Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ESTEVES MARQUES | ||
Descritores: | EXERCÍCIO ILÍCITO DE SEGURANÇA PRIVADA PENA DE MULTA | ||
Data do Acordão: | 03/17/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE POMBAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 47º,Nº2 DO CP, 32º-A, Nº 1, DO DEC. LEI 35/04, DE 21/2, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 38/08, DE 8/8 | ||
Sumário: | 1.Não constitui elemento do crime de exercício ilícito de segurança privada p. e p. pelo artº 32º-A, nº 1, do Dec. Lei 35/04, de 21/2, com as alterações introduzidas pela Lei 38/08, de 8/8 que a entidade para a qual o agente presta o serviço tenha que estar obrigada a ter um serviço de segurança; por outro lado, a verificação do ilícito não impõe que se apure o tipo de relação jurídica existente entre o agente prestador do serviço de segurança ou vigilância e a entidade beneficiária dessa actividade. 2.No respeito do artigo 47º, nº2 do CP, a fixação do quantitativo diário da multa têm de ter em conta as condições económicas e financeiras do condenado para deste modo se poder respeitar o princípio da igualdade de sacrifício e a execução da pena de multa produza análoga eficácia preventiva. | ||
Decisão Texto Integral: | 10 Proc. nº 98/09.6JACBR.C1 RELATÓRIOEm processo comum singular do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, por sentença de 09.11.27, foi o arguido M., condenado como autor material de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada p. e p. pelo artº 32º-A, nº 1, do Dec. Lei 35/04, de 21/2, com as alterações introduzidas pela Lei 38/08, de 8/8, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 7,00. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões: “A. O presente recurso versa sobre matéria de Direito, uma vez que se continua a entender não estarem preenchidos os requisitos objectivos para a punição. B. Com o presente recurso não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer o direito de "manifestação de posição contrária", traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do nº.1 do art. 61° CPP e no nº.1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP brevitatis causa). C. O que está subjacente ao presente processo é uma questão de Direito, relacionada com a aplicação da disposição legal pela qual se mostra acusado, entendendo-se que há erro na aplicação de norma legal, uma vez que os factos são na sua essência verdadeiros, tendo a sua prática sido confessada. D. Questiona-se a necessidade de tal incriminação em legislação avulsa, quando tais factos poderiam ser perfeitamente enquadrados no crime de usurpação de funções, previsto e punido nos termos da alínea b) do art. 358° CP... E. Tem-se por inconstitucional, por violador das garantias de defesa, legal e constitucionalmente tuteladas, o entendimento segundo o qual a confissão dos factos importe, sem mais, a condenação do arguido sem a averiguação do preenchimento do tipo legal objectivo. F. Tal entendimento mostra-se desde logo perfilhado no Ac. do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30 de Junho de 1993 (in BMJ, 428, 7059 quando se refere que: "A circunstância de um arguido confessar em audiência de julgamento os factos constantes da acusação não implica necessariamente a condenação pela prática do crime imputado. Basta, por exemplo que, não se perfilhando a qualificação jurídica dos factos, se conclua pela inexistência de i1icito penal, ou que esclarecimentos complementares recolhidos na audiência levem a concluir pela não verificação do crime". (sublinhado nosso) G. Admitindo-se nos termos do art. 371°-A CP, a desconsideração de decisão transitada em julgado com abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei mais favorável a fortiori, se terá de desconsiderar uma confissão do arguido quando se não mostrem provados todos os factos subjacentes à prática do crime, por os constantes da acusação serem insuficientes, entendendo-se mesmo que não deveria ter sido recebida nos termos da alínea d) do nº 3 do art. 311° CPP. H. Para ter aplicação o diploma legal considerado na acusação sempre haveria que fazer prova da obrigatoriedade de adopção de sistema de segurança privada, o que, salvo o devido respeito, se não mostra efectuado. I. Nos termos expostos na douta sentença, terá o recorrente exercido funções de porteiro, procedendo à entrega e recebimento de cartões referentes à entrada e saída de pessoas na "Associação Academia do Prazer", o que, à primeira vista, indiciaria a prática do crime previsto e punido no artigo 32°-A DL 35/2004. J. Mais do que analisar a componente literal do artigo em causa, há que buscar a sua teleologia, aferindo para além da componente literal os elementos teleológico e sistemático, bem como atentar na sua remissão para legislação própria. K. Da leitura conjugada do diploma em causa, ressalta a preocupação de regular a actividade assalariada, aquela que é prestada a título oneroso, mediante celebração de contrato de prestação de serviços ou de trabalho. L. No presente caso, o recorrente não se mostrava no exercício profissional de funções, efectuando-as a título gratuito, nenhuma retribuição lhe sendo entregue, não tendo celebrado