Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
395/13.6TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
ÓNUS DO SENHORIO.
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – S. PEDRO DO SUL – INST. LOCAL – SEC. COMP. GENÉRICA – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 79/2014, DE 19/12.
Sumário: I) No domínio dos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, não cabe ao senhorio, em sede de ação de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

II) Nos casos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em ações de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada em função do valor tributário constante da caderneta predial, uma qualquer possibilidade, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

III) A competência dos tribunais comuns para os efeitos de sindicarem o valor tributário referido em II) na base de uma apreciação de todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.

Decisão Texto Integral:      




      Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

           I – Relatório

           A autora propôs contra os réus a presente acção com a forma de processo comum pedindo que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento existente entre a autora e os réus, aquela como locadora e estes como locatários, incidindo sobre o prédio identificado no art. 1º da petição inicial, com a consequente condenação dos réus a entregarem o arrendado no prazo de dez dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença que decretar a peticionada resolução, bem assim como a condenação dos réus a pagarem-lhe a quantia de 501 euros, correspondente às rendas vencidas e não pagas de Outubro a Dezembro de 2013, as rendas vincendas a partir de Janeiro de 2014 e a indemnização nos termos e valores referidos no art. 1045º/1/2 do CC, até à entrega do locado, e os juros moratórios à taxa legal a contar do vencimento de cada uma das rendas em dívida e até integral pagamento.

Como fundamento da sua pretensão alegou, em resumo, que: é dona do imóvel identificado no art. 1º da petição, do qual os réus são locatários; no ano de 2013, os anteriores donos desse prédio e então locadores promoveram a transição do contrato para o novo regime do arrendamento urbano (NRAU – Lei 6/2006, de 27/2, com a redacção então em vigor), tendo proposto como novo valor da renda mensal o de 217 euros, em actualização do de 21,21 euros mensais que então era devido, e um novo prazo de vigência de dois anos; os réus não aceitaram tal valor, ao qual contrapropuseram o de 50 euros mensais, não tendo igualmente aceitado o prazo de vigência proposto; nesse enquadramento, os então locadores comunicaram aos réus que a renda actualizada seria a dos 217 euros mensais inicialmente propostos, a qual deveria ser paga a partir de Julho de 2013; por referência aos meses de Outubro a Dezembro de 2013, os réus apenas pagaram a renda mensal de 50 euros, incorrendo por isso na causa de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento pontual da renda devida.

Os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção.

Alegaram, em resumo, que: não tendo havido consenso quanto ao novo valor da renda a pagar, inexistia fundamento legal para que fosse decretada a resolução de um contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas cujo valor não foi acordada entre senhorio e inquilino; são inconstitucionais as normas dos artigos 30º a 37 do NRAU, quando interpretadas no sentido de permitirem a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio por falta de pagamento de uma renda que não foi consensualizada com os locatários, neste caso por violação do art. 65º/4 da CRP, ou quando interpretadas no sentido de permitirem tal resolução sem que previamente confiram ao inquilino a possibilidade de ver fixada, por decisão judicial, o valor da renda devida, neste segmento por violação do art. 20º da CRP; o valor patrimonial tributável do imóvel arrendado não corresponde ao de 39.140 euros e com base no qual os anteriores locadores propuseram a renda mensal de 217 euros, tendo em conta, designadamente, que a idade do imóvel locado não era a de 30 anos; esse valor não poderia exceder o de 10.000 euros, com base no qual os réus contrapropuseram a renda mensal de 50 euros; o aumento da renda de 21,21 euros mensais para 217 euros mensais constituiria um verdadeiro abuso de direito.

Respondeu a autora para, em resumo, sustentar que o valor patrimonial tributário de 39.140 euros do imóvel locado foi correctamente determinado, pois que esse imóvel tinha realmente 30 anos à data do pedido de avaliação formulado em Fevereiro de 2013.

