Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
629/08.9 TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
MOTIVAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 03/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 152º Nº1,AL.D), DO CP.127º,412º,E 428º DO CPP
Sumário: 1.O tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

2,No caso, nem no confronto dos factos dados como provados com a prova produzida, nem nos juízos formulados na apreciação da prova, constantes da fundamentação da matéria de facto, se evidencia qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis.

3. Relativamente aos factos descritos nos pontos em análise, o tribunal a quo não se defrontou com dúvidas que tivesse resolvido contra a recorrente, nem demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, nada impunha que a devesse ter tido. Não se verificou, pois, qualquer violação do princípio do in dubio pro reo.

4 Assim, não impondo a prova produzida em audiência decisão diversa da recorrida e havendo que considerar a convicção formada pela julgadora – porque possível, plausível, conforme com as regras da experiência comum e assente em provas não proibidas por lei –, validamente formada ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, é inegável mostrar-se o recurso improcedente.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. M., com os demais sinais nos autos, foi submetida a julgamento porquanto acusada pelo Ministério Público da prática indiciária de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.

Na subsequente e normal tramitação processual, realizado o crivo da prova, foi prolatada sentença condenando a arguida pelo cometimento do assacado ilícito, na pena de dois anos de prisão, suspensa, porém, na sua execução, por igual período de tempo, subordinada à obrigação de pagamento, no prazo de seis meses, à Santa Casa da Misericórdia e à Fundação Maria e Oliveira, ambas sitas em Alcobaça, da quantia de € 1.000,00, a cada uma delas, facto este a dever comprovar nos autos.

1.2. Porque se não revê no veredicto emitido, recorre a arguida, extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões:

1. A ponderação da prova feita pelo Tribunal a quo extrapola as regras do princípio da sua livre apreciação (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), sustendo-se em meras presunções ou factos pouco claros, sem suporte de prova disponível no processo.

2. O Tribunal assentou a sua decisão no depoimento de duas testemunhas, que mostraram ressentimento e animosidade para com a arguida, tendo sido os próprios que desencadearam o presente processo, através de uma queixa apresentada, mostrando-­se os seus depoimentos como parciais e incongruentes.

3. As testemunhas apresentadas pela defesa apresentaram depoimentos sólidos, convergentes que vieram apoiar as declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de discussão e julgamento.

4. A arguida esclareceu os factos de forma clara e precisa, apresentado a sua defesa, que é corroborada e encontra sustentáculo em outros depoimentos produzidos em sede de audiência (declarações gravadas através de sistema integrada de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, 00:00 a 25:22 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

5. As testemunhas da acusação, JM e JU, relataram um conjunto de factos a que não assistiram directamente, apenas tendo alegadamente ouvido a arguida a dirigir expressões injuriosas a seu pai.

Desconhecem os motivos, não conseguem traduzir as conversas concretas, e existem contradições manifestas entre os seus depoimentos (depoimentos gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo, 25:22 a 54:46 minutos e: 01:11:35 a 01:18:17 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

6. JM refere que os maus tratos ao pai se iniciaram em 2007 e JU situa-os em 2008, afirmando que a recorrente gritava com seu pai, mas reconhecendo que este tinha problemas de audição, o que levaria a que a mesma falasse com um tom de voz mais alto para que o mesmo ouvisse.

7.JM e JU reconhecem não ser frequentadores assíduos da casa do idoso, sendo certo que reconhecem nunca nada terem feito para findar com as alegadas agressões de que o idoso era alvo – o que, segundo as regras de experiência comum, se não afigura minimamente credível –.

8. JU não assistiu aos factos ocorridos em 26 de Janeiro de 2008, tendo chegado a casa da arguida já após a queda do pai da recorrente, sendo certo que nunca refere que a arguida se terá dirigido aquele dizendo “bem feito”.

