Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
636/06.6TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
EMPREITADA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 428.º, N.º 1E 1207.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. É de empreitada o contrato que visa o fornecimento de peças e mão de obra com vista a reparação de máquinas.

2. A excepção de não cumprimento pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, sendo invocável nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, não bastando que o contrato seja obrigatório, ou crie obrigações para ambas as partes, exigindo-se que as obrigações sejam correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra, visando assegurar o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.

3. Se o acordo para o fornecimento de uma peça for alheio ao contrato de empreitada em que se fundamenta a acção, não pode a ré opor excepção de não cumprimento do contrato, por não se verificar uma relação de sinalagma.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“A... , Lda.” intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra “B... , Lda.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 10.792,47 acrescida de juros legais contados desde a proposição da acção e até integral pagamento.

Funda o seu pedido, em síntese, no facto de ter prestado à R. serviços de reparação e manutenção de máquinas, com fornecimento de peças e componentes, tudo no valor global de € 9.364,85, que a R. não pagou.

Mais peticiona juros sobre estas quantias computados desde 30 dias após a emissão de cada uma das facturas, estando vencida a quantia de € 1.423,62.

A Ré deduziu contestação defendendo-se alegando que comprou diversas máquinas à A. para a sua actividade comercial – terraplanagens – mas tais máquinas apresentaram problemas mecânicos e não se mostraram aptas para a actividade em causa.

Mais alega que em virtude desse facto a A. concordou em suportar o preço da factura n.º 1.142, emitindo a competente nota de crédito a favor da R.. Refere também que a A. concordou em fornecer à R. uma nova roda de guia, e concordou em apresentar uma proposta para a retoma dos equipamentos, o que ainda não fez.

A A. respondeu à contestação impugnando os eventuais defeitos ou inadequação das máquinas e alegando que o desconto a que faz referência apenas operava após o pagamento voluntário do remanescente em dívida, o que a R. não fez, pelo que a A. comunicou a resolução do referido acordo de pagamento.

Com dispensa da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador tabelar e seleccionaram-se os factos assentes e elaborou-se base instrutória, sobre o que não incidiu qualquer reclamação.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, tal como consta de fl.s 106 a 108, sem que lhe tenha sido formulada qualquer reclamação.

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 111 a 115, na qual se decidiu o seguinte:

“São termos em que, e com os fundamentos expostos, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência, condeno a Ré a pagar à A. a quantia de € 9.364,85, acrescida de juros à taxa legal para as dívidas comerciais, contados desde a data de vencimento das facturas, até integral cumprimento.

Custas pela R.”.

            Inconformada com a mesma, interpôs recurso a ré, recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 131), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A situação dos autos não configura uma série de contratos de empreitada, mas sim um contrato de compra e venda e assistência, celebrado entre as partes em finais de 2001.

2ª Pelo qual a A vendeu à Ré, que as adquiriu, duas máquinas Hyunday.

Que necessitaram de assistência técnica, o que originou a emissão das facturas cujo pagamento se reclama;

E originou também a promessa da A de proceder à substituição de uma roda de guia.

O que, até ao presente, ainda não foi feito;

Enquanto a A não proceder a essa substituição, pode a Ré recusar o pagamento das facturas reclamadas, incluindo o diferencial da factura 1142, descontado o montante de 3.267,25 que a A aceitou fazer na reunião referida no ponto 5 da matéria de facto provada;

7ª Pela mesma razão não são devidos quaisquer juros.

A douta sentença recorrida fez um errado enquadramento jurídico da questão, e violou o disposto no artigo 428º do CC, pelo que deve ser parcialmente alterada, reconhecendo-se à Ré o direito de recusar o pagamento da quantia 6.097,60, € enquanto a A não proceder à substituição da roda de guia, e isentando-se a Ré de pagar quaisquer juros, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA !

           

            Não foram apresentadas contra-alegações.

           

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.  

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se assiste à ré o direito a prevalecer-se da excepção de não cumprimento do contrato, com o fundamento em a autora não ter procedido, contrariamente ao acordado, à substituição de uma roda de guia.

           

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos e máquinas e ainda a prestação de serviços de mecânica e assistência as mesmas.

2. No exercício da sua actividade, a autora forneceu à ré, a solicitação desta, os bens e serviços constantes das facturas que constam a fls. 5 a 11 dos autos, cujo teor se da aqui integralmente por reproduzido para os devidos efeitos, e que se discriminam da seguinte forma:

- factura n.º H00501 emitida em 19.07.2002, com vencimento na mesma data, no valor de € 429,39;

- factura n.º H001665, emitida em 31.07.2002, com vencimento em 01.08.2002, no valor de € 537,63;

- factura n.º H002171, emitida em 08.10.2002, com vencimento na mesma data, no valor de € 114,54;

- factura n.º 1689, emitida em 05.08.2004, com vencimento em 04.09.2004, no valor de € 190,45;

- factura n.º 2113, emitida em 27.09.2004, com vencimento em 27.10.2004, no valor de € 104,49;

- factura n.º 891, emitida em 30.09.2004, com vencimento em 30.10.2004, no valor de € 2.020,51;

- factura n.º 892, emitida em 30.09.2004, com vencimento em 30.10.2004, no valor de € 2.700,09;

- factura n.º 1142, emitida em 30.11.2004, com vencimento em 30.12.2004, no valor de € 3.267,75;

3. Em 27 de Junho de 2001, a ré adquiriu à autora uma escavadora de rastos, de marca Hyunday e respectivo equipamento e ainda uma tesoura da marca Demo, no valor total de 145.898,38€, conforme documento de fls. 23, cujo teor se dá aqui inteiramente por reproduzido para os devidos efeitos.

