Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/18.0T8FVN.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: SEGURO FACULTATIVO
PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO
DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
DEVER DE BOA-FÉ
DEVER DE DILIGÊNCIA
DEVER DE PROBIDADE
DEVER DE LEALDADE
PERDA TOTAL
DESPESAS DE PARQUEAMENTO
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 564.º, N.º 2, 762.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 153.º DA LEI 147/2015, DE 9 DE SETEMBRO.
Sumário: I) No caso de seguro facultativo em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano se no apuramento do sinistro e da sua responsabilidade e se no pagamento da demais indemnização devida tiver actuado em violação de deveres acessórios de conduta (dever de boa-fé, dever de diligência, dever de probidade, dever de lealdade); noutras não poderá ser-lhe imposta tal obrigação indemnizatória, mas apenas a do pagamento dos juros moratórios sobre a demais indemnização devida.

II) No caso de perda total do veículo sinistrado tempestivamente sustentada pela seguradora e não contraditada pelo segurado, não há lugar a indemnização de despesas de parqueamento.

III) O simples anúncio de uma intenção de cobrar parqueamento não é suficiente para se sustentar que se produziu um dano pelas despesas do parqueamento.

Decisão Texto Integral:

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra B., SA ambos já identificados nos autos, peticionando a condenação da ré, no seguinte:

- na quantia de 34.000,00 €, relativa ao valor do veículo sinistrado, deduzida a franquia de 250, 00 €;

- a pagar a quantia a liquidar em execução de sentença, referente à privação de uso do veículo sinistrado, com base no custo de aluguer diário do veículo equiparado ao do autor, que as empresas de rent-a-car fixam em 200,00 €, por dia, desde o 21.º dia após a ocorrência do acidente e;

- a quantia que a C. vier a debitar ao autor, a título de parqueamento do veículo, desde o dia do acidente e até ao pagamento integral do valor da viatura.

Alegou, para tanto e em síntese, que é dono de um veículo automóvel, de matrícula SE..., marca Mercedes Benz, modelo classe E Station Diesel, versão E 200 CDI Elegance BE auto, tendo, nessa qualidade, celebrado, com a então Tranquilidade, um contrato de seguro, opção “Valor Mais”, por forma a transferir para esta a responsabilidade civil emergente da circulação de tal veículo, com início em 07/12/2016, com a duração de um ano e seguintes.

No âmbito do que contratualizou a cobertura de danos próprios do identificado veículo, designadamente, choque, colisão ou capotamento, tendo, aquando da respectiva celebração, sido indicado como valor seguro, o montante de 34.000,00 €.

Mais alega que, no dia 16 de Novembro de 2017, pelas 19 h e 30 m, quando circulava na EM 1063, conhecida por Estrada de S. Tiago, que liga as localidades de Alvaiázere a Ariques, freguesia de Almoster, Alvaiázere, em consequência de ter sido surpreendido, ao que supõe, por javalis, perdeu o controle do seu veículo, em consequência do que veio a sair da estrada, acabando por embater numa oliveira, que se encontrava implantada a cerca de  1,25 m do limite da faixa de rodagem, vindo a viatura, após tal embate, a capotar e a ficar imobilizada.

Acrescenta que face à violência do embate, a viatura foi considerada como irreparável, por a respectiva reparação ser superior ao seu valor venal.

A ré apenas lhe facultou veículo de substituição pelo período de 20 dias e não dos 30 contratualizados, não lhe facultando essa possibilidade desde 8/12/2017, nem lhe disponibilizou qualquer quantia para que pudesse adquirir outra viatura, por declinar a responsabilidade pelo pagamento da reclamada indemnização.

O autor, como não dispunha de quantia para tal, não adquiriu outra viatura, reclamando a tal título uma indemnização, tomando como referência o aluguer de uma viatura idêntica.

Para além do que, a viatura se encontra parqueada nas instalações da C. , que o notificou para pagar a quantia de 5,00 €, por dia.

Contestando, a ré, impugnou a versão dada pelo autor acerca do modo como ocorreu o acidente, alegando que se tratou de um “suposto acidente”, “em que o veículo é colocado na posição final de embate”.

Impugnou, ainda, o indicado valor do veículo, bem como a existência e amplitude dos invocados danos, designadamente, que tratando-se como se trata, de um seguro de danos próprios, só pode responder de acordo com o contratado e não foram previstos nem os danos de privação de veículo, para além do prazo contratado, nem os decorrentes do parqueamento do veículo, acrescentando, quanto a este, que o autor sabe que se trata de veículo com perda total e que a ré declinou a responsabilidade pelos invocados pagamentos, pelo que não se justifica que o veículo permaneça parqueado, nas condições referidas pelo autor.  

