Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/15.3GCMBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
APRECIAÇÃO DA PROVA
VALORAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTO
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DE MOIMENTA DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 127.º DO CPP; ART. 152.º DO CP
Sumário: I - O crime em questão [violência doméstica] tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana, por isso, a acção típica, prevista no nº 1 do artigo citado – a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos –, requer que a conduta seja realmente maltratante isto é, que através dos maus tratos o agente degrade a dignidade da vítima enquanto ser humano.

II - A lei prevê uma conduta maltratante resultante de uma prática de actos reiterados, que podem traduzir-se, v.g., em ofensas à integridade física, em ofensas à integridade psíquica, em ofensas à liberdade e em ofensas sexuais, que afectem a dignidade da pessoa humana, em concreto, a dignidade da vítima, mas admite que uma única acção, porque atingiu uma intensidade tal, possa, em si mesma, isoladamente – portanto, sem que haja conduta reiterada – afectar aquela dignidade e, em consequência, preencher o tipo (cfr. Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 519 e Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 308).

III - O tipo objectivo integra as condutas de violência física – crime de ofensa à integridade física –, violência psíquica – crimes de ameaça, coacção, injúria, difamação – e ainda as tipificadas privações de liberdade e ofensas sexuais.

IV - Mas estas condutas só serão típicas quando traduzam acções efectivamente maltratantes, quando a acção ou as acções concretas, pela sua ofensividade, conduzem à degradação da dignidade da pessoa da vítima.

V - Na operação de valoração da prova, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal e, dele resulta que a apreciação da prova é tarefa da esfera exclusiva do juiz mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de a poder valorar movido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional.

VI - A valoração da prova impõe ao juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos depoentes, tendo, em qualquer caso, como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.

VII - A prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, v.g., das declarações da assistente ou do depoimento de uma testemunha. O que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Moimenta da Beira – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e 2 do C. Penal e de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º-A, nº 1, a) do mesmo código.

            A assistente B... deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 5.000, por danos não patrimoniais sofridos.

            Por despacho de 11 de Maio de 2016 [e não, de 11 de Abril de 2016, como, por lapso, consta do Relatório da sentença recorrida], proferido na audiência de julgamento que decorreu no mesmo dia [acta de fls. 545 a 547], foi comunicada uma alteração dos factos descritos na acusação e uma alteração da qualificação jurídica que passou a ser feita, relativamente à ofendida C... pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 2 do C. Penal, e relativamente à assistente, também, pelas penas acessórias previstas no art. 152º, nº 4 do C. Penal, tendo o arguido requerido prazo para defesa, que foi concedido.

            O arguido recorreu deste despacho, recurso que não foi admitido por despacho de 7 de Junho de 2016, proferido na audiência de julgamento que decorreu no mesmo dia [acta de fls. 596 a 599].       

            Por sentença de 6 de Julho de 2016, foi o arguido absolvido da prática do imputado crime de maus tratos, e condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2 e 4 do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão [que tem por ofendida, a assistente] e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, d) e 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão [que tem por ofendida, C... ] e, em cúmulo, na pena única de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, e ainda, na pena acessória de proibição de contactos com a assistente, com afastamento da residência e local de trabalho desta, pelo período de um ano, e na pena acessória de frequência de programa de prevenção de violência doméstica, a efectivar durante o período de suspensão da execução da pena de prisão.

            Mais foi o arguido condenado no pagamento da indemnização de € 1.500, à assistente B... , e no pagamento da indemnização de € 500 à ofendida C... .


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1 – O recorrente A... foi condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica na forma agravada, nas pessoas da assistente B... e da filha C... , na pena global de dois anos e oito meses de prisão.

2 – A ratio do tipo legal do n.º 1 e 2 do art. 152º do CP, tem a ver com os maus tratos físicos, psíquicos e morais, tratando-se de um bem jurídico complexo que a abrange a saúde (física, psíquica e mental).

3 – O crime exige reiteração – excepcionalmente bastando um só acto – tornando-se necessário que, em princípio, se reiterem os comportamentos em determinado período de tempo e importante averiguar as consequências da ofensa para aferir se o bem jurídico foi violado no caso concreto.

4 – Da descrição do ponto 3, do ponto 4, 1ª parte e do ponto 6 dos factos provados dá-se como assente que a relação dos cônjuges sempre foi pautada por discussões e agressões e em datas não concretamente apuradas mas desde 1999, no interior da residência de ambos, e por diversas vezes, e na presença das suas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas e murros à ofendida empurrando-lhe a cabeça contra a parede; Por diversas vezes em datas que não se lograram apurar disse à ofendida que era mentirosa, acusou-a de ter amantes e ser infiel; Em datas que não se lograram apurar por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida e à sua filha C... e disse-lhe “ Se eu morrer vocês não ficam cá a rir-se”.

5 – Do acervo factual faz-se uma descrição genérica, descontextualizada e abstracta, não concretizando as condutas e ofensas correspondentes, sendo meramente especulativa e conclusiva.

6 – Tais condutas deviam ser concretizadas e não descritas, por exemplo, quanto ao tempo, ao número de ocasiões e motivação, à sua intensidade e número de agressões, etc.

7 – Na matéria dada como provada nos pontos em discussão não é possível individualizar os factos concretos integradores do tipo normativo do crime de violência doméstica, sendo que essa imprecisão colide com o direito do contraditório e com o direito de defesa do arguido, violando o principio do acusatório, art. 32º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

8 – E, em suma, sobre a imputação genérica dos factos tem a jurisprudência do STJ entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal. Neste sentido os Acórdãos do STJ de 06.05.2004 – Proc. n.º 908/04-5ª; de 21.02.2007 – Proc. n.º 4341/06-3ª; de 02.04.2008 – Proc. 4197/07.

9 – Assim, dada a escassez da matéria de facto provada não podia o recorrente ser condenado pela prática do crime de violência doméstica na forma agravada nas pessoas da assistente B... e da C... , sendo insuficiente para a decisão a matéria de facto provada – art. 410º do CPP.

10 – A prova produzida sempre era insuficiente para dar como provado os pontos 3 a 11 da matéria dada como provada, encontrando-se incorrectamente julgados.

11 – Quanto ao ponto 3, do depoimento da B... e C... , apenas concretizam um episódio de quando aquela estava grávida (há 17 anos) e um mais antigo nuns caminhos e a C... apenas referiu que se assistiu a alguma agressão, foi a duas ou três quando ela e a irmã eram pequeninas.

12 – Quanto ao ponto 4, 2ª parte da matéria provada, (…) em data não apurada e em data antes de 7 acusou-a de ser acompanhante de luxo.

13 – É também um facto vago quanto à data, não refere local e desconhece-se a referência “antes de 7”.

14 – Da discussão o recorrente não concordou que a B... acompanhasse o idoso do lar onde trabalha, havendo outras pessoas disponíveis, sendo um luxo acompanhar um idoso, não podendo a expressão significar outra coisa no acompanhamento de um idoso de oitenta e poucos anos!

15 – Quanto ao ponto 5, só a B... o refere no depoimento, na versão inicial e antes da alteração dos factos, constava no final a expressão “e disse-lhe que a matava”, dada como não provada pelo tribunal, expressão que imprimia o desvalor da acção.

16 – Desconhece-se o tipo de faca, de lâmina e o local, para aferir da gravidade ou não da conduta e se configura ou não maus tratos.

17 – Quanto ao ponto 6 não emerge da prova produzida qualquer prova que demonstre que o recorrente tenha proferido a expressão aí referida.

18 – Quanto ao ponto 7 os depoimentos das ofendidas têm versões diferentes, dizendo a B... que saiu para o exterior após a filha se levantar do sofá para chamar a polícia e já não viu  se o arguido bateu à C... , nem em que parte do corpo; Na versão da C... após a mãe negar o cartão de crédito ao pai este dirigiu-se à banca da cozinha para buscar uma colher de pau e disse à B... “Tu é que escolhes: dar os cartões ou ser agredida” “Depois começou a bater na mão da minha mãe”.

19 – Atendendo às divergências das posições de mãe e filha não é ultrapassável a dúvida razoável de como os factos terão passado, tendo em conta os depoimentos em análise relacionados com as regras da experiência comum e da lógica, sendo que na dúvida in dubio pro reo deve dar-se o facto 7º em questão, como não provado.

20 – Quanto ao ponto 8 e pelos motivos e razões do ponto anterior deve igualmente e com base na dúvida responder-se por não provado.

21 – Quanto ao ponto 10 e à expressão aí referida a B... não a ouviu e apenas a refere a C... e do depoimento da testemunha E... (depoimento consistente, segundo a Sra. Juiz) o recorrente disse apenas para não levar a C... “que o lugar dela era em casa”, devendo dar-se como não provado que a C... tenha proferido a expressão em 10º.

22 – O mesmo acontecendo quanto ao facto genérico em 11, desconhecendo-se quais as concretas situações e lesões que importaram as dores.

23 – Da análise da prova produzida pelos depoimentos da B... e da filha C... quanto aos pontos da matéria de facto de 3 a 11 dos, não era possível dar como provada essa factualidade, tendo em atenção os meios de prova aqui indicados em relação aos referidos pontos e relacionados com as regras da experiência comum e da lógica.

24 – Os pontos 3 a 11, salvo melhor opinião, encontram-se incorrectamente julgados, ocorreu erro de julgamento, devendo ter-se por “ não provados ”.

25 – Aliás, pormenorizando, quanto ao ponto 5 refere uma agressão com uma bofetada a qual não é suficiente para configurar um acto parcial do crime de violência doméstica, salvo se atingir um patamar de gravidade e desvalor correspondente a maus tratos.  Neste sentido, Ac. TRC de 02.10.2013.