qualquer contrato de trabalho ou similar, não se tendo produzido prova diversa. M. As associações se não mostram obrigadas a dispor de sistema de segurança privada, não constando do catálogo plasmado no art. 4° do diploma legal em causa nem se mostra existente despacho do Ministro da Administração Interna, nos termos do nº 5 do artigo em causa. N. Ainda que se mostrasse dado como provado que se trataria de um estabelecimento de restauração ou bebidas que disponham de salas ou espaços destinados a dança ou onde habitualmente se dance, sempre importaria, nos termos do nº.3 do art. 4° do DL 35/2004, aquilatar da obrigação de dispor de um sistema de segurança nos termos e condições fixados em legislação própria. O. Ao não ter tomado conhecimento de tal legislação, enferma a douta sentença do vício de nulidade, por se deixar de pronunciar sobre questões sobre que devesse tomar conhecimento, nos termos da alínea c) do art. 379° nº.1 CPP. P. Em sede de alegações orais, não deixou o recorrente de fazer menção expressa ao DL nº, 101/2008 de 16 de Junho, o qual, nos termos das alíneas b) e c) do nº, 1 apenas consagra a obrigatoriedade de existência de vigilante para controlo de acesso nos estabelecimentos com lotação superior a 100 pessoas. Q. Com o devido respeito, nenhuma prova se fez do preenchimento de tal requisito, pelo que se não percebe como possa resultar condenação do recorrente quando não seria necessária a existência de vigilante, tendo de ter aqui aplicação o princípio in dubio pro reo, atenta a presunção de inocência de que se mostra o recorrente credor. R. Apenas quando tal adopção seja obrigatória é que o mesmo terá de cumprir os requisitos legalmente impostos e que se mostram consagrados na legislação, não tendo sequer sido feita prova da existência de espaço ou sala destinada a dança ou onde habitualmente se dance... S. O DL 101/2008 se não poderá aplicar a todo e qualquer estabelecimento que preencha tais requisitos independentemente da designação que adopte, por a tal obstar a aplicação dos princípios da igualdade e proporcionalidade. T. Seria forçoso o entendimento de que um baile de aldeia, só porque realizado em recinto fechado com lotação superior a 100 pessoas e dispor de bar, teria de adoptar um sistema de segurança privada com ligação à central pública de alarmes e um vigilante no controlo de acesso e sistema de controlo de entradas e saídas por vídeo. U. Não se mostrando exigível a adopção de segurança privada no estabelecimento em causa e não se mostrando o recorrente a exercer funções a título profissional, entende o mesmo que não praticou qualquer crime, tendo de ser absolvido, não vigorando o princípio da auto-responsabilidade probatória das partes. V. Entende-se como exagerada e violadora dos fins das penas a fixação da taxa diária de multa no quantitativo diário de € 7,00, defendendo-se uma atenuação para € 6,00, atento o rendimento mensal disponível do recorrente para fazer face às suas despesas básicas (alimentação, vestuário, deslocações, cultura, etc.), o qual no máximo ascenderá a € 250,00, dado o teor dos factos provados sob o nº. 7,8 e 9 da douta sentença recorrida. W. Consideram-se violadas a seguintes normas legais: nomeadamente arts. 4° nº. 3 e 5, 32°-A nº.1 DL 35/2004, art. 1° nº.1 b) DL 101/2008; 40° nº.1, 47° nº.2 CP; 32° nº.2 CRP; e art. 9° CC. X. Ao entender-se como aplicável o disposto no art. 32°-A do DL 35/2004 houve erro na determinação da norma aplicável, entendendo-se aplicável, por remissão do nº.3 do art. 4° deste diploma legal, o disposto na alínea b) do nº.1 do art. 1° DL 101/2008, a contrario, no sentido de dispensa da obrigatoriedade de contratação de um vigilante no controlo de acesso pelo estabelecimento em causa.”. O Ministério Público respondeu ao recurso concluindo que deve ser julgado improcedente. Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do improvimento do recurso. Colhidos os vistos, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO Vejamos. Através da Lei 38/08 de 8 de Agosto, o legislador procedeu à alteração do regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada que havia sido fixado anteriormente no Dec. Lei 35/2004, de 21 de Fevereiro. E uma dessas alterações consistiu na criminalização do exercício da actividade de segurança privada ilegal a qual passou a ser considerada crime. Assim aditou ao referido Dec. Lei o artº 32º-A, o qual veio estabelecer que: “ 1. Quem prestar serviços de segurança sem o necessário alvará ou licença ou exercer funções de vigilância não sendo titular do cartão profissional é punido com…. 