Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
295/14.2TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 11/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 503/99 DE 20/11
Sumário: 1. Ocorrendo um acidente, simultaneamente de viação e de serviço, imputável a culpa de terceiro e em que é sinistrado um subscritor da C. G. A. ., esta entidade, depois de proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, goza do direito de regresso contra aquele terceiro responsável, incluindo seguradoras, nos termos do n.º 3 do art.º 46º do DL n.º 503/99, de 20.11, com vista ao reembolso do capital de remição que pagou pela reparação da respectiva incapacidade permanente.

2. Qualquer eventual “acordo” que o responsável civil realize com o sinistrado, através do qual este se declare “total e inteiramente indemnizado por todos os danos e prejuízos” e renuncie “a quaisquer direitos de acção judicial e indemnizações emergentes do acidente”, estará naturalmente condicionado pela imperatividade do regime jurídico dos acidentes de trabalho (em serviço), que não poderá desrespeitar/defraudar.

Decisão Texto Integral:
           
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Caixa Geral de Aposentações, IP, instaurou a presente acção declarativa com forma de processo comum contra Companhia de Seguros B (...) , agora denominada BB (...) - Companhia de Seguros, S. A., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a importância de € 18 840,85 (dezoito mil oitocentos e quarenta euros e oitenta e cinco cêntimos), “necessários para suportar o pagamento do capital de remição devido pelas lesões sofridas no acidente de viação/acidente de trabalho”, atribuído a A (…), acrescido de juros vencidos e vincendos.

            Alegou, em síntese, que, no exercício da missão que lhe é legalmente confiada, nos termos do disposto no DL n.º 503/99, de 20.11, no âmbito do procedimento que teve lugar após o acidente de viação/acidente em serviço que envolveu o subscritor A (…), inscrito como Chefe da Polícia de Segurança Pública (entidade empregadora), veio a pagar a este subscritor a importância de € 18 840,85 a título de capital de remição (diferença entre o capital total apurado de € 22 970,85 e a quantia de € 4 130 que a Ré já havia pago ao sinistrado/subscritor), assistindo-lhe, nos termos do disposto no art.º 46º, n.º 3, do referido DL, o direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a obter o mencionado valor.

            A Ré contestou - confirmou a transferência da responsabilidade civil em causa; porém, invocou que o reembolso que a A. peticiona não se enquadra no âmbito de um eventual direito de regresso, mas sim nos casos de eventual sub-rogação legal nos direitos do sinistrado, sendo que, em Setembro de 2011, a Ré e o sinistrado chegaram a um acordo indemnizatório global no montante de € 4 500, por todos os danos e prejuízos emergentes do acidente, incluindo danos morais e patrimoniais, passados e futuros, declarando-se o sinistrado inteiramente indemnizado por todos os referidos danos e prejuízos e tendo, nessa data, renunciado a quaisquer direitos de acção judicial e indemnizações emergentes do referido acidente; o eventual direito do sinistrado a uma alegada pensão de natureza especial extinguiu-se, portanto, em data anterior à da sub-rogação da A., estando a Ré desonerada, não só perante o lesado, como também perante a A.; a A. não juntou documento comprovativo de efectivo pagamento daquela quantia ao sinistrado; desconhecia a Ré – à data do acordo com o sinistrado – o desfecho do “processo de sanidade” que sabia ter sido iniciado pela entidade empregadora e que aquela viria a qualificar o acidente dos autos também como acidente de trabalho, bem como em que moldes foi a A. interpelada para proceder à reparação de danos advindos desse mesmo acidente e que procedimentos adoptou, estando completamente desfasada da realidade a fixação ao sinistrado de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 8,5 %, como faz a A., sendo certo que em consequência do acidente o sinistrado sofreu uma IPP de 5 pontos. Concluiu pela improcedência da acção.

            Foi proferido o despacho saneador e delimitado o objecto do litígio.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 08.4.2015, julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

            Inconformada, a A. interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Ao regular o regime de reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais ocorridos no âmbito da Administração Pública, previsto no DL n.º 503/99, de 20.11, o legislador decidiu expressamente conferir à recorrente, uma vez definitivamente fixado o respectivo direito às prestações, o direito de regresso sobre terceiros responsáveis por forma a obter deles o respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial, como resulta do disposto no art.º 46º, n.º 3, daquele diploma legal.

            2ª - Interpretação diversa esvazia de sentido o disposto naquele comando legal.

            3ª - Ocorrido um acidente simultaneamente de viação e de serviço, imputável a terceiro, que vitimou um trabalhador subscritor da CGA, é a esta entidade que compete fixar o grau de incapacidade permanente e o montante da pensão devida por tal desvalorização e reclamar, depois, em direito de regresso, o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial.

            4ª - Acresce que a jurisprudência relativamente à interpretação de uma norma de igual natureza e conteúdo idêntico ao art.º 46º, n.º 3, do DL n.º 503/99, de 20.11, constante do art.º 9º, n.º 6, do DL n.º 466/99, de 06.11 (diploma que aprovou o regime de atribuição de pensões de preço de sangue), tem afirmado consistentemente o acerto da exigibilidade das prestações futuras (pensões) determinadas por cálculo actuarial.

            5ª - A sentença recorrida ofendeu o disposto no n.º 3 do art.º 46º do DL n.º 503/99, de 20.11.

            Remata pugnando pela revogação da sentença e a procedência da acção.

            A Ré respondeu à alegação da recorrente concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa determinar, apenas, se assiste à A. (C.G.A.) o direito feito valer através da presente acção.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) A I(...) foi incorporada, por fusão, na BB (...) - Companhia de Seguros, S. A., nova designação da Companhia de Seguros B (...) , S. A., tendo a I(...) , em consequência daquela fusão sido extinta, e transmitido à Ré - agora denominada BB (...) - Companhia de Seguros, S. A. -, todos os direitos e obrigações.

            b) A C. G. A., IP, é uma pessoa colectiva de direito público que tem por missão gerir o regime de segurança social público em matéria de pensões de aposentação, de reforma, de sobrevivência e outras de natureza especial. Entre as pensões de natureza especial contam-se as previstas no DL n.º 503/99, de 20.11, que têm por finalidade reparar as lesões decorrentes de acidentes de trabalho de trabalhadores que exerçam funções na Administração Pública.

            c) Em 16.10.2009 encontrava-se transferida para a Ré a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros pelo veículo da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula (...) OR, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º AU22927618 até ao limite de capital de € 2 500 000.

            d) A (…) é subscritor da C. G. A., IP, inscrito como Chefe da Policia de Segurança Pública, entidade empregadora. Em 19.01.2012 foi participado pela entidade empregadora que, em 16.10.2009, pelas 8.35 horas, na Rua de Angola, em frente ao n.º 71, na cidade de Coimbra, foi aquele subscritor vítima de um acidente de viação, pelo qual a Ré – então I(...) – assumiu a responsabilidade pela sua reparação, atenta a intervenção do dito veículo OR.

            e) Sucede que aquele acidente de viação foi igualmente qualificado como acidente de trabalho (em serviço) pela entidade empregadora, pelo que foi também requerida na C. G. A. a reparação do acidente nos termos do disposto no regime de protecção social em matéria de acidentes e doenças profissionais ocorridos no domínio da Administração Pública, dado que os trabalhadores que exercem funções públicas, subscritores da C. G. A. e vítimas de acidente em serviço/de trabalho de que resulte diminuição permanente da sua capacidade geral de ganho têm direito a uma pensão vitalícia ou a um capital de remição, calculado em função do grau de desvalorização sofrido no acidente.

            f) Assim, a A. iniciou o procedimento administrativo para reparação das lesões resultantes do referido acidente de trabalho/viação.

            g) Em 26.02.2013, o subscritor A (…) foi presente à junta médica da C. G. A., a qual, para efeitos de avaliação das lesões decorrentes do acidente de trabalho/viação, considerou que aquele apresentava “sequelas de lesão traumática da coluna cervical”, pelas quais a junta médica da C. G. A. fixou uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 8,5 %.

            h) Consequentemente, foi reconhecido e fixado pela A. ao sinistrado/subscritor A (…), mediante resolução de 24.4.2013, para reparação das lesões emergentes do acidente de trabalho/viação, o capital de remição no montante de € 22 970,85.[1]

            i) No entanto, como a Ré já havia pago ao sinistrado/subscritor o montante de € 4 130, a C. G. A. pagou ao sinistrado apenas a diferença de capital restante, ou seja, € 18 840,85.

            j) Por ofício de 02.5.2013, a A. solicitou à então Companhia de Seguros I(...) o reembolso do montante relativo ao capital de remição atribuído ao subscritor da C. G. A., no prazo de 30 dias.[2]

            k) Até à presente data, a Ré não procedeu aquele pagamento.

            l) Na sequência do sinistro, o sinistrado interpelou a Ré, em 04.11.2009, para que esta o indemnizasse dos danos resultantes do sinistro e procedesse à regularização de despesas relacionadas com o mesmo.

            m) O sinistrado foi avaliado pela Ré em sede de reparação do dano em direito civil, tendo-lhe sido fixada em 02.02.2010 uma desvalorização (IPP) correspondente a 5 pontos.

            n) Em Setembro de 2011, a Ré e o sinistrado chegaram a um acordo indemnizatório global no montante total de € 4 500, assim discriminado: - € 4 130, pelo dano à integridade física e psíquica (dano biológico) correspondente a uma IPP de 5 pontos; - € 370, relativos a despesas médicas, medicamentosas e de assistência.             o) A Ré obrigou-se a pagar – como efectivamente pagou – ao sinistrado a referida quantia, respeitante à indemnização por todos os danos e prejuízos emergentes do acidente.

            p) O sinistrado recebeu da Ré a referida quantia acordada de € 4 500 em Setembro de 2011, tendo dado, por escrito de 08.9.2011, quitação, declarando-se, assim, total e inteiramente indemnizado por todos os referidos danos e prejuízos e tendo, nessa data, o sinistrado renunciado a quaisquer direitos de acção judicial e indemnizações emergentes do referido acidente.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Os dois temas de prova enunciados a fls. 111, relativos ao grau de desvalorização correspondente às sequelas que advieram ao sinistrado em consequência do aludido acidente de trabalho (em serviço) e ao pagamento pela A. de determinada quantia a título de capital de remição, obtiveram as respostas afirmativas mencionadas em II. 1. alíneas g), h) e i), supra.

            Apurado, assim, que a entidade competente atribuiu ao sinistrado uma IPP de 8,5 % (cf. o art.º 38º do DL n.º 503/99, de 20.11), obviamente diversa (não apenas na sua expressão numérica…) da “pontuação” fixada pelos serviços da Seguradora Ré [cf. II. 1. m), supra][3] - ilação ou conclusão que não carece aqui de larga de discussão -, afigura-se-nos que, para o correcto enquadramento do caso em análise, importará efectuar uma adequada leitura e explicitação da realidade e confrontá-la com o direito aplicável, antolhando-se evidente, sem quebra do respeito sempre devido por opinião contrária, que a resposta a dar deverá ser diversa da encontrada na decisão recorrida.

             3. O acidente de trabalho (em serviço) ocorreu a 16.10.2009, sendo assim aplicável o regime jurídico do DL n.º 503/99, de 20.11, conjugado com o preceituado na Lei geral dos acidentes de trabalho então vigente (Lei n.º 100/97, de 13.9) (cf., designadamente, os art.ºs 2º, 3º, n.º 1, alíneas a) e b), 4º, n.º 1, 5º, n.º 3 e 34º, n.ºs 1, 4 e 5, do DL n.º 503/99).

            E nos termos do art.º 46º do DL n.º 503/99, de 20.11 (sob a epígrafe “responsabilidade de terceiros”), na sua versão primitiva (e que, no regime a considerar, não foi alterada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31.12), os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações (aí previstas) têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas (n.º 1), abrangendo o direito de regresso , nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho (n.º 2); uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a Caixa Geral de Aposentações tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial (n.º 3); nos casos em que os beneficiários das prestações tenham já sido indemnizados pelo terceiro responsável, não há lugar ao seu pagamento até que nelas se esgote o valor da indemnização correspondente aos danos patrimoniais futuros, sem prejuízo do direito de regresso referido no número anterior, relativamente à eventual responsabilidade não abrangida no acordo celebrado com terceiro responsável (n.º 4); quando na indemnização referida no número anterior não seja discriminado o valor referente aos danos patrimoniais futuros, presume-se que o mesmo corresponde a dois terços do valor da indemnização atribuída (n.º 5).

            4. Atendendo à factualidade apurada, dúvidas não restam de que ocorreu um acidente simultaneamente de viação e de serviço, imputável a terceiro, que vitimou um trabalhador subscritor da C. G. A.; por outro lado, também ficou demonstrado que a C. G. A., entidade competente para fixar o grau de incapacidade permanente e o montante da pensão devida, veio reclamar, exercitando o aludido direito de regresso, o valor que havia pago ao sinistrado.

            Perante a matéria descrita em II. 1., supra, e o apontado quadro normativo, não vemos como seja possível concluir em sentido diverso, e, se dúvidas houvesse, uma leitura atenta e razoável dos factos e a adequada interpretação e aplicação do regime jurídico em vigor (na linha, de resto, dos anteriores) leva-nos necessariamente a uma resposta que, afirmando a justiça, não defraudará a realidade e o direito.

            5. Concretizando.

            Ficou provado que, na sequência do evento, o sinistrado interpelou a Ré, em 04.11.2009, para que esta o indemnizasse dos danos resultantes do sinistro e procedesse à regularização de despesas relacionadas com o mesmo [cf. II. 1. l), supra].

            Ora, resulta da aludida missiva que o sinistrado A (...) comunicou à Ré/Seguradora [responsável pelo ressarcimento dos danos/cf. II. 1. alíneas c) e d), supra] a existência de danos patrimoniais emergentes (designadamente, na sua viatura) e esclareceu que se tratava de um acidente em serviço cujo processo estava em curso e que, independentemente da avaliação clínica resultante dos actos relacionados com o processo de acidente em serviço a decorrer na entidade patronal, pretendia ser indemnizado, pela Seguradora, dos danos patrimoniais consubstanciados nas despesas por ele efectuadas (cuja documentação seria depois enviada – cf. a missiva reproduzida a fls. 95), bem como relativamente aos danos não patrimoniais (cf. fls. 93 e seguinte).

            O Tribunal a quo deu também como provado que em Setembro de 2011, a Ré e o sinistrado chegaram a um acordo indemnizatório global no montante total de € 4 500, assim discriminado: - € 4 130, pelo dano à integridade física e psíquica (dano biológico) correspondente a uma IPP de 5 pontos; - € 370, relativos a despesas médicas, medicamentosas e de assistência; a Ré pagou ao sinistrado a referida quantia, respeitante à indemnização por todos os danos e prejuízos emergentes do acidente; o sinistrado recebeu da Ré a referida quantia, tendo dado, por escrito de 08.9.2011, quitação, declarando-se, assim, total e inteiramente indemnizado por todos os referidos danos e prejuízos e tendo, nessa data, renunciado a quaisquer direitos de acção judicial e indemnizações emergentes do referido acidente [cf. II. 1. alíneas n), o) e p), supra].

            Compulsados os autos verifica-se (ou consta) ainda que:

            - Na “reunião” e após as “conversações” havidas entre o sinistrado e um pretenso liquidatário da Seguradora, em 08.9.2011, para “avaliarem todos os danos e prejuízos sofridos pelo primeiro”, “foram os citados danos e prejuízos avaliados em € 4 500”; foi então consignado que com o pagamento da referida quantia, o sinistrado considerava “inteiramente indemnizados os citados danos e prejuízos, renunciado a quaisquer direitos de acção judicial e indemnizações emergentes do mesmo acidente (…)”.

            - Na sequência do dito “acordo”, a Ré, em 12.9.2011, comunicou à A. o seguinte: “”(…) informamos que efectuámos acordo extra judicial e que regularizámos € 4 130 a título de Dano Biológico” (cf. doc. fls. 26).

              6. Sabendo-se que a incapacidade (IPP) do sinistrado foi definitivamente fixada, na sequência da Junta Médica de 26.02.2013, em 8,5 % [cf. I. 1. alínea g), supra] e que a Seguradora teria indemnizado aquele na base de uma desvalorização de “5 pontos” e a título de “dano biológico”, logo por aqui seria discutível se o dito “acordo” compreendera ou poderia compreender todos os danos patrimoniais (futuros) decorrentes do acidente dos autos, em razão, pelo menos, da deficiente e imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades humanas em geral e um maior dispêndio e desgaste físico e psíquico.[4]

            Ademais, estando pendente o processo (por acidente em serviço) para determinação da pensão devida pela incapacidade de que o sinistrado passou a ser portador, é evidente que o dito “acordo”, considerando-se porventura que o respectivo objecto iria além do reembolso das despesas e da compensação por danos não patrimoniais (cf. a missiva reproduzida a fls. 93) e compreendia “todos os danos e prejuízos sofridos”, sempre seria nulo, por desrespeitar/defraudar a imperatividade do regime jurídico dos acidentes de trabalho/em serviço[5] (cf., sobretudo, os art.ºs 34º e 35º da Lei n.º 100/97, de 13.9 e 3º, n.º 1, a); 4º, n.º 4, b) e 34º, n.ºs 1 e 4, do DL n.º 503/99, de 20.11[6]).

            7. Por conseguinte, fixada a IPP e apurado o capital de remição e, consequentemente, a importância ainda devida ao sinistrado subscritor da C. G. A. (diferença entre o capital total apurado de € 22 970,85 e a quantia de € 4 130 que a Ré havia pago), efectivamente paga pela A./C. G. A., apenas se poderá concluir que lhe assiste o direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a obter o mencionado valor (n.º 3 do art.º 46º, do DL n.º 503/99, de 20.11).

            8. Dir-se-á, ainda, face ao descrito factualismo e ao regime jurídico aplicável, que surgirá deslocada ou irrelevante a questão de saber se a situação em apreço configura verdadeiro direito de regresso ou mera sub-rogação - é que, por um lado, o declarado direito de regresso decorre não apenas da dita estatuição legal, mas também do preenchimento dos requisitos que condicionam a sua existência (entre os quais, o de o A. haver pago ao lesado o valor reclamado em via de regresso); por outro lado, independentemente de tais conceitos, a jurisprudência tem vindo a assinalar, principalmente, o direito ao reembolso (de importâncias pagas por quem é primeiro ou imediato responsável pela reparação da situação emergente do sinistro), fazendo com que, em caso de confluência de vários tipos de responsabilidade civil no domínio dos acidentes de trabalho, o terceiro responsável, incluindo seguradoras, não deixe de efectuar a correspondente prestação indemnizatória.[7]

            9. De resto, in casu, não se questionando a qualidade de subscritor (do lesado), nem qualquer pressuposto da obrigação de pagamento da pensão arbitrada (e, de imediato, remida), a invocação da figura da sub-rogação, por parte da Ré/Seguradora, teve apenas por “finalidade” fazer com pudesse ficar eximida do pagamento da importância reclamada nos autos, independentemente da problemática da assunção da (efectiva) responsabilidade pelo ressarcimento dos danos emergentes do sinistro (em razão do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel), da existência de danos e do correspondente dever de indemnizar ou de estarmos perante uma reparação de um sinistro (laboral/em serviço) cujas normas se impõem à vontade das partes.[8]

            Acresce que, com a descrita actuação da Ré, paradoxalmente, o sinistrado viu “esfumar-se” a pretendida compensação pelos danos não patrimoniais

            10. Conclui-se, pois, ao contrário do expendido na decisão sob censura, que a obrigação da Ré não se extinguiu e que esta não satisfez o direito do lesado, que o capital de remição era devido e o sinistrado nunca deixou de ser credor da importância correspondente, assistindo à A. o direito de reembolsar a quantia paga/adiantada e aqui reclamada, conforme decorre, claramente, das citadas disposições legais, bem como os respectivos juros moratórios a contar da data da interpelação para pagamento, à taxa legal supletiva em vigor de 4 % [cf. II. 1. alínea j), supra, os art.ºs 804º, 805º, n.º 1 e 806º, do CC e a Portaria n.º 291/2003, de 08.4].


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            III. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida e decide-se condenar a Ré a pagar à A. a importância de € 18 840,85 (dezoito mil oitocentos e quarenta euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida de juros moratórios (cf. II. 10. supra).

            Custas (nas instâncias) pela Ré/apelante.


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17.11.2015

Font Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernanda Ventura


[1] Calculado nos termos dos art.ºs 17º, n.º 1, alínea d) e 33º da Lei n.º 100/97, de 13.9, sendo que a “data da alta” (data de consolidação médico-legal das lesões) foi fixada a 20.01.2010 (cf. fls. 24).
[2] Rectifica-se a data e adita-se o excerto do “prazo do pagamento”, tendo em conta o teor do documento de fls. 28.
[3] Vide, a propósito, Joaquim José de Sousa Dinis, Avaliação e reparação do dano patrimonial e não patrimonial (no domínio do Direito Civil), in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano XVIII, n.º 19, pág. 60.
[4] Vide, de entre vários, os acórdãos do STJ de 13.01.2009-processo 08A3734, 26.11.2009-processo 2659/04.0TJVNF.P1.S1, 17.12.2009-processo 340/03.7TBPNH.C1.S1 e 25.02.2010-processo 172/04.5TBOVR.S1, publicados no “site” da dgsi.
[5] Vide, designadamente, Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, Almedina, 2000, pág. 163.
[6] Nos termos dos referidos art.ºs:
   É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidos nesta lei ou com eles incompatível. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nesta lei (art.º 34º da Lei n.º 100/97, sob a epígrafe “nulidade dos actos contrários à lei”).
   Os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estas na classificação legal (art.º 35º, da mesma lei).
   Sendo que, segundo o DL n.º 503/99, considera-se “Regime geral - o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais constante da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e legislação complementar” (art.º 3º, n.º 1, a)); o direito à reparação em dinheiro compreende a indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, no caso de incapacidade permanente (art.º 4º, n.º 4, b)); se do acidente em serviço ou da doença profissional resultar incapacidade permanente ou morte, haverá direito às pensões e outras prestações previstas no regime geral (art.º 34º, n.º 1); as pensões e outras prestações previstas no n.º 1 são atribuídas e pagas pela Caixa Geral de Aposentações, regulando-se pelo regime nele referido quanto às condições de atribuição, aos beneficiários, ao montante e à fruição (n.º 4, do mesmo art.).
   Diga-se que aqueles art.ºs da Lei n.º 100/97 reproduziam o outrora estabelecido nas Bases XL e XLI da Lei n.º 2 127, de 03.8.1965, e que idêntico regime se encontra plasmado no actual Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho (cf., principalmente, os art.ºs 12º e 78º da Lei n.º 98/2009, de 04.9, que entrou em vigor a 01.01.2010).

[7] Cf., entre outros, os acórdãos da RP de 14.4.2015-processo 656/13.4T2ETR.P1 [tendo-se considerado: “efectuado o pagamento da prestação e nascido o correspondente direito da autora (CGA), este direito só indirectamente tem como fundamento o acidente que determinou a indemnização, pois passou a basear-se no direito de ser reembolsada daquilo que pagou ao lesado”; “a Caixa Geral de Aposentações tem direito ao reembolso do capital de remição que pagou ao sinistrado, seu subscritor, a título de indemnização do acidente em serviço que sofreu, pelo qual é responsável civil o demandado”, doutrina que também se aplica aos “casos de pagamento de indemnização por incapacidade permanente e por morte, embora mediante a figura do denominado direito de regresso consagrado no n.º 3 do citado art.º 46º”] e da RC de 23.6.2015-processo 2988/12.0TBVIS.C1 [entendendo-se que o n.º 3 do art.º 46º do DL 503/99 “permite à CGA pedir a condenação no pagamento do capital necessário para pagar as pensões que vai ter que suportar, determinado por cálculo actuarial”; que, nos termos dos art.ºs 4º, n.º 4, b), e 5º, n.º 3, do DL 503/99, “ocorrido um acidente simultaneamente de viação e de serviço, imputável a terceiro, que vitimou um trabalhador subscritor da CGA, é a esta entidade que compete fixar o grau de incapacidade permanente e efectivar a reparação em dinheiro, designadamente através de pensão vitalícia”; e que, face ao estatuído no DL n.º 291/2007, de 21.8 (regime jurídico do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), mais propriamente, no seu art.º 26º, n.º 2, também “resulta com toda a evidência que em caso de acidente de serviço se aplica o regime do citado DL 503/99”], publicados no “site” da dgsi.

   Relativamente a situações com alguma similitude e salientando igualmente o direito ao reembolso por parte do Estado/CGA, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 12.9.2006-processo 06A2213 e 30.5.2013-processo 1056/10.3TJVNF.P1.S1 [no qual se defendeu, designadamente: “ocorrido um acidente simultaneamente de viação e de serviço, imputável a terceiro, que vitimou um trabalhador subscritor da CGA, é a esta entidade que compete fixar o grau de incapacidade permanente e o montante da pensão devida por tal desvalorização e reclamar, depois, em direito de regresso, o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial” e, ainda, que “muito embora o art.º 46º, n.º 3, do DL n.º 503/99, de 20.11, designe este direito como de regresso, tal qualificação é discutível, porquanto um dos pressupostos do direito de regresso é o pagamento ao lesado e, no caso da CGA, basta a decisão definitiva sobre o direito às prestações que lhe compete satisfazer”], publicados no “site” da dgsi.
[8] Atente-se ainda, por exemplo, na possibilidade de “revisão da incapacidade e das prestações” prevista no art.º 40º do DL n.º 503/99, de 20.11, em conformidade, de resto, com o regime geral dos acidentes de trabalho.