9. JM relata os factos em distonia completa com as demais testemunhas, referindo que a arguida exclamou “bem feito”, sendo certo que reconhece a presença da S. no local, mas negando que tenha sido aquela a proferir tal afirmação uma vez que aquela se dirigia do rés-do-chão para o 1.º andar, sendo certo que ficou claro que a mesma se encontrava no sótão. Não poderia aquele afirmar, sem margens para dúvidas que a arguida proferiu tal afirmação.

10. O depoimento de JM e JU, não se afigura suficiente para condenar a arguida, pois que estes nunca assistiram, directamente, à prática de qualquer facto por aquela, não podendo afiançar, com toda a certeza, quem proferia as expressões por eles invocadas, a quem eram dirigidas em concreto e por quem.

11. JM afirma que o pai se encontrava caído na casa de banho quando ali se encontrava, não sabendo contudo onde se encontravam as irmãs, e se o pai tinha acabado de cair, tendo contudo concluído que o mesmo tinha caído involuntariamente, tese que não encontra apoio nos restantes depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.

12. JM, em manifesta represália à arguida, levou o pai para o Hospital, sem lhe ter comunicado tal facto, sendo certo que não era grave a situação, uma vez que este se ausentou da casa do pai para ir tomar o pequeno-almoço.

13. A testemunha  S., por seu lado, depôs de forma clara, directa e objectiva, demonstrando ter presenciado os factos ocorridos em 26 de Janeiro de 2008, no que disse ter-se dirigido a casa da irmã após ouvir aquela a falar alto com o pai, em virtude de este ter dificuldade auditiva, no seguimento de este ter caído no quarto que se encontrava urinado. Mais referiu que o colocou na casa de banho, onde voltou a cair encontrando-se ali presente o irmão Joaquim na altura da queda. Referiu ainda que ajudava a irmã a cuidar de seu pai, sendo certo que nunca a ouviu proferir qualquer expressão injuriosa ou a obrigá-lo a limpar o chão (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo: 01:28:51 a 01:39:57 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

14. O testemunho de LA corrobora e é compatível com o relato das testemunhas de defesa e da arguida, referindo que o idoso se encontrava bem tratado e cuidado e que aquele não mostrou resistência ou desagrado em regressar a casa, para junto de sua filha (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo: 01:11:35 a 01:18:17 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

15. As testemunhas de defesa (JP, N, J, MG) sendo familiares da arguida e presenças constantes na sua residência vieram também corroborar que a arguida sempre tratou bem o pai, nunca tendo utilizado qualquer expressão injuriosa a ele dirigido ou forçado o idoso à prática de qualquer acto que configurasse maus tratos. Ademais, referiram que nunca o pai da arguida se queixou daquela ou relatou qualquer facto que viesse a concluir animosidade coma a filha (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal a quo: 01:39:57 a 01:43:12 minutos; de 02:01:31 a 02:06:30 minutos; o1:43:12 a 01:45:58 minutos e 01:45:58 a 01:51:00 minutos respectivamente (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

16. FO, amigo da arguida, e presença constante em casa daquela, nomeadamente ao fim de semana, relatou também, de forma credível e isenta o relacionamento desta com o pai, mostrando ter conhecimento sobre quem dele tratava, e afirmando peremptoriamente que a arguida tinha extrema preocupação para com seu pai (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal: 01:51:00 a 01:56:56 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

17. Por outro lado, também JC, presenciou aos cuidados que a arguida demonstrou ter com o pai, e a sua constante preocupação durante o período em que o mesmo esteve internado em unidade hospitalar (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal: 01:18:17 a 01:22:29 minutos (cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 9 de Junho de 2.009).

18. Conjugados todos os depoimentos produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, resulta deles, a debilidade e tendencial parcialidade das testemunhas JM e JU, que ganham fulgor quanto verificadas as incongruências delas resultantes e bem assim a animosidade que deles ressalta em relação à arguida, o que constitui também um importante elemento que o Tribunal deveria ter apreciado para proferir a decisão final.

