Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
221/12.3TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
QUESTÃO NOVA
VONTADE REAL
PRODUÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 10/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 2.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 236.º NºS 1 E 2 DO C. CIVIL
Sumário: 1 - No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões novas, ou seja, sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida e sobre pedidos que nela não foram formulados.

2 - Constitui matéria de facto, impondo a produção de prova, a determinação/indagação da real intenção/vontade dos contraentes, de que fala e a que alude o art. 236.º/2 do C. Civil, porém, tal só ocorrerá se tiverem sido alegados factos (respeitantes a tal vontade real) que possam servir de objecto à incidência de tal prova; doutro modo, se apenas se esgrimir a partir e com base no estrito conteúdo da declaração, estará tão só em causa a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos (de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no 236.º/1 do C. Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., residente na Rua (...), Ourém, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu B..., residente na Rua (...), Tomar – para haver dele a quantia global de € 54.586,98 (sendo € 35.000,00 do capital de dois mútuos e € 19.586,98 de juros vencidos) e juros vincendos – veio deduzir oposição à execução, alegando, em síntese e no que aqui interessa:

 que o valor/taxa convencionado a título de juros moratórios no contrato de mútuo subjacente à declaração de 22/02/2006 dada à execução é usurário, por exceder os juros legais acrescidos de 5%; e que tais juros prescrevem no prazo de cinco anos, pelo que apenas são exigíveis os juros relativos aos últimos cinco anos.

 que assinou a “declaração” datada de 15/03/2006 na qualidade de sócio da empresa “C..., Lda.”, não resultando de tal declaração qualquer assunção de dívida, a título pessoal, por qualquer dos seus subscritores, designadamente pelo oponente; e que o contrato de mútuo subjacente à “declaração” datada de 15/03/2006 é nulo, por vício de forma, por não ter sido celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado.

Contestou o exequente, afirmando, em resumo e de mais relevante, que assiste razão ao oponente no que respeita ao valor/taxa de juros, mas que, quanto à prescrição, a mesma não se verifica uma vez que no ano de 2007 não foram devidos juros (e de 2008 à instauração da execução decorreram não mais do que 5 anos); que, quanto à “declaração” datada de 15-03-2006, o oponente assumiu pessoalmente a obrigação de pagamento da quantia emprestada à sociedade de que o oponente é sócio e que a eventual nulidade do contrato de mútuo não contamina a validade do título dado à execução.

Conclusos os autos, a Ex.ma Juíza entendeu estar em condições, sem mais, de decidir do “mérito” e passou a proferir saneador/sentença em que – após determinar o desentranhamento dum pretenso articulado superveniente e após declarar a instância totalmente regular – julgou parcialmente procedente a oposição, tendo, em consequência, determinado:

“ (…)

a) o prosseguimento da instância executiva para pagamento coercivo do capital de 90.000,00 € e juros, à taxa legal prevista para os juros civis, contados desde a propositura da execução;

b) o prosseguimento da instância executiva para pagamento coercivo do capital de 12.500,00 € e juros, à taxa de 9% ao ano, relativos aos últimos cinco anos por referência à data da propositura da execução.

“ (…)”

Inconformado com tal decisão, o executado/oponente interpôs recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “reconheça que a obrigação contra a qual se deduziu oposição é inexigível, devendo o recorrente ser absolvido do pedido. Se assim não se entender (o que só por mero dever de patrocínio se admite), deverá ser declarada nula a sentença, por exceder o pedido.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A) Constando no requerimento executivo, título em que três sócios reconhecem em nome da sociedade sua representada uma dívida ao restante sócio, no valor de 90.000,00, e este apenas peticiona 22.500,00 € (mais juros), não pode o tribunal condenar no prosseguimento da instância executiva para cobrança coerciva de 90.000,00 €, porquanto está limitado ao pedido que lhe foi apresentado. O Juiz que condene, em sentença, em quantidade superior ao pedido, inquina a sua decisão, tornando nula a sentença, por via do disposto na al. e) do n.º 1 do art.º 668.º e n.º 1 do art.º 661.º do C.P.C..

B) A deliberação tomada em assembleia geral de sócios que aceita o empréstimo efectuado por um dos seus sócios (em montante que foi definido, por prazo estabelecido, superior a um ano, convencionando juros e sem obedecer a forma especial), constitui um contrato de suprimento, nos termos do disposto nos art.ºs 243.º e ss. do C.S.C..

