Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/13.0GCPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
DESCONTO
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (POMBAL - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 281.º DO CPP; ARTIGO 69.º DO CP
Sumário: A inibição de condução de veículos a motor fixada, a título de injunção, no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados imposta, a final, na sentença condenatória, caso o processo, por incumprimento de injunção de diferente natureza, venha a prosseguir para julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Recorrente: A...

Recorrido: Ministério Público

I. Relatório

1. No âmbito do processo abreviado n.º 23/13.0GCPBL da Comarca de Leiria, Pombal, mediante acusação pública foi arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe, então, imputada a prática em autoria material e sob a forma consumada de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 01.04.2014, o tribunal decidiu [transcrição parcial]:

«Pelo exposto, julga-se procedente a acusação e, em consequência:

Condena-se o arguido A... pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, nº 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;

a) na pena de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos);

b) na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 3 (três) meses;

(…)».

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1.ª Foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículos motorizados em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do CP, numa pena de multa de 30 dias à taxa diária de € 5,50 e ainda na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de 3 meses.

2.ª Os presentes autos iniciaram-se com a suspensão provisória do processo, tendo sido aplicadas ao arguido duas injunções: a sanção inibitória de conduzir veículos motorizados por um período de 3 meses e a entrega de € 300,00 ao IPO.

3.ª Para cumprimento da 1.ª injunção o arguido entregou aos 31/01/2013 a sua carta de condução, ou seja cumpriu na íntegra a injunção aplicada.

4.ª Por não ter apresentado comprovativo de cumprimento da 2.ª injunção, os autos prosseguiram para julgamento.

5.ª O Tribunal a quo julgou e condenou o arguido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez praticado aos 13.01.2013, aplicando-lhe uma sanção acessória de inibição de conduzir por um período de três meses, nos termos do disposto no artigo 69º do CP.

6.ª A injunção que foi cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo teve em vista o mesmíssimo facto e foi cumprida da mesma forma como o seria a pena acessória, em cujo cumprimento foi condenado, ou seja, tem a mesma finalidade, a mesma justificação e o mesmo modo de execução.

7.ª Assim, e uma vez que o arguido cumpriu a injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, seria impróprio que “alguém possa ser obrigado a cumprir a mesma pena duas vezes, (…) a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 3 meses, mostra-se extinta, por cumprimento” ou seja,

8.ª A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença (no mesmo sentido vide Acórdão da Relação de Guimarães datado de 06.01.2014, e Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2013, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

9.ª Em súmula, o Tribunal a quo deveria ter efectuado o desconto da injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, cumprida pelo arguido conforme factos dados como provados na douta sentença, na pena acessória de inibição de conduzir por um período de 3 meses aplicada e com base no desconto efectuado considerar a sanção acessória extinta pelo seu cumprimento.


NORMAS VIOLADAS

O Tribunal fez incorrecta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 69º do Código Penal, 281º e 282º do Código de Processo Penal.


PEDIDO

Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença parcialmente revogada, decidindo-se que a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de três meses aplicada ao arguido se considera extinta pelo seu cumprimento, uma vez efectuado o desconto da injunção de inibição de conduzir por um período de 3 meses, cumprida pelo arguido, na pena acessória de inibição de conduzir ora aplicada.

Só assim decidindo se fará justiça.

4. Por despacho de 28.05.2014 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu a Digna Procuradora Adjunta, o que fez conforme fls. 112 a 115, pronunciando-se no sentido de dever o mesmo improceder.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer junto a fls. 126 a 127, defendendo a procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

      De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

      No presente caso a única questão suscitada pelo recorrente traduz-se em saber se – tal como defende – a injunção que lhe foi imposta por ocasião da suspensão provisória do processo, a saber a proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, que cumpriu, uma vez revogada a dita suspensão em consequência do incumprimento de injunção de diferente natureza, deve ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir aplicada, a final, na sentença condenatória.

2. A decisão recorrida

No essencial ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

No dia 13 de Janeiro de 2013, pelas 17h32, o arguido conduzia o ligeiro de mercadorias, de matrícula (...) DT, na EN 109, Rotunda dos Vieirinhos, Carriço, em Pombal.

Ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue, apurou-se que o arguido conduzia o supra referido veículo, com uma taxa de álcool no sangue de 1,35 g/l, a qual, considerando os EMA, corresponde a 1,24 g/l.

O arguido previu e quis conduzir o respectivo veículo automóvel após ter ingerido bebidas alcoólicas, bem sabendo que não poderia conduzir qualquer veículo na via pública ou equiparada em tal estado e que tal conduta não lhe era permitida por lei.

O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se absteve de a concretizar.

Os presentes autos tiveram início com a aplicação da suspensão provisória do processo, no âmbito da qual foram aplicadas ao arguido as injunções de inibição de conduzir pelo período de 3 [três] meses e, ainda, a de entregar um donativo de € 300,00 a uma instituição, sendo que, com a entrega da carta de condução nos Serviços do Ministério Público, cumpriu a primeira das referidas injunções, não tendo, contudo feito, em momento anterior à remessa dos autos para processo especial abreviado, prova de haver feito a entrega do dito donativo.

O arguido regista uma condenação – por sentença de 14.04.2011, transitada em julgado em 13.05.2011 - pela prática, em 01.09.2009, de um crime de ameaça agravada e de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. respectivamente pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) e 143.º, todos do Código Penal, na pena única de 160 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, a qual veio a ser convertida em prisão subsidiária, suspensa na sua execução mediante obrigações.

A última remuneração auferida pelo arguido remonta a Fevereiro de 2011.

O arguido tem registado em seu nome dois veículos automóveis e é titular de dois bens imóveis.

Não existem factos não provados.

Na formação da convicção o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha Sérgio Ferreira, guarda da GNR, a exercer funções no Posto da Guia, a qual, no essencial, confirmou o auto de notícia de fls. 2; ao talão de fls. 4 [comprovativo da taxa de álcool no sangue], no certificado de registo criminal de fls. 67 a 70; ao teor de fls. 62 dos autos [quanto ao cumprimento das injunções]; aos elementos resultantes da pesquisa à base de dados no que concerne à condição pessoal do arguido; aos factos objectivos conjugados com as regras da experiência e o normal acontecer das coisas da vida no que tange aos elementos subjectivos do tipo.

3. Apreciação

A única questão que surge controvertida traduz-se em saber se a injunção aplicada ao arguido/recorrente por ocasião da suspensão provisória de processo, concretamente a inibição de conduzir veículos a motor pelo período de três meses, caso o processo, por incumprimento de injunção de diferente natureza, venha a prosseguir para julgamento, deve ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados imposta, a final, na sentença condenatória.

Vejamos, então, o que resulta dos autos.

No âmbito da fase de inquérito - após ter entendido resultar suficientemente indiciada a prática pelo arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal - considerou o respectivo titular mostrarem-se verificados os pressupostos enunciados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º do CPP, propondo, assim, a suspensão provisória do processo mediante a imposição de injunções, entre as quais a inibição do arguido «de conduzir veículos com motor pelo período de três meses, entregando a sua carta de condução (…) no prazo de dez dias, após a notificação (…)» - [cf. fls. 18 a 22], proposta, essa, que, em toda a sua extensão – maxime quanto às injunções - mereceu a concordância do juiz, conforme decorre do despacho de 14.01.2013 [cf. fls. 25/26].

Para cumprimento da injunção de proibição de conduzir, o arguido/recorrente entregou nos autos a sua carta de condução em 31.01.2013, a qual veio a ser levantada em 12.07.2013 [cf., respectivamente o termo de entrega e recebimento de fls. 29 e 41].

Em consequência da inobservância – da falta de comprovação nos autos - de uma outra injunção que lhe veio a ser imposta, os autos prosseguiram para julgamento, sob a forma de processo especial abreviado, sendo, então, imputada ao arguido a prática do já identificado crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Finda a audiência de discussão e julgamento proferiu o tribunal a decisão acima transcrita.

Feita esta breve resenha, retomando a questão para a qual somos convocados, diremos que não se trata de matéria virgem; pelo contrário já foi objecto de apreciação por parte dos tribunais superiores, contudo, com resultado nem sempre convergente.