19. Os restantes testemunhos, que o Tribunal a quo entendeu por imparciais, apresentam-­se, antes claros e precisos, e descrevem factos que levam a considerar a personalidade da arguida, e o facto de ter comportamentos diametralmente opostos aos de que é acusada.

20. Andou mal o Tribunal a quo, ao dar como provado o facto n.º 4 da matéria assente, pois que o mesmo não resultou da prova produzida, nomeadamente no que respeita à recorrente obrigar o pai a usar fralda.

21. A matéria assente vertida nos pontos 5 a 7, não encontra enquadramento em prova suficiente e bastante, uma vez que nenhuma das testemunhas – mesmo as da acusação – não presenciaram, directamente e de forma inequívoca, a arguida a praticá-los, não podendo o Tribunal Recorrido condenar com base em suspeitas, ou meras conclusões que não resultam de forma inequívoca da comprovação por parte das testemunhas.

22. A decisão recorrida dá como provado, nos pontos 8 e 9, factos que não resultam sequer da fundamentação da decisão, pois que refere apenas a queda na casa de banho seguida da expressão “bem feito”, sendo certo que a sentença recorrida refere que a queda foi no quarto e após isso a arguida teria proferida a citada expressão…

23. A arguida, não agiu da forma descrita nos pontos 8 a 12 da matéria assente constante da sentença condenatória, inexistindo prova suficiente para que se conclua pela prática de tais factos.

24. No momento decisório, não pode o Tribunal considerar teses vagas ou improváveis que não se apoiem em relatos claros e precisos, em comprovações efectivas, e apenas em presunções ou suspeitas, pois daqui sempre resultaria uma dúvida inultrapassável, que sempre determinaria a aplicação do principio basilar do nosso sistema processual penal do in dúbio pro reo.

25. O Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto, ao dar como provada a matéria factual constante da acusação, vertida nos pontos 4 a 12 da matéria assente, incorrendo em violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal e do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Terminou pedindo a revogação da decisão proferida, substituindo-se por Acórdão deste Tribunal que dê por não provados os factos constantes da acusação, além vertidos nos pontos 4 a 12 da Matéria Assente e, acto contínuo, determine a absolvição da recorrente.

1.3. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento do recurso interposto.

1.4. Proferido despacho da sua admissão, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a igual insubsistência.

Cumpriu-se com o determinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, ordenou-se o prosseguimento dos autos, com recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como submissão à presente conferência.

Cabe, então, ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A decisão recorrida teve por provada a factualidade seguinte:

1. Desde 1999 e até ao dia 26 …. de 2008, e por acordo familiar, a arguida teve à sua guarda e cuidado o seu pai JZ nascido a 26 ..1914.

2. Ambos viviam na Rua…. Chiqueda.

3. O seu pai encontrava-se doente desde 2005, com leucemia e fazia quimioterapia. Encontrava-se incontinente, porém mantinha a mobilidade.

4. Desde o facto 3., a arguida M. chegou a proibir o seu pai de ir à casa de banho durante a noite para não a acordar com o barulho, obrigando-o a usar a fralda ou o bacio no quarto.

5. Quando o seu pai se encontrava sujo, a arguida começava a chamá-lo de “porco”; “burro”; “estúpido” e “parvo.”

6. Por vezes, a arguida obrigava o pai a lavar o chão que havia sujado com urina.

7. Durante o ano 2007, quando a arguida falava com o seu pai fazia-o sempre em tom alto e áspero. Desde cerca de Novembro de 2007 a arguida gritava de forma brusca com seu pai diariamente.

8. No dia 26 … de 2008, pelas 7.00 horas, quando JZ se encontrava na casa de banho, a arguida começou a gritar com ele, sendo que a dada altura o mesmo caiu no chão.