2. Na mesma pena incorre quem utilizar os serviços da pessoa referida no número anterior, sabendo que a prestação de serviços de segurança se realiza sem o necessário alvará ou licença ou que as funções de vigilância não são exercidas por titular de cartão profissional”. Daí que a actividade de segurança privada tenha ficado condicionada à obtenção de uma autorização prévia, punindo-se como crime, quer a falta do alvará ou licença quer a falta do respectivo cartão profissional. Por isso quem for encontrado, como foi o caso do arguido, a exercer tais funções sem estar legalmente habilitado para o seu exercício é punido nos termos do referido preceito legal. Ora face à matéria de facto que foi considerada provada e a qual se considera definitivamente assente dado que não foi impugnada nem padece de qualquer um dos vícios previstos no artº 410º nº 2 CPP, dúvidas não há de que a conduta do arguido preenche o referido tipo legal. Com efeito ficou provado que o arguido se encontrava a exercer funções de porteiro à porta da Associação Academia .., exercendo a vigilância, bem sabendo que não estava habilitado para o seu exercício e apesar disso exercia-as, agindo deliberada, livre e conscientemente, conhecendo da ilicitude e punibilidade dos factos (cfr. pontos 1 a 5). Ora com um tal quadro factual e face a tudo quanto ficou referido, preenchido se encontra o ilícito por que foi condenado o arguido. Argumenta no entanto este que ao preenchimento desse ilícito se opõe o facto de não ter sido feita prova da obrigatoriedade de adopção de sistema de segurança privada nem da relação laboral com a empresa ou o exercício profissional gratuito por parte do arguido, aspectos estes que, não tendo sido indagados configurariam a nulidade do artº 379º nº 1 c) CPP. Mas não tem claramente qualquer razão. Desde logo, como resulta do preceito em causa, não constitui elemento do crime que a associação para a qual prestava serviço o recorrente tivesse que estar obrigada a ter um serviço de segurança, sendo por isso irrelevante apurar tal facto. Por outro lado é completamente inócuo apurar a relação laboral existente entre a referida Associação e o arguido. É que o que aqui importa é saber se o arguido estava ou não habilitado a exercer a actividade de segurança privada, e já vimos que não estava. É pois quanto basta para preencher os elementos objectivos do referido crime. Daí que não tenha manifestamente qualquer sentido vir agora invocar a nulidade de omissão de pronúncia. O tribunal pronunciou-se sobre aquilo que havia a pronunciar! Mas argumenta ainda o recorrente que foi condenado porque confessou os factos, sem a averiguação do preenchimento do tipo legal do crime. Não tem mais uma vez qualquer razão. Com efeito, conforme consta da decisão recorrida o arguido foi condenado, não porque confessou os factos, mas sim porque os factos que foram dados como provados preenchem os elementos objectivo e subjectivo do crime. A decisão é clara, não se entendendo como é que o arguido conseguiu ler no seu texto, aquilo que dela não consta. Daí que sem outras considerações se julgue manifestamente improcedente o recurso neste ponto. Discorda ainda o arguido do montante que foi fixado a título de taxa diária da multa. Vejamos. A fixação do quantitativo correspondente a cada dia de multa obedece ao disposto no artº 47º nº 2 CP – cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500 - e em que releva exclusivamente a situação económica e financeira e os encargos pessoais do condenado. Como escreve Maia Gonçalves Código Penal Português, 18ª ed., pág. 208. “ O juiz graduará, portanto o quantitativo diário da multa em atenção às determinantes legais, atendendo a que a finalidade da lei é eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre possuidores de diferentes meios de a solver”. Assim para a fixação do quantitativo diário têm de ter-se em conta as condições económicas e financeiras do condenado, pessoais e familiares, de forma a que àquele que mais disponibilidade tenha, maior seja o quantitativo diário, para desse modo se poder respeitar o princípio da igualdade de sacrifício e a execução da pena de multa produza análoga eficácia preventiva, isto é que o fim da sanção produza semelhante efeito retributivo e preventivo para o rico e para o pobre. Assim em função dos elementos constantes da matéria provada que cabe ponderar para esse efeito, temos que: - O arguido está desempregado; - Faz biscates em obras de construção civil e na jardinagem, retirando por mês um rendimento de € 400,00 a € 500,00; - Vive sozinho, numa casa arrendada, pagando de renda de casa a quantia mensal de € 250,00; - Tem cinco filhos no Brasil, que vivem com a mãe e com os avós e em Portugal tem um filho com um ano e seis meses que vive com a mãe; - O arguido não paga qualquer quantia a título de alimentos aos seus filhos; Ora perante este quadro e tendo em conta que a multa não pode ser considerada uma pena menor, devendo constituir para o condenado um sofrimento análogo ao da prisão, o que o mesmo é dizer que tem de constituir um encargo sensível, sob pena de não alcançar qualquer efeito, entendemos que a quantia fixada se afigura ligeiramente elevada, face à capacidade económico-financeira do arguido. Parece-nos, antes, face à referida factualidade provada, mais equilibrada e ajustada a fixação do montante diário em 6 euros, os quais constituirão já para o condenado um sacrifício pelo crime cometido. Daí que se considere parcialmente procedente o recurso. DECISÃO Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto, e em consequência: A) Alteram a taxa diária que foi fixada para a pena de multa, para o montante de € 6,00 (seis euros). B) No mais confirmam a sentença recorrida. Sem tributação. Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP) Coimbra, 17 de Março de 2010. |