Com dispensa de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e fixou-se o objecto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 212 a 219, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré B. , S.A., a pagar ao Autor A. a quantia de €17,133,00 (dezassete mil, cento e trinta e três euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.

3. Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença pelo parqueamento do seu veículo durante o período de tempo em que o mesmo aí se encontre até ao trânsito em julgado da sentença.

4. Absolvo a Ré do restante pedido.

5. Absolvo o Autor do pedido de condenação como litigante da má-fé.

6. As custas são a cargo de Autor e Ré, na proporção do decaimento.”.

Irresignados com a mesma, dela interpuseram recurso ambas as partes, tendo os recursos sido admitidos, na sequência do que foi proferido o Acórdão que antecede, de fl.s 266 a 276, no qual se anulou a sentença proferida, a fim de ser ampliada a matéria de facto a considerar, como do mesmo melhor consta.

Após a baixa dos autos à 1.ª instância, reaberta a audiênca, procedeu-se à inquirição de uma testemunha, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 326 a 333 v.º, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos,

1. Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré B. , S.A., a pagar ao Autor A. a quantia de €17,133,00 (dezassete mil, cento e trinta e três euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.

3. Condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença pelo parqueamento do seu veículo durante o período de tempo em que o mesmo aí se encontre até ao trânsito em julgado da sentença.

4. Absolvo a Ré do restante pedido.

5. Absolvo o Autor do pedido de condenação como litigante da má-fé.

6. As custas são a cargo de Autor e Ré, na proporção do decaimento.”.

De novo, inconformados com a mesma, interpuseram recurso a ré B. e o autor A. , recursos, esses, admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 371), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

Recurso da ré B.

A. Se não é devida a indemnização pela privação de uso do veículo, quer porque a mesma não foi contratada quer, ainda, porque a ré, ora recorrente, não violou quaisquer deveres acessórios de conduta, atento a que se demonstrou que se verifica uma situação de sobresseguro; para além de que o valor atribuído viola os princípios da equidade e da proporcionalidade, por ser superior ao valor do veículo sinistrado e;

B. Se não é, igualmente, devida a indemnização pelo parqueamento do veículo, por não prevista no contrato de seguro em apreço, nem ter a recorrente violado os deveres acessórios de conduta, ao não pagar a referida indemnização, bem como porque se trata de veículo em situação de “perda total”.

Recurso do autor A.

C. Se o valor do veículo deve ser computado em 26.986,31 €, atento o equipamento extra que possui e as despesas da legalização a que foi sujeito e;

D. Se o valor diário da privação do uso do veículo sinistrado, deve ser fixado numa quantia nunca inferior a 70,00 €.

 É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. No dia 16 de Novembro de 2017, cerca das 19:30h, o A. circulava pela Estrada Municipal 1063 e conhecida por Estrada de São Tiago, que liga as localidades de Alvaiázere a Ariques, freguesia de Almoster, área do concelho de Alvaiázere, e neste sentido, e em local onde se situa o Posto de Subestação de água, nomeadamente na margem esquerda atento o indicado sentido seguido pelo aqui Autor.

2. Circulava no sentido de Alvaiázere – Montemor-O-Velho.

3. A estrada no local configura uma recta com ligeira inclinação descendente, seguido de uma ligeira curva à esquerda.

4. A largura da faixa de rodagem é de 3,85m, comporta dois sentidos de trânsito não existindo demarcações no pavimento.

5. As bermas são intransitáveis e ladeadas por pedras, árvores e outros arbustos.

6. O piso é em betuminoso e encontra-se em razoável estado de conservação.

7. A visibilidade era boa, estava bom tempo, era de noite, sem iluminação.

8. A certo momento, o A. deparou-se com vultos na faixa de rodagem que julgou tratar-se de animais, desviou-se, entrou em despiste, embateu em oliveira implantada a 1,25m do limite da faixa de rodagem e capotou.

9. Após o embate e capotamento o veículo veio a imobilizar-se na via e ficou impossibilitado de circular pelos seus próprios meios.

10. A GNR de Alvaiázere alertada para a ocorrência do acidente de imediato compareceu no local e tomou conta da ocorrência, tendo elaborado auto de participação, o qual veio a sofrer um aditamento em 14/02/2018 realizado pelo Autor após a Ré ter declinado a sua responsabilidade.

11. Os Bombeiros Voluntários de Alvaiázere transportaram o Autor para o Hospital de ..., onde realizou vários exames e veio a ter alta.

12. Foi contactado o serviço de assistência em viagem e o veículo foi transportado para as instalações da “ C. , Ld.ª” (Mercedes Benz), sitas em .....

13. O veículo seguro apresentava danos avultados na frente e lateral direita, consequentes do embate na oliveira, e no capot e no tejadilho, decorrentes do capotamento.

