe "Essa arma que tu tens para matar a minha mãe, hás-de passá-la para cá", desferindo de seguida duas bofetadas na cara do mesmo;

O queixoso fugiu, tendo sido perseguido pelo arguido que novamente o agrediu com mais duas bofetadas;

Com a sua conduta o arguido provocou no ofendido dores e as lesões descritas e examinadas a fls. 15 a 18, as quais foram causa directa e necessária de dois dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral ou profissional;


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B.1.c) - O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo:

Do teor dos C.R.C.’s dos arguidos, junto a fls. 257 e 258-260, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;

Do teor dos Autos de Exame Médico, de fls. 15-18, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163.º/1 do Código de Processo Penal), dos quais resulta que o ofendido T não apresentava lesões ou sequelas da alegada agressão, sendo que se refere que, consultada cópia da ficha clínica facultada, da mesma constava a existência de “uma pequena equimose na face Antero-interna da perna esquerda”, lesão que determinou um período de doença de 2 dias, sem incapacidade para o trabalho, conjugados com o teor da ficha clínica de fls. 276, referente à assistência na urgência hospitalar do ofendido T, da qual resulta que o arguido se queixava de dor, devido a agressão, documento cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa. Ora conjugados estes elementos com a demais prova testemunhal produzida não poderá o tribunal dar como provado que as lesões descritas e examinadas ao ofendido T sejam as que constam dos autos, já que não é possível a sua compaginação, já que todas as testemunhas, ofendido e sua mãe referem que as agressões teriam sido produzidas na zona da face/boca, pelo que apenas de dará como provadas as agressões do arguido P ao ofendido T e que as mesmas lhe causaram dor;

Do depoimento da testemunha M, que referiu ter ouvido um barulho seco, virou-se e viu o arguido P bater “com a mão na cara” do T, não tendo visto este reagir. Foi junto do café ---, em Travassós de Cima, junto da Rua Direita. O tempo estava bom, era de dia, seriam talvez 5 horas. O T não reagiu às pancadas, encolheu-se e fugiu, pensa que para a casa dos tios. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha I, cunhada da ofendida B e tia do ofendido T, a qual referiu que o seu sobrinho T apareceu em sua casa, sita na Rua Direita, em Travassós de Cima, ao lado do café…, a pedir-lhe para telefonar para os pais, porque o P o tinha agredido. Referiu que tinha “um alto” em cima de uma das sobrancelhas. Seriam por volta das 9 horas, pois que já tinham jantado. Depois chegou a sua cunhada B, a qual viu os arguidos – não sabe qual deles – dizer qualquer coisa ameaçadora para a B, lembrando-se da expressão “trincava-te toda, se fosses um homem”. Acrescentou que eram “ameaças de agressão física”. Houve insultos da B e marido e dos arguidos “trataram-se mal uns aos outros”. Referiu não saber quem terá proferido aquela expressão. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha J, o qual referiu que aquando dos factos ia a passear com o T, o Z. e o MA, referindo que a certa altura o arguido P chamou o T e depois este bateu-lhe. Viu o arguido P bater no T junto ao café “Mirafonte”, na vila de .. Já era de noite, já que quando iam caminhar era sempre à noite, já depois das 9, seria no Verão, em Setembro. O arguido P chamou o T, dizendo que queria falar com ele, e depois bateu-lhe, tendo o T ficado a sangrar dos lábios. De seguida o T fugiu para casa da tia e o arguido P foi atrás dele, de mota, em sentido proibido. Referiu que noutro dia, o arguido P virou-se para a testemunha R, irmão do T, e disse-lhe que “se perdesse o julgamento fazia-lhe pior do que tinha feito ao irmão T”. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha M, o qual referiu que aquando dos factos ia a passear com o T, Z e o J, referindo que a certa altura o arguido P chamou o  e depois viu este dar-lhe duas chapadas e um murro, tendo acertado na face do T. O T fugiu para casa dos tios. Tal ocorreu no .. em Travassós de Cima. Quando chegou junto da casa dos tios do T já este lá não estava, pois tinha ido para o hospital. Acrescentou que o T ficou com a “cara inchada”. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha R, irmão do ofendido T e filho da ofendida B, o qual referiu que no dia da agressão viu o irmão a sangrar da boca. Ouviu o arguido P dizer-lhe “se perder o julgamento dou duas chapadas ao teu irmão”, tendo contado ao irmão T, o qual ficou intimidado com a expressão, tendo feito queixa. Antes foi ter a casa da tia tendo sido ela que fez o telefonema, tendo chegado juntamente com os pais e a irmã. Estava lá o T a sangrar da boca, tendo ido depois para o hospital. Entretanto chegaram os arguidos P e C, tendo o C dito que (a mãe) era “uma puta” e “que se fosse homem a trincava toda aos bocadinhos”. O arguido “mandou-lhe “umas bocas”, que não sabe precisar. Não teve medo do que o C disse, tendo-lhe respondido “nem homens, quanto mais um garoto”. Referiu não ter ouvido quaisquer ameaças dirigidas pelos arguidos à mãe. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha M, a qual precisou a data dos factos 30 de Maio de 2006, já que tem uma pessoa de família que fez anos nesse dia, tendo referido que viu o ofendido T a sangrar da cara. Encontrou o T a chorar e a sangrar junto do café, ao lado da casa da tia. Quando chegou viu a B e o T, tendo os arguidos chegado depois. O arguido C  disse “que se fosse um homem até a trincava toda”, mas não se lembra de ouvir o arguido P dizer essa expressão. Referiu que o arguido P injuriava a B e também a ameaçava, mas não sabendo em que termos. A B ficou com medo e receio. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha T, queixoso, o qual referiu que há ¾ anos, entre as 08:30 e as 09:30 horas, em Travassós de Cima, o arguido P saiu do café…  e disse que queria falar consigo, tendo ido ter com o mesmo, tendo-lhe o mesmo dado 2 chapadas e 1 murro do lado direito da cara e mais 1 murro depois, junto do café …. Ficou com sangue no rosto e foi assistido no hospital;

