Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5903/09.4TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: AVAL
FIANÇA
CONCEITO JURÍDICO
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 627º E 638º DO C. CIVIL; 32º E 47º DA LULL.
Sumário: I – Apesar de economicamente visar um fim semelhante à fiança, o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico próprio.

II - Vejamos duas diferenças essenciais: i) contrariamente ao que se passa com a fiança, que é uma garantia de natureza acessória - art.º 627.º, n.º 2 do Código Civil -, a obrigação do avalista é autónoma, subsistindo mesmo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma - art.º 32.º, n.º 2 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL); ii) enquanto a fiança tem natureza subsidiária - benefício da prévia excussão do fiador (art. 638.º do Código Civil) -, a obrigação do avalista é solidária, respondendo a par dos demais subscritores pelo pagamento integral do título - art.º 47.º, n.º 1 da LULL.

III - O vício de forma a que se reporta o citado artigo 32º da Lei Uniforme é o que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceite, se torna perceptível pela simples inspecção do título. Outra indagação, de resto, não permitiria a natureza formal dos títulos em causa, sob pena de se comprometer a sua função económica, obstando à rápida circulação dos mesmos.

IV - Para demonstrar a “pujança jurídica” do aval escreve o Acórdão do STJ de 31.3.2009, retirado do site www.dgsi.pt, que: ” Não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras. Não podem ser invocadas como causa suficiente de ineficácia do aval prestado, nem a perda da qualidade de sócio da sociedade avalizada, nem a renúncia à gerência, por parte do avalista.”.

V - Bastará, pois, para que a livrança seja válida que tenha sido preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento celebrado entre as partes nestes autos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1.Relatório

A…, executado nos autos, deduziu a presente oposição à execução que lhe move “Banco …”, exequente nos autos.

Alega em síntese que a livrança dada à execução foi entregue à exequente como garantia do pagamento do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor n.º …, sem que no entanto se tenha preenchido o montante e a data do seu vencimento.

O referido contrato foi feito pelo prazo de 60 meses, com início em 2005, altura em que foi paga a 1.ª prestação, sendo que as rendas foram pagas, pontualmente, até ao fim de 2008. A partir de Janeiro de 2009 é que as rendas devidas no âmbito do referido contrato deixaram de ser pagas, por dificuldades económicas do executado.

Mais alega que, após conversações com a exequente, a mulher do executado e com base nas informações fornecidas pela exequente de que com a entrega da viatura, o valor da mesma aquando da sua venda seria descontado no montante a pagar pelos executados, decidiu em nome do executado revogar o contrato e entregar a viatura em Junho de 2009. Se assim não fosse o executado teria mantido o contrato.

Conclui pela procedência da presente oposição à execução.

Foi proferida, a final, a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por provada, a presente oposição à execução e, em consequência:

a) declaro a nulidade da cláusula 17.2, por proibida nos termos previstos na al. c) do art.º 19.º, porque desproporcionada, conforme disposto no art.º 12.º, ambos do DL n.º 446/85;

b) absolvo o executado do pedido de pagamento da indemnização devida no âmbito de tal cláusula; e c) condeno o executado no demais peticionado no requerimento executivo.

Custas pela exequente e executado na proporção do respectivo decaimento.

O Banco …, exequente nos autos, não se conformando tal decisão dela interpôs o competente recurso. Apresentou as suas alegações com os seguintes fundamentos:

A matéria de facto fixada pela 1.ª instância:

2. Do objecto do recurso

                         Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da recorrente cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Deve a decisão da 1.ª instância, que revogou a cláusula 17.2 do contrato em causa nestes autos, ser alterada, sendo o valor da cláusula, ora em questão, ser objecto de redução dos 80% para os 20% das rendas vincendas?

2. Ainda que se considere que a cláusula do contrato – 17.2 – fosse objecto de declaração de nulidade nos termos do supra aludido art.º 19.º do DL 446/85, por força do disposto no art.º 32.º da LULL, a obrigação de pagamento do avalista deveria manter-se intacta, e por conseguinte, a quantia exequenda ser objecto de pagamento na sua totalidade?

                    3.Decisão

Começaremos pela 2.ª questão – a nulidade da cláusula (não) afecta a obrigação do avalista - já que procedendo, neste particular, a alegação da apelante torna-se desnecessário decidir a 1.ª questão.

Mostra-se assente nos autos que:

1. Foi dada à execução uma livrança assinada pelo executado/avalista A…, no valor de € 5.002,75, datada de 25.09.2009.

2. A referida livrança foi entregue à exequente pelo executado A… como garantia do bom cumprimento de todas as obrigações emergentes da celebração do contrato de aluguer n.º …, datado de 24 de Outubro de 2005.

Como é sabido, o aval é o negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa - avalista ou dador do aval - garante o pagamento de uma letra ou de uma livrança por parte de um dos seus subscritores - avalizado.

O aval representa assim uma obrigação cambiária que tem por finalidade garantir ou caucionar obrigação cambiária idêntica e preexistente de um signatário do título cambiário.

Apesar de economicamente visar um fim semelhante à fiança, o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico próprio.

Vejamos duas diferenças essenciais: i) contrariamente ao que se passa com a fiança, que é uma garantia de natureza acessória - art.º 627.º, n.º 2, do Código Civil -, a obrigação do avalista é autónoma, subsistindo mesmo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma  - art.º 32.º, n.º 2, da  Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL)  que será o diploma a citar sem menção de origem; ii) enquanto a fiança tem natureza subsidiária - benefício da prévia excussão do fiador -  art. 638.º do Código Civil -, a obrigação do avalista é solidária, respondendo a par dos demais subscritores pelo pagamento integral do título  - art.º 47.º, n.º 1.

Dispõe o art.º 30º:

“O pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval. Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por signatário da letra”.

Assim, a natureza jurídica do aval é a de ser uma garantia.

Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia.

O fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.

O executado/recorrido subscreveu a livrança na qualidade de avalista, pelo que será de toda a importância ter em consideração o que adianta a Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças no seu artigo 32.º

Nos termos de tal norma, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada e a sua obrigação mantém-se mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

O mesmo regime é aplicável às livranças, por força do preceituado no art.º 77º.

Quando é que a obrigação do avalizado é “nula por vício de forma”?

Diz Pinto Coelho, - Lições de Direito Comercial, As letras”, vol. II, fascículo V, págs. 38 a 41 - que esta fórmula - refere-se ao segmento final do parágrafo 2º do artigo 32º -  é manifestamente empregada no seu sentido jurídico comum, importando a referência às condições de forma externa do acto de que emerge a obrigação cambiária garantida, isto é, aos requisitos da validade extrínseca da obrigação. “Temos de olhar aos requisitos de forma de que depende a obrigação que o aval deve garantir, às formalidades que a lei tenha estabelecido para o respectivo acto cambiário”.

Acrescenta ainda: “A nulidade por vício de forma supõe naturalmente uma vontade real e definitiva que se manifestou, mas em termos ou por forma que o legislador lhe não atribui eficácia vinculativa”.

A este propósito, escreve Ferrer Correia, - Lições de Direito Comercial, vol. III – Letra de Câmbio”, 1975, pág. 217: “Consideremos agora especialmente o caso do aceite ou de endosso em branco em que a assinatura não tenha a localização prescrita na lei: - a aposição da simples assinatura do sacado no verso da letra - ou da livrança -, a do endossante na face anterior do título, determinam a nulidade por vício de forma, respectivamente, do aceite ou do endosso. Consequentemente, será nulo, nos termos do art. 32º, II, o aval prestado a qualquer destes signatários.

Do mesmo modo, será nula a obrigação do avalista que se propuser garantir a responsabilidade de outro avalista, que se limitou a pôr a sua assinatura no verso da letra ou no allongue. Na verdade, só se considera aval a aposição da simples assinatura do dador na face anterior da letra. Logo, no caso figurado, o primeiro aval será nulo por vício de forma, e nulo, por consequência, o segundo”.

Perante uma situação de necessidade da assinatura de dois sócios para obrigar uma sociedade e só um deles ter assinado o título - pode ler-se no acórdão do STJ de 22-02-1979 - BMJ 284º-250: “O vício de forma a que se reporta o citado artigo 32º da Lei Uniforme é o que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceite, se torna perceptível pela simples inspecção do título.

Outra indagação, de resto, não permitiria a natureza formal dos títulos em causa, sob pena de se comprometer a sua função económica, obstando à rápida circulação dos mesmos.

Não tinha, assim, o portador dos títulos que indagar se a validade do aceite dependia da assinatura de um ou mais sócios da sociedade sacada, questão de fundo e não de forma”.

Vício de forma é, pois, apenas aquele que prejudica a aparência formal do título, designadamente quando as assinaturas dos obrigados ou co-obrigados cambiários não se encontrem apostos nos lugares prescritos na lei, tendo sempre presente que a obrigação cartular se caracteriza pela rigorosa formalidade; tem, pois, o título que exibir/apresentar uma certa configuração externa, ou seja, determinados requisitos formais indicados na lei para que o seu particular regime jurídico lhe seja aplicável.

A questão da nulidade da cláusula e subsequente extinção da divida, trata-se apenas de um vício que se prende com o fundo, com a forma intrínseca da obrigação cambiária da própria subscritora da livrança.

Logo, tal vício – não formal – apenas pôs em causa a responsabilidade da subscritora das livranças, pelo que, não se estando perante um vício de forma, não pode tal vício acarretar a invalidade das obrigações assumidas pelo avalista, ou seja, pelo aqui recorrido.

Para demonstrar a “pujança jurídica” do aval escreve o Acórdão do STJ de 31.3.2009, retirado do site www.dgsi.pt, que:

Não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras. Não podem ser invocadas como causa suficiente de ineficácia do aval prestado, nem a perda da qualidade de sócio da sociedade avalizada, nem a renúncia à gerência, por parte do avalista.”

Bastará, pois, para que a livrança seja válida que tenha sido preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento celebrado entre as partes nestes autos.

E foi-o, como concluiu a 1.ª instância ao afastar o preenchimento abusivo da livrança dada à execução.

Escreve o Sr. Juiz da 1.ª instância, a este propósito: “Voltando ao caso em apreço, o executado apenas alegou que a livrança foi entregue para garantia do pagamento do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor.

Todavia, resulta dos factos provados que a livrança foi entregue à exequente pelo executado A… como garantia do bom cumprimento de todas as obrigações emergentes da celebração do contrato de aluguer n.º … datado de 24 de Outubro de 2005.

Assim, ao exequente foi entregue a letra, aceite pelo executado, sem que dela constasse a data de vencimento e o montante.

Porém, o exequente foi autorizado a proceder ao preenchimento para a data que se verificasse a mora ou incumprimento e pelo saldo das responsabilidades que nessa data se verificassem existir, conforme os documentos juntos aos autos e que se encontram assinados pelo executado e que, diga-se, não foram impugnados quanto à sua genuinidade, pelo que fazem prova plena quanto às declarações aquele atribuídas (cfr. art.º 373.º e segs., do C. Civil).

Acresce que resultou demonstrado ainda que o executado foi devidamente interpelado e tomou conhecimento de que a livrança iria ser preenchida conforme o acordado – ponto 10. e 11. do elenco dos factos provados.

Pelo exposto, é manifesto que não tem qualquer fundamento a pretensão do executado” – fim de citação.

Consequentemente, mantém-se, a obrigação cambiária resultante do aval, não beneficiando o avalista/recorrido da nulidade da cláusula 17.2 - “A nulidade das cláusulas gerais não gera a nulidade do aval”- Acórdão do STJ de 4.3.2008 retirado do site www.dgsi.pt.

Assim, na procedência da instância recursiva, haverá que revogar a decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª instância, quando absolve o executado do pedido de pagamento da indemnização devida no âmbito da cláusula 17.2 .

 Sumariando:

1. Apesar de economicamente visar um fim semelhante à fiança, o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico próprio. Vejamos duas diferenças essenciais: i) contrariamente ao que se passa com a fiança, que é uma garantia de natureza acessória - art.º 627.º, n.º 2, do Código Civil -, a obrigação do avalista é autónoma, subsistindo mesmo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma - art.º 32.º, n.º 2, da  Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL)  que será o diploma a citar sem menção de origem; ii) enquanto a fiança tem natureza subsidiária - benefício da prévia excussão do fiador (art. 638.º do Código Civil) -, a obrigação do avalista é solidária, respondendo a par dos demais subscritores pelo pagamento integral do título  - art.º 47.º, n.º 1.

2. O vício de forma a que se reporta o citado artigo 32º da Lei Uniforme é o que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceite, se torna perceptível pela simples inspecção do título. Outra indagação, de resto, não permitiria a natureza formal dos títulos em causa, sob pena de se comprometer a sua função económica, obstando à rápida circulação dos mesmos.

3. Para demonstrar a “pujança jurídica” do aval escreve o Acórdão do STJ de 31.3.2009, retirado do site www.dgsi.pt, que: ” Não são transponíveis para o aval as razões que determinaram o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2001, relativo à fiança genérica de obrigações futuras. Não podem ser invocadas como causa suficiente de ineficácia do aval prestado, nem a perda da qualidade de sócio da sociedade avalizada, nem a renúncia à gerência, por parte do avalista.”

4.Bastará, pois, para que a livrança seja válida que tenha sido preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento celebrado entre as partes nestes autos. E foi-o, como concluiu a 1.ª instância ao afastar o preenchimento abusivo da livrança dada à execução.

4.Decisão

Pelo exposto, na procedência da apelação, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em revogar a decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª instância, quando absolve o executado do pedido de pagamento da indemnização devida no âmbito da cláusula 17.2.

Custas pelo apelado.

José Avelino Gonçalves (Relator)

Regina Rosa

Artur Dias