9. Depois disto, a arguida exclamou “bem feito” e abandonou momentaneamente o local onde o seu pai se encontrava sem lhe prestar auxílio.

10. Apercebendo-se desta situação, JM também filho de JZ, que morava no rés-do-chão direito do mesmo prédio, por baixo da arguida e seu pai, foi socorrê-lo, vindo a encontrá-lo sozinho e tombado na casa de banho lamentando-se e pedindo: “leva-me daqui, filho.”

11. Como consequência daquela queda, JZ acabou por receber tratamento hospitalar e após alta foi alojado em instituição de terceira idade onde permaneceu até falecer.

12. Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, querendo causar mal-estar ao seu pai, molestá-lo psiquicamente e prejudicar a sua saúde, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei.

13. A arguida aufere € 1.600,00 mensais.

14. Vive em casa própria pagando € 650,00 para amortização de crédito à habitação.

15. Tem um veículo automóvel.

16. Tem o 12.º ano de escolaridade.

17. Não tem antecedentes criminais.

2. 2. Por outro lado, a motivação probatória dela constante tem o teor seguinte:

A convicção do tribunal, quanto aos factos considerados provados baseou-se na análise crítica, à luz das regras de experiência, nas declarações da arguida e no depoimento das testemunhas.

A arguida admitiu apenas os factos 1.,2., e 3.

Negou tudo o mais, que tivesse alguma vez sido rude ou maltratado seu pai.

Reconheceu que falava alto com o seu pai que tinha dificuldades auditivas. Admitiu que tratar do seu pai nos últimos tempos, quando adoeceu, se tornaram penosos e difíceis de conciliar com o exercício da sua profissão. Mormente, o facto de o pai se levantar de noite para ir à casa de banho e a incomodar porque lhe perturbava o sono. Donde provado, pelo seu depoimento, parte do ponto 4. A arguida também mostrou pouca compreensão para o facto de o pai urinar no chão, tirando a fralda que usava.

As testemunhas directas dos factos evidenciaram divisão e inimizade entre irmãos que residem no mesmo prédio. As demais testemunhas que não são da família eram visitas ocasionais da arguida que não podiam constatar o dia a dia desta e seu pai.

Assim, o tribunal valorou os depoimentos de JM e mulher JU, respectivamente irmão e cunhada da arguida, e que residiam no apartamento imediatamente por baixo do apartamento da arguida.

E ambos foram coerentes em afirmar que nos últimos tempos de estadia do pai em casa da arguida a situação de violência verbal agravou-se muito nos últimos três anos de convivência (desde 2005), agravando-se em 2007 e passou a diária nos últimos três meses de convivência derivado do facto de o pai ter adoecido, ser incontinente e urinar um pouco por todo o lado no chão. Donde provado o facto 7. Estas testemunhas ouviam com facilidade e nitidez as palavras que a arguida dirigia a seu pai mencionadas no ponto 5. Obrigando-o a limpar o chão, como referido no ponto 6.

E durante a noite, e porque dormiam no quarto imediatamente por baixo do do idoso, apercebiam-se das incursões do pai à casa de banho, e a reacção adversa da arguida que lamentava a perturbação do sono, provando-se sem dificuldade o facto 4. A arguida tentou escamotear estes factos alegando que falava alto devido à surdez do pai, todavia sem credibilidade, porquanto se dirigia a seu pai, não só em tom elevado de voz, mas também de forma rude, zangada, a gritar de forma descontrolada, aos berros. Aliás a própria arguida admitiu o desgaste que a situação do seu pai lhe causava nos últimos tempos, o que é consentâneo com a sua atitude adversa para com ele dada como provada.