14. A Ré elaborou orçamento de reparação que ascendeu ao valor de €35.026,56.

15. O veículo foi considerado numa situação de perda total, atento o elevado valor da reparação e o respectivo valor venal antes do sinistro, tendo sido emitido o Boletim de Perda Total.

16. O salvado foi avaliado em €4.360,00.

17. A Ré declinou a responsabilidade pelo pagamento da indemnização devida.

18. O A. contratou a cobertura Multi assistência VIP Plus, sendo que em caso de perda total, como ocorreu no caso em apreço, o limite de cedência de veículo de substituição é de 15 dias, sendo os 5 primeiros contados entre a data da imobilização e o início da reparação, e os restantes 15 nos termos das condições particulares contratadas.

19. A garantia de viatura de substituição por perda total do veículo seguro, prevê um máximo de 15 dias.

20. No dia 17.11.2017, no seguimento da assistência prestada no dia anterior, disponibilizou-se ao A. uma viatura de substituição por 5 dias (17 a 22 de Nov.), ficando-se a aguardar a recepção do relatório de peritagem.

21. No dia 22.11.2017, recebida a comunicação da perda total do veículo seguro emitida pelos serviços de peritagem, definiu-se, consequentemente, um período de 15 dias de reserva a ser usufruído ao abrigo da respectiva garantia.

22. Tendo o A. já usufruído inicialmente de 5 dias, permaneciam por usufruir 10 dias, aceitando o A. uma viatura de gama inferior para se dilatar o período da reserva por tempo superior.

23. Assim, a viatura de gama inferior foi disponibilizada por um total de 20 dias adicionais, no período compreendido entre 23.11.2017 e 13.12.2017.

24. Após o referido período de tempo, o A. ficou impossibilitado de continuar a fazer uso do veículo, necessitando de recorrer a veículos de familiares.

25. O A. transportou o veículo para as instalações da C. Ldª, (Mercedes Benz) em ...., a fim de fazer a peritagem de reparação e, como o mesmo lá se encontra, esta sociedade notificou o A., para pagar a titulo de parqueamento, quantia diária de 5,00€.

26. Entre a R., na qualidade de seguradora, e o A., na qualidade de tomador, foi celebrado o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel a que se designou de “Valor Mais” sobre o veículo de matrícula SE..., titulado pela apólice n.º 0004278659 e regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares, constando como objecto seguro Mercedes-Benz, modelo Classe E Station Diesel, versão Elegance e o capital seguro de €34.000,00.

27. A tal contrato de seguro foi atribuído a apólice n.º 0004278659, com início em 7/12/2016 e com a duração de um ano e seguintes.

28. Em tal contrato de seguro celebrado com a Ré, o A. contratualizou a cobertura de danos próprios do próprio veículo, tais como choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo.

29. Em consequência do contrato de seguro celebrado, a Ré obrigou-se a indemnizar o A. dos danos que fossem ocasionados em consequência da circulação terrestre do mencionado veículo, na eventualidade de ocorrer qualquer acidente, de acordo com as coberturas constantes da apólice referida.

30. O veículo seguro trata-se de um modelo E 200CDI, ou seja, a versão Classic e não a versão Elegance - e que saiu de fábrica com equipamento apto a servir as funções de táxi, conforme lista do equipamento obtida através do VIN do veículo (vehicle identification number), entre outros, pintura marfim, taxímetro integrado, conexão para sinal luminoso, antena para táxi.

31. O A. despendeu €25.000,00 na aquisição do veículo.

32. A avaliação eurotax do veículo é de €13.088,00.

33. A DAV não menciona a versão (Classic ou Elegance) do veículo.

*

B. Factos Não Provados

Não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que o A. havia contratualizado a cobertura do veículo de substituição em consequência do acidente, pelo prazo máximo de 30 dias.

b) Que face ao contratado, a Ré estava obrigada a facultar ao A. veículo de substituição por mais 10 dias.

c) Que o valor de aquisição do veículo teria sido na ordem dos € 5.000,00 a € 7.000,00.

d) Que quando o A. efectuou o seguro, em 07.12.2016, ainda não estava em posse do DAV, pelo que a versão registada no sistema informático aquando da subscrição do seguro terá de ter sido comunicada pelo A.

e) Que aquando da celebração do contrato de seguro, foi o autor que indicou ao mediador de seguros da ré que o veículo era o Modelo Elegance, para originar um incremento do capital seguro.

f) Que quando foi celebrado o contrato de seguro, o Autor apenas tinha na sua posse o DAV.