Do depoimento da testemunha B--, queixosa, a qual referiu que o arguido P espancou o filho T, tendo este ficado com sangue na cara e hematomas nas pernas e na cara e no pescoço e “até pontapés lhe deu”. O filho foi socorrido no hospital;

Do depoimento da testemunha A, a qual referiu que aquando dos factos viu o arguido P dar um murro na boca do ofendido T, em frente do café ---, que então explorava. Estavam os 2 sozinhos. Chamou a ambulância, já que T ficou a deitar sangue pelo nariz. Mais tarde chegou a mãe do T, a qual com ambos os arguidos se chamaram de nomes e ameaçaram, tendo os arguidos chamado aquela de “puta” e “ofereciam porrada”, fazendo gestos de “dar murros”. Seriam talvez 6 e tal, 7 horas. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do depoimento da testemunha B primo dos arguidos e do ofendido T, o qual referiu que aquando dos factos vinha de um terreno e viu o T deitar sangue pela boca, estando a mãe e o pai junto dele, na rua. Os arguidos apareceram um bocado depois, começaram a discutir com a mãe do T. Não ouviu ameaças. O T foi para o hospital. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta e convicta;

Do teor da “informação policial” de fls. 222-224, relativa à situação familiar, social e económica dos arguidos, solicitada por iniciativa do Tribunal, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;

Relativamente à factualidade não provada, não foi feita prova da sua efectiva verificação ou está em contradição com a factualidade provada”.


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Cumpre conhecer.

B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

De acordo com esse dispositivo, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo de, mesmo que o recurso se limite à decisão proferida sobre a matéria de direito, se ter de conhecer oficiosamente dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, entende-se que o recorrente cumpriu os ónus a que se refere o artigo 412º do Código de Processo Penal.

Em face disto, duas são as questões suscitadas pelo recorrente: o erro notório na apreciação da prova [relativamente ao arguido P] e a análise da subsunção ao disposto no artigo 153º, nº 1 do Código Penal relativamente ao arguido C.

Vejamos então se, no caso em apreço, se verifica a existência dos aludidos vícios.


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B.3 - Convém recordar que o conceito de “erro notório na apreciação da prova”, como vício relevante em processo penal, é segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

O erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa.» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325).

«Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ, de 9.12.98, BMJ 482 - 68).

Ora, o facto provado sob 5) [“os arguidos P e C, dirigindo-se à queixosa B disseram de forma intimidativa: “se fosses um homem até te trincava”] é ilógico e contrário às regras de experiência comum, na medida em que é atribuído a dois arguidos, no mesmo local e no mesmo momento, a autoria da mesma expressão.

Só em casos de absoluta excepcionalidade – no caso de Mr Dupont e Mr Dupond, por exemplo – isso aconteceria.

Impõe-se, pois, apurar se ocorreu erro de julgamento em face desse facto dado como provado pela análise das declarações e depoimentos prestados e registados nos autos, considerando que o recorrente recorreu da matéria de facto e cumpriu as exigências do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Ora, reapreciados esses elementos probatórios (declarações e depoimentos) com recurso às gravações do julgamento, conclui-se que a versão dos factos dada como provada pelo tribunal recorrido não está de acordo com aqueles depoimentos, apreciados na sua globalidade.