C) A obrigação de restituição, nos termos do art.º 243.º do C.S.C. cabe à sociedade, a qual é a devedora, e não os sócios que a constituam.

D) Instaurada que foi a acção executiva para cobrança de um valor correspondente a ¼ do total do capital mutuado, a um dos três sócios subscritores do documento particular que reconhece que a sociedade é a devedora e que é ela que se obriga a pagar a quantia mutuada ao sócio mutuante, torna a obrigação inexigível.

E) De acordo com o disposto no art.º 244.º n.º 3 do C.S.C., a celebração de contrato de suprimento não depende de prévia deliberação dos sócios. Contudo, existindo acta em que exequente, executado e demais sócios reconhecem que o exequente é credor da sociedade C..., Lda, não subsiste qualquer dúvida sobre a vontade real expressa na declaração.

F) Existindo dúvida quanto ao conteúdo e alcance do título executivo, nomeadamente quanto à interpretação sobre o sujeito obrigado a pagamento, impunha-se a produção de prova, para além da análise do documento, tendo em vista apurar a real vontade das partes que presidiu à sua redacção, tendo em vista a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

Não foi apresentada qualquer resposta pelo exequente.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos com relevo para a apreciação do recurso:

A) O recorrido deu à execução 2 documentos particulares, ambos com a epígrafe “declaração” e subscritos pelo oponente, sendo um datado de 22-02-2006 e outro de 15-03-2006.

B) Consta da “declaração” datada de 22-02-2006 o seguinte:

«Eu, A... [oponente] (…), declaro para os devidos efeitos, que fico em débito (fico a dever) ao senhor B... [oponido] (…); (digo que lhe fico a dever por me ter emprestado) a quantia em dinheiro € de 12.500€ (doze mil e quinhentos euros) que pagarei no prazo de um ano sem qualquer juro a acrescentar; mas findo este prazo, pagarei uma taxa de 10% de juro por cada ano a mais.

Por se verdade, e por ter sido feito este acordo entre as duas partes, vou em baixo assinar, tornando-se válido a partir desta data.» - cfr. documento de fls. 3 da execução.

C) Lê-se na “declaração” datada de 15-03-2006:

«Nós, D...e E... e A... [oponente] em baixo assinados e na qualidade de sócios da firma C..., Lda. vimos por este meio declarar que a nossa firma, fica em débito para com o nosso sócio B... [oponido], no valor em dinheiro de 90.000€ (noventa mil euros) que foi emprestado à firma para compra do avião (...), ficando o compromisso entre os sócios de lhe ser devolvido o valor emprestado, mais 10% de juro ao ano, o mais breve possível.

Por ser verdade ter sido feito este acordo entre os sócios, passou-se a seguinte declaração que vai ser assinada pelos sócios declarantes.» - cfr. documento de fls. 4 da execução.


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III – Fundamentação de Direito

Importa começar por referir, delimitando o objecto do recurso, que apenas está em causa a parte da execução e da decisão recorrida respeitante ao título executivo referido em C) (a “declaração” datada de 15/03/2006).

Embora o oponente/recorrente termine a dizer que se deve “reconhecer que a obrigação contra a qual deduziu oposição é inexigível, devendo o recorrente ser absolvido do pedido”; e acrescente que, “se assim não se entender (…), deverá ser declarada nula a sentença, por exceder o pedido, a verdade é que todas as 3 questões suscitadas se dirigem em exclusivo contra a parte da decisão recorrida que diz respeito ao título executivo referido em C).

E são as seguintes as 3 questões:

1 – Nulidade da sentença por condenar em quantidade superior ao pedido:

2 – Ser o empréstimo (de € 90.000,00) subjacente à “declaração” datada de 15/03/2006 um contrato de suprimento, cabendo tão só à sociedade a obrigação de restituição;

3 – Impor-se a produção de prova, tendo em vista apurar a real vontade das partes que presidiu à redacção da “declaração” datada de 15/03/2006.

Questões em que o oponente/recorrente tem razão, naturalmente, quanto à primeira; aliás, mais do que uma real e “calculada” nulidade de sentença do art. 668.º/1/e) do CPC, estamos mais exactamente perante um “lapsus calami” da parte decisória da sentença recorrida, uma vez que, claramente, na sequência dos raciocínios jurídicos antes expostos, se pretendeu mandar prosseguir a instância executiva para pagamento coercivo do capital peticionado, não se atentando, seguramente por lapso, que o capital peticionado era apenas ¼ da quantia constante da declaração, isto é, € 22.500,00 e não a totalidade dos € 90.000,00 referidos na declaração.