E por fim estas testemunhas acompanharam o desenrolar dos acontecimentos do dia 26/1/2008, já que acordaram sobressaltados com o ruído vindo do andar de cima, o que levou JZ a levantar-se da cama ao ter ouvido a irmã aos berras obrigando o pai a limpar o chão com uma esfregona e um estrondo no quarto, seguido da exclamação, por parte da arguida: “bem feito”. Subiu ao primeiro andar para indagar o que se passava e já lá se encontrava também a irmã S., ambas ralhando com o idoso. JZ deparou-se com o pai caído na casa de banho, sozinho e lamentando-se. A testemunha tratou pessoalmente de retirar seu pai de casa da arguida levando-o ao hospital. Sua mulher JU também foi a casa da arguida atrás de seu marido e enquanto este acorria a seu pai, a arguida e S limpavam o chão de quarto alheias à sorte do idoso.

Estes testemunhos foram espontâneos, sem hesitações, reveladores do conhecimento presencial dos factos dos pontos 8. a 11., e que precipitaram a saída do idoso para o hospital para não mais voltar a casa da arguida. Donde contrariaram frontalmente as declarações da arguida quanto a este episódio que escamoteou alegando que seu pai caiu mas na presença do irmão Joaquim.

A outra testemunha presente, S, também acorreu ao local, vinda do sótão, devido aos gritos da arguida, o que comprova que a arguida gritava com seu pai naquele momento, mas, porque tem amizade pela arguida e inimizade pelo irmão JM, corroborou a versão da arguida, todavia sem a consistência, espontaneidade, e assertividade de JM e mulher, que reagiram de imediato a uma situação que lhes pareceu, de imediato, grave.

L assistente social que acompanhou o idoso no hospital relatou de forma isenta o seu encaminhamento para o lar de idosos.

Quanto às demais testemunhas, não infirmam os factos provados pela simples razão que não viviam com a arguida.

R. foi chefe da arguida mas aposentou-se em 2002, pelo que nenhuma ligação recente tem à arguida. De pouco vale ter dito que a arguida se preocupava com o pai nos idos de 2002… quando os factos se reportam aos anos de 2005 a 2008, precisamente quando a situação de saúde do pai da arguida se alterou com as consequências provadas.

JC é amigo da arguida, também não tem outro conhecimento que não seja a natural preocupação da arguida com o seu pai.

JP, marido de S também nunca presenciou quaisquer atitudes menos próprias da arguida para com seu pai, tendo admitido que não se encontrava em casa durante o dia, pelo que também não infirma os factos provados.

MA e N , filhos da arguida, também não viviam com ela, não podendo infirmar os factos provados.

JG e  MG, sobrinhos da arguida, também têm vidas longe da casa da arguida, sem prejuízo de afirmarem que nunca viram a tia a tratar mal o avô, também não infirmam os factos provados, por não poderem ter conhecimento presencial dos mesmos.

Por fim, F passava com regularidade fins-de-semana de 15 em 15 dias em casa da arguida e nunca viu nada de anormal. Reitera-se, a normalidade dos fins-de-semana pode coexistir com os episódios de violência do resto da semana.

Donde, tem o tribunal de atender aos depoimentos de quem acompanhou de muito perto, no andar de baixo, o modo de vida, dia e noite, da arguida e seu pai, ou seja, os depoimentos de Joaquim e mulher.

Relativamente à situação económica e pessoal da arguida o tribunal baseou a sua convicção nas declarações da própria.

Quanto à ausência de antecedentes criminais o tribunal atendeu ao teor do certificado do registo criminal.


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III – Fundamentação de Direito.

3.1. O artigo 428.º do Código de Processo Penal faculta a este Tribunal o conhecimento, em recurso, de facto e de direito.

Por outro lado, sabe-se, conforme jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, ambos do mesmo diploma), isto sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal e Ac. n.º 7/95, do STJ, publicado no Diário da República, I.ª Série, de 28 de Dezembro de 1995, em interpretação obrigatória).