O processo seguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Assim, pelo exposto:

a) Declaro resolvido o contrato de arrendamento pelo qual é locadora a A., e locatários os Réus, tendo por objecto o prédio/casa de habitação descrita no ponto 1 da factualidade apurada.

b) Condeno os Réus a entregarem à A. a casa de habitação supra referida, no prazo de 30 dias a contar do trânsito da presente sentença.

c) Condeno os Réus a pagarem à A. a importância de 501 euros, correspondente ao montante em dívida das rendas referentes aos meses de Outubro a Dezembro, todos de 2013.

d) Condeno os Réus a pagarem à A. os juros moratórios incidentes sobre o montante em dívida por referência a cada um daqueles 3 meses, contados da data do respectivo vencimento (dia 1 de cada mês) e até integral pagamento.

e) Condeno os Réus a pagarem o montante relativo às rendas correspondentes aos meses de Janeiro de 2014 (inclusive) e posteriores até ao trânsito da presente sentença, bem como, a título indemnizatório, o valor mensal correspondente a tal renda (desde o trânsito e até 30 dias após o mesmo), e o dobro desse valor (mensal) a partir de então, até efectiva entrega do locado.

f) Condeno os Réus a pagarem à A. os juros moratórios incidentes sobre as rendas, montantes ou indemnizações em dívida por referência aos meses de Janeiro de 2014 e posteriores, contados da data do respectivo vencimento e até integral pagamento.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelaram os réus, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões: ...

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

           Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

) se foram violados o disposto no art. 607º/3 ab initio do NCPC, o princípio da legalidade e o dever de fundamentação das decisões judiciais, bem como os artigos 20º/4, 205º/1 da CRP e 154º do NCPC, pelo facto de não se ter dado como provado o valor patrimonial do imóvel constante do relatório pericial e ao não se fundamentar esta não inclusão do resultado da perícia nos factos dados como provados;

) se no domínio dos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução;

) se foi indevidamente fixado em 39.140 euros o valor patrimonial tributário do imóvel locado calculado na avaliação a que esse imóvel foi sujeito em Fevereiro de 2013 e se, por isso, a renda exigida aos réus de 217, 44 euros era superior à permitida legalmente;

) se o depósito bancário feito pelos réus e que está documentado a fls. 81 extinguiu o direito da autora a resolver o contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento de rendas;

) se a interpretação feita pelo tribunal recorrido dos artigos 30º a 35º da Lei 6/2006, que aprovou o NRAU, e dos artigos 1083º/3, 1041º/1 e 1048.º do CC violam o princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no princípio do estado de direito democrático previsto no artigo 2º da CRP, bem assim como o estatuído nos arts. 20º e 65º da mesma CRP.

III – Fundamentação

           A) De facto

           Os factos provados

           O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

           “1 – A A. é dona de uma casa de habitação sita no nº 13 da Rua ..., inscrita na matriz predial urbana da ...

2 – Por acordo verbal celebrado, há mais de 30 anos, entre os Réus e os anteriores donos daquela casa de habitação (J... e mulher), estes, pelo prazo de um ano, e contra o pagamento, no dia um de cada mês, de uma determinada importância mensal, cederam aos Réus o uso da sobredita casa.

3 – Em Junho de 2013 o valor mensalmente pago pelos Réus aos donos da casa ascendia ao montante de 21,21 euros.

4 – Por carta datada de 5.4.13, recebida pela Ré a 9.4.13, os anteriores donos da casa de habitação descrita em 1 comunicaram aos Réus a sua intenção de transitarem o contrato de arrendamento para o regime do NRAU, tendo para o efeito proposto a renda mensal de 217 euros, e um prazo de 2 anos para a duração do contrato.

5 – Com a carta referida em 4 os remetentes juntaram cópia da caderneta predial urbana referente a tal casa, e mais referiram que o valor patrimonial do imóvel, para efeitos tributários, ascendia a 39.140 euros.

6 – O teor da caderneta predial de fl. 80 (cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido), da qual consta que o prédio ali identificado (artigo ...) foi avaliado a 12.2.13, na sequência de pedido efectuado em 7.2.13, tendo sido determinado o valor de 39.140 euros.

7 – Por carta datada de 6.5.13 os Réus comunicaram aos anteriores donos da casa que não aceitavam o proposto valor da renda, pois que o valor patrimonial obtido (39.140 euros) seria excessivo e teria sido obtido incorrectamente, tanto mais que a casa já fôra objecto de ma avaliação tributária durante o ano de 2009, tendo sido obtido o valor de 21.080 euros, e que este seria o valor a considerar para efeitos de aumento da renda.