Seja como for – não é sequer muito relevante a qualificação processual do lapso/irregularidade cometido – efectuar-se-á, como é evidente, a devida rectificação/substituição, concedendo-se nesta medida procedência ao recurso.

Questão esta em que se esgota a procedência do recurso.

Assim:

Quanto à 2.ª questão, importa começar por ter presente o seguinte:

No direito português, os recursos ordinários, como é o caso, são de reponderação; visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados.

Daí o dizer-se que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas[1]; estando por isso excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal, mas antes da ausência de qualquer permissão expressa. Daí o dizer-se que os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido formulado na 1.ª Instância com a matéria de facto nela alegada.

É justamente esta regra elementar da temática e funcionamento dos recursos que a introdução da 2.ª questão desrespeita por completo.

Esta 2.ª questão, é efectivamente uma questão completamente nova, que não foi colocada nem alegada na 1.ª Instância; que, naturalmente, esta não decidiu e que agora, justamente por a 1.ª Instância não ter sido chamada a decidi-la, não pode aqui ser reapreciada[2].

De tal maneira é patente que é assim que o recorrente/oponente se viu na necessidade de alegar ex novo os factos que dão corpo a tal questão (e a juntar os inerentes documentos ao arrepio da previsão dos art. 513.º, 523.º e 693.º-B do CPC); transcrevendo, ao longo dos art. 18.º e 19.º da sua peça recursiva, os documentos que comprovam a qualidade (do exequente) de sócio da sociedade C... a quem foram emprestados os € 90.000,00 e a deliberação social de tal sociedade que aprovou a contracção de tal empréstimo junto do sócio/exequente; e indo ao ponto – regista-se a contradição, bem sintomática da questão nunca ter sido antes invocada – de sustentar que, estando-se perante um contrato de suprimento (do art. 243.º do C. S. C.), não está o empréstimo sujeito a forma especial, quando, com ganho de causa, sustentou na PI da oposição “ (…) que, sendo a relação fundamental subjacente àquela declaração, um contrato de mútuo, celebrado entre exequente e C..., então tal contrato seria nulo, por vício de forma, de acordo com o disposto no art. 1143.º do C. Civil, uma vez que, dado o seu valor (€ 90.000,00) só seria válido caso tivesse sido celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado – o que não se verifica in casu[3].

Na PI de oposição – regista-se também – a única aproximação ao que agora se alega ex novo está no art. 8.º, quando no mesmo se procede à transcrição do conteúdo da declaração de 15/03/2006, em que a dado momento se diz que “vimos por este meio declarar que a nossa firma, fica em débito para com o nosso sócio B...”; porém, claramente, não há em qualquer passo da PI de oposição a menor invocação, ainda que remotamente implícita, de se estar perante um contrato de suprimento à sociedade, sujeito a um regime específico de reembolso.

Aliás, sobre tal questão, irregularmente suscitada, não será despiciendo referir aqui que se considera contrato de suprimento – assim o diz o art. 243.º/1 do CSC – “o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, a crédito fique tendo carácter de permanência”. Ou seja, tal contrato, previsto no CSC, como contrato nominado e típico, é – é hoje pacífico na doutrina e jurisprudência – um contrato distinto do contrato de mútuo e não uma espécie deste[4], uma vez que tem a especificidade (entre outras) de ter que ter como partes dum lado a sociedade e do outro um sócio, sendo a sua característica decisiva e essencial o carácter de permanência do crédito do sócio relativamente à sociedade[5]. O que significa, naturalmente, que a função/papel que desempenha[6] se projecta no regime legal dos suprimentos (na medida em que tal for considerado necessário para a protecção de interesses da própria sociedade ou de terceiros estranhos a ela), designadamente, no regime legal do seu regime de reembolso, isto é, o sócio, credor por suprimentos, tem evidentemente direito a ser reembolsado, todavia, porque os suprimentos são substitutivos de entradas de capital, a restituição é em certos casos condicionada pelos interesses da sociedade e dos credores sociais; dispondo-se a tal propósito no art. 245.º/1 do CSC que “não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do art. 777.º do C. Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações.”