In casu, porque se não vislumbra emergir fundamento que reclame esta intervenção oficiosa, vendo-se as conclusões da recorrente, resulta que o thema decidendum consiste em averiguarmos se a valoração da prova feita em 1.ª instância ocorreu com preterição ao estatuído pelos artigos 127.º, do indicado diploma adjectivo, e 32.º, n.º 2, da Constituição da República, conducente à sua indevida condenação.

3.2. Parcas e prévias considerações sobre os moldes como pode ser sindicada a forma pela qual o tribunal recorrido decidiu a matéria de facto, primeiro fora e depois dentro do quadro dos vícios decisórios que hão-de ser aferidos circunscritamente perante o texto da decisão em reapreciação, ajudarão a aquilatar da sorte do pleito.

De acordo com a regra geral contida no mencionado artigo 127.º, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

Assim, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. De facto, a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.”[1] Sendo “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»”[2], que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional –, impõe a lei (cfr. n.º 2 do artigo 374.º, do Código de Processo Penal) um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção[3] (indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância), não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção pelas instâncias de recurso.

Dentro dos limites apontados, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[4] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[5]. É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355.º do Código de Processo Penal, pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[6]. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”[7]

No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[8].

Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.”[9] É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[10]. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.”[11]

A reponderação de facto não é ilimitada, antes se circunscreve à apreciação das discordâncias concretizadas pelo recorrente “já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”[12]

Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no artigo 127.º do Código de Processo Penal e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.

Esta possibilidade de sindicância da matéria de facto quando assente na impugnação da decisão que sobre ela foi proferida depende da observância, por parte do recorrente, dos requisitos formais indicados no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, em concreto da delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que, em seu entender, impõem[13] decisão diversa da recorrida, e (quando disso seja o caso) das que devam ser renovadas, especificações estas que hão-de ser feitas de acordo com o estabelecido no n.º 4 do preceito acima referido.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda (apenas ou mesmo simultaneamente com a impugnação da matéria de facto nos termos acabados de referir), obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) – de resto, de conhecimento oficioso, como mencionámos já supra –, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” como expressamente permitido no n.º 2 do apontado artigo 410.º. Esses vícios, os três que vêm enumerados nas alíneas deste preceito (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova), terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Como dito, não concorrem no caso sub judice.

3.3. Revertendo ao mesmo, recordemos, antes de mais, os pontos da matéria de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados em confronto com a prova que foi produzida:

4. Desde o facto 3., a arguida M chegou a proibir o seu pai de ir à casa de banho durante a noite para não a acordar com o barulho, obrigando-o a usar a fralda ou o bacio no quarto.

5. Quando o seu pai se encontrava sujo, a arguida começava a chamá-lo de “porco”; “burro”; “estúpido” e “parvo.”

6. Por vezes, a arguida obrigava o pai a lavar o chão que havia sujado com urina.

7. Durante o ano 2007, quando a arguida falava com o seu pai fazia-o sempre em tom alto e áspero. Desde cerca de Novembro de 2007 a arguida gritava de forma brusca com seu pai diariamente.

8. No dia 26 de .. de 2008, pelas 7.00 horas, quando JZ se encontrava na casa de banho, a arguida começou a gritar com ele, sendo que a dada altura o mesmo caiu no chão.

9. Depois disto, a arguida exclamou “bem feito” e abandonou momentaneamente o local onde o seu pai se encontrava sem lhe prestar auxílio.

10. Apercebendo-se desta situação, JM também filho de JZ, que morava no rés-do-chão direito do mesmo prédio, por baixo da arguida e seu pai, foi socorrê-lo, vindo a encontrá-lo sozinho e tombado na casa de banho lamentando-se e pedindo: “leva-me daqui, filho.”

11. Como consequência daquela queda, JZ acabou por receber tratamento hospitalar e após alta foi alojado em instituição de terceira idade onde permaneceu até falecer.

12. Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, querendo causar mal-estar ao seu pai, molestá-lo psiquicamente e prejudicar a sua saúde, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei.

Resulta à evidência das conclusões do recurso (e, mais esclarecidamente, ainda, da motivação do mesmo) que as razões da discordância da recorrente relativamente à forma como o tribunal recorrido decidiu estes segmentos da matéria de facto se prendem, única e exclusivamente com o facto de a convicção ter assente em depoimentos que, em seu entender, não mereciam credibilidade – e não em qualquer discrepância entre o que foi dito e o que foi considerado provado. E nenhuma discrepância desta natureza existe, de facto, pois, através da audição dos registos magnetofónicos da prova oral produzida em julgamento, facilmente se constata que nenhuma das pessoas ouvidas prestou declarações contrárias à forma como o tribunal recorrido demonstrou tê-las percebido e que os meios de prova indicados na motivação como sustentáculo da decisão de facto conferem plausibilidade à forma como foi formada a convicção alcançada.
Desses registos extrai-se que, em julgamento, foram apresentadas duas versões inconciliáveis.

Uma, avançada pela recorrente, negando o cometimento dos factos acima indicados e acolhidos como provados na decisão recorrida. Em sustento dessa versão, apresentaram-se diversas testemunhas:  S. presente no episódio de 26 de Janeiro de 2008, relatando que nessa altura a arguida (sua irmã) não utilizou a expressão “bem feito”, além de que nunca ouviu a arguida dirigir expressão injuriosa a seu pai, ou presenciou que ela o tivesse obrigado a limpar o chão; L referindo que o idoso se apresentava bem tratado e cuidado, sendo que não mostrou desagrado em regressar a casa de sua filha (a arguida); JP; N ; JG  e MG), familiares da arguida, sustentaram que sendo presença constante na sua residência, nunca presenciaram actos que denunciassem qualquer mau trato da arguida a seu pai; E, amigo da arguida, e presença de sua casa, nomeadamente aos fins-de-semana, depôs em igual sentido; J C, mencionou os cuidados que a arguida manteve para com seu pai enquanto ele esteve na unidade hospitalar.

A outra, fornecida pelas testemunhas JM e sua esposa, respectivamente irmão e cunhada da arguida, referindo as expressões e modos utilizados pela arguida para com seu pai; o episódio de 26 de Janeiro e utilização da expressão “bem feito” (apenas o primeiro); a necessidade de conduzir seu pai ao Hospital e depois a uma instituição para permanência até ao final dos seus dias; o apelo que o falecido lhe dirigiu no sentido de o retirar de casa da filha visto o tratamento indevido que aí lhe era dado.

O tribunal recorrido manifestamente que não deixou de ponderar a natureza dos factos que estavam em causa [ocorridos a coberto do sossego (?!) do lar], e sequer a existência de conflitos familiares, opondo os depoentes JM e esposa, e os demais mencionados como familiares entre si. Não obstante, reconheceu credibilidade aos daqueles dois. E explicitando devidamente, precisando do porquê da prova de cada facto concreto, sem que se vislumbre no percurso lógico seguido qualquer incorrecção ou afrontamento das regras da experiência comum.

A existência do mencionado conflito não descredibilisa, só por si, os depoimentos apresentados contra quem circunstancialmente está na posição de arguido e até, por isso, goza de um estatuto próprio e com regras de privilégio (de presunção de inocência, v.g.). É que, como retorquiu o Ministério Público em 1.ª instância, caso assim fora, em sede de audiência e julgamento apenas seriam valorados os depoimentos de testemunhas de acusação que tivessem uma relação cordial com os arguidos! O que nem sempre se verifica.

As testemunhas de defesa inquiridas afirmaram, em uníssono, que a arguida sempre cuidou do seu pai durante muitos anos, mais propriamente desde 1999 a Janeiro de 2008. Todavia, tal facto não invalida os depoimentos das duas testemunhas de acusação – JM e JU –, pois que ambas não questionaram tal evidência, mas sim e apenas a forma como o pai da recorrente passou a ser tratado nos últimos anos, como consequência do desgaste emocional sofrido pela própria arguida em virtude do agravamento do estado de saúde do pai, o que esta até concedeu ter acontecido.