Assim, no sentido de que o «tempo» de proibição de conduzir, determinado a título de injunção aquando da suspensão provisória do processo e que veio a ser objecto de cumprimento, não pode, em caso de revogação desta, ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir pronunciou-se o acórdão do TRL de 06.03.2012 [proferido no âmbito do processo n.º 282/09.2SILSB.L1 – 5], do qual se respiga:

 «As penas acessórias cumprem (…) uma função preventiva adjuvante da pena principal.

Por outro lado a injunção a que o recorrente se obrigou, não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória. De facto, o recorrente quando entregou a carta de condução fê-lo voluntariamente, no âmbito do cumprimento de uma injunção com que concordou (…) e que visava a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do Cód. Proc. Penal.

Ora de acordo com o n.º 4, alínea a) do art. 282º do Cód. Proc. Penal, se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas.

E por prestações, nos termos deste normativo, devem entender-se não apenas as dádivas ou doações pecuniárias mas também outras prestações, como a de abster-se de certas actividades (como a de conduzir) ou mesmo as de efectuar serviço de interesse público (…).

O princípio “ne bis in idem” está consagrado no n.º 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa.

Nos termos deste normativo, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, ou seja, não pode haver novo julgamento da mesma questão (é o chamado “efeito negativo do caso julgado”).

(…)

Ora, no caso, o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão. Trata-se de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito e necessita da concordância, além do mais, do arguido. Acresce que (e sobretudo) é, como o nome indica, uma decisão provisória, que não põe fim ao processo (…).

Desta forma, não pode entender-se que a condenação, em julgamento, em pena acessória de inibição de conduzir, depois de ter sido cumprida a injunção de abstenção de conduzir, em suspensão provisória do processo, configura uma violação do princípio “ne bis in idem”.

Em sentido contrário, depois de, com fundamentos idênticos aos do aresto acima citado, afastar, no caso, a violação do ne bis in idem, sem questionar a diferente natureza da injunção fixada por ocasião da suspensão provisória do processo e da pena acessória de proibição de conduzir a que se reporta o artigo 69.º do C. Penal, conclui o acórdão do TRG de 06.01.2014 [proferido no âmbito do processo n.º 99/12.7GAVNC.G1]:

«Esta condenação teve em vista um facto – condução de veículo em estado de embriaguez no dia (…)

A injunção cumprida pelo arguido teve em vista o mesmíssimo facto.

E foi cumprida da mesma forma como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenado.

Argumenta-se que a entrega da carta nas duas situações é diversa em virtude de na injunção esta ser feita de forma voluntária e na outra não. Pensamos que tal argumento não colhe pois que assistimos inclusive a situações em que os próprios arguidos quando tomam conhecimento das decisões e delas não pretendem recorrer, antecipam-se na entrega da carta na data do depósito sem aguardarem o respectivo trânsito, fazendo-o, pois, também nesta situação, de forma voluntária.

De qualquer modo, sendo certo que estamos perante natureza jurídica diferente da injunção e da pena acessória, atualmente nem sequer é possível esgrimir com a pretensa voluntariedade na adesão do arguido à injunção relativa à proibição de conduzir veículos motorizados uma vez que querendo beneficiar da suspensão provisória do processo, tem mesmo que a aceitar, pois que resulta de imposição legal.

(…)

A injunção de proibição de conduzir veículos com motor que consta, agora, do elenco das aplicáveis é, exatamente, aquela que foi aplicada ao recorrente, no âmbito da suspensão provisória do processo.

Que ele cumpriu.

E que (…) mais não é do que a sanção acessória de proibição de conduzir, aplicada no âmbito desse “desvio processual” que é a suspensão provisória do processo: a mesma finalidade, a mesma justificação, o mesmo modo de execução.

Aliás, no nosso ordenamento encontramos situação idêntica com a prisão preventiva e cumprimento de pena efetiva, que de igual modo têm natureza jurídica diferente e no entanto, quando o arguido passa a cumprimento de pena a prisão preventiva é objeto de desconto na pena de prisão, sem que para o efeito seja atribuído qualquer obstáculo.

(…)

A questão não se coloca ao nível da condenação, antes relativamente ao cumprimento da pena (acessória).

Sendo a nosso ver impróprio que alguém possa ser obrigado a cumprir a mesma pena duas vezes, a pretensão do recorrente há-de proceder. Com efeito, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor mostra-se extinta, pelo cumprimento (…).