A. Se não é devida a indemnização pela privação de uso do veículo, quer porque a mesma não foi contratada quer, ainda, porque a ré, ora recorrente, não violou quaisquer deveres acessórios de conduta, atento a que se demonstrou que se verifica uma situação de sobresseguro; para além de que o valor atribuído viola os princípios da equidade e da proporcionalidade, por ser superior ao valor do veículo sinistrado.

D. Se o valor diário da privação do uso do veículo sinistrado, deve ser fixado numa quantia nunca inferior a 70,00 €.

No que a esta temática do recurso respeita, alega a ré recorrente que, a referida indemnização não é devida, porquanto se trata de um seguro facultativo, de danos, com cobertura próprias, acordadas entre as partes e que só tem como objecto o, efectivamente, contratado, em que não se inclui a privação de uso.

De igual forma, defende que a sobredita indemnização também não é devida com base na aludida violação de deveres acessórios de conduta, aquando da análise e regularização do sinistro, uma vez que assenta a inexistência de responsabilidade pelo peticionado pagamento, com base numa situação de sobresseguro, que veio a provar-se, atento a que se veio a fixar o valor do veículo sinistrado em 13.088,00 € e não nos 34.000,00 €, declarados como valor seguro.

Por sua vez, o autor, igualmente, recorrente, defende que a mencionada indemnização é devida e que deve ser atendido o valor que indica.

A resposta à questão de saber se em caso de seguro de danos, em que não se prevê a indemnização pela privação de uso de um veículo, em primeira linha, depende do contratado.

Efectivamente, como resulta do artigo 130.º, n.os 2 e 3, do DL 72/2008, que fixa o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (adiante referido com RJCS), no caso de seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro, se assim for convencionado (cf. seu n.º 2), regra que o seu n.º 3, manda aplicar igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.

Na sequência do que já houve quem tenha decidido que inexistindo a cobertura de determinado risco no contrato de seguro a ter em conta, in casu a privação de uso de um veículo, por ter ocorrido o evento que desencadeou o respectivo accionamento da cobertura, no caso, choque/capotamento/colisão, previsto no contrato, apenas dá lugar ao pagamento de juros de mora (não dando lugar a indemnização pela privação de uso de veículo), que “monopolizam” toda a indemnização pela mora nas obrigações pecuniárias (máxime, como aqui  se verifica, nas de origem contratual, cf. artigo 806.º, n.º 3, do Código Civil), como é o caso de a seguradora entregar ao beneficiário  do seguro o valor do veículo em novo (neste sentido, o Acórdão desta Relação, de 19 de Maio de 2015, Processo 127/14.1TBSCD.C1).

No entanto e no que se passa a seguir o decidido na Apelação n.º 1442/18.0T8CBR.C1, de 28 de Maio de 2019, deste Tribunal da Relação, disponível no respectivo sítio do itij, em que o ora Relator foi 1.º Adjunto, a que se adere, não pode olvidar-se, que este entendimento veio a ser posto em causa em diversos Acórdãos quer do STJ, quer dos Tribunais da Relação, em que se vem reforçando o entendimento da seguradora ter que suportar os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada.

Transcrevendo, com a devida vénia, o ali expendido, importa ter em consideração que:

“A fundamentação gizada não tem sido sempre rigorosamente igual, porém, tem-se sustentado, em termos essenciais, que, tendo as empresas de seguros o dever de «actuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (cfr. art. 153º/1 da Lei 147/2015, de 9 de Setembro), os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres (legais) acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre – ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável – são violados tais deveres (legais) acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário.

Assim:

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, sustentou-se:

“A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências.”

“Muito particularmente no âmbito de um contrato de seguro, a boa fé supõe que o segurado conte com o cumprimento do contrato, pois é isso que se espera de uma contraparte séria, honesta e leal, não se afigurando admissível que uma seguradora se recuse inexplicavelmente a pagar ao segurado as quantias que lhe são devidas.”

“A ré incorre, assim, em responsabilidade pela não liquidação dos danos cobertos pelo contrato de seguro por violação de uma obrigação que dimana das aludidas regras do RJCS conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Código Civil que tutelam os interesses tanto de terceiros como do próprio segurado.”

“Não estamos, pois, perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.”

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Távora Victor, considerou-se:

“No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.”

“A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato

“Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.”

“A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”

No Ac. STJ de 14/12/2016 (in ITIJ), relatado pela Conselheira Fernanda Isabel, observou-se:

“Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”.

“A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é susceptível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a actuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.”

“Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

“Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.”

No Ac. do STJ de 27/11/2018 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Cabral Tavares, defendeu-se:

“O seguro de danos celebrado entre as partes (…) não cobria o valor de privação de uso.

Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.

“A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de actuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado.

“Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.”

“A actuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (…)”

No Ac. da Relação de Guimarães de 9/3/2017 (in ITIJ), relatado pela Desembargadora Anabela Miranda Tenreiro, também se considerou[1]:

“Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.

No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.

Não obstante a cobertura do risco da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato de seguro, assiste ao tomador o direito de ser indemnizado no caso de perda total do veículo em resultado de acidente de viação, por ter ficado sem o poder utilizar, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer.

A indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.”

Efectivamente, para um correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra, além dos deveres primários e secundários de prestação, existem os deveres acessórios de conduta; que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação.

Deveres acessórios de conduta que “estão hoje genericamente consagrados na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art. 762.º do C. Civil, segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (…)”[2]; deveres estes cuja violação não dá lugar a uma acção de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.

E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar – impõe-se reconhecer, em linha com os acórdãos citados – todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.

Quando alguém celebra, como tomador, um contrato de seguro facultativo cobrindo, nos dois primeiros anos, o risco de perda total do veículo (em caso de furto), aspira – é esse o seu interesse enquanto credor, interesse que a seguradora não ignora – a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder adquirir um veículo idêntico ao que lhe foi furtado.

Haverá por certo situações, mesmo vindo a decidir-se que a seguradora – que considerou não ser responsável pelo sinistro (por, por exemplo, entender que o mesmo é simulado ou que foi provocado intencionalmente pelo segurado) ou que considerou ser devido um montante inferior ao pretendido pelo segurado – não tem razão, em que o atraso da seguradora no pagamento da prestação devida dê tão só lugar a juros moratórios.

Em todo o caso, terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que uma tal conclusão pode/deve ser estabelecida, uma vez que, parece-nos seguro, não pode ser toda e qualquer justificação da seguradora (e muito menos a ausência de justificação) a conferir-lhe o direito a protrair a liquidação do sinistro.

E é exactamente aqui que estará o cerne da questão, ou seja, tudo está em saber/estabelecer, em cada caso, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).

Nos acórdãos transcritos esteve invariavelmente em causa a situação da seguradora não se considerar responsável pelo sinistro por entender que o mesmo era simulado ou provocado intencionalmente pelo segurado, tendo-se entendido que o arquivamento da queixa-crime (apresentada pela seguradora contra o segurado), com base na falta de prova, retira fundamento ao incumprimento da prestação da seguradora no prazo contratual ou legalmente fixado; que, em tais hipóteses, “o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.””.

Volvendo ao caso em apreço, como vimos – afastada que está a alegação da simulação do acidente, decidida na sentença recorrida, nesta parte, já transitada – alega a ré seguradora que se lhe impôs averiguar o sinistro em causa, dada a suspeita da existência de sobresseguro que, no seu entender, até se veio a demonstrar, em face do que, pugna, não violou os deveres acessórios de conduta e, por isso, não tem que suportar a indemnização em causa.

Na decisão em recurso, no que a tal respeita, refere-se o seguinte:

“Nos termos do disposto no art. 102.º, n.º 1, do RJCS, o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências.

Por sua vez, nos termos do disposto no art. 104.º, do RJCS, a obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.º.

A este propósito, com interesse, ficou provado que entre o Autor e a Ré foi celebrado contrato de seguro com atribuição ao veículo segurado do valor de €34.000,00, que o Autor adquiriu o veículo por €25.000,00 e que de acordo com a eurotax o veículo tem o valor de €13.088,00.

Poderia questionar-se se a Ré seguradora aceitou a realização do seguro pelo capital seguro de €34.000,00 poderá agora vir discutir que o valor real é muito inferior, no entanto, ficou provado que o modelo do veículo apresenta características diferentes das contratadas, por isso pode ser questionado o seu valor.

No entanto, não ficou provado que o Autor possuía conhecimento dessas características quando contratou o seguro, aliás, nem poderia ter, pois esse conhecimento dependeria da consulta de elementos apenas acessíveis a seguradoras ou à própria marca Mercedes, ou seja, não se provou que o Autor prestou dolosamente declarações não verdadeiras quando contratou o seguro.

De todo o modo, independentemente do valor de aquisição que o Autor despendeu com o veículo, é necessário atentar que efectivamente o valor real do veículo será de €13.088,00 e por isso é apenas este valor que a Ré está obrigada a ressarcir o Autor, descontando-se ainda o valor do salvado, na quantia de €4.360,00, ou seja, a Ré está obrigada a ressarcir o Autor no montante de €8.728,00.

(…)

No caso concreto em apreciação ficou provado que a Ré facultou ao Autor veículo de substituição não somente no período de tempo convencionado, como ainda por período de tempo superior, na medida em que o Autor optou por veículo de gama mais baixa.

No entanto, ficou de igual modo provado que, a Ré não liquidou em prazo razoável a indemnização devida, não bastando alegar ser duvidosa a versão do acidente ou que o mesmo foi simulado ou que existiu sobresseguro, uma vez que não ficou provado (cujo ónus competia à Ré – cfr. art. 342..º, n.º 2, do Código Civil) que foi o Autor  que comunicou ao mediador de seguros um modelo diferente do modelo real do veículo, nem que o fez para originar um incremento do seguro.

Com efeito, no âmbito de contrato de seguro por danos próprios, se a Ré seguradora, na sequência de processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa a pagar ao Autor sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo.

Ou seja, a seguradora não pode eximir-se ao pagamento da prestação visto que o segurado tem um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto (artigo 43.º, n.º 1, do RJCS) que consiste em ver satisfeita pelo segurador a prestação convencionada "em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato" contrapartida da obrigação de pagamento do prémio (artigo 1.º do RJCS), estando obrigado o segurador a satisfazer a prestação contratual a quem for devida nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do RJCS, disposições que se conjugam com o princípio da boa fé no cumprimento da obrigação que consta do artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil

A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (artigo 334.º, do Código Civil).

Neste sentido se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2017 (relatado por Salazar Casanova, processo n.º 4076/15.8T8BRG.G1.S2, www.dgsi.pt).

Ainda a este propósito se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/03/2017 (relatado por Isabel Tenreiro, processo n.º 4076/15.8T8BRG.G1, www.dgsi.pt),”.

Daqui resulta, pois, que a condenação da ré no pagamento da indemnização pela privação de uso do veículo, se deve ao facto de aquela “não ter liquidado em prazo razoável a indemnização devida, não bastando alegar ser duvidosa a versão do acidente ou que o mesmo foi simulado, nem que tenha havido uma situação de sobresseguro”.

Como resulta do já acima exposto, afastada que está a questão da “simulação” do acidente, a seguradora invocou, ainda, como razão para não assumir a responsabilidade pelo pagamento da aludida indemnização o facto de se verificar uma situação de sobresseguro.

Relativamente ao que, como resulta da factualidade descrita nos itens 26.º, 27.º e 30.º, dos factos provados, se demonstrou que consta do contrato de seguro celebrado entre as partes, que o veículo seguro, de matrícula SE..., é da marca Mercedes Benz, Modelo Classe E Station Diesel, versão Elegance, sendo o capital seguro de 34.000,00 €, sendo que, na realidade, se trata do modelo E 200 CDI, que saiu de fábrica com equipamento apto a servir as funções de táxi.

Não se tendo, por outro lado, dado como demonstrado – alínea d), dos factos não provados – que a versão registada no sistema informático (da ré) aquando da subscrição do seguro terá de ter sido comunicada pelo autor.

Como acima se disse, ao transcrever o Acórdão desta Relação a que se adere, situações haverá em que não obstante a seguradora se tenha recusado a pagar a indemnização devida, a única sanção será a do pagamento de juros de mora.

Dependendo, em cada caso concreto, da justificação apresentada pela seguradora, para se concluir se a mesma viola ou não os deveres de boa-fé, diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado na prestação, como a isso a obriga o disposto no artigo 153.º da Lei n.º 147/2015.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 23/11/2007 (Salazar Casanova), acima já citado, depois de se mencionar que a lei faculta à seguradora o apuramento dos factos relacionados cm o sinistro e, seguramente, também, a quantificação das respectivas consequências, acrescenta-se que:

“Se a seguradora (…) entender que se justifica um pagamento diminuto porque se verifica uma situação de sobresseguro – pressupõe-se que a posição foi assumida de boa-fé por ser razoável e compreensível à luz da averiguação realizada e devidamente justificada perante o sinistrado – parece sustentável, ainda que se venha a decidir que a seguradora não tinha razão, que a condenação implica tão somente o pagamento de juros moratórios vencidos desde o respectivo vencimento fixado pela lei nos 30 dias decorridos desde o apuramento dos factos, não importando qualquer outro sancionamento para a seguradora decorrente do não pagamento atempado da indemnização devida pelo sinistro”.

Ora, conforme resulta dos factos descritos nos itens 26.º, 27º, 30.º e 31.º, dos factos provados, está assente que o declarado modelo do veículo seguro não corresponde à realidade, o que se traduz no respectivo valor, que ascende ao de 13.088,00 € e não o declarado/indicado de 34.000,00 €; ou seja, verifica-se, efectivamente, um caso de sobresseguro.

A existência de sobresseguro, implica uma indicação em que o capital seguro exceda o valor do interesse seguro (artigo 132.º, n.º 1, do RJCS) e pode justificar a conduta da ré, ao declinar a sua responsabilidade pelo pagamento das peticionadas indemnizações.

Efectivamente, a ré sempre alegou a questão da desconformidade do valor real do veículo seguro e o declarado na proposta de seguro, para não pagar a pretendida indemnização.

É certo que não se demonstrou que foi o autor que indicou qual o Modelo do veículo, mas isso, para a questão sub judice é irrelevante, uma vez que o artigo 132.º da Lei do Seguro, não faz depender a existência de uma situação de sobresseguro de uma conduta dolosa do segurado. Basta-se com a situação objectiva de sobresseguro, relevando a conduta dolosa na prestação de informações para efeitos da validade do contrato, nos termos dos seus artigos 24.º e 25.º

Por outro lado, como resulta do seu artigo 49.º, n.º 1, “O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”.

Como se refere na Lei do Contrato de Seguro Anotada, 4.ª Edição, Almedina, a pág. 274, “no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”.

No mesmo sentido, Maria Manuela Chichorro, in O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 1.ª Edição, pág. 82, refere que a declaração inicial de seguro “é um elemento essencial do contrato de seguro. A declaração de risco é a comunicação unilateral de todos os factos e circunstâncias que caracterizam o risco que pretende segurar-se e reconduz-se, portanto, a uma declaração de ciência e não a uma declaração de vontade. É tida como uma obrigação fundamental do proponente e é com base nela que será computado o risco e, consequentemente, calculado o prémio que lhe corresponde”.

Por seu turno, a seguradora, aquando da proposta de seguro apenas dispunha da DAV, a qual não menciona a versão do veículo – cf. item 33.º.

Ora, o autor deveria saber o que comprou, tendo que arcar com as consequências da falsa indicação que consta da proposta de seguro quanto ao Modelo do veículo.

Em suma, a ré tinha o direito de apurar o valor do veículo sinistrado, tendo razões para o fazer, o que se veio a revelar fundado, dada a grande disparidade entre o valor declarado e o real do bem seguro, sendo este o determinante para efeitos da quantificação da indemnização devida pela ocorrência do ajuizado acidente e não qualquer outro.

Consequentemente, daqui decorre que a ré não pode ser responsabilizada pela violação de quaisquer deveres acessórios de conduta, nem da boa-fé negocial, única forma de a responsabilizar pelo pagamento da peticionada indemnização a título da privação de uso do veículo, o que acarreta a improcedência de tal pedido.

Assim, quanto a estas questões procede o recurso da ré, ficando prejudicado o do autor.

C. Se o valor do veículo deve ser computado em 26.986,31 €, atento o equipamento extra que possui e as despesas da legalização a que foi sujeito.

Como resulta do que se expôs na análise das anteriores questões, o valor a ter em conta é o valor real. Consta do item 32.º dos factos provados que o veículo está avaliado em 13.088,00 €, sem que tal factualidade tenha sido posta em causa.

Foi este o valor tido em conta para a quantificação da indemnização, contra o que se insurge o autor com o fundamento em que tal valor não tem em conta o valor de aquisição, nem ao equipamento extra, nem ao valor que consta da proposta de seguro.

Todos estes argumentos irrelevam para a determinação do valor do veículo.

Se o autor comprou bem ou mal é questão que aqui não releva. Como já se referiu, o que é relevante é o valor real, efectivo, do bem seguro, à data do evento danoso, pelo que não pode proceder esta questão do recurso.

Assim, improcede esta questão do recurso.

B. Se não é, igualmente, devida a indemnização pelo parqueamento do veículo, por não prevista no contrato de seguro em apreço, nem ter a recorrente violado os deveres acessórios de conduta, ao não pagar a referida indemnização, bem como porque se trata de veículo em situação de “perda total”.

No que a esta questão respeita, alega a recorrente, que a mesma não é devida porque se trata de caso de “perda total” do veículo, com a aceitação do segurado, pelo que nunca se colocou a possibilidade de se proceder à reparação do veículo, bem como não violou qualquer dever no apuramento das condições em que ocorreu o acidente e respectivas consequências.

Na sentença recorrida, condenou-se a ré a pagar ao autor, a este título, o que se vier a apurar em liquidação de sentença pelo parqueamento do veículo durante o período de tempo em que o mesmo se encontre parqueado, até ao trânsito em julgado da sentença.

Aduziu-se, para tal, a seguinte fundamentação:

“O Autor pede de igual modo uma indemnização correspondente ao custo do parqueamento do veículo que remete para liquidação de sentença.

Para o efeito, alega que o veículo está parqueado e sempre disponível para a eventual necessidade da Ré pretender fazer alguma peritagem do mesmo.

A Ré impugnou tais factos.

A este propósito, ficou provado que o veículo em causa foi transportado para determinado parque onde se encontrou disponível para qualquer perícia que a Ré pretendesse fazer, sendo exigido o pagamento de €5,00 diários.

Deste modo, ocorrendo um sinistro, devidamente comunicado pelo lesado, e tendo a seguradora procedido a perícia que concluiu pela inviabilidade económica da reparação do veículo, mas não propondo o pagamento de qualquer indemnização, terá o lesado de ser ressarcido com as despesas que suportou com o parqueamento do veículo sinistrado.

A este propósito, em situação em tudo semelhante, se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/02/2017 (relatado por António Valente, processo n.º 30878-12.9T2SNT.L1-8, www.dgsi.pt).

No entanto, neste momento como o veículo ainda se encontra parqueado não foi exigida qualquer quantia ao Autor nem este pagou qualquer quantia a esse propósito, por isso, relega-se para liquidação de sentença como requerido, a fixação definitiva desta indemnização, cujo montante nessa sede o Autor tem de provar que pagou para o parqueamento do seu veículo, durante o período de tempo em que o mesmo aí se encontre até ao trânsito em julgado da sentença.”.

Com o devido respeito, não se concorda com o quanto a tal decidido.

Desde logo, cumpre referir que a ré declinou o pagamento da indemnização, porque a reparação ascendia a 35.026,56 €, valendo o veículo 13.088,00 €, o salvado 4.360,00 € e houve perda total – cf. itens 14.º a 17.º e 32.º.

Assim, não se verifica o referido paralelismo com a situação versada no Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Fevereiro de 2017, Processo n.º 30878/12.9T2SNT.L1-8, citado na sentença recorrida, porquanto neste, a seguradora não comunicou ao sinistrado a inviabilidade da reparação, nem propôs o pagamento de qualquer indemnização, o que acarretou a violação dos deveres acessórios que lhe incumbiam, o que in casu não se verifica.

Por outro lado, tal indemnização, a ser devida, apenas o poderia ser até ao momento em que o autor soube que se tratava de perda total, pois que, como se refere no Acórdão do STJ, de 09/03/2010, Processo n.º 1247/07.4TJVNF.P1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, “Após a comunicação de perda total e inviabilidade da reparação, o armazenamento da viatura sinistrada deixa de encontrar justificação no facto danoso, pois que, se nada há a reparar, nada haverá que guardar ou conservar para esse efeito”.

Last but not least, este pedido tem de improceder, porque o autor não provou, quanto a ele, a existência de qualquer dano.

Efectivamente, como resulta dos itens 12.º e 25.º, apenas se provou que o veículo foi transportado para concessionária Mercedes de ...., a fim de ser feita a peritagem de reparação e, como o mesmo ainda lá se encontra, a referida concessionária, notificou o autor, para pagar a título de parqueamento, a quantia diária de 5,00 €.

Ora, como se refere no Acórdão do STJ, de 30 de Abril de 2015, Processo n.º 353/08.2TBVPA.P1.S1, disponível no mesmo sítio do anterior, na situação em apreço não se pode considerar que se esteja perante danos futuros previsíveis, mas certos e já consumados, sendo, por isso, inaplicável o disposto no artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil.

Nem a tal conduz a “notificação” a que se alude no item 25.º. Como se refere neste Aresto “não basta a intenção para cobrar o aparcamento, pois, são coisa bem distintas, uma coisa é a intenção de proceder à cobrança, outra bem diferente é a cobrança efectiva dos serviços, situação que não se compadece com a liquidação de sentença.

Efectivamente, o art. 609.º, n.º 2, do CPC prescreve que se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade o tribunal condenará no que vier a ser liquidado.

Subjacente a tal preceito está a demonstração da existência dos danos, mas o desconhecimento do respectivo valor, a condenação em valor genérico a liquidar ulteriormente pressupõe a demonstração daquele e dúvidas quanto à sua quantificação”.

Ora, no caso em apreço, não se passou da intenção de cobrar uma quantia, nada tendo o autor pago pelo aludido parqueamento, pelo que não se mostra provado o facto em que o autor assenta esta pretensão, o que acarreta a sua improcedência, cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Pelo que, quanto a esta questão procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela ré e improcedente a apelação interposta pelo autor, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, na parte em que condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 8.655,00 € (oito mil seiscentos e cinquenta e cinco euros), pela privação de uso e ainda na quantia relativa ao parqueamento do veículo;

Absolvendo a ré de tais pedidos;

Mantendo-a, quanto ao mais nela decidido.

Custas a suportar por autor e ré, na proporção dos respectivos decaimentos, em ambas as instâncias.

Coimbra, 25 Janeiro de 2022


[1] E, identicamente, a Relação do Porto em acórdão de 25-1-2011, relatado pelo Desembargador Vieira Cunha.

[2] Antunes Varela, Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 125.