Ou seja, a questão “nova” do empréstimo de € 90.000,00 ser um contrato de suprimento, de subjacente à declaração de 15/03/2006 estar um tal contrato (com um regime específico) e não um mútuo, tem/teria a sua pertinácia e relevância, porém, é o ponto que aqui e agora releva, não pode ser introduzida (de surpresa) apenas e só na alegação recursiva para ser conhecida pela 1.ª vez em 2.ª Instância.

Está-nos pois vedado conhecer de tal 2.ª questão.

Razão pela qual também não podemos deixar de ordenar o desentranhamento dos documentos juntos pelo apelante/oponente com a sua alegação recursiva.

Pelo seguinte:

O oferecimento, produção e assunção das provas ocorre, segundo o regime normal, durante a instrução do processo, fase processual que se inicia após a notificação do art. 512.º do CPC.

A prova documental, porém, obedece a um regime diferente.

Os documentos – de acordo com o art. 523.º/1 do C. P. Civil – devem ser apresentados na fase inicial dos articulados; devem ser oferecidos com o articulado a que se referem, seja como fundamento da acção, seja como fundamento da defesa.

Excepcionalmente, porém, podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância, “mas a parte será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” – cfr. 523/2 do CPC. Mais excepcionalmente, ainda, podem os documentos ser juntos após o encerramento da discussão em 1.ª Instância em duas circunstâncias: 1.º - Em qualquer estado do processo, quando os documentos se referem a factos posteriores aos articulados ou quando se trate de documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior – cfr. 524.º/2 do CPC. 2.º - Havendo recurso da decisão proferida e tratando-se de documentos cujo oferecimento não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância – cfr. 524.º/1, do C. P. C.; todavia, para que haja tal impossibilidade de oferecimento, até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância, é necessário que a parte ignore a existência do documento ou que à parte não fosse viável (dentro do limite temporal do encerramento da discussão em 1.º Instância) a posse do mesmo, cabendo-lhe, todavia, a prova de tal impossibilidade.[7]

Ora, não só nada disto se verifica (aliás, nem sequer o apelante/oponente invoca, para porventura poder ser admissível a sua junção com o recurso, ter estado impossibilitado de oferecer os documentos até ao encerramento da discussão em 1.ª Instância), como, inclusiva e decisivamente, não estamos sequer perante “documentos destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa” (cfr. 523.º/1 do CPC) – uma vez que dizem respeito a uma questão “nova” que não pode ser conhecida e que não faz parte do objecto dos autos/recurso[8] – pelo que, por consequência, não se pode autorizar (com a alegação do oponente/recorrente) a pretendida junção de documentos; razão porque se ordenará que, após o trânsito, se proceda ao desentranhamento e restituição de tais documentos ao apelante/oponente.

Finalmente, quanto à 3.ª e última questão:

Sustenta o apelante/oponente, como consta da sua última conclusão, que “existindo dúvida quanto ao conteúdo e alcance do título executivo (declaração de 15/03/2006), nomeadamente quanto à interpretação sobre o sujeito obrigado a pagamento, impunha-se a produção de prova, para além da análise do documento, tendo em vista apurar a real vontade das partes que presidiu à sua redacção”.

A tal propósito, havia-se desenvolvido na sentença recorrida o seguinte raciocínio jurídico:

A argumentação [do oponente] radica no facto de ter assinado a declaração em causa na qualidade de sócio da empresa “ C..., Lda.”, dela não resultando qualquer assunção de dívida, a título pessoal, por parte do oponente. (…). Efectivamente, interpretando, à luz da hermenêutica negocial (artigo 236.º do Código Civil), as declarações nele contidas, conclui-se que o oponente aí figura como devedor, pois que declarou confessar-se devedor do oponido da quantia de 90.000,00€ que este havia emprestado à sociedade de que é sócio. (…). Repare-se que não se afirma que é a empresa que se compromete a devolver a quantia emprestada, diz-se que os sócios se comprometem a devolver tal importância. E deve entender-se (considerando o que pode deduzir o normal declaratário, colocado na posição do real declaratário) que os subscritores do documento se referiam aos sócios enquanto pessoas singulares, pois de outra forma, se fosse o caso de se entender que era a empresa que se assumia devedora, então, tal como se consignou que havia sido emprestado à empresa o montante de 90.000,00€, também se teria consignado que era esta quem se obrigava à restituição desse montante.