4. Em 31 de Dezembro de 2001, a ré adquiriu à autora uma escavadora de rastos, de marca Hyunday e respectivo equipamento e ainda de um martelo hidráulico, no valor total de 137. 144,48€, conforme documento de fls. 24-25, cujo teor se da aqui inteiramente por reproduzido para os devidos efeitos. 

5. A ré reuniu com a gerência da autora e o seu vendedor, C... , no ano de 2005.

 

6. Quando a R. trabalhava no IP 3, na zona de Castro Daire, alguns componentes das máquinas referidas em 3. e 4. começaram a revelar desgaste.

7. O desgaste referido no quesito anterior ocasionou algumas paragens para assistência.

8. A transmissão de uma das máquinas foi substituída e uma outra foi reparada.

9. As bombas injectoras tiveram de ser reparadas e a roda de guia apresentava desgaste que aconselhava a sua substituição.

10. Na reunião referida em 5., a A. acordou em efectuar um desconto à R. no valor equivalente ao da factura n.º 1142, ou seja de € 3.267,75.

11. A. acordou que forneceria a R. uma nova roda de guia, com o esclarecimento que este acordo não ocorreu na reunião referida em 5., mas em momento anterior.

12. A A. não forneceu ainda a referida roda de guia, nem apresentou qualquer proposta para a retoma dos equipamentos.

13. Pelo menos até 2004, as máquinas referidas em 3. e 4. estiveram em laboração.

14. As máquinas referidas em 4. trabalharam durante pelo menos 2838 e 4960 horas respectivamente.

15. Na reunião referida em 5., que ocorreu em Março de 2005, a A. acordou com a R. em fazer-lhe um desconto, no valor de € 3.267,25.

16. Tendo em vista apenas garantir a continuidade da R. como sua cliente.

17. Ficou então acordado que, após o pagamento do valor do valor de € 6.097,60 por parte da R., que ocorreria em Junho ou Julho de 2005, a A. emitiria o documento de redução da dívida.

Se assiste à ré o direito a prevalecer-se da excepção de não cumprimento do contrato, com o fundamento em a autora não ter procedido, contrariamente ao acordado, à substituição de uma roda de guia.

Alega a ré, ora recorrente, que as relações comerciais havidas entre as ora partes configuram um contrato de compra e venda e assistência de máquinas, que ocorreu em finais de 2001 e na sequência do qual a autora se obrigou a prestar assistência técnica às máquinas vendidas, que originou a prestação dos serviços referidos nas facturas juntas com a petição inicial, bem como a obrigação da autora em proceder à substituição da roda de guia referida no item 11 da matéria de facto dada como provada.

Dado que o contrato de compra e venda é um contrato sinalagmático, é lícito à ré invocar tal excepção enquanto a autora não substituir a referida roda de guia, pelo que, enquanto tal não suceder, não pode ser condenada a pagar-lhe as peticionadas quantias.

Ao invés, na sentença recorrida, considerou-se que estamos em presença de um contrato de empreitada, porquanto a autora reparou e deu assistência técnica às máquinas da ré, incumbindo a esta pagar o preço correspondente, o que não fez, assim, incumprindo tais empreitadas.

No que concerne à questão da substituição da roda de guia, afastou-se a possibilidade de tal factualismo corporizar a existência da excepção de não cumprimento do contrato, com os fundamentos que se seguem:

“Também se demonstrou que a A. prometeu fornecer à R. uma roda de guia, o que não fez. No entanto, não se demonstrou qualquer relação sinalagmática entre este acordo e os referidos contratos de empreitada que legitime a R., ao abrigo da excepção de não cumprimento, a reter o pagamento do preço enquanto a referida roda de guia não for fornecida – artigo 428º, n.º 1, do CC.

Pelo exposto, nada obsta ao pagamento devido do preço das empreitadas, à A., devendo a acção proceder.”.

Vejamos, então, por cotejo com a factualidade dada por apurada em 1.ª instância, no que respeita a esta questão, se pode ou não a ré invocar a excepção de não cumprimento do contrato, com o fundamento em a autora não substituído uma roda de guia.

Importa ter em conta o que consta dos itens 11 e 12 dos factos provados, de acordo com os quais se demonstrou que:

“11. A A. acordou que forneceria à R. uma nova roda de guia, com o esclarecimento que este acordo não ocorreu na reunião referida em 5., mas em momento anterior.