Também não procede a alegação da arguida no sentido em que as duas testemunhas alicerçadoras da convicção do Tribunal a quo se limitaram a relatar um conjunto de factos a que não assistiram directamente, não podendo afiançar, com toda a certeza, quem proferia as expressões por eles invocadas, a quem eram dirigidas e em concreto por quem.

Se a presencialidade foi, em parte, circunstância não verificada, certo é que se não pode olvidar o facto de tais testemunhas residirem à data no r/c do edifício em cujo 1.º andar residia a arguida e seu pai. Com mais pormenor, ainda, indicaram que o quarto do pai de JM se situava por cima do seu quarto, e que a arguida gritava, o que manifestamente torna mais fácil a percepção e o modo das palavras utilizadas [porco; não é aí, você tem que limpar aqui; burro; estúpido; parvo; se não está quieto, amarro-o – isto durante a noite -], sabido também serem os dois os únicos residentes do dito 1.º andar.

No que concerne ao episódio de 26 de .. de 2008, afirmou a testemunha JM inequivocamente que a arguida exclamou “bem feito”, pese embora as sucessivas instâncias no sentido inclusive de ponderar da bondade deste seu depoimento.

Em suma, nem no confronto dos factos dados como provados com a prova produzida, nem nos juízos formulados na apreciação da prova, constantes da fundamentação da matéria de facto, se evidencia qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis.
De referir, ademais, que no caso vertente não tem ainda qualquer cabimento a invocação do princípio
in dúbio pro reo.

Este princípio é uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se a final persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição ao aludido artigo 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental.

Ora, relativamente aos factos descritos nos pontos em análise, a M.ma julgadora não se defrontou com dúvidas que tivesse resolvido contra a recorrente, nem demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, nada impunha que a devesse ter tido. Não se verificou, pois, qualquer violação do aludido princípio.

De tudo o que deixámos exposto retira-se a conclusão de que a recorrente pretendeu apenas, sem qualquer fundamento, fazer substituir pela sua a convicção formada pela julgadora; ora, não impondo a prova produzida em audiência decisão diversa da recorrida e havendo que considerar a convicção formada pela julgadora – porque possível, plausível, conforme com as regras da experiência comum e assente em provas não proibidas por lei –, validamente formada ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, é inegável mostrar-se o recurso improcedente.


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IV – Decisão.

São termos pelos quais se nega provimento ao recurso interposto e, consequentemente, se mantém o decidido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.

Notifique.


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Coimbra, 3 de Março de 2010



[1] Cfr. Código de Processo Penal de Maia Gonçalves, 12.ª ed., pág. 339.
[2] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I.º volume, pág. 202.

[3] Com interesse neste particular, veja-se este trecho retirado do Ac. T.C. 198/2004 de 24/3/04, DR, II S., de 2/6/04: “O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.

Como ensina Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, pp. 135 e segs.), na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

A recolha de elementos — dados objectivos —, sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

Sobre esses dados recai a apreciação do tribunal — que é livre — artigo 127.º do Código de Processo Penal mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

A liberdade da convicção aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a da percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dúbio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.”
[4] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág. 298.

[5] “ (…) há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. n.º 245/06-1.

[6] Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe”.
[7] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I.º Volume., págs. 233-234.
[8] Cfr. Ac. RC de 6/3/02, CJ, ano XXVII, t. II, pág. 44, “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
[9] Cfr. Ac. RC de 6/3/02, CJ, ano XXVII, t. II, pág. 44, “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.

[10] Cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28.

[11] Cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. n.º 06P763.
[12] Cfr. Ac. STJ 12/6/08, proc. n.º 07P4375 .

[13] “Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” - Ac. STJ 17/2/05, processo n.º 04P4324.