Mais, o tribunal recorrido atribui à testemunha R - como, aliás, salientado pelo recorrente – um teor de depoimento que se não confirma. Na parte final da al. g) da fundamentação factual do tribunal recorrido é atribuído a esta testemunha um depoimento que esta, confirmadamente, não prestou. Pelo que consta das gravações do julgamento o teor do depoimento atribuído a esta testemunha foi prestado por B e não por R.

Em suma, a testemunha B apenas atribui ao C (e não a ambos os arguidos) a autoria da expressão. Facto que é confirmado pelas testemunhas M e I.

Não há, portanto, elementos de prova que confirmem a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido.

Essa convicção judicial é, no caso concreto, criticável em sede de erro de apreciação factual e os elementos documentais da audiência de julgamento confirmam o erro notório na apreciação da prova.

Haverá, pois, que dar como não provados os factos correspondentes com a consequente absolvição do arguido P do crime imputado.

Mas mais! A testemunha B é clara e peremptória na afirmação de que a declaração do C não lhe causou qualquer receio e o tribunal recorrido não dispôs de outros elementos fundamentadores para dar como provado o receio, pelo que também este excerto da matéria de facto dada como provada haverá que ser alterado, por assentar em erro de julgamento.

Não que tal matéria seja relevante em termos de direito, designadamente por se supor o resultado”receio” como elemento do tipo ou critério de adequação da ameaça, sim porque corresponde ao realmente não provado.


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B.4 – Questão diversa diz respeito à imputação, em sede de direito, do crime de ameaças ao arguido C. Está verificado um crime de ameaças a B pelo facto de o arguido C ter afirmado “se fosses um homem até te trincava”?

Tratando-se de um crime de perigo concreto e não de um crime de resultado, o crime de ameaça apenas supõe que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, não exigindo a prova de que o resultado se tenha verificado no concreto ameaçado. [1]

No caso concreto verificar-se-á a afectação do bem jurídico protegido, a afectação da liberdade de decisão e de acção através de ameaça contra a integridade física ou a liberdade de B?

A suposta ameaça revestiu a forma oral directa pelo que será pela análise dessa expressão que encontraremos resposta à questão.

Ora, a expressão é proferida no condicional e por referência ao género.

Como o género ameaçado (masculino) não corresponde à pessoa supostamente ameaçada (do género feminino) a condição suposta pelo mal a causar não se verifica nem se verificará.

Não há, pois, ameaça concretizável no futuro na perspectiva do homem comum.

A condicionalidade absoluta da expressão, não verificável com previsibilidade no futuro, retira-lhe o carácter de ameaça credível.

A circunstância de a pessoa supostamente ameaçada – pelo que facilmente se depreende do seu depoimento – ser pouco assustadiça restringe ainda mais o critério a atender se tivermos presente que haverá que considerar às características do concreto ameaçado.

Haverá, em consequência, que absolver o arguido C do crime de ameaças a B em que foi condenado.

Por fim, haverá que alterar a redacção do facto provado sob 7), já que o queixoso é o Tiago e não o P.


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C - Dispositivo:

Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência:
Alteram a matéria de facto nos seguintes termos:

Dão como provado que:

5) No dia 30 de-- de 2006, pelas 21:00 horas, em Travassos de Cima, área desta comarca, o arguido C, dirigindo-se à queixosa B disse de forma intimidatória: “se fosses um homem até te trincava”;

7) O arguido P actuou com o propósito de ofender corporalmente o queixoso T, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar lesões e dores, como efectivamente causou e ainda com o propósito de causar receio ao queixoso T, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a causarem tal receio, como efectivamente causaram;

8) O arguido C actuou com o propósito de causar receio à queixosa B.

Dão como não provado que:

No dia 30 de.. de 2006, pelas 21:00 horas, em Travassos de Cima, área desta comarca, o arguido P, dirigindo-se à queixosa B, disse de forma intimidatória: “se fosses um homem até te trincava”;

O arguido P actuou com o propósito de causar receio a B;

O arguido C sabia que a sua conduta era adequada a causar receio na B, como efectivamente causou.

Os arguidos ao actuarem da forma acima descrita, fizeram-no sempre de forma livre, voluntária e consciente;

Pelo que e em consequência, absolvem os arguidos C e P  da prática, cada um, de um crime de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153.º/1 do Código Penal.

Sem custas.

Coimbra, 09 de Junho de 2010

(processado e revisto pelo primeiro signatário)

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes

[1]  - Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pags. 348-349, Coimbra Editora, 1999.