12. A A. não forneceu ainda a referida roda de guia, nem apresentou qualquer proposta para a retoma dos equipamentos.”.

Em primeiro lugar, como acima já aflorado, insurge-se a ré quanto à qualificação jurídica que foi feita na sentença recorrida, enquadrando as relações havidas entre as partes como contratos de empreitada, entendendo a recorrente que se trata de contratos de compra e venda e assistência de máquinas.

Embora esta questão não tenha grande relevo, uma vez que quer se trate de contratos de empreitada quer o sejam de compra e venda, ambos têm carácter sinalagmático e, por isso, em qualquer deles seria possível o recurso à figura da excepção de não cumprimento do contrato, não deixaremos de referir o que se segue.

Conforme artigo 2.º da p.i,. a autora funda a causa de pedir no facto de ter fornecido os bens e serviços à ré, que se acham descritos nas facturas juntas de fl.s 5 a 12.

Compulsando-as, verifica-se que se trata de reparações e fornecimento de peças para máquinas.

Contestando, a ré não impugna tais fornecimentos de serviços e materiais, apenas alegando que o foram na sequência da compra que fez à autora de duas escavadoras, sem que se refira o que quer que seja quanto a prazos de garantias e obrigação de assistência.

Tanto assim que logo em sede de despacho saneador se deu por assente o fornecimento de bens e serviços descritos no item 2 dos factos provados.

Para além de que estas vendas ocorreram em Junho e Dezembro de 2001 e as reparações e serviços prestados pela autora tiveram lugar entre Julho de 2002 e Novembro de 2004.

Assim, parece-nos claro que se trata de contratos de empreitada (que consistiram no fornecimento e aplicação das peças e mão de obra referentes às reparações efectuadas) e não de compra e venda (e muito menos com assistência, o que só é referido nas alegações de recurso).

Como refere P. Romano Martinez, in Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos …, Almedina, Maio de 2000, a pág.s 310 e 311 “… no Direito português, o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis”.

Ora, no caso em apreço, uma vez que se tratou do fornecimento de peças e mão de obra, com vista a reparar as máquinas da ré, tem de se concluir, tratar-se de contratos de empreitada, tal como se considerou na decisão em recurso.

Como resulta do disposto no artigo 428.º, n.º 1, CC:

“Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.

Como o referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág.s 380 e 381, tal excepção pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, sendo invocável nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, não bastando que o contrato seja obrigatório, ou crie obrigações para ambas as partes, exigindo-se que as obrigações sejam correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra, visando assegurar o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.

Ora, o acordo existente entre as partes para o fornecimento de uma roda de guia, nada tem que ver com os contratos de empreitada em que se fundamenta a acção.

De resto, nem a própria acção tem que ver com as compras e vendas referidas em 3 e 4, mas sim com reparações de máquinas ocorridas muito depois disso, pelo que inexiste qualquer correspectividade entre as obrigações que decorrem das empreitadas e o acordo para tal fornecimento da roda de guia.

Sendo, quanto a tal, de acrescentar que, verificadas as facturas de fl.s 5 a 12, nelas não se vislumbra a referência a qualquer “roda de guia”.

Ademais, parece resultar dos itens 15 a 17 que tal acordo teria que ver com previsíveis relações comerciais futuras e não com os contratos de empreitada anteriormente celebrados.

Assim, desde logo, por não se verificar uma relação de sinalagma entre o fornecimento da roda de guia e os contratos de empreitada (que se traduz na realização de uma certa obra mediante um preço – cf. artigo 1207.º CC), não pode a ré opor a pretendida excepção de não cumprimento do contrato.

Por outro lado, uma vez que se trata de um contrato de empreitada e seguindo os ensinamentos de P. Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso …, Almedina, 1994, a pág.s 328 e 329, a excepção de não cumprimento do contrato poderá apenas ser exercida após o credor ter denunciado os defeitos e exigido a sua eliminação, a redução do preço ou o pagamento de uma indemnização, uma vez que só após o credor ter indicado por qual dos direitos opta, é que nasce o direito à pretensão e só a partir daí se pode exercer a exceptio.

O mesmo defende Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, edição de 2004, a pág. 126, segundo o qual “a exceptio só pode ser oposta após o dono da obra ter denunciado os defeitos e manifestado a sua opção pelo direito que pretende exercer.”.

Também P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1981, a pág. 714, admitem o recurso à figura da excepção de não cumprimento do contrato, quer para o empreiteiro, quer para o dono da obra, em caso de incumprimento da contraparte.

Só que, no caso em apreço, nem sequer se demonstrou a existência de defeitos nas peças fornecidas ou nas reparações efectuadas, como decorre das respostas que mereceram os quesitos 1.º a 4.º (transpostas para os itens 6 a 9 dos factos provados) e a de não provado ao quesito 8.º, pelo que, de igual forma, não pode a ré opor a excepção de não cumprimento do contrato.

Consequentemente, tem de improceder o presente recurso.

Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emídio Francisco Santos
António Beça Pereira