8 – Com a carta referida em 7 os Réus juntaram cópia dos seus bilhetes de identidade, bem como a nota de liquidação do IRS (liquidação efectuada a 4.6.12) referente ao ano fiscal de 2011, da qual constava um rendimento global de 17.865,82 euros.

9 – Ainda com a carta referida em 7 os Réus invocaram terem mais de 65 anos de idade, e contrapropuseram o valor mensal de 50 euros para efeitos da renda devida.

10 – Com a carta referida em 7 os Réus não juntaram qualquer documento comprovativo do seu RABC (rendimento anual bruto corrigido), ou qualquer comprovativo de o terem solicitado ao serviço de finanças.

11 – Por carta datada de 23.5.13, recebida pelo Réu a 27.5.13, os anteriores donos da casa de habitação comunicaram que a renda que lhes seria devida seria aquela de 217 euros mensais, a pagar a partir do mês de Julho de 2013.

12 – Por carta datada de 30.5.13 o Réu respondeu à carta referida em 11, anexando uma declaração emitida pelo serviço de finanças a 29.5.13, através da qual era atestado que nessa mesma data o Réu requerera a emissão de documento comprovativo do RABC do seu agregado familiar.

13 – Por carta datada de 31.7.13 o Réu enviou aos anteriores donos da casa de habitação a declaração de cálculo do RABC do seu agregado, datada aquela da mesma data de 31.7.13, rendimento esse que ascendia, por referência ao ano fiscal de 2012, ao montante de 15.828,02 euros.

14 – Por carta datada de 30.9.13, recebida pelos Réus a 1.10.13, a A. comunicou que havia adquirido a casa de habitação descrita em 1, e que deveriam passar a pagar a renda por depósito ou transferência para o NIB x, e que o valor da renda mensal a pagar seria aquele de 217 euros.

15 – Em Outubro, Novembro e Dezembro, todos de 2013, os Réus depositaram no NIB x, para pagamento da renda, o montante mensal de 50 euros.

16 – Por declaração entregue no serviço de finanças em 20.11.07, para efeitos de actualização matricial de prédios urbanos, a c. c. da herança aberta por óbito de J..., anterior proprietário da casa referida em 1, apontou a tal imóvel, entre outras, as seguintes características:

a) Quanto à tipologia/número de divisões, que correspondia a um T2;

b) Quanto à área total do terreno que a mesma ascendia a 260 mts2;

c) Quanto à idade do imóvel apontou 86 anos;

d) Declarou a existência de áreas inferiores às regulamentares.

17 – Com base nos dados constantes da declaração referida em 16, excepção feita à tipologia/número de divisões, que os serviços tributários ‘consideraram’ serem 3, tais serviços avaliaram o imóvel em apreço, daí resultando um valor patrimonial não concretamente apurado.1

18 – A mesma c. c. da herança aberta por óbito de Joaquim de Lima entregou no serviço de finanças, em 7.2.13, uma declaração para actualização matricial de prédios urbanos, por referência ao imóvel em apreço, fundando tal pedido na feitura de uma nova avaliação.

19 – Em tal declaração, aludida em 18, apontou ao imóvel, entre outras, as seguintes características:

a) Quanto à tipologia/número de divisões, indicou 3;

b) Quanto à área total do terreno que a mesma ascendia a 368,50 mts2;

c) Quanto à idade do imóvel apontou 30 anos;

d) (Não) declarou a existência de áreas inferiores às regulamentares.

20 - Com base nos dados constantes da declaração referida em 18/19, os serviços tributários avaliaram o imóvel em apreço, daí resultando o valor patrimonial de 39.140 euros.

21 – A casa referida em 1 não dispõe de uma rede interna de distribuição de água.

22 – Em função do facto referido em 21 a casa de banho não dispõe de água canalizada.

23 – As paredes exteriores de tal casa não dispõem de ‘caixa de ar’.

24 – Ocorrem infiltrações de água no interior da casa.