26 – Quanto ao facto 7 e permanecendo em dúvida como é que o facto ocorreu e quanto ao ponto 8, a provar-se e desconhecendo o número de pontapés infligidos, tal não traduz uma situação grave que ultrapasse a mera incursão de um crime de ofensas à integridade física.

27 – Não se tendo também verificado a violação reiterada da conduta, não se pode dar como provada a violação do bem jurídico da dignidade humana.

28 – Integrando apenas quanto muito em relação à C... um crime de ofensa à integridade física simples, nada obstando à alteração desta qualificação jurídica nesta sede, justificando apenas uma sanção em pena de multa.

29 – Não se verificam, quanto à C... , os factos integradores de um crime de violência doméstica.

30 – Foram violados, entre outros, os normativos do art. 152º, 148º, do Código Penal, art. 374º n.º 2 do C.P. Penal.

Nos termos expostos e nos demais que V. Exa. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso obter total provimento, sendo julgado procedente, por provado e, consequência, o recorrente absolvido dos crimes de violência doméstica em que foi condenado.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o arguido, além do mais, na pena única de 2 anos e 8 meses, suspensa na sua execução por idêntico período.

2. Por não se conformar com a decisão proferida, vem o recorrente dela interpor recurso, que versou sobre matéria de facto, submetendo-o à censura desse Venerando Tribunal.

3. Considera o recorrente que houve erro notório na apreciação da prova produzida em julgamento.

4. Todavia, salvo o devido respeito, carece de razão o recorrente, pois que a sentença em crise apreciou devidamente a prova produzida.

5. Em primeiro lugar cumpre referir que o erro é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade, sendo que só é notório o erro ostensivo, evidente, que não passaria despercebido à generalidade das pessoas ou seria facilmente detectado por uma pessoa comum, de modo que, se na posição do juiz, o detectaria sem qualquer esforço.

            6. No entanto, a situação de erro notório não se pode confundir com uma diferente convicção do arguido e consequente valoração das provas produzidas na audiência em relação ao que foi feito pelo Tribunal, que é o sucede in casu.

7. A produção da prova decorre perante o tribunal de primeira instância e no respeito de dois princípios fundamentais e interconectados: o da oralidade e o da imediação, sendo que com isso se visa assegurar o princípio basilar do julgamento da matéria de facto em processo penal: o da livre apreciação da prova por parte do julgador previsto no art. 127.° do Código de Processo Penal.

8. O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto e ao contrário do que parecem pretender os recorrentes, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância, só podendo o tribunal de recurso modificar aquela decisão quando não encontrar qualquer suporte nos meios de prova produzidos no processo. A menos que a convicção formada pelo julgador contrarie os limites que o próprio art. 127.° do Código de Processo Penal estipula – as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos.

9. Da leitura da decisão recorrida resultam, de forma clara e pormenorizadamente referidos, os motivos pelos quais o Tribunal valorou os depoimentos da assistente e das testemunhas da acusação em detrimento da versão apresentada pelos recorrentes e a consonância deste resultado com as regras da experiência, inexistindo, a nosso ver, qualquer meio de prova que imponha solução diversa.

10. No que concerne a determinação da medida concreta das penas aplicadas o Tribunal a quo, contrariamente ao que é alegado, ponderou todas as circunstâncias a que alude o artigo 71°, n.º s 1 e 2 do Código Penal.

Termos em que é nosso entendimento que a sentença recorrida se mostra devidamente sustentada, justa e adequada, devendo. em consequência, o recurso interposto pelo arguido ser declarado improcedente, por infundado, mantendo-se assim uma tal decisão.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a resposta do Ministério público, pronunciando-se no sentido da correcta decisão proferida sobre a matéria de facto, da inexistência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da correcta subsunção jurídica efectuada na sentença,  e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

            Respondeu o recorrente, reafirmando a alegação, de facto e de direito, levada à motivação do recurso. 


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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto:

- A incorrecta qualificação jurídica dos factos e consequente absolvição.


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Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

            [Da acusação Pública]

1.A ofendida B... e o arguido casaram entre si no dia 27 de Setembro de 1997 e residiram juntos até ao dia 12 de Setembro de 2015 na Rua do x..., em y.... .

2. A ofendida B... e o arguido têm duas filhas em comum, c... , nascida a 03 de Junho de 1999 e D... , nascida a 26 de Março de 2004.

3. A relação da ofendida B... e do arguido sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, e agressões e, em datas não concretamente apuradas, mas desde 1999, quando a ofendida estava grávida da menor C... , no interior da residência de ambos, por diversas vezes, e na presença das suas duas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas e murros à ofendida, empurrando-lhe a cabeça contra a parede.

4. Por diversas vezes em data que não se lograram apurar, no interior da residência de ambos, o arguido, movido por ciúmes, disse à ofendida que era mentirosa, acusou-a de ter amantes, de ser infiel e em data não apurada, mas poucos dias antes de 7, acusou-a de já ter sido acompanhante de luxo.

5. Em data não concretamente apurada do ano de 2015 mas perto do Carnaval, na sequência de mais uma discussão motivada por ciúmes, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida B... e encostou-lhe uma faca ao pescoço.

            6. Em datas que não se lograram apurar, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida e à sua filha C... e disse-lhes "se eu morrer, vocês não ficam cá a rir-se".

7. No dia 11 de Setembro de 2015, em hora não concretamente apurada, na sequência de uma discussão que se gerou entre a ofendida B... e o arguido, na presença das suas filhas, o arguido, munido de uma colher de pau, dirigiu-se à ofendida tendo sido impedido pela sua filha C... de desferir uma pancada na ofendida B... .

8. Acto contínuo, o arguido empurrou a sua filha C... para o chão e desferiu-lhe vários pontapés no rabo e nas pernas, ao mesmo tempo que lhe dizia "filha da puta, és igual à tua mãe".

9. De seguida, a menor D... saltou pela janela do quarto e a ofendida B... dirigiu-se à rua para pedir ajuda.

10. Já na presença das tias das menores, E... e F... , o arguido dirigiu-se à sua filha C... e disse-lhe "se saíres de casa não voltas a ver nascer o sol".

11. Com a sua actuação, o arguido causou dores às ofendidas.

12. O arguido agiu sempre voluntária e conscientemente, bem sabendo que ao actuar da forma descrita e de modo reiterado infligia na ofendida B... agressões de natureza física e psicológica com a intenção de a ofender, humilhar e intimidar e criava simultaneamente um ambiente nocivo à estabilidade emocional da ofendida, o que conseguiu.

13. Sabia ainda o arguido que, ao praticar algumas das condutas no interior do domicílio comum e na presença das suas filhas menores, coarctava as possibilidades de defesa e/ou fuga da ofendida e lhe infligia ainda um maior sentimento de vergonha, intranquilidade e vulnerabilidade.

14. Ao proferir as frases supra referidas, sabia o arguido que tal comportamento era adequado a provocar medo, inquietação e perturbar o sentimento de segurança das ofendidas.

            15. O arguido sabia que a C... é menor, que se encontrava à sua guarda e sob a sua responsabilidade e, mesmo assim, não se inibiu de ofender o seu corpo e saúde.

16. O arguido agiu, de igual modo, com a intenção de agredir verbalmente a ofendida C... , com o objectivo de a ofender, humilhar e intimidar, o que logrou alcançar.

17. A intenção do arguido era apenas a de ofender deliberadamente a menor, aproveitando-se da idade da mesma, da sua dependência e da sua total incapacidade para resistir.

18. O arguido conhecia ainda o laço de parentesco que o ligava à menor C... .

19. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, apesar de saber que as suas condutas eram especialmente censuráveis e proibidas e punidas pela lei penal.

[Do pedido de Indemnização Cível]

20. Em consequência do descrito em 3 e 5 a ofendida sofreu dores, grande angústia, tristeza e humilhação.

21. A ofendida ficou muito abalada psicologicamente e muito envergonhada.

22. O referido em 6 e 10 deixaram a assistente apavorada, não só por temer pela sua própria vida e integridade física, mas também da das suas filhas.

23. A demandante, mesmo depois de estar separada de facto do arguido, passou a evitar sair de casa, temendo que o arguido, de forma inopinada e traiçoeira concretizasse as ameaças que lhe dirigia.

24. A assistente durante anos sentiu-se amargurada, triste e aterrorizada.

25. Chorava frequentemente, sobretudo nos dias seguintes aos factos descritos na acusação.

26. A demandante sentiu-se fragilizada, constrangida e desamparada.

27. Sentiu-se nervosa e em estado de ansiedade.

28. O arguido agrediu física e psicologicamente a sua filha menor C... com a intenção de a humilhar e intimidar o que conseguiu.

29. A demandante é pessoa educada, sensível, respeitadora e respeitada no meio social em que vive.

30. A ofendida acordava durante a noite com pesadelos que lhe traziam à memória a violência física e psíquica sofrida, bem como, as ameaças que o arguido lhe infligia e que a atormentavam, não a deixando descansar.

31. Ainda hoje tem pesadelos com os maus-tratos que o demandado lhe infligiu durante anos, sobretudo porque grande parte deles foram praticados na presença das filhas menores de ambos.

[Antecedentes criminais]

32. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais

a) Sentença transitada em julgado em 03-10-2010, no proc.131/09.1GCMBR na Secção Única do Tribunal Judicial de Moimenta da Beira, na pena de 360 dias de multa, à taxa diária de 8,00 euros, num total de 2.880,00 €, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de 1 crime de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143º nº 1 do C.P. e 1 crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 86º nº 1 c) ex vi do 3º nº 6 c) da L. 5/2006 de 23/12, praticado em 30-12-2009, extinta em 14-01-2014.

33. Condições económicas, sociais e pessoais

a) O arguido é o sexto elemento de um grupo de sete irmãos, filhos de progenitores de condição social humilde e que lhe transmitiram regras adequadas de vivência.

b) O pai do arguido trabalhava na construção civil, sendo o único elemento do agregado que apresentava rendimentos até à altura em que os filhos mais velhos iniciaram uma actividade laboral, contribuindo para as despesas domésticas e para a melhoria da situação económica familiar.

c) O arguido A... frequentou o ensino até ao 4º ano de escolaridade, abandonando a escola com 12 anos.

d) O percurso a este nível foi fracamente investido, atenta a ausência dos pais na Suíça, ficando a supervisão ao cuidado de uma irmã já casada.

e) Juntou-se aos pais com 13 anos de idade, que de seguida o colocaram numa propriedade agrícola a fim de realizar trabalhos agrícolas sazonais, local onde também pernoitava.

f) Não obstante, ter sido bem acolhido, a experiência não foi muito positiva por não estar exactamente no local onde os pais se encontravam e por não falar a língua francesa.

g) Na Suíça, A... desenvolveu sempre a sua actividade laboral na agricultura até que, com 19 anos e pouco tempo antes de regressar ao país, teve alguma experiência na área da construção civil.

h) Após o cumprimento do serviço militar obrigatório, o arguido fixou-se no (...) , concelho de y... , estabelecendo-se por conta própria no mesmo sector de actividade.

i) Entretanto, contraiu matrimónio com a ofendida B... , tendo o casal duas filhas, actualmente, com 17 e 12 anos de idade, ambas estudantes.

j) O agregado familiar organizava-se em torno da actividade de estucador desenvolvida pelo arguido e nos últimos três anos, pela actividade exercida pela esposa, como auxiliar num lar de idosos da freguesia.

k) O arguido veio no entanto a confrontar-se com dificuldades em cumprir os compromissos decorrentes da sua ocupação laboral, sendo que a situação da empresa veio a agravar-se, obrigando o arguido a despedir os seus funcionários e a confrontar-se com dívidas que não conseguia solver.

l) Acresce que desenvolveu também vários problemas de saúde que já vinham do passado, nomeadamente uma depressão e diabetes que mais lhe condicionou o exercício da actividade laboral.

m) O arguido A... está a ser seguido há cerca de 10 anos, no departamento de psiquiatria do Hospital ... (Viseu), tendo no passado mês de Setembro, encetado uma tentativa de suicídio o que determinou um processo de internamento para desintoxicação durante um mês.

n) Após a alta médica e separado da mulher, o arguido fixou-se na casa da irmã, E... , no Largo (...) , na aldeia do (...) , situação que mantém.

o) O agregado integra a irmã, doméstica, o cunhado, empregado de hotelaria e a sobrinha, estudante.

p) Tem sido a irmã a apoiá-lo diariamente, assegurando-lhe a toma da medicação de forma regrada, aguardando-se a retoma das consultas de psiquiatria em Viseu.

q) O arguido exibe um sentimento de amargura, denotando dificuldades em gerir o quotidiano, ancorado numa frágil estrutura emocional.

r) O apoio da irmã é primordial, existindo vontade da parte desta, em continuar a acompanhá-lo.

s) O arguido está desempregado, assegurando a manutenção com o respectivo subsídio, no valor de 200,00 €.

t) A sua rede de convivência desenvolve-se em torno do agregado da irmã, mostrando-se muito triste perante a ausência há alguns meses, de contactos com as filhas, residentes com a mãe num outro ponto da aldeia.

u) Na comunidade residencial é conhecida a situação de divergência do arguido com a sua mulher, não registando na actualidade, com os restantes residentes problemas de relacionamento.

            (…).

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

[Da Acusação Pública]

A Que no referido em 3 o arguido tenha desferido pontapés à ofendida.

B. Que no sucedido em 5 o arguido disse-lhe (à ofendida) que a matava.

[Do Pedido de Indemnizarão Cível]

C. Que as dores referidas em 11 tenham sido intensas.

D. Que, em 23, o arguido muitas vezes a seguia na rua.

E. Que a ofendida nunca tenha sido alvo de qualquer humilhação, por parte de quem quer que fosse.

(…)”.

C) E a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise critica e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, conjugadas com a prova testemunhal produzida, bem como, documental – Certidões dos Assentos de Casamento c Nascimento de fls. 107 a 109 (pontos 1 e 2).

O arguido não prestou declarações.

Nestes termos, a essencialidade da produção probatória residiu na prova testemunhal produzida, com destaque para o depoimento da testemunha B... , esposa do arguido e ofendida nos autos, a qual relatou que, entre 27-09-1997 e Setembro de 2015 viveu com o arguido, num, convivência que descreveu como tendo sido pautada pela imposição permanente, pelo arguido, da sua vontade sobre a esposa e família, num cenário de ciúmes obsessivos e exasperação com comportamentos triviais da ofendida – contactos com terceiros (amigos ou conhecidos), sempre interpretados como infidelidade e nunca acreditando na ofendida – e humilhação desta, agravada ultimamente pelo seu trabalho como auxiliar num lar de idosos, que implicou que este a acusasse de ser "acompanhante de luxo" (por acompanhar um utente num evento, a pedido do lar) e a obrigasse a tomar banho sempre antes de qualquer acto sexual, dizendo-lhe ter nojo dela por tratar de idosos.

Este último ponto foi ainda corroborado pelo depoimento da filha menor C... , igualmente ofendida nos autos e a qual descreveu que o arguido dizia à ofendida B... que esta só sabia "limpar a merda dos idosos".

Este último ponto foi particularmente referido pela ofendida, notando a humilhação em que para a mesma tal se traduziu e tendo em conta que o emprego era o único modo de sustento da família, pois o arguido não trabalhava.

Mais disse que, quase desde o princípio do casamento houve problemas, devidos ao ciúme excessivo do arguido, acusando-a de ter amantes e não permitindo que o contrariassem, ainda que em coisas mínimas, apenas estando bem quando a família lhe fizesse as vontades: "se fosse tudo à maneira dele, era posta num altar" e em público, onde ocultava o que sucedia.

Relatou que, quando tal não acontecia – sendo o arguido contrariado ou vendo-a a falar com terceiros – partia tudo em casa, agredia-a e chamava-lhe nomes, puxando-lhe os cabelos, dava-lhe murros, batendo com a cabeça na parede, o que sucedeu desde, pelo menos, 1999, aquando da gravidez da sua filha C... . Mais referiu que, noutras vezes, o arguido apontou-lhe uma faca ao pescoço e antes deu-lhe uma "lambada" que a fez sangrar do nariz, em data que situou perto do Carnaval de 2015, tendo-lhe ainda dito "nenhum filho da puta se ria dele", por desconfiar que andava com o padeiro.

Negou, porém, que este lhe tenha dado pontapés ou que lhe tenha dito que a matava, no episódio da faca supra referido – pontos A e B.

Mais referiu que este lhe teria batido, igualmente, com um fio de electricidade nas costas, na frente da filha menor D... . Relatou que o arguido dizia, à frente das filhas, que ela era uma "puta" e "não servia para nada", tendo igualmente referido que este, por várias vezes, teria dito "se eu morrer, vocês não ficam cá a rir-se".

Relatou ainda ter medo de falar com qualquer homem ou de ser espontânea a conversar. Disse ainda que, num fim-de-semana que situou poucos dias antes de 11-09-2015, teria ido acompanhar um senhor idoso, a pedido do lar, tendo estado a trabalhar até tarde e teve que ir até às urgências por causa de dores nas costas, pois tem "bicos de papagaio", tendo então ido dormir noutra cama por causa do colchão, tendo o arguido acusado esta de se recusar a dormir com ele.

Mais referiu que, doutra vez, se recusou a ter relações sexuais com o arguido e este bateu-lhe na cabeça e fez sangue.

No episódio referido em 7 referiu que chegou a casa e não quis dormir com o marido, tendo-se depois iniciado uma discussão na cozinha por causa de ele pedir um cartão de crédito, que a ofendida negou por ter medo de ele gastar tudo no jogo, tendo em conta que este sofreria de tal vício.

Mais disse que, então, o arguido pegou numa colher de pau e tentou agredi-la, tendo a filha C... tentado impedir a agressão, dizendo que ia ligar à polícia, tendo o arguido empurrado esta para o chão. Relatou que, então, fugiu pela porta da cozinha e foi para o carro ter a casa das duas cunhadas E... e F... – que distam alguns metros da sua – mas não as viu, tendo depois visto a sua filha D... a correr para ela vinda de casa, dizendo-lhe que tinha saltado da janela e que esta devia ir para casa por causa da C... – "vai buscar que ele mata a C... ":

Então foi para casa do primo K... com a D... e este impediu-a de ir para sua casa e foi lá ele buscar a C... .

Mais disse que acha que as cunhadas se aperceberam da sua presença mas não atenderam, tendo estas depois ido a casa dela e tirado a C... , sendo que aqui, já não soube precisar bem, pois não assistiu.

Relatou ainda não ter ouvido a expressão referida em 10.

Descreveu ainda sentir-se angustiada, com vergonha e com medo, limitando todas as suas rotinas diárias pela proximidade do arguido e que este já batera na filha C... há 1 ou 2 anos.

A menor c... , filha da ofendida e do arguido, ela própria ofendida nos autos, 16 anos de idade à data do referido em 7, relatou que, desde que se lembra que sempre houve discussões e que o pai sempre teve muitos ciúmes da mãe, sendo que, em tais discussões este partia tudo – referiu um micro-ondas – tendo a família que lhe fazer todas as vontades.

Várias vezes dizia que se morresse "vocês não ficavam cá a rir-se", recusando-se sempre a ir com a família a qualquer sítio e chamando a sua mãe de "puta", "acompanhante de luxo", "incompetente" e que só sabia "limpar a merda aos idosos", nos termos que já referimos supra.

Relatou ainda outros episódios sucedidos com o seu pai, o arguido, como numa vez – que situa na data em que tinham ido a um Congresso do PSD – quando lhe espremia uma borbulha nas costas ela disse-lhe que ele a estava a magoar, tendo este reagido mal e agarrando-a no pescoço e deitando-a ao chão. Numa outra vez a sua tia R...veio a Portugal e esta estava no quarto a fazer os trabalhos de casa e ele deu-lhe um pontapé na porta do quarto e agarrou-a pelos cabelos, para ir cumprimentá-lo.

No tocante ao episódio referido em 7 descreveu-o em termos similares ao da ofendida B..., precisando apenas que, na data em causa, disse ao arguido que ele não ia mais agredir a mãe e foi ao telefone, tendo o arguido dito "tu é que escolhes", referindo-se a levar com a colher de pau ou dar os cartões (para a mãe). Na sequência e quando o arguido a viu ir para o telefone empurrou-a, tendo esta ido bater numa arca de madeira e deu-lhe pontapés e chamou-a de "filha da puta és igual à tua mãe". Depois foi ao quarto chamar a irmã e veio o Sr. M... , após chegaram as tias E... e F... e já lá fora o arguido disse-lhe que se saísse de lá não voltava a ver nascer o sol. Relatou que, após o sucedido, ficou em choque, tendo tido dores e medo do arguido.

Ambos os depoimentos se revestiram de um tom emocional e demonstrando dificuldade/retracção na exposição da sua vida privada com o arguido, sendo patente a vergonha sentida, caracterizando-se, porém, ambos os depoimento por sinceridade e espontaneidade e sem contradições de maior, pese embora, o normal recordar do sucedido se caracterizasse, por vezes, nalguma dificuldade de exposição e confusão que, porém, de modo algum consideramos indiciador de pouca credibilidade.

Os referidos depoimentos revestiram-se ainda de essencialidade para traçar o cenário da vida em comum do agregado familiar do arguido e ofendidas, bem como, os pontos 3 a 11 da acusação pública.

Os mesmos foram ainda confirmados pelo depoimento da testemunha M... , Presidente da Junta da Freguesia e I...., primo da ofendida, os quais confirmaram ter ido ao local, na sequência do pedido da ofendida B... por causa da C... estar em casa com o arguido.

Dos depoimentos conjugados das testemunhas G... e H... , amigas da ofendida, foi possível julgar provados alguns elementos da personalidade da ofendida e percepção desta no meio social e ainda que a mesma chorava muitas vezes e que, na sequência do episódio referido em 7, tenha ficado com receio do arguido por viverem na mesma terra, sendo que andava muito assustada e tinha pesadelos e medo de sair de casa – pontos 20 a 31.

Os depoimentos das testemunhas J... e L... , relevaram, sobretudo, para apuramento da integração social do arguido o qual descreveram como responsável, convivendo com toda a gente, correcto e respeitador – ponto 33 – em conjugação e confirmação com o relatório social de fls. 539/540.

Diferentemente, o depoimento da testemunha E... , irmã do arguido, não possuiu consistência suficiente para abalar a credibilidade da versão dos factos relatada pelas ofendidas. Este depoimento, norteado por alguma retracção advinda da relação familiar do arguido, mostrou-se sempre inseguro, nomeadamente, quando questionada acerca de saber da existência de episódios de discussões e agressões entre o casal ou se teria sido chamada a casa devido a algum episódio anterior ao referido em 7, que negou sempre em termos pouco credíveis.

Quanto a este episódio referido em 7, o seu depoimento foi sempre pautado por algumas hesitações e permanentes contradições no relato do mesmo. Sem prejuízo, foi consistente quando referiu que o arguido lhe ter dito para não levar a C... , que o lugar dela era em casa.

Mais relatou que, o arguido se tornou diabético após uma pneumonia, tendo a doença desencadeado uma depressão no mesmo, tornando-o irritadiço.

No que diz respeito aos elementos psicológicos e volitivos, imputáveis ao arguido, aquando da prática dos factos, os mesmos foram fixados atentos os meios probatório supra referidos, sendo que, de acordo com critérios de lógica e experiência comum, outro não podia ser o conhecimento e intenção do arguido, do que o que ficou fixado supra – atingir o bem-estar psicológico das ofendidas, fragilizando-as e gerando um ambiente de intimidação e medo, que logrou alcançar, bem como, agredir, corporal e verbalmente as ofendida, com a intenção de as ofender, humilhar e intimidar, realizando-o dentro da residência, na presença das filhas menores, de modo a coarctar as possibilidades de defesa ou fuga das ofendidas, ampliando o seu sentimento de vergonha, intranquilidade e vulnerabilidade, actuando de modo livre e consciente, com conhecimento da menoridade da ofendida C... e da sua condição de debilidade/vulnerabilidade – pontos 12 a 19.

Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal fundou-se no respectivo certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 420/421 – ponto 32.

Os pontos 1 e 2 foram dados como provados com recurso aos assentos de nascimento e casamento de fls. 107 a 109.

O ponto 31 relativo as condições pessoais do arguido, resultou do teor do relatório social de fls. 539/540 e do depoimento das testemunhas E... e J... e L... – 33.

No tocante aos pontos A e B, os mesmos resultaram não provados dada a ausência de prova em tal sentido.

Como nota final diremos apenas que, no caso em concreto, por despacho de 11-05-2016 fls.545 a 547 – procedemos à comunicação à Defesa de alterações não substanciais e de qualificação jurídica, nos termos constantes do mesmo para o qual remetemos.

O referido despacho comportava dois blocos de alteração – os relativos a elementos do tipo objectivo, traduzidos em aditamentos/alterações específicos no modo de execução – murros, empurrar a cabeça contra a parede (ponto 3) – ou concretização das datas – cfr. pontos 3 a 5 – e um segundo bloco relativo aos elementos subjectivos do tipo legal de ambos os crimes relativos às duas ofendidas, os quais foram condensados em únicos pontos comuns – cfr. despacho de fls.546.

Face a tal comunicação, operada no âmbito do art.º 3580 nº 1 e 3 do C.P.P., o arguido interpôs recurso da referida comunicação – fls.563 a 570 - arguindo a nulidade da decisão de comunicação, referindo que as alterações eram de cariz substancial, não podendo o julgamento prosseguir.

Por segundo requerimento de fls. 595 o arguido veio alegar que não recorreu da decisão de comunicação, nem deduziu oposição à comunicação operada, mas recorreu da decisão objecto do despacho de alteração não substancial e de qualificação jurídica.

Em conformidade, tal recurso foi indeferido, por despacho de fls. 596, com fundamento na irrecorribilidade da decisão de comunicação, podendo o arguido, distintamente, opor-se à sua alteração por considerar a mesma substancial – art.º 359º nº 3 do C.P.P. – ou requerer nova a produção probatória – cfr. despacho exarado em acta de 07-06-2016 – fls. 596 a 599 – sem prejuízo do recurso em sede final.

O arguido nada mais requereu.

Neste exposto, foram agora dados como definitivamente provados os pontos constantes da alteração não substancial – pontos 3 a 5 – respeitante aos elementos objectivos do tipo de violência doméstica agravado na pessoa da ofendida B... .

Distintamente, quanto às alterações aos elementos subjectivos e numa melhor ponderação, tendo em conta que, as mesmas se traduziam apenas numa concentração em poucos pontos dos elementos subjectivos comuns respeitantes aos tipos legais dos crimes de ambas as ofendidas, atenta a pouca relevância da alteração entendemos ser de manter a redacção original.

(…)”.


*

Da existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

1. Alega o recorrente – conclusões 5 a 9 – que a matéria de facto levada aos pontos 3, 4, 1ª parte e 6 dos factos provados, por ser genérica, abstracta, especulativa e conclusiva, é insusceptível de suportar uma condenação penal, sendo, por isso, insuficiente para a decisão proferida a que se segue a indicação, sem mais, do art. 410º do C. Processo Penal. No corpo da motivação o recorrente não acrescentou qualquer argumento novo, apenas invocou a violação do art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa por inobservância do contraditório, do direito de defesa e do princípio do acusatório.

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

1.1. O objecto do processo é, tendencialmente, o objecto da acusação, balizando este, os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.

A Constituição da República Portuguesa consagra a estrutura acusatória do processo penal (art. 32º, nº 5) vindo o princípio da acusação a concretizar-se, a nível infraconstitucional, pela atribuição ao Ministério Público da competência para investigar e, quando disso seja caso, deduzir a acusação.

A acusação traduz uma imputação de factos – facto histórico – ao agente, fundada num juízo indiciário. Por isso, o art. 283º, nº 2, a) do C. Processo Penal dispõe que ela deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

O crime de violência doméstica, por cuja prática foi o recorrente condenado, vem apresentando na prática dos tribunais, algumas dificuldades de preenchimento, decorrentes, em parte, do desenho legal que lhe é conferido pelo art. 152º do C. Penal.

O crime em questão tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512 e Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305). Por isso, a acção típica, prevista no nº 1 do artigo citado – a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos –, requer que a conduta seja realmente maltratante isto é, que através dos maus tratos o agente degrade a dignidade da vítima enquanto ser humano.

A lei prevê uma conduta maltratante resultante de uma prática de actos reiterados, que podem traduzir-se, v.g., em ofensas à integridade física, em ofensas à integridade psíquica, em ofensas à liberdade e em ofensas sexuais, que afectem a dignidade da pessoa humana, em concreto, a dignidade da vítima, mas admite que uma única acção, porque atingiu uma intensidade tal, possa, em si mesma, isoladamente – portanto, sem que haja conduta reiterada – afectar aquela dignidade e, em consequência, preencher o tipo (cfr. Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 519 e Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 308).

Embora a reiteração não seja, como acabamos de ver, elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo, ela é, no entanto, pressuposta pela lei, como conduta ‘norma’. Daí que a violência doméstica seja qualificada como crime habitual isto é, como um crime cuja acção é praticada de forma reiterada.

Como tal, todas as condutas parcelares que compõem o todo ‘violência doméstica’ devem constar da acusação, devidamente individualizadas e concretizadas. Porém, neste aspecto, o C. Processo Penal não faz exigências desrazoáveis, antes revela alguma flexibilidade, ao exigir que a narração do factos contenha, quando possível e portanto, quando conhecidos – o que significa que não é uma exigência absoluta –, o ubi, o cur e o quando do crime imputado.

Estamos de acordo em que uma imputação genérica ou seja, a narração de um conjunto fáctico a que falta, em absoluto, a concretização no tempo, no espaço, na motivação e no grau de participação do agente, não pode suportar uma condenação sob pena da postergação do direito de defesa, na medida em que não é susceptível de ser contraditada.

Mas tendo presente que o conceito de reiteração deve conduzir a um estado de agressão permanente [o que não significa que as agressões tenham que ser constantes] que permita concluir pela existência de uma relação de domínio do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar, deixando esta aniquilada e sem defesa e portanto, numa situação humanamente degradante, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado se, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação (cfr. Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 306 e 307).

Dito isto.

1.2. A acusação imputava ao recorrente, nos seus arts. 3º, 4º e 6º:

- [3º] A relação da ofendida B... e do arguido sempre foi pautada por discussões, motivados por ciúmes, e agressões e, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência de ambos, por diversas vezes, e na presença das suas duas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas e pontapés à ofendida;

- [4º] Por diversas vezes, em datas que não se lograram apurar, no interior da residência de ambos, o arguido, movido por ciúmes, disse à ofendida que era mentirosa, acusou-a de ter amantes, de ser infiel e até de já ter sido acompanhante de luxo;

- [6º] Em datas que não se lograram apurar, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida e à sua filha C... e disse-lhes, «Se eu morrer, vocês não ficam cá a rir-se».      

Os pontos 3, 4 e 6 dos factos provados da sentença em crise – correspondentes aos artigos da acusação, supra, identificados – têm o seguinte teor:

- [3] A relação da ofendida B... e do arguido sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, e agressões e, em datas não concretamente apuradas, mas desde 1999, quando a ofendida estava grávida da menor C... , no interior da residência de ambos, por diversas vezes, e na presença das suas duas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas e murros à ofendida, empurrando-lhe a cabeça contra a parede;

- [4] Por diversas vezes em data que não se lograram apurar, no interior da residência de ambos, o arguido, movido por ciúmes, disse à ofendida que era mentirosa, acusou-a de ter amantes, de ser infiel e em data não apurada, mas poucos dias antes de 7, acusou-a de já ter sido acompanhante de luxo;

            - [6] Em datas que não se lograram apurar, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida e à sua filha C... e disse-lhes "se eu morrer, vocês não ficam cá a rir-se".

            Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, e ressalvado sempre o devido respeito, as condutas que, primeiro, lhe foram imputadas e, depois, foram consideradas provadas, estão suficientemente concretizadas. Com efeito, com maior ou menor apuro linguístico, nos identificados pontos de facto, ao recorrente não são atribuídas condutas abstractas, mas especificas agressões físicas à assistente – a murro, ao empurrão e à bofetada – e específicas palavras, objectivamente atentatórias da sua honra de mulher casada. É certo que nem o número de agressões físicas, nem o número de ataques à honra estão quantificados, e uns e outros estão apenas balizados no tempo – excepção feita à afirmação de ter sido a assistente «acompanhante de luxo», que foi fixada como tendo ocorrido poucos dias antes de 11 de Setembro de 2015 – mas, como supra se deixou dito, este balizamento assegura o direito de defesa.

            Por outro lado, agora no que respeita à pelo recorrente apontada omissão das consequências das agressões físicas que lhe são imputadas nos indicados pontos de facto, impedindo a avaliação da sai intensidade e, consequentemente, a medida da violação do bem jurídico, como já deixámos dito, a invocada intensidade releva para efeitos de preenchimento do tipo apenas com uma única conduta maltratante, questão que não se coloca nos autos, onde, manifestamente, é imputada ao recorrente uma prática reiterada de condutas.

            Em conclusão, os pontos 3, 4 e 6 dos factos provados da sentença contém matéria de facto suficientemente concretizada, de modo a, conjugadamente com, os demais pontos de facto provados, designadamente, a matéria dos pontos 5 e 7 dos factos provados  – que o recorrente, quanto a este aspecto, não questiona – suportarem, em tese, uma condenação.

2. Para terminar esta questão, uma nota apenas, relativa à afirmação de que a matéria dos pontos 3, 4 e 6 dos factos provados, por ser genérica, abstracta, especulativa e conclusiva, é insuficiente para a decisão proferida, uma vez que a subsequente referência, sem mais explicação, do art. 410º do C. Processo Penal, pode apontar para a invocação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) do nº 2 do citado artigo).

Brevitatis causa, diremos que, tendo o recorrente alegado a existência de uma imputação genérica de factos e, por esta via, questiona a qualificação jurídica, defendendo o não preenchimento do tipo, não estamos, seguramente, perante a invocação de um vício da decisão, mas antes, perante a alegação de um erro de direito, de um erro de interpretação e aplicação da lei (cfr. Ac. do STJ de 5 de Dezembro 2007, processo nº 07P3406, in www.dgsi.pt).


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Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

3. Alega o recorrente – conclusões 10 a 24 – que foram incorrectamente julgados os pontos 3 a 11 dos factos provados, tendo quanto a eles ocorrido erro de julgamento na medida em que a prova produzida foi insuficiente para, como tal, os considerar, indicando, em abono da sua tese, as declarações da assistente e o depoimento da ofendida C... , que considera vagos e contraditórios entre si. No corpo da motivação o recorrente transcreveu segmentos das declarações da assistente e do depoimento da ofendida, que considerou relevantes para suportarem a sua argumentação.

Mostrando-se cumprido o ónus de impugnação previsto no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, nada obsta ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente, com o objecto e limites que por si lhe foram fixados, supra enunciados. 

Vejamos então se, atentos os argumentos do recorrente, deve ou não a decisão proferida sobre a matéria de facto ser modificada nos termos por si propugnados.

3.1. O ponto 3 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- A relação da ofendida B... e do arguido sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, e agressões e, em datas não concretamente apuradas, mas desde 1999, quando a ofendida estava grávida da menor C... , no interior da residência de ambos, por diversas vezes, e na presença das suas duas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas e murros à ofendida, empurrando-lhe a cabeça contra a parede.

Quanto a este ponto de facto o recorrente, depois de referir que a convicção do tribunal a quo se fundou, essencialmente, nas declarações da assistente, demonstra, pelos segmentos transcritos, que a assistente afirmou lembrar-se de ter sido agredida na cozinha quando se encontrava grávida da filha mais velha portanto, há mais de dezassete anos, afirmou lembrar-se de pelo Carnaval de 2005 ter sido esbofeteada e ter tido uma faca encostada ao pescoço, ter sido batida com a cabeça contra a parede e terem-lhe sido puxados os cabelos e que uma das agressões ocorreu na presença da filha mais nova, e que a ofendida disse ter assistido a duas ou três agressões, sendo uma a do fio, sem maior concretização. Da leitura da motivação de facto da sentença resulta que a convicção do tribunal recorrido, quanto a este ponto, se fundou efectivamente, nas declarações da assistente e no depoimento da ofendida C... .   

Deste modo, a dissensão entre o recorrente e o tribunal a quo resulta da diferente valoração probatória feita sobre os mesmos meios de prova, pretendendo aquele substituir a sua própria convicção à convicção da Mma. Juíza.

Acontece que na operação de valoração da prova, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal. Dele resulta que a apreciação da prova é tarefa da esfera exclusiva do juiz mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de a poder valorar movido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional. A valoração da prova impõe ao juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos depoentes, tendo, em qualquer caso, como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo. A convicção do tribunal será o resultado da conjugação dos dados objectivos contidos em documentos e outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, a coerência do seu raciocínio, entre outros. Esta conjugação só pode ser obtida, pelo menos, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova, pois só o contacto directo entre esta e o julgador o coloca nas condições ideais para proceder, primeiro, à avaliação individual e depois, à avaliação global, da prova.

Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, na fase do recurso não pode ignorar-se a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada pela 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal ad quem, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, que eventualmente considere relevantes, o que determina a impossibilidade de apreender parte substancial dos elementos atrás enunciados, por serem insusceptíveis de registo audio, elementos que, contudo, foram, ou podiam ter sido, apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou, pelo juiz do julgamento.

Por esta razão, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deve censurar, se for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. E tanto é assim que o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exige a especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, ficando claro que para o legislador, a modificabilidade da decisão de facto não se basta com a indicação de provas que apenas permitam uma decisão diversa da recorrida, pois só é admissível quando as provas especificadas pelo recorrente excluem a decisão de facto proferida, impondo uma outra. Por isso que «o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados» (Ac. do STJ de 19 de Maio de 2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1, in www.dgsi.pt).

Dito isto.

A Relação ouviu o registo gravado das declarações prestadas pela assistente na audiência de julgamento, dele resultando ter esta afirmado, em síntese e na parte relevante, que:

[Instâncias da Mma. Juíza]

- Nos anos de casamento, se fizesse como o arguido queria, tudo corria bem, se o contrariava, ficava revoltado e desconfiado e julgava-a como se o traísse, acusando-a de ter amantes, partindo tudo em casa, dizendo que não prestava para nada, agredindo-a, puxando os cabelos e batendo-lhe com a cabeça na parede, tendo-lhe uma vez, por desconfiança de um padeiro, dado uma bofetada e encostado uma faca ao pescoço e de outra vez, tendo-lhe dado com um fio eléctrico nas costas, esta, à frente da filha mais nova; as coisas pioraram quando começou a trabalhar, em Agosto de há cinco anos, e uma vez à noite, atirou-lhe com uma panela com água, quando estava na cama, dizendo que tinha nojo de ter relacionamento sexual com ela porque trabalhava num lar de idosos, tendo que tomar banho quando chegava a casa, à noite, para haver trato sexual, mas nunca a agrediu com pontapés; no fim de semana que antecedeu o dia 11 de Setembro de 2015 perguntaram-lhe no lar onde trabalhava se podia acompanhar um idoso a um casamento e como precisavam de dinheiro aceitou a tarefa e por isso, o arguido acusou-a de ser acompanhante de luxo; numa ocasião, iam de carro com as filhas e o arguido disse-lhes que a mãe era uma puta, uma mentirosa e que só servia para varrer o chão, outras vezes, quando se aborrecia, o arguido dizia-lhes que ninguém cá ficava a gozar o que ele tinha ganho porque havia de gastar tudo, como efectivamente, tem feito; no fim de semana em que acompanhou o idoso ao casamento ainda fez noite no lar e ficou com dor de costas pois padece de bicos de papagaio, tendo até ido à urgência e por isso, e para não incomodar de noite o arguido, foi dormir para outro quarto e ele começou a dizer que ela já não queria saber dele, na segunda-feira imediata ele pediu-lhe o cartão e foi para o casino da Figueira da Foz jogar, pois tem o vício do jogo, deu conta do que ele tinha feito e contou à filha mais velha, esta chamou-o à atenção e ele pôs-se a rir; no dia 11 de Setembro de 2015, deitaram-se, o arguido levantou-se e a declarante fez o mesmo e foi atrás dele para ele não sair e ir fazer mais disparates, na cozinha ele pediu-lhe dinheiro e o cartão, a declarante negou-lhos, ele foi buscar uma colher de pau, a filha mais velha disse que ele não batia mais na mãe que ia chamar a polícia e levantou-se para ir para o telefone, o arguido empurrou-a para o chão e bateu-lhe, enquanto a declarante saiu de casa e foi de carro pedir ajuda às cunhadas, levando a filha mais nova que lhe disse ter saído de casa pela janela do quarto da irmã; tem medo do que o arguido possa fazer, ele quer é que a declarante trabalhe nas obras ao lado dele para não poder ter vida própria, tendo andado vinte anos a fechar os olhos;

[Instâncias da Digna Procuradora Adjunta]

- Havia períodos em que as coisas corriam bem se não o contrariasse, mas se algum amigo dizia alguma coisa ou olhava para ela, logo desconfiava e a interpelava, mas tudo acontecia dentro de casa pois cá fora, tudo ia lindamente para manter a aparência; o episódio que referiu sobre o padeiro, a bofetada e a faca encostada ao pescoço ocorreu pelo Carnaval de 2015, tendo sangrado pelo nariz; recorda um episódio em que, estando grávida da filha mais velha, o arguido a agrediu na cozinha da casa por causa de uma carta da irmã e recorda um outro episódio, ainda antes deste, quando trabalhava nos caminhos, com outras mulheres, tendo-lhe o arguido batido mas não recordando já o motivo;   

[Instâncias da Ilustre Advogada da assistente]

- Na noite de 11 de Setembro de 2015 o arguido levantou-se da cama porque a declarante não estava com disposição e ele entendia que tinha que ser, ele foi para a cozinha e pediu-lhe dinheiro e o cartão e negou-lhe ambos, viu o arguido a atirar a filha mais velha ao chão e nada mais viu porque saiu para pedir ajuda; tem medo se se cruzar com o arguido que leva uma vida normal, não contava o que acontecia por vergonha, por não ter trabalho, por não ter para onde ir pois já não tinha pais e tinha que cuidar das filhas; havia alturas em que o arguido partia tudo e de uma outra vez, porque não quis ter relações sexuais com ele, bateu-lhe na cabeça e atirou-a da cama abaixo;  

[Instâncias do Ilustre Advogado do arguido]

- Na noite de 11 de Setembro de 2015 o arguido levantou-se da cama, foi para a cozinha, saiu, pôs o carro a trabalhar, voltou a entrar na cozinha e pediu-lhe o cartão; a filha mais velha impediu o arguido de lhe bater com a colher de pau porque se levantou e lhe disse que ia chamar a polícia, tendo sido empurrada por ele quando se dirigia para o telefone; ficou com marcas nas costas quando o arguido lhe bateu com o fio eléctrico; a filha mais velha disse-lhe que o arguido lhe tinha dito a ela que se saísse de casa não voltava a ver o Sol.

A Relação ouviu também o registo gravado do depoimento da ofendida C... prestado na audiência de julgamento, dele resultando ter esta afirmado, em síntese e na arte relevante, que:

[Instâncias da Digna Procuradora Adjunta]

- Desde que tem memória que em casa havia discussões, ciúmes e agressões do pai para com a mãe, lembra-se de o pai chegar a casa tarde e embriagado e partir coisas na cozinha, às vezes via-o bater na mãe e uma vez empurrou a depoente para umas escadas para não se meter; se lhe fizessem as vontades as coisas corriam bem, quando a comida não lhe agradava atirava-a contra a parede e saía de casa dizendo para a mãe e as filhas que se morresse, não ficavam cá a rir-se, depois, deixou de beber tanto; o pai chamava a mãe de puta e por último, porque ela acompanhou um idoso ao casamento do neto, chamou-a de acompanhante de luxo; não assistiu a muitas agressões físicas, viu bofetadas e empurrões mas as ofensas eram mais verbais, o que acontecia vários dias por semana, quando a mãe chegava a casa, vinda do trabalho; no Verão de há dois anos atrás, o pai estava a espremer-lhe uma borbulha nas costas, como a estava a magoar, queixou-se e disse-lhe para parar e ele apertou-lhe o pescoço e empurrou-a para o chão, outra vez, durante o período das aulas, há três anos atrás, estava a estudar quando chegou uma tia, cumprimentou-a e foi estudar para o quarto, o pai insistiu para que ela fosse para a sala e depois, obrigou-a a ir, pelos cabelos; na noite de 11 de Setembro de 2015 estava na cozinha a ver televisão e a falar ao telemóvel, o pai apareceu na cozinha, saiu e pôs o carro a trabalhar, apareceu a mãe a chorar e a depoente disse-lhe para se sentar ao seu lado, o pai entrou na cozinha e pediu à mãe os cartões de crédito, ela negou, ele foi à bancada buscar uma colher de pau e disse à mãe que ela é que escolhia, ou os cartões ou levar, a depoente levantou-se e disse ao pai que já chegava e que o ia denunciar e dirigiu-se para o telefone, o pai empurrou-a para o chão e começou a dar-lhe pontapés no rabo e nas pernas e disse-lhe que era uma puta igual à mãe, a mãe saiu da cozinha e foi, de carro, pedir ajuda, o pai saiu da cozinha ao ouvir o carro, a depoente foi para o quarto e chamou a irmã pelo telemóvel mas ela não estava, entretanto ouviu passos e chegou o Sr. M... que lhe perguntou pelo pai, disse-lhe que não sabia dele e continuou à procura da irmã, depois chegaram as duas tias e a prima, depois, as tias e a prima tiraram-na de casa e quando passavam pelo pai este disse à depoente que se saísse não voltava a ver o Sol; supõe que a irmã se encontrava a dormir, mas a dada altura acordou pois, pelo que veio a saber, ela saltou pela janela e foi com a mãe no carro; não tinha medo do pai mas tentava fazer o que ele queria para que a mãe não pagasse, se lhe fizessem as vontades ele era carinhoso e as coisas corriam bem; a irmã contou-lhe que a mãe tinha pedido ajuda ao pai na cozinha, ele não ajudou, ela chamou-lhe à atenção e o pai bateu-lhe com um fio eléctrico nas costas e a depoente ainda viu as costas da mãe marcadas;

[Instâncias do Ilustre Advogado do arguido]

- na noite de 11 de Setembro de 2015 não se colocou entre o pai e a mãe, não se meteu no meio dos dois, apenas disse que já chegava de agressões e dirigiu-se para o telefone mas não chegou a agarrá-lo porque foi empurrada para o chão, nesta ocasião a irmã estava no quarto e por isso aí a foi procurar; ao ser empurrada pelo pai bateu com as costas numa arca de madeira e por isso eram as costas que lhe doíam, a tia F... viu-lhe as costas e disse que estavam vermelhas, no dia seguinte viu que também tinha vermelhidão nas pernas mas não tinha ferimentos; o pai dizia que a mãe era acompanhante de luxo por causa de ter acompanhado o idoso ao casamento, quando o pai saia de casa sem dar explicações é que lhes dizia que «Se eu morrer, não ficais cá a rir!» o que aconteceu várias vezes e ainda recentemente, há cerca de meio ano; assistiu a poucos episódios de agressões mas ouvia a mãe no quarto a gritar, viu bofetadas encontrões do pai à mãe e a irmã contou-lhe o episódio da agressão com o fio eléctrico nas costas que aconteceu pelo Natal de há dois anos, estava então a passar férias na casa da tia, na Covilhã e nada viu, para além das costas da mãe, marcadas, quando regressou;

[Instâncias da Mma. Juíza]

- Na noite de 11 de Setembro de 2015 o pai deu apenas com a colher de pau na mão da mãe uma vez e depois disse-lhe que ela é que escolhia, e foi então que a depoente se levantou, se dirigiu para o telefone e foi empurrada.

Tanto quanto a audição do registo gravado das declarações de assistente e ofendida permite a imediação da prova, não descortinamos qualquer razão objectivamente válida para discordar da credibilidade que lhes foi conferida pela Mma. Juíza a quo quando procedeu à valoração da prova.

Com efeito, a razão de ciência de ambas é evidente. A assistente prestou declarações sentidas, a espaços, emotivas, sem deixarem de ser serenas, mas sempre firmes, claras, lineares, objectivas e uniformes, apesar de repetidamente instada sobre as mesmas questões, merecedoras, portanto, de credibilidade. Por seu turno, a ofendida, apesar da sua pouca idade e de ser filha do arguido, depôs sempre de forma serena, linear, objectiva e coerente, apesar de também ter sido repetidamente instada sobre as mesmas questões, sempre com um discurso bem estruturado e preciso, deixando sempre bem claro o que era conhecimento seu e o que era conhecimento por ouvir dizer, merecendo por isso a credibilidade probatória que lhe foi conferida pela 1ª instância.

Por outro lado, convém não ignorar que o tribunal a quo dispôs apenas da versão dos factos sustentada por estes meios de prova – declarações da assistente e depoimento da ofendida – uma vez que o arguido o privou da sua, eventual, versão. É claro que outros meios de prova foram produzidos designadamente, prova testemunhal, mas de reduzido valor, uma vez que, tendo a Relação ouvido também os registos gravados dos depoimentos das testemunhas E... [irmã do recorrente e cônjuge de um irmão da assistente] e M... , dos mesmos resulta terem apenas comparecido na residência do casal, após a fuga da assistente na noite de 11 de Setembro de 2015, não merecendo a primeira, pelas razões apontadas pela Mma. Juíza na motivação de facto, credibilidade, quanto ao conhecimento por si afirmado sobre o relacionamento do casal ao longo dos anos.

Revertendo agora para o ponto de facto sindicado, em análise, resultando das declarações da assistente e do depoimento da ofendida que a vida do casal sempre foi tumultuosa, com agressões do arguido à primeira, algumas delas presenciadas pelas filhas, mas não tendo sido referida a agressão a murro, apenas haverá que restringir o seu conteúdo quanto a estes aspectos.

Assim, o ponto 3 dos factos provados – cuja redacção não é, de facto, feliz – passa a ter o seguinte teor:

- A relação da ofendida B... e do arguido sempre foi pautada por discussões motivadas por ciúmes, e agressões e, em datas não concretamente apuradas, mas desde 1999, quando a ofendida estava grávida da menor C..., no interior da residência de ambos, por diversas vezes, algumas na presença das suas filhas menores, o arguido desferiu bofetadas à ofendida e empurrou-lhe a cabeça contra a parede.

3.2. O ponto 4 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- Por diversas vezes em data que não se lograram apurar, no interior da residência de ambos, o arguido, movido por ciúmes, disse à ofendida que era mentirosa, acusou-a de ter amantes, de ser infiel e em data não apurada, mas poucos dias antes de 7, acusou-a de já ter sido acompanhante de luxo.

Resulta das declarações da assistente e do depoimento da ofendida que o arguido, por diversas vezes, no interior da residência do casal, acusou a primeira de ter amantes e de, por causa de ter acompanhado um idoso do lar onde trabalha, a uma festa familiar, lhe ter dito que era uma acompanhante de luxo pelo que, sem necessidade de mais considerações, se mantém o ponto de facto sindicado, nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.

3.3. O ponto 5 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- Em data não concretamente apurada do ano de 2015 mas perto do Carnaval, na sequência de mais uma discussão motivada por ciúmes, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida B... e encostou-lhe uma faca ao pescoço.

O recorrente sindica este ponto de facto apenas porque, como diz, só a assistente o afirmou, sendo por isso, a prova, insuficiente.

Acontece que a prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, v.g., das declarações da assistente ou do depoimento de uma testemunha. O que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade.

Tudo isto se mostra feito pelo tribunal a quo na motivação de facto e, como supra dissemos, não descortinou a Relação qualquer razão objectiva para desconsiderar as declarações da assistente.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, mantém-se o ponto de facto sindicado, nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.

3.4. O ponto 6 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- Em datas que não se lograram apurar, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida e à sua filha C... e disse-lhes "se eu morrer, vocês não ficam cá a rir-se".

Resulta das declarações da assistente e do depoimento da ofendida que o arguido, repetidamente, sobretudo, conforme afirmado pela ofendida, saia de casa sem dar explicações, porque se irritava, lhes dirigia a expressão em referência.

É aliás, deslocado, com ressalva do devido respeito, a invocação do depoimento da testemunha E... quanto a este aspecto, pois que a mesma nada referiu quanto a esta frase [com o aparente sentido de que iria gastar todo o dinheiro, para o não deixar ficar].

Assim, e sem necessidade de mais considerações, mantém-se o ponto de facto sindicado, nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.

3.5. Os pontos 7 e 8 dos factos provados têm a seguinte redacção, respectivamente:

- No dia 11 de Setembro de 2015, em hora não concretamente apurada, na sequência de uma discussão que se gerou entre a ofendida B... e o arguido, na presença das suas filhas, o arguido, munido de uma colher de pau, dirigiu-se à ofendida tendo sido impedido pela sua filha C... de desferir uma pancada na ofendida B... ;

- Acto contínuo, o arguido empurrou a sua filha C... para o chão e desferiu-lhe vários pontapés no rabo e nas pernas, ao mesmo tempo que lhe dizia "filha da puta, és igual à tua mãe".

O recorrente tem razão quando alega que a filha mais nova não se encontrava presente na cozinha, no momento em que ocorreram os factos em questão. Com efeito, a assistente não afirmou a presença desta e a ofendida C... afirmou claramente que a irmã não estava na cozinha, devendo estar a dormir, no quarto.

Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a assistente e a ofendida coincidem quanto a ter aquele ido buscar uma colher de pau e com ela ameaçar a assistente.

Também contrariamente ao pretendido pelo arguido, resulta das declarações da assistente e do depoimento da ofendida que foi o acto de esta se ter levantado e dito ao pai que já chegava de agressões à mãe e que ia telefonar à polícia, que determinou que o arguido, deixando a intenção de agredir a mulher, empurrasse a filha para a impedir de chegar ao telefone. E assim, esta sequência dos factos é perfeitamente compatível com o segmento ‘tendo sido impedido pela filha C... de desferir uma pancada’ na assistente, como consta do ponto 7 dos factos provados [embora a respectiva redacção pudesse ter sido outra], uma vez que, em lado algum nele se afirma que a C... se colocou no meio do pai e da mãe para impedir aquele de agredir esta.

Finalmente, resulta do depoimento da ofendida C... que o arguido, seu pai, depois de a ter empurrado e feito cair – o que também foi afirmado pela assistente – a atingiu a pontapé nas pernas e no rabo. Aliás, a testemunha M... , que foi a primeira pessoa a chegar à residência do casal, na sequência dos pedidos de auxílio da assistente, afirmou que a ofendida C..., chorando, lhe disse que o pai lhe tinha batido.

Por outro lado, e uma vez mais ressalvado o devido respeito, não é exacto que a ofendida C... não tenha referido a existência de lesões nas pernas uma vez que, a instâncias do Ilustre Mandatário do recorrente, afirmou que no dia seguinte a ter sido agredida verificou que tinha vermelhidão nas pernas, obviamente, na sequência do que havia sucedido na noite anterior. E como vimos, o depoimento da ofendida mereceu credibilidade.

Acresce que, sendo verdade, como lembra o recorrente, que do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 217 a 218 verso, consta que a examinanda não apresentava lesões ou sequelas, não tendo, por tal razão, o Perito Médico elementos para se pronunciar médico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física, certo é que a ofendida C... foi examinada em 17 de Setembro de 2015, os factos ocorreram a 11 do mesmo mês, e resulta claro do depoimento daquela, que apenas foi empurrada para o chão e pontapeada e não, propriamente, submetida a espancamento severo. Fácil é entender, portanto, o motivo de não serem observáveis lesões na data do exame.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, o ponto 7 dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

- No dia 11 de Setembro de 2015, em hora não concretamente apurada, na sequência de uma discussão que se gerou entre a ofendida B... e o arguido, na presença da filha mais velha, o arguido, munido de uma colher de pau, dirigiu-se à ofendida tendo sido impedido pela filha C... de desferir uma pancada na ofendida B... .

É aditado aos factos não provados o ponto F, com a seguinte redacção:

- Os acontecimentos referidos no ponto 7 dos factos provados não foram presenciados pela filha mais nova do casal, a menor D... .

Mantém-se o ponto 8 sindicado, nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.

3.6. O ponto 9 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- De seguida, a menor D... saltou pela janela do quarto e a ofendida B... dirigiu-se à rua para pedir ajuda.

O recorrente tem razão quando afirma que ninguém viu a menor D... saltar pela janela do quarto. Com efeito, quer a assistente, quer a ofendida C... afirmaram que a D... saiu de casa saltando pela janela do quarto, não porque o tenham visto, mas porque a D... assim lhes disse.

Acontece que a menor D... não foi ouvida na audiência de julgamento, pelo que as declarações da assistente e o depoimento da ofendida, quanto a este específico aspecto, não podiam ser valoradas, por tal não permitir o art. 129º, nº 1 do C. Processo Penal.

Assim, o ponto 9 sindicado passa a ter a seguinte redacção:

- De seguida, a ofendida B... dirigiu-se à rua para pedir ajuda.

É aditado aos factos não provados o ponto G, com a seguinte redacção:

- No seguimento do referido no ponto 7 dos factos provados, a menor D... saltou pela janela do quarto.

 3.7. O ponto 10 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- Já na presença das tias das menores, E... e F... , o arguido dirigiu-se à sua filha C... e disse-lhe "se saíres de casa não voltas a ver nascer o sol".

Alega o recorrente que a testemunha E... , como depôs, ouviu-lhe dizer para não levar a C... porque o lugar dela era em casa, e não a que consta do ponto sindicado, razão pela qual deve este ponto passara ponto não provado.

A testemunha E... disse, efectivamente, que quando saiu com a C... de casa, e passou diante do arguido, este disse, «Para onde levas a C...? O lugar dela é cá em casa!» e, «O teu lugar é em casa, C...! Por isso, vai para casa!», tendo-lhe a testemunha dito que a levava para sua casa para ela se acalmar. E nada mais referiu a testemunha ter ouvido [aliás, nada perguntou ao arguido, seu irmão, sobre o que tinha sucedido, e disse não se lembrar de qualquer outra conversa que com ele, então, possa ter tido, sendo esta uma das razões determinantes da desconsideração probatória do seu depoimento]. 

A ofendida C... afirmou o facto e o seu depoimento foi credível.

Assim, mantém-se o ponto de facto sindicado nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.

3.8. Por fim, o ponto 11 dos factos provados tem a seguinte redacção:

- Com a sua actuação, o arguido causou dores às ofendidas.

A impugnação deduzida pelo recorrente quanto a este ponto de facto funda-se apenas na afirmação de que tem uma formulação genérica.

Trata-se, como é evidente, de um ponto complementar de outros pontos de facto onde são descritas as agressões físicas perpetradas pelo arguido nas pessoas da assistente e da ofendida C....

Uma agressão física, seja com bofetadas, seja com batimentos da cabeça em paredes, seja com pontapés, seja com empurrões causadores de quedas, é, de acordo com as regras da experiência comum, causadora de dores.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, mantém-se o ponto de facto sindicado, nos exactos termos em que foi formulado pela 1ª instância.


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Da incorrecta qualificação jurídica dos factos e consequente absolvição

4. Alega o recorrente – conclusões 25 a 29 – que as agressões provadas não atingem o grau de intensidade necessário para que se tenha por violado o bem jurídico dignidade humana e, em consequência, verificada a prática do crime de violência doméstica, pois, quando muito, e relativamente á ofendida C..., apenas estará em causa um crime de ofensa à integridade física, a ser punido com pena de multa.     

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

O crime de violência doméstica, como sabemos já, tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana. Para além de ser um crime habitual, é também um crime específico – o seu agente tem que ter uma determinada qualidade – e um crime de execução não vinculada – o modo de execução não assume relevância típica – que tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora releva (art. 152º, nº 1, a) e d) do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente, reiteradamente ou não, infrinja maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.

O crime é agravado, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

O tipo objectivo integra as condutas de violência física – crime de ofensa à integridade física –, violência psíquica – crimes de ameaça, coacção, injúria, difamação – e ainda as tipificadas privações de liberdade e ofensas sexuais. Mas estas condutas só serão típicas quando traduzam acções efectivamente maltratantes, quando a acção ou as acções concretas, pela sua ofensividade, conduzem à degradação da dignidade da pessoa da vítima.

Assim, o preenchimento do tipo pressupõe, em princípio, uma reiteração de conduta – integradora dos maus tratos físicos e/ou psíquicos – que conduza a um estado de agressão permanente, estado que evidencia a existência de uma relação de domínio, proporcionada pelo ambiente familiar, que reduz a vítima a uma situação humanamente degradante (cfr. Plácido Conde Rodrigues, ob. cit., pág. 307). Mas casos há, em que uma única acção, pela intensidade dos sentimentos revelados e/ou pelas concretas consequências que produziu, assume uma gravidade tal que, por si só, tem aptidão para preencher o tipo. 

4.1. Resulta da matéria de facto provada que o arguido e a assistente casaram, reciprocamente, em 27 de Setembro de 1997 e viveram juntos, na Rua x... , em y... , até 12 de Setembro de 2015. Durante estes anos, devido a ciúmes e desconfianças, o arguido, por diversas vezes, na residência do casal, e algumas delas, diante de filhas menores do casal, agrediu a assistente, dando-lhe bofetadas e com a cabeça na parede, acusou-a de ter amantes, de ser infiel. Mais concretamente, resultou provado que, pelo Carnaval de 2015, na residência do casal e na sequência de uma discussão gerada por ciúmes, o arguido deu uma bofetada na assistente e encostou-lhe uma faca ao pescoço, no início de Setembro de 2015, também na residência do casal, acusou a assistente de ter sido acompanhante de luxo, e no dia 11 de Setembro de 2015, mais uma vez na residência do casal, na presença da filha mais velha, a ofendida C..., nascida a 3 de Junho de 1999, no decurso de uma discussão, o arguido muniu-se de uma colher de pau e propunha-se agredir com este objecto a assistente, o que não fez devido à reacção da filha do casal.

Também se provou que em todas estas condutas, o arguido agiu voluntária e conscientemente, com intenção de ofender, humilhar e intimidar a assistente, o que conseguiu, sabendo ainda que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

Estamos perante reiteração de condutas, dolosamente levadas a cabo pelo arguido, umas mais graves do que outras, mas, na sua apreciação global, subsumíveis ao conceito de maus tratos, supra desenhado, que permitiram ao arguido, ao longo dos anos de duração da sociedade conjugal, criar sobre a assistente uma relação de domínio, a ele a sujeitando. E como também resulta da factualidade provada, as condutas reiteradas ocorreram na residência do casal e algumas, perante as filhas menores do casal.

Assim, resta concluir que a apurada conduta do arguido, relativamente à assistente, preenche os elementos do tipo do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e 2 do C. Penal, pelo qual foi condenado pelo que, nesta parte, não merece censura a sentença recorrida.

4.2. Resulta da matéria de facto provada que o arguido é pai da ofendida c... que, como já referido, nasceu a 3 de Junho de 1999, e vivia com os pais, a cargo de quem se encontrava, na residência do agregado familiar.  

Resulta também provado que o arguido, por diversas vezes, disse à ofendida sua filha e à assistente que, «se eu morrer vocês não ficam cá a rir-se.».

Resulta ainda provado que no dia 11 de Setembro de 2015, na residência da família, quando a menor C..., para impedir o arguido de agredir a assistente com a colher de pau, lhe disse que ia chamar a polícia e se levantou em direcção ao telefone, o arguido empurrou-a para o chão, desferiu-lhe pontapés nas pernas e no rabo, disse-lhe «Filha da puta, és igual à tua mãe!», e algum tempo depois, quando a menor saiu de casa acompanhada pelas tias, disse-lhe «Se saíres de casa, não voltas a ver nascer o Sol!». E também se provou que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de ofender a menor sua filha e de a agredir verbalmente para a humilhar, o que conseguiu, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Relativamente à frase repetidamente dirigida à assistente e à ofendida C..., aquela explicou-a, no contexto de conflito existente, como pretendendo o arguido significar que ia gastar o dinheiro do casal, antes de morrer, e não que a mesma tivesse uma qualquer conotação ameaçadora. E atendendo ao exacto teor da expressão, cremos que esta entendimento não deixa de ser razoável e plausível.

Assim, no que respeita à ofendida C... não existe reiteração de condutas. A acção do arguido decorre nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, apesar de integrar uma ofensa à integridade física simples, uma injúria e uma ameaça agravada.

Esta conduta do arguido, que nada tem a ver com o ius corrigendi, é altamente censurável, não propriamente pela intensidade da violência empregue [objectivamente, não foi elevada, pois a ofendida não apresentou lesões físicas significativas] mas pelo facto de ter agredido, injuriado e ameaçado uma filha menor [que devia proteger e acarinhar], pela única razão de esta se ter insurgido contra a conduta violenta que o recorrente, então, estava a exercer contra a sua [da menor] da mãe que o recorrente.

Neste contexto, o inadmissível conduta do recorrente alinhou por um padrão de comportamento revelador da sua não admissão de qualquer oposição ou crítica proveniente dos elementos femininos do seu agregado familiar e portanto, alargando também à ofendida, sua filha, o exercício da relação de domínio e sujeição, no âmbito da comunidade familiar.

Deste modo, igualmente em relação à ofendida C... se entende estarem preenchidos os elementos do tipo do crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, d) e 2 do C. Penal, pelo qual foi condenado pelo que, também nesta parte, não merece censura a sentença recorrida.

            5. Embora não tenha levado a questão às conclusões formuladas, no corpo da motivação o recorrente alega que, a provar-se ter agredido a menor C... a pontapé, então deverá ser condenado em pena de multa, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples que, certamente por lapso, indica como previsto no art. 148º do C. Penal.

            Como acabamos de ver, o pressuposto de que parte o recorrente não se verifica, pelo que não há que conhecer da pretendida condenação em pena não privativa da liberdade.

            Por outro lado, as penas parcelares e única fixadas pela 1ª instância, respeitam os critérios estabelecidos nos arts. 40º e 71º do C. Penal.


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            III. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida, com ressalva da modificação, irrelevante, da decisão proferida sobre a matéria de facto, operada em II., 3., 3.1., 3.5., e 3.6., que antecede.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 15 de Dezembro de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)