Que dizer?

Que, efectivamente, constitui matéria de facto, impondo a produção de prova, a determinação/indagação da real intenção/vontade dos contraentes, de que fala e a que alude o art. 236.º/2 do C. Civil; constituindo matéria de direito, prescindindo-se da produção de prova, quando se encontra em causa a interpretação duma declaração negocial segundo critérios normativos (de harmonia com a teoria da impressão do destinatário, acolhida no 236.º/1 do C. Civil).

Pelo que, num caso, como o dos autos, em que um oponente sustenta que não figura como devedor numa declaração apresentada como título executivo, podemos estar, em abstracto, perante qualquer uma das situações referidas.

Ou seja, só descendo ao concreto – e analisando o que oponente disse e alegou com exactidão – é que podemos dizer que ele nos coloca perante a indagação da vontade real ou antes perante a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos.

Ora, efectuando tal análise (descendo ao concreto), impõe-se considerar que o oponente nos coloca, claramente, tão só perante a interpretação da declaração negocial segundo critérios normativos; uma vez que se limita a dizer que “de tal declaração não resulta qualquer assunção de dívida, a título pessoal, por qualquer dos seus subscritores” (art. 9.º da PI de oposição) e a dizer que, “na verdade, quem se constitui devedor em tal declaração é a própria firma C... e não os sócios pessoal ou individualmente considerados” (art. 10.º da PI de oposição)

Efectivamente, nunca o oponente sai do estrito conteúdo da declaração de 15/03/2006 – ou lhe acrescenta o que quer que seja – para a interpretar, argumentando a partir do seu estrito conteúdo para concluir que não figura como devedor em tal declaração apresentada contra si como título executivo (como reconhecimento duma obrigação pecuniária – cfr. 46.º/1/c) e 458.º do C. Civil).

Bem andou pois a decisão recorrida ao não produzir prova – desde logo, tal era impossível, uma vez que, como é evidente, não havia factos controvertidos que pudessem servir de objecto para a incidência de tal prova – e ao circunscrever a interpretação da declaração (negocial) de fls. 4 da execução aos critérios normativos da teoria da impressão do destinatário, acolhida no 236.º/1 do C. Civil.

Assim como bem andou ao concluir o que concluiu, isto é, que o oponente assume uma obrigação em tal declaração de 15/03/2006 (apresentada como título executivo contra ele).

Do ponto de vista dum declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, é o que é forçoso deduzir da expressão “(…) ficando o compromisso entre os sócios de lhe ser devolvido o valor emprestado (…)”.

Ademais, em termos de normalidade e razoabilidade, é este o único sentido útil de tal declaração, uma vez se a mesma apenas pretendesse obrigar a sociedade nada acrescentaria de novo à obrigação a que a mesma já se encontraria adstrita[9].

É pois manifesto que a declaração de 15/03/2006, do ponto de vista da “impressão do destinatário”, significa uma responsabilização a título pessoal – e não da sociedade – dos seus subscritores (o oponente e os outros 2 sócios); embora, claro está, tal responsabilização pessoal ocorra por serem sócios da sociedade, porém, uma coisa é a razão/motivo porque alguém se obriga, outra, diversa, o facto de, independentemente da razão/motivo, se obrigar pessoalmente.

Assim como é coisa diversa o estabelecimento da configuração jurídica da sua responsabilização pessoal – se se tratou duma fiança (com ou sem benefício de excussão) ou duma assunção cumulativa de dívida – “coisa” que não sabemos sequer.

Ignorância que, no caso, não tem qualquer relevo; uma vez que o oponente, na PI da oposição, nunca foi além da relação abstracta (no que diz respeito à obrigação abstracta que o exequente lhe atribuía), nada alegando/invocando sobre a natureza/qualidade, em termos de relação causal e fundamental, da garantia por si prestada[10].

É certo que no referido art. 9.º da PI de oposição escreveu que “ (…) de tal declaração não resulta qualquer assunção de dívida, a título pessoal, por qualquer dos seus subscritores”, porém, ao fazer tal alegação, estava tão só a interpretar o sentido da declaração constante da “declaração” de 15/02/2006; a querer dizer que em tal declaração não é por si pessoalmente reconhecida uma qualquer obrigação pecuniária e que, por isso, não há título executivo contra si[11]; enfim, não podia estar a negar a abstracção que lhe era atribuída e, ao mesmo tempo, a referir-se à relação que estava na origem/causa de tal abstracção[12].


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Improcede pois, com a excepção respeitante à 1.ª questão, tudo o que o oponente/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina, ressalvada tal excepção, o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância.

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IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por decisão a determinar[13] o prosseguimento da execução pelo capital na mesma referido – € 35.000,00 – sendo os juros, sobre o capital de 22.5000,00 €, à taxa legal prevista para os juros civis e contados desde a propositura da execução; e sendo os juros, sobre o restante capital de 12.500,00 €, à taxa de 9% ao ano e relativos aos últimos cinco anos por referência à data da propositura da execução.

Custas, em ambas as instâncias, por exequente e executado/oponente, na proporção de 1/3 e 2/3.


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Não se podendo autorizar que, com a alegação recursiva, o executado/oponente proceda à junção de documentos, ordena-se, após o trânsito, o seu desentranhamento e restituição ao executado/oponente.

Custas do incidente a seu cargo.

Taxa: 1 UC.


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 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)


[1] Cfr. v. g. Ac. STJ 15/04/1993, in CJ, 93/2, 62; e da RL 02/11/1995, in CJ 95/5, 98.
[2] Como é evidente, só se pode falar em reapreciação em relação a algo que já foi previamente apreciado.

[3] Lembra-se aqui que a relação causal – na parte respeitante ao empréstimo – subjacente à declaração de 15/03/2006 foi, na sentença recorrida, declarada nula, por vício de forma, conforme o oponente havia invocado, tendo-se, porém, considerado que tal declaração de 15/03/2006 valia como título executivo em relação à obrigação de restituir decorrente da nulidade (embora, verdadeiramente, não seja esta a obrigação do oponente e que este, no título, reconhece); razão porque os juros foram reduzidos para a taxa legal e circunscritos ao período após a propositura da execução.
[4] O que também significa, quando o oponente diz – art. 12.º da PI – que a relação fundamental é um contrato, nulo, de mútuo, que está a “negar” a existência do contrato de suprimento.
[5] Isto é, não é por um sócio emprestar dinheiro à sociedade que temos, necessária e automaticamente, um contrato de suprimento.
[6] Ou seja, o facto (objectivo) dos suprimentos satisfazerem necessidades de capital da sociedade.

[7] Daí o disposto no actual 693.º-B do CPC (correspondente ao anterior 706.º, n.º 1) segundo o qual “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 524.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância (…)”. Continuando a valer, em relação a esta última parte, a seguinte e pertinente observação do Prof. Antunes Varela (In Manual de Processo, pág. 517, 1.ª ed.): “É evidente que, na última parte, a lei não abrange a hipótese de a parte (…) pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª Instância”.

[8] A instrução dum processo – no que se inclui a junção de documentos – só pode ter por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa (cfr. 513.º do CPC); pelo que devem ser sempre rejeitados, independentemente do momento da sua junção, os documentos que não forneçam quaisquer contributos para o esclarecimento do que está em causa. É, em grande medida, o caso.

[9] Neste aspecto, os documentos juntos – a deliberação da sociedade – até apontaria num sentido interpretativo oposto ao pretendido pelo oponente/apelante com tal junção.

[10] A relação subjacente de que fala na PI de oposição – o mútuo à sociedade – diz respeito à obrigação principal – “garantida” pelo oponente – em que o oponente/recorrente não é sujeito passivo.

[11] Seria esta a consequência: falta de título; e não a inexigibilidade – diz-se que uma obrigação é exigível quando se encontra vencida ou depende da simples interpelação do devedor (777.º/1) – de que fala e que invoca.
[12] Aliás – é exacto e justo acentuá-lo – sustentando, como foi o caso, o oponente que não se obriga pessoalmente na declaração de 15/03/2006, não era possível, sem alguma contradição (e sem fragilizar o que primeiro havia sustentado), vir a seguir pronunciar-se sobre a relação causal e subjacente à abstracta obrigação, que, imediatamente antes, havia dito que não se encontrava reconhecida na declaração de 15/03/2006.
[13] Incorporando-se na decisão a parte que não faz parte do objecto da presente apelação, a aparte em que a apelação é procedente e a parte em que é improcedente.