(…)».

Idêntica posição já havia sido sufragada pelo acórdão do TRE de 11.07.2013 [proferido no âmbito do processo n.º 108/11.7PTSTB.E1], donde se extracta:

«Em termos materiais, substantivos, no fundo, os efeitos decorrentes de uma e outra medida são rigorosamente os mesmos: o arguido entrega a sua licença de condução e abstém-se de conduzir veículos motorizados. A distinta natureza jurídica das duas figuras tem, seguramente, um interesse doutrinário relevante mas não afasta a questão de fundo: caso uma e outra sejam cumpridas, são-no da mesma forma, exigindo do arguido a mesma conduta.

(…)

É bem certo que se dispõe no art.º 282º, nº 4 do CPP que em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta “o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas”.

(…)

A “repetição da prestação” há-de, aqui, ser entendida com o mesmo sentido que lhe é dado em direito civil, isto é, “tal não quer significar que haja lugar a repetir a prestação no sentido de a realizar outra vez. O que existe é o direito de reaver aquilo que foi satisfeito. Isto é: a proibição da repetição das prestações tem o mesmo sentido e alcance da impossibilidade de “restituição de prestações” efectuadas, em caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, constante do nº 2 do artº 56º do Cód. Penal.

E assim vistas as coisas, obviamente que a “prestação” em causa nestes autos não é repetível (…).

A questão é outra e consiste em saber se tendo a arguida cumprido a obrigação de entregar a sua carta de condução e de se abster de conduzir veículos motorizados por 3 meses, deve ser considerada cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses em que veio a ser condenada, na sequência da revogação da suspensão provisória do processo.

Esta condenação teve em vista um facto – condução de veículo em estado de embriaguez no dia (…).

A injunção cumprida pela arguida teve em vista o mesmíssimo facto.

E foi cumprida da mesmíssima forma como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenada.

Que diferença existe, então, a impedir que se considere efectuado o cumprimento?

Não vemos que faça a diferença: inúmeras são as situações em que os arguidos cumprem voluntariamente a obrigação de entrega da sua carta de condução, em cumprimento da pena acessória em que foram condenados, concordando com tal decisão (de que não recorrem), por vezes mesmo antecipando-se ao trânsito em julgado da decisão (e várias vezes, mesmo ao depósito da sentença …)

Será, então, em função da diferente natureza jurídica da injunção e da pena acessória?

É verdade (…) que “a injunção é um instrumento processual que visa a composição e pacificação social e a pena criminal, seja detentiva ou não detentiva, tem fins próprios de prevenção especial e geral”. Como é verdade aquilo que se afirma no Ac. RL de 6/3/2012: as penas acessórias cumprem “uma função preventiva adjuvante da pena principal”.

Mais uma vez, porém, isso não resolve o problema: condenada a arguida em pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado, a função preventiva adjuvante da pena principal não se mostra já cumprida (esgotada) com o cumprimento dessa proibição, efectuada no âmbito da suspensão provisória do processo?

Repare-se, aliás, que o art.º 281º do CPP foi recentemente alterado pela Lei 20/2013, de 21/2 …

(…)

Quer dizer: actualmente nem sequer é possível esgrimir com a pretensa voluntariedade na adesão do arguido à injunção relativa à proibição de veúculos motorizados: querendo beneficiar da suspensão provisória do processo, tem que aceitar, pois que resulta de imposição legal.

Não deixa de ser curioso que não fosse essa a intenção primeira do legislador.

Como é sabido, na Proposta de Lei nº 77/XII (que está na génese da Lei 20/2013, de 21/2) pugnava-se, com a alteração da redacção do artº 281.º, n.º 1, al. e) do CPP, pela impossibilidade de suspender provisoriamente o processo em caso “de crime doloso para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor”. E isto porque, como consta da respectiva exposição de motivos, “a pena acessória de inibição de condução encontra fundamento material na grave censura que merece o exercício da condução em certas condições, cumprindo um importante papel relativamente às necessidades, quer de prevenção especial, quer de prevenção geral de intimidação, o que contribui, em medida significativa, para a consciência cívica dos condutores. A possibilidade legal de suspensão provisória do processo relativamente a este tipo de ilícitos tem esvaziado de conteúdo útil a função da pena acessória de inibição de conduzir e determina disfuncionalidades em face do regime legal aplicável aos casos em que a condução sob o efeito do álcool é sancionada como contraordenação.

Importava, assim, alterar o regime vigente, determinando que não pode ter lugar a suspensão provisória do processo relativamente a crimes dolosos para o qual esteja legalmente prevista a pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor».

(…)

Ainda no mesmo sentido foi o parecer dos docentes da Faculdade de Direito de Lisboa … no âmbito da consulta que lhes foi feita pelo Parlamento: «Em princípio, a cominação legal de penas acessórias, mesmo no caso de inibição de condução de veículo a motor, é totalmente compatível com a suspensão provisória do processo e, se esta for a medida adequada, o julgamento apenas agravará a situação. É bom recordar que a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento. O que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta.

Em tese, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, também pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, aliás tornada efectiva mais prontamente do que se fosse aplicada como resultado de uma condenação transitada em julgado». [todos estes documentos, relativos ao processo legislativo em causa, podem ser consultados no site da Assembleia da República, masi concretamente neste link: http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=37090.

Foi no seguimento destas objecções que os grupos parlamentares do PSD e do CDS-PP apresentaram uma proposta de alteração à Proposta de Lei 77/XII, suprimindo a alteração à al. e) do n.º 1 do art.º 281º do CPP e alterando o n.º 3 do mesmo artigo, proposta que foi aprovada, dando origem à actual redacção daquele artigo.

A injunção de proibição de conduzir veículos com motor que consta, agora, do elenco das aplicáveis é, exactamente, aquela que foi aplicada à recorrente, no âmbito da suspensão provisória do processo.

Que ela cumpriu.

 (…)

Daí que a decisão recorrida não possa subsistir.

Não por violação do princípio ne bis in idem (…)

Na verdade, posto que revogada a suspensão provisória do processo, sempre o julgamento teria que ter lugar. E sempre, aliás, teria a arguida que ser condenada na pena acessória prevista no art.º69º, n.º 1, al. a) do Cod. Penal, verificados os respectivos pressupostos. Como, aliás, teria que ser efectuada a comunicação a que alude o n.º 4 do mesmo preceito.

A questão não se coloca ao nível da condenação, antes relativamente ao cumprimento da pena (acessória)

(…) a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados mostra-se extinta, pelo cumprimento (…)».

Desenhados que estão os argumentos nos dois sentidos, sem que necessário se torne voltar a equacioná-los, perfilhamos sem qualquer reserva a posição que, privilegiando a substância - não negando, embora, a diferente natureza que, numa perspectiva dogmática, subjaz à injunção, por um lado, e à pena acessória de proibição de conduzir, por outro lado [tal como sucede quanto à medida de coacção de prisão preventiva no confronto com a pena de prisão efectiva, não sendo, por via disso, que aquela deixa de ser objecto de «desconto» nesta] -, não deixando de convocar a redacção do preceito introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21.02 [donde resulta não constituir a inibição de conduzir, para quem pretenda beneficiar da suspensão provisória do processo, um acto voluntário] e, não menos relevante, os elementos «legislativos» e «doutrinários» que precederam tal alteração [cf. artigo 281.º, n.º 3 do CPP], destaca a identidade da finalidade, da justificação e do modo de execução da injunção da inibição de conduzir e da pena acessória prevista no artigo 69.º do C. Penal, concluindo-se, assim, pelo bem fundado da pretensão do recorrente, o que, perante os dados factuais fornecidos pelos autos – donde resulta inequívoco o integral cumprimento da injunção em questão, não tendo o período da pena acessória fixado na sentença ido além do «tempo» de inibição de conduzir, por ocasião da suspensão provisória do processo, determinado e cumprido – tem como consequência a declaração de extinção, pelo cumprimento, da pena acessória de proibição de conduzir veículos pela qual o recorrente sofreu condenação.

III. Decisão

Termos em que, acordam os juízes que integram este tribunal em conceder provimento ao recurso, declarando extinta, pelo cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em cujo cumprimento foi o recorrente condenado.

Sem tributação

Coimbra, 10 de Dezembro de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)