25 – Em datas não concretamente apuradas, os Réus efectuaram obras na casa referida em 1, concretamente:

a) pintura de paredes;

b) reparação do forro do telhado e lavagem da respectiva telha;

c) colocação de portões à entrada do logradouro da casa.

26 – Em 3.2.14 o Réu procedeu ao depósito, na CGD, em nome da A. mas à ordem deste tribunal de S. Pedro do Sul, do montante de 1.002 euros, consignando no respectivo formulário que tal depósito era efectuado ao abrigo do artº 18º do NRAU, e indicando a existência de divergências entre o senhorio e o inquilino quanto ao valor da renda.

27 – A casa de habitação referida em 1 foi construída por volta do ano de 1980.

28 – Para o efeito foi utilizado o espaço de um antigo curral composto de um só piso.”.

Em sede de reapreciação da matéria de facto será introduzido um novo ponto na matéria de facto provada, com o nº 29.

B) De direito

           Primeira questão: se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

           O objecto da discórdia dos apelantes reporta-se aos pontos 6º) e 17º) dos factos descritos como provados e incide sobre o valor patrimonial tributável, para efeitos de IMI do imóvel objecto do arrendamento, sobre o qual foi produzida prova documental autêntica que consta de fls. 71 a 73 (modelo 1 de IMI entregue no dia 7/2/2013), 74 a 77 (modelo 1 de IMI entregue no dia 20/11/2007), 78/79 (caderneta predial urbana obtida em 7/3/2013) e 80 (caderneta predial urbana obtida em 5/4/2013).

Sobre essa mesma matéria foi produzida nos autos prova pericial tendente a determinar, por referência ao mesmo imóvel, “… um valor patrimonial a encontrar segundo os critérios da lei tributária, mas com prévia deslocação de avaliador ao local.” (despacho de 12/2/2015 – referência Citius ...), perícia essa de que foi encarregado o engenheiro ..., pessoa regularmente designada pela Repartição de Finanças de ... para efeitos de avaliação tributária de imóveis urbanos.

O relatório pericial consta de fls. 127 a 130, complementado a fls. 135.

Neste enquadramento, existe total conformidade entre o teor documental autêntico de fls. 80, com a matéria feita constar do ponto 6º) dos factos descritos como provados, do seguinte jaez: “O teor da caderneta predial de fl. 80 (cujo teor, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido), da qual consta que o prédio ali identificado (artigo ...) foi avaliado a 12.2.13, na sequência de pedido efectuado em 7.2.13, tendo sido determinado o valor de 39.140 euros.” – trata-se, pois, da avaliação a que os serviços de finanças sujeitaram o imóvel em questão e do resultado dessa avaliação, independentemente do (des)acerto desse resultado.

No ponto 17º) dos factos provados, deu-se como demonstrado que com base na declaração modelo 1 documentada a fls. 74 a 77 os serviços de finanças procederam a uma outra avaliação tributária do mesmo imóvel “…daí resultando um valor patrimonial não concretamente apurado.”.

Ora, o certo é que da prova documental autêntica que dos autos consta não se vislumbra minimamente que tal declaração tenha originado a referenciada avaliação.

Em contrapartida, dos autos consta prova documental autêntica de que foi entregue nos serviços tributários competentes e por referência ao mesmo imóvel um modelo 1 de IMI datado de 14/7/2009, que deu origem a uma avaliação tributária de 25/7/2009, com atribuição de um valor tributário de 21.870, 50 euros (fls. 78 e 79).

Assim, o referenciado ponto 17º) passará a ter a seguinte redacção: “Por referência ao imóvel descrito no ponto 1º) dos factos provados, foi entregue no serviço de Finanças de ... um requerimento do tipo modelo 1 do IMI, no dia 14/7/2009 e com o nº ..., o qual deu origem a uma avaliação tributária desse imóvel realizada no dia 25/7/2009, tendo sido apontado a esse imóvel o valor patrimonial tributário de 21.870, 50 euros.”.

Finalmente, face à prova pericial que dos autos consta, dá-se ainda como provado, sob um novo nº 29, o seguinte: “Realizou-se no âmbito destes autos uma perícia tendente a determinar o valor patrimonial do imóvel descrito no ponto 1º) dos factos provados, com observância dos critérios da lei tributária aplicável, mas com prévia deslocação de avaliador ao local, perícia essa de que foi encarregado o engenheiro ..., pessoa regularmente designada pela Repartição de Finanças de ... para efeitos de avaliação tributária de imóveis urbanos, sendo atribuído ao dito imóvel o valor patrimonial tributário de 37.910 euros para o caso de lhe ser atribuída uma idade de 30 a 33 anos ou de 20.220 euros para o caso de lhe ser atribuída uma idade de 86 anos.”.

A questão de saber qual o valor patrimonial tributário relevante para os efeitos de determinação da renda devida pelos apelantes contende com a integração jurídica dos factos dados como provados e não propriamente com a decisão sobre a matéria de facto.

São estes os termos em que se decide a impugnação da matéria de facto por parte dos apelantes.

Segunda questão: se foram violados o disposto no art. 607º/3 ab initio do NCPC, o princípio da legalidade e o dever de fundamentação das decisões judiciais, bem como os artigos 20º/4, 205º/1 da CRP e 154º do NCPC, pelo facto de não se ter dado como provado o valor patrimonial do imóvel constante do relatório pericial e ao não se fundamentar esta não inclusão do resultado da perícia nos factos dados como provados.

           A discussão desta questão está prejudicada pela matéria que foi feita constar do ponto 29º) aditado aos factos descritos como provados, do qual constam os resultados avaliativos referenciados no relatório pericial em causa.

Terceira questão: se no domínio dos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

           Como é sabido, a Lei 6/2006, de 27/2, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 31/2012, de 14/8, em vigor à data em que se iniciou o procedimento de transição e actualização despoletado pela comunicação de 5/4/2013 identificada no ponto 4º) dos factos descritos como provados, permitiu a transição para o regime do NRAU dos arrendamentos habitacionais anteriores ao RAU e do tipo do que nos autos está em consideração, bem assim como a actualização das correspondentes rendas.

Prescrevia o artigo 30º do NRAU em vigor a essa data que “A transição para o NRAU e a actualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:

a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;

b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;

c) Cópia da caderneta predial urbana.”.

Flui da norma acabada de transcrever que numa primeira linha e na ausência de divergências a esse respeito entre locador e locatário, o valor do locado relevante para os efeitos em análise é o que constar da caderneta predial urbana em resultado da sua avaliação a efectuar nos termos do CIMI.

Importa dizer, também, que a avaliação tributária é efectuada segundo critérios legalmente enunciados nos arts. 38º a 46º do CIMI, em primeira linha de competência por peritos avaliadores locais a operar nos serviços de finanças locais (arts. 63º e 64º do CIMI), com eventuais segunda avaliação e impugnação judicial para os Tribunais Tributários (arts. 76º e 77º do CIMI).

A significar, em última análise, que embora o dono do imóvel possa despoletar o procedimento de primeira avaliação tributária (art. 37º/1 do CIMI) ou de subsequentes avaliações da mesma natureza (art. 130º/3/4 do CIMI), possa desencadear a segunda avaliação ou a impugnação judicial da segunda avaliação (arts. 76º e 77º do CIMI), o certo é que o resultado final da avaliação tributária nunca é por si definido, assistindo a terceiros (serviços tributários ou tribunais tributários) a competência exclusiva para com a força própria do caso administrativo decidido, que se forma em torno das decisões administrativas que se consolidaram definitivamente por já não serem juridicamente susceptíveis de impugnação contenciosa, ou do caso julgado judicial, que se forma em torno das decisões judiciais que transitaram em julgado, determinar o valor patrimonial tributário do imóvel locado.

Neste enquadramento, em que o valor patrimonial tributário do imóvel se encontra já definitivamente fixado, ainda por cima por entidade terceira em relação ao locador, dificilmente pode conceber-se que este esteja onerado com o ónus de alegação e prova da factualidade relevante que esteve subjacente à quantificação daquele valor.

Aliás, para que dúvidas não subsistissem sobre a matéria, o próprio legislador veio cometer ao inquilino, através da nova redacção que a Lei 79/2014, de 19/12 (RNRAU), conferiu ao NRