Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/15.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
PROCEDÊNCIA
EFEITOS
POSSE
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T. J. DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - J.L. CÍVEL - JUIZ1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 343.º Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL, ART.116.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
Sumário: I- A procedência da acção de impugnação de escritura de justificação notarial não tem como efeito a declaração (genérica) de que os justificantes não são os proprietários do prédio cuja aquisição foi justificada.

II- A procedência tem como efeito tão só que se considere impugnado o facto justificado, ou seja, que o justificante não adquiriu o direito que se arrogou pela causa que especificou na escritura.

III- O exercício de poderes de facto sobre uma parte delimitada do solo onde está aberta uma presa não é de qualificar como posse, quando a acção de quem os exerce não exprime uma relação de domínio sobre tal parte do solo, como é o caso da acção dos autores que visa apenas a utilização da água dessa presa para a rega dos respectivos campos.

Decisão Texto Integral:










Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A... e mulher B... , residentes na rua (...) , Amor, C... e mulher D... , residentes na rua (...) , Amor, E... , residente na rua (...) , Amor, e F... e mulher G... , residentes na rua (...) , Amor, propuserem a presente acção declarativa com processo comum contra T... e mulher, U... , através da qual deduziram os seguintes pedidos:

1. A condenação dos réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbassem ou limitasse o exercício do direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição;

2. O reconhecimento de que o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial – prédio rústico sito em x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, com a área de 334 m2, composto por uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, inscrita na matriz predial sob o artigo 1074 – é propriedade deles, autores;

3. A condenação dos réus a restituir tal prédio e no mais que for de lei;

4. A condenação dos réus a pagarem-lhes a quantia de € 2 445,70, a título de indemnização por danos patrimoniais e no mais que for de lei.

Os fundamentos da acção foram, em síntese, os seguintes:

1. Que eles, autores, são comproprietários e possuidores do prédio rústico sito em x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, com a área de 334 m2, composto por uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, inscrita na matriz predial sob o artigo 1074;

2. Que tal prédio foi adquirido por eles, autores, por processo de justificação que correu termos na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria;

3. Que a presa existente em tal prédio é utilizada exclusivamente pelos autores, há mais de 30 anos, para regar os seus terrenos de amanho que têm nas proximidades;

4. Que antes de ser utilizada pelos autores era utilizada pelos respectivos pais;

5. Que os autores e os respectivos pais sempre cuidaram do prédio na convicção de serem os únicos e exclusivos donos e possuidores dele;

6. Que os réus destruíram a presa, a nascente de água e o terreno de serviço à presa, e um pinheiro;

7. Que o custo da reconstrução da presa ascende a 2 263,20 euros; que os tubos, para dar caminho às águas, custaram e 82,50 e que o pinheiro que foi removido pelos réus tinha o valor de 100 euros.

Os réus contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção, e deduziram reconvenção.

Na sua defesa, além de impugnarem os factos que fundamentavam a acção, alegaram que o prédio que os autores dizem ser seu faz parte de um prédio que lhes pertence a eles, réus; que esse prédio veio à propriedade e posse deles, réus, na sequência de inventário que correu termos no 2.º juízo cível do tribunal de Leiria sob o n.º 5578/06.2TBLRA.

Em reconvenção pediram:

1. Se declarasse que os réus eram donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 64.º da contestação - o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 3203 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2669;

2. Se declarasse que o prédio dos réus tinha a área de 2800 m2;

3. A condenação dos autores a reconhecerem e a respeitarem a propriedade dos réus sobre aquele prédio;

4. Se declarasse que os autores não eram os proprietários do prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial;

5. Se ordenasse o cancelamento do registo, na respectiva conservatória, da inscrição que diz respeito a esse prédio;

6. Se condenassem os autores a repor o prédio no estado em que se encontrava antes de terem tomado posse, na sequência do procedimento que alegam na petição.

Os autores responderam, impugnando as alegações de facto que fundamentaram a reconvenção e pedindo a respectiva improcedência.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção decidiu:

1. Não declarar que o prédio rústico sito na Rua x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, descrito como sendo composto de uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, com a área de 334 m2, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10474, é propriedade dos autores.

2. Absolver os réus da totalidade dos pedidos deduzidos pelos autores;

3. Declarar que os autores não eram proprietários do prédio rústico sito na Rua x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, descrito como sendo composto de uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, com a área de 334 m2, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10474;

4. Ordenar o cancelamento do registo, na respectiva Conservatória (2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria), da inscrição que diz respeito ao prédio referido em 1) que antecede a favor dos autores (descrito sob o n.º 12386 a favor dos autores através da Ap. 1004 de 1/04/2014, pendente de justificação, pendência cancelada em 12/05/2014);

5. Declarar que os réus são donos do prédio rústico sito em x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, inscrito na matriz sob o artigo 3203, descrito e registado a seu favor na 2a Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 2669 através da Ap.825 de 14/09/2010 e, em consequência, condeno os autores a respeitar a propriedade dos réus sobre este prédio;

6. Não declarar que o prédio referido no ponto que antecede tinha a área de 2800m2;

7. Absolver os autores/reconvindos dos demais pedidos deduzidos.

Os autores não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão:

1. Que declarasse que o prédio rústico sito na Rua x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, descrito como sendo composto de uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, com a área de 334 m2, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10474, era propriedade dos autores;

8. Que revogasse a decisão que declarou que os autores não eram proprietários do prédio rústico sito na Rua x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, descrito como sendo composto de uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, com a área de 334 m2, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10474, absolvendo-se os autores deste pedido;

9. Que revogasse a decisão que ordenou o cancelamento do registo, na respectiva Conservatória (2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria), da inscrição que diz respeito ao prédio referido em 1) que antecede a favor dos autores (descrito sob o n.º 12386 a favor dos autores através da Ap. 1004 de 1/04/2014, pendente de justificação, pendência cancelada em 12/05/2014), absolvendo-se os autores deste pedido.

Os fundamentos do recurso melhor desenvolvidos à frente consistiram em síntese no seguinte:

1. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto;

2. Na alegação de que a sentença era nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão e por ocorrer uma obscuridade e até ambiguidade;

3. Na alegação de que, se não se considerasse nula a sentença, impunha-se decisão diversa, julgando-se improcedente os pedidos deduzidos na reconvenção sob as alíneas d) e e).

Os réus responderam, pedindo se mantivesse a decisão. Alegaram, em síntese, que o tribunal fez uma correcta apreciação da prova; que não existe contradição entre os factos dados como provados e não provados. 


*

Questões suscitadas pelo recurso

Como se vê pela exposição acabada de fazer, o recurso suscita questões de facto e de direito. Considerando que a resolução das questões de facto tem precedência lógica sobre a resolução das questões de direito, começaremos o julgamento do recurso pelo conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Os recorrentes impugnaram, em primeiro lugar, a decisão de julgar não provado que “os autores, por si e antecessores, há mais de 30 anos e até há mais de 100 anos, cuidam do terreno envolvente à presa referida em 1) dos factos provados e da própria presa, dia após dia, mês após mês, ano após ano, agindo como se fossem donos do terreno envolvente e da presa e nessa convicção, sem oposição de quem quer que fosse e à vista de toda a gente, com as delimitações constantes do documento junto a fls. 29 da petição, como se de prédio autónomo se tratasse”.

Pedem se julgue provada esta matéria, invocando, para tanto, excertos dos depoimentos de H... e de O... [excertos que transcrevem nas alegações] e ainda, de modo genérico, os depoimentos das testemunhas por si arroladas (as testemunhas inquiridas que foram indicadas pelos autores foram as seguintes: C... , I... , J... , L... , M... , N... , H... , O... ).

Ouvidos depoimentos das testemunhas, a convicção deste tribunal é a de que há indícios sérios de que, primeiro, os pais dos autores e, depois deles, os autores limpam a presa e o terreno que bordejava a presa, e que tais acções de limpeza verificam-se seguramente há mais de 30 anos.

Não há, no entanto, indícios de que a limpeza se fazia diariamente ou de mês a mês; como não indícios de que, primeiro, os pais dos autores e, depois, estes limpassem a presa e o terreno que a bordejava por se considerarem os proprietários do terreno que compreende a presa e o terreno que a bordeja.

Os indícios sérios de que, primeiro, os pais dos autores e, depois deles, os autores limpam a presa e o terreno que bordejava a presa, e que tais acções de limpeza verificam-se seguramente há mais de 30 anos colhem-se essencialmente nos depoimentos de H... , de I... , de J... , de M... , de N... e de L... .

H... - irmã da ré e cunhada do réu, com quem anda de relações cortadas – revelou, através do seu depoimento, que conhecia bem o local em litígio. Afirmou que os pais dos autores cuidavam da presa (cuidar da presa é limpar a presa e o terreno imediatamente adjacente).

I... , 77 anos de idade, conhecedor do local, instado a dizer quem é que cuidava da presa, respondeu que eram os que serviam dela, e instado a dizer quem é que servia dela, respondeu que era “o S... e outros que vinham cá para baixo…”

J... , 59 anos de idade, primo de alguns dos autores, referindo-se aos pais dos autores e a outros, disse que eram eles quem tratava da presa.

M... , 67 anos de idade (disse que lidava ali ao pé por ter ali terrenos), referiu também que o pai do C... , o pai do E... , do F... e do A... , limpavam a presa para depois se regar.

L... , 82 anos de idade, referiu que os “donos da presa” eram o P... , Q... , R... , os pais destes que estão agora (querendo referir-se aos pais dos autores) todos os anos se juntavam e abriam o poço.

Como se escreveu acima, não há, entanto, indícios de que limpeza se fazia diariamente ou de mês a mês. Com efeito, nenhuma das testemunhas se referiu à frequência com que era feita a limpeza do terreno da presa. L... , ao afirmar “… os pais deste que estão agora … eles todos os anos se juntavam e abriam o poço” aponta no sentido de que a limpeza da presa era feita de ano a ano, antes do início do período de rega das culturas.

Por outro lado, também não há indícios de que, primeiro, os pais dos autores e, depois, estes limpassem a presa e o terreno que a bordejava por se considerarem os proprietários do terreno que compreende a presa e o mencionado terreno.

Não se ignora que várias testemunhas [casos de I... , J... e L... ] apontaram os pais dos autores como sendo os donos da presa. A verdade é que faziam esta afirmação com base no facto de eles procederem à limpeza da presa e de regarem com a água nela acumulada. Porém, examinado seu depoimento, verificamos que os mesmos contêm factos que lançam sérias quanto à veracidade da alegação de que os pais dos autores cuidavam da presa com a convicção como se fossem donos do terreno envolvente e da presa e nessa convicção.

Vejamos.

H... afirmou que, além dos pais dos autores [em relação aos autores, a testemunha afirmou que nunca os viu a limpar a presa], havia outras pessoas que cuidavam da presa. Com efeito, instada a dizer quem é cuidava da presa, respondeu que “era muita gente”; “era o pai do C... , era um senhor que se chamava L... , era o pai do A... , era o R... , sei lá, eles eram tantos”.

I... , instado a dizer quem eram as pessoas que se serviam da água da presa, respondeu: “o S... e outros que vinham cá para baixo, portanto todos os terrenos, vamos lá ver a norte eram servidos por aquela água”.

J... , instado a dizer que é que servia da presa, respondeu que eram todas as pessoas que faziam parte deste processo e algumas que desistiram e que não se interessaram por este processo, que havia outras pessoas, que a presa servia umas seis ou sete famílias.

M... afirmou que quem cuidava da presa era o pai do C... , era o pai do E... do F... do A... , esses todos limpavam a presa para depois regar.

Isto é, resulta dos depoimentos que, além dos pais dos autores, havia outras pessoas que participavam na limpeza da presa e que esta era limpa para, como afirmou a testemunha M... , “depois regar”.

Se, para além do pais dos autores, havia outros proprietários de terrenos situados a norte da presa que também participavam na limpeza e que utilizavam a água que nela se acumulava para regarem os respectivos terrenos – isto é, realizavam sobre a presa e a água da presa as mesmas acções que realizavam os pais dos autores – fica contrariada a alegação dos autores de que utilizavam a presa de modo exclusivo.

Ouvida a prova, a convicção deste tribunal é a de que estamos em presença de uma presa muito antiga e que os pais dos autores e, depois deles, os autores, bem como os proprietários de outros prédios, situados a norte da presa, juntavam-se pelo menos uma vez por ano para proceder à limpeza da presa e do terreno que lhe fica adjacente com o fim de regarem com a água que se acumulava na presa e que estas acções (a limpeza e a rega) eram feitas sem qualquer oposição, designadamente dos pais da ré.

Por último cabe dizer que, salvo o caso de I... , que de uma forma dubitativa e imprecisa afirmou que a presa teria “trezentos metros, talvez”, mais nenhuma testemunha se pronunciou sobre a área ocupada pela presa e pelo terreno que a bordejava, não se colhendo, assim, nos depoimentos indícios de que a presa e o terreno tenham a área de 334 m2.

Assim, altera-se a decisão julgando-se provado apenas que “há mais de 30 anos que os pais dos autores e depois os autores têm cuidado da presa e de uma porção de terreno que a bordeja, limpando a presa e a porção de terreno, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente”.

Em segundo lugar, os recorrentes impugnaram a decisão de julgar não provado:

1. Que os progenitores do autor A... declarou doar ao seu filho e este declarou aceitar a doação, no ano de 1976, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados;

2. Que os progenitores do autor C... declarou doar ao seu filho, já no estado de casado com D... , e este declarou aceitar a doação, no ano de 1980, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados;

3. Que os progenitores dos autores E... e F... declararam doar aos seus filhos e estes declararam aceitar a doação, no ano de 1982, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados.

Pedem se julguem provada esta matéria, invocando, para tanto, excertos dos depoimentos de I... , de J... , de M... , de N... e de L... .

Ouvidos os depoimentos das testemunhas, não encontramos neles quaisquer indícios que apontem no sentido da veracidade da matéria acima referida. Com efeito, não encontramos neles a mais leve alusão à questão das doações.

Como já escrevemos acima, algumas das testemunhas atribuíam a propriedade da presa aos pais dos autores. Mas faziam-no por serem eles (pais dos autores) que se serviam da água da presa para regar e por serem eles quem procedia à limpeza dela. É exacto que resulta dos depoimentos que estas acções – limpeza e rega com a água da presa – foram continuadas pelos autores. Porém, não se referiram em nenhum momento do seu depoimento às alegadas doações. 

Pelo exposto, mantém-se, a decisão de julgar não provada tal matéria.

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos:

1. O prédio rústico sito na Rua x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, descrito como sendo composto de uma presa e nascente de água e terreno de serviço à mesma, com a área de 334 m2, está inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 10474º desde o ano de 2014.

2. Segundo decisão proferida pela 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria no âmbito de processo de justificação para efeitos de registo, datada de 7/04/2014, o prédio referido em 1) foi adquirido, na proporção de 1⁄4 indiviso para cada um e por usucapião, pelos autores A... , C... e mulher D... , E... e F... .

3. O prédio referido em 1) está descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 12386 a favor dos autores através da Ap. 1004 de 1/04/2014, pendente de justificação, pendência cancelada em 12/05/2014.

4. O prédio rústico sito em x(...) , freguesia de y(...) , concelho de Leiria, inscrito na matriz sob o artigo 3203o foi adjudicado aos réus no âmbito de partilha judicial e encontra-se descrito e registado a seu favor na 2a Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 2669 através da Ap.825 de 14/09/2010.

5. O terreno referido em 1) confina com o prédio referido em 3).

6. Os autores, por si e antecessores, há mais de trinta anos, dia após dia, mês após mês, ano após ano, utilizam a água da presa referida em 1) para regar os terrenos de amanho confinantes a norte, de sua pertença.

7. Há mais de 30 anos que os pais dos autores e depois os autores têm cuidado da presa e de uma porção de terreno que a bordeja, limpando a presa e a porção de terreno, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente.

8. No prédio referido em 1) existia uma tubagem, para canalização da água da represa que servia os terrenos confinantes, e um pinheiro.

9. O pinheiro referido em 8) foi removido do local em circunstancialismo de tempo que, em concreto, não foi possível apurar.


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Descritos os factos, passemos à apreciação dos restantes fundamentos do recurso.

Previamente importa delimitar o objecto do recurso. Esta delimitação justifica-se pelo seguinte.

Segundo o n.º 2 do artigo 635.º do CPC, “se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre”.

Segundo o n.º 3 do mesmo preceito, “na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente”.

Uma vez que a parte dispositiva da sentença recorrida continha várias decisões desfavoráveis aos recorrentes e que estes, no requerimento com que interpuseram o recurso, declararam que não concordavam com a sentença, sem qualquer outra especificação, era de concluir, por aplicação do n.º 2 do artigo 635.º do CPC, que o recurso tinha por objecto o que na parte dispositiva da sentença era desfavorável ao recorrente, ou seja:

1. A decisão de julgar improcedentes os pedidos deduzidos na acção;

2. A decisão de julgar procedentes os pedidos deduzidos em reconvenção sob as alíneas a), c), d) e e).

Sucede que o n.º 4 do artigo 635.º do mesmo diploma reconhece ao recorrente a faculdade de restringir nas conclusões da alegação, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso [isto é, o objecto que resulta do requerimento de interposição do recurso]. 

Vistas as conclusões da apelação, verificamos que o objecto inicial do recurso foi restringido, pois não figuram nelas nem conclusões relativas à decisão que julgou improcedente o pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 2 445,70, a título de indemnização, nem conclusões relativas à decisão de julgar procedentes os pedidos deduzidos na reconvenção sob as alíneas a) e c).  

A ilação a retirar desta omissão, à luz do que dispõe o n.º 4 do artigo 635.º do CPC, é a de que os recorrentes restringiram o objecto do recurso às seguintes decisões:

1. À que julgou improcedente o pedido dos autores no sentido de serem reconhecidos como proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição;

2. À que julgou improcedente o pedido de condenação dos réus a restituí-lo e à que julgou improcedente o pedido de condenação dos réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbassem ou limitassem o exercício do direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial;

3. À que julgou procedente o pedido reconvencional deduzido sob a alínea d), declarando que os autores não eram proprietários do prédio identificado no artigo 1.º;

4. À que julgou procedente o pedido reconvencional deduzido sob a alínea e), ordenando o cancelamento do registo da aquisição do prédio por usucapião a favor dos autores.

Precisado o objecto do recurso, passemos de seguida ao conhecimento dos respectivos fundamentos.

Os recorrentes começam por acusar a sentença de incorrer na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Segundo eles, os fundamentos estavam em oposição com a decisão, havia contradição lógica entre os fundamentos e a decisão pelo seguinte:

1. Ficou provado que o terreno e presa dos autores confinam com o terreno dos recorridos, mas foi dado como não provado que “o prédio referido em 1) integre o prédio referido em 4”;

2. Sendo distintos os prédios, impunha-se a absolvição dos recorrentes quanto aos pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas d) e e);

3. Não havendo prova de nenhuma das versões das partes, a consequência seria a improcedência não só da acção, mas também da reconvenção.

Salvo o devido respeito, os factos expostos não configuram o vício que os recorrentes denunciam. Vejamos.

A nulidade imputada à sentença ocorre quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Para estes efeitos, “os fundamentos estão em oposição com a decisão” quando, para usarmos as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [a propósito do artigo 668.º, n. 1, alínea c), do CPC de 1961 cuja redacção é igual à da 1.ª parte da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC em vigor] “… a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” [Manual de processo Civil, Coimbra editora, página 671].

A 1.ª parte da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, interpretada com o sentido exposto, daria guarida à pretensão dos recorrentes se a fundamentação da sentença apontasse no sentido da improcedência dos pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas d) e e).

Sucede que não aponta. A sentença aponta precisamente no sentido da procedência ao dizer o seguinte:

1. Que com tais pedidos os réus impugnavam, por via de reconvenção, o título de justificação, o que convertia a reconvenção, em tal parte, numa acção de simples apreciação negativa por visar apenas, em tal parte, a declaração de inexistência do direito, no caso de propriedade, arrogado no título;

2. Que o direito declarado no título de justificação e, com base nela, levada ao registo, passou a ser incerto com a impugnação deduzida, não podendo os autores, naturalmente beneficiar da presunção contida no artigo 7.º do Código do Registo Predial;

3. Que daí que incumbisse aos autores o ónus de alegação dos factos constitutivos suficientes para integrarem a aquisição do direito de propriedade de que, no título se arrogaram, bem como o ónus da respectiva prova (artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil), o que não lograram concretizar, como se expôs.

Para a hipótese de não ser declarada a nulidade da sentença, os recorrentes pedem, com os mesmos fundamentos que sustentaram a arguição da nulidade, se altere a sentença, julgando-se improcedentes os pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas d) e e).

Pelas razões a seguir expostas, é de julgar procedente este fundamento do recurso.

Como resulta da exposição acima efectuada, a sentença entendeu que os pedidos reconvencionais impugnavam, por via de reconvenção, o título de justificação, o que convertia a reconvenção, em tal parte, numa acção de simples apreciação negativa e que cabia aos autores provar, nos termos prescritos pelo n.º 1 do artigo 343.º do Código Civil, os factos constitutivos do direito que se se arrogavam.

Salvo o devido respeito, não há elementos na reconvenção que apontem no sentido de que, ao pedirem se declarasse que os autores não eram os proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição e ao pedirem se ordenasse o cancelamento do registo, na Conservatória da inscrição a que diz respeito tal prédio, os réus visavam impugnar a decisão proferida pelo Conservador do Registo Predial no processo de justificação previsto nos artigos 116.º e seguintes do Código de Registo Predial.

Os réus deduziram os mencionados pedidos como consequência do pedido de declaração de que eram eles, réus, os donos do prédio identificado no artigo 64.º da contestação reconvenção, laborando com base no pressuposto de que este prédio compreendia a presa e o terreno que os autores diziam pertencer-lhes.

Interpretados os pedidos dos réus neste sentido, é bom de ver que a sua procedência estava dependente de uma dupla prova:

1. Em primeiro lugar, estava dependente da prova de factos que traduzissem a aquisição do direito de propriedade dos réus sobre o prédio identificado no artigo 64.º da petição;

2. Em segundo lugar, estava dependente da prova de factos que que traduzissem a aquisição do direito de propriedade dos réus sobre o terreno descrito no artigo 1.º da petição.

Os réus provaram a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 64.º da petição. De resto, este direito foi-lhes reconhecido na sentença e os recorrentes não impugnaram tal segmento da decisão.

O que os réus não provaram foi que a parte delimitada do solo correspondente ao prédio identificado no artigo 1.º da petição faz parte do prédio identificado no artigo 64.º da petição. Por outras palavras, os réus não provaram factos que traduzissem a aquisição, por eles, do direito de propriedade sobre a realidade territorial descrita no artigo 1.º da petição.  

Daí que não tem amparo na lei a decisão de julgar procedentes os pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas d) e e).

Como não tinha, pese embora o respeito que nos merece a decisão recorrida, se se interpretassem os pedidos no sentido em que foi interpretada pela sentença.

Em tal hipótese, seguindo-se aqui o entendimento afirmado pelo STJ no acórdão n.º 1/2008 (DR Série I de 31-03-2008) segundo o qualna acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial”, cabia aos autores a prova dos factos constitutivos do direito que se arrogaram no processo de justificação (n.º 1 do artigo 343.º do Código Civil).

Não fazendo os autores tal prova, a consequência era a procedência da impugnação da justificação.

Procedência que não tinha, no entanto, como efeito a declaração (genérica) de que os autores não eram os proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição.

A procedência tinha como efeito tão só que se considerasse impugnado o facto justificado, ou seja, que se declarasse que cada um dos justificantes não adquiriu, por usucapião, ¼ indiviso do referido prédio, pois foi esta a causa de aquisição do direito de propriedade invocada pelos autores no processo de justificação.

Como é bom de ver, a declaração de que os réus não são os proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição é diferente de uma declaração que afirme que os réus não adquiriram tal prédio por usucapião.

Assim, é de julgar procedente o recurso na parte em que teve por objecto a decisão de julgar procedentes os pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas d) e e).

Por último, apreciemos a pretensão dos recorrentes no sentido de ser revogada a sentença na parte em que julgou improcedente o primeiro pedido deduzido na acção, ou seja, o pedido no sentido de se reconhecer que o prédio identificado no artigo 1.º era propriedade dos autores, e o pedido de condenação dos réus a restitui-lo, bem como a condenação dos réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbassem ou limitassem o exercício do direito de propriedade dos autores.

Esta pretensão assentava na alteração da matéria de facto, designadamente no pressuposto de que havia prova da seguinte matéria:

1. Que “os autores, por si e antecessores, há mais de 30 anos e até há mais de 100 anos, cuidam do terreno envolvente à presa referida em 1) dos factos provados e da própria presa, dia após dia, mês após mês, ano após ano, agindo como se fossem donos do terreno envolvente e da presa e nessa convicção, sem oposição de quem quer que fosse e à vista de toda a gente, com as delimitações constantes do documento junto a fls. 29 da petição, como se de prédio autónomo se tratasse”;

2. Que os progenitores do autor A... declarou doar ao seu filho e este declarou aceitar a doação, no ano de 1976, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados;

3. Que os progenitores do autor C... declarou doar ao seu filho, já no estado de casado com D... , e este declarou aceitar a doação, no ano de 1980, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados;

4. Que os progenitores dos autores E... e F... declararam doar aos seus filhos e estes declararam aceitar a doação, no ano de 1982, de ¼ indiviso do prédio referido em 1) dos factos provados.

Isto é, a pretensão de revogação assentava no pressuposto de que havia prova da aquisição do direito de propriedade sobre tal parcela delimitada do solo mediante usucapião.

Estes pressupostos só, em parte, se concretizaram, com a prova de que há mais de 30 anos que os pais dos autores e depois os autores têm cuidado da presa e de uma porção de terreno que a bordeja, limpando a presa e a porção de terreno, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente.

Esta realidade é, no entanto, insuficiente para julgar verificada a aquisição do direito de propriedade por usucapião.

A usucapião constitui, nas palavras do artigo 1316.º do Código Civil, um modo de aquisição de direito de propriedade. Consiste - agora segundo o artigo 1287.º do mesmo diploma - “na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo”.

A posse, de acordo com a noção do artigo 1251.º, ainda do mesmo diploma, “consiste no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente a exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

Socorrendo-nos das palavras de Orlando Carvalho, a posse envolve “…um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico jurídico – em termos de direito real. Ao primeiro é que se chama corpus e ao segundo animus. Elementos, …, interdependentes ou em relação biunívoca” [Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122, página 105].

Combinando o disposto no artigo 1251.º com o afirmado no artigo 1287.º, conclui-se que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade, pressupõe a actuação sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Tal aquisição pressupõe ainda:

1. Que a actuação (posse) seja mantida por certo lapso de tempo (artigos 1294.º, 1295.º e 1296.º todos do Código Civil);

2. Que a posse seja pacífica, isto é, que tenha sido adquirida sem violência (artigos 1261.º, n.º 1 e 1297.º, do Código Civil);

3. Que a posse seja pública, isto é, que foi exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (1262.º e 1297.º, ambos do Código Civil).

No caso, a limpeza da presa e do terreno que a bordeja, por parte dos autores, exprime o exercício de poderes de facto, sobre uma parte delimitada do solo.

Não se provou, no entanto, que a acção dos autores seja feita em termos do direito de propriedade, isto é, com a intenção de exercer este direito.

Resulta da matéria assente que os autores cuidam/limpam a presa para utilizar a água que nela se acumula, regando os terrenos de amanho confinantes a norte, a eles pertencentes. Isto é, a acção dos autores não exprime uma relação de domínio sobre a porção de terreno onde está aberta a presa. Tal acção tem uma função meramente instrumental, que é a de lhes permitir a utilização da água da presa para a rega dos respectivos campos. 

Improcede, pois, a pretensão dos recorrentes no sentido de ser revogada a decisão na parte em que julgou improcedentes os seguintes pedidos:

1. O de condenação dos réus a absterem-se da prática de quaisquer actos que perturbassem ou limitasse o exercício do direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição;

2. O do reconhecimento de que o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial era propriedade deles, autores;

5. O de condenação dos réus a restituir tal prédio.

Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência:

1. Revoga-se a decisão na parte em que, julgando parcialmente procedente a reconvenção, declarou que os autores não eram os proprietários do prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição, e ordenou o cancelamento do registo, na respectiva Conservatória (2.ª Conservatória do Registo Predial de leiria) da inscrição que diz respeito ao prédio referido em 1) que antecede a favor dos autores (descrito sob o n.º 12386 a favor dos autores através da Ap. 1004 de 1/04/2014, pendente de justificação, pendência cancelada em 12/05/2014);

2. Substitui-se esta decisão por outra a julgar improcedentes tais pedidos;

3. Mantém-se a parte restante da decisão.

As custas da acção serão suportadas pelos autores.

As custas da reconvenção serão suportadas pelos réus e autores, na proporção de, respectivamente, 5/6 1/6

As custas do recurso do recurso serão suportadas pelos recorrentes e recorridos na proporção de metade para cada um.

Relator:

Emidio Francisco Santos

Adjuntos:

1º - Catarina Gonçalves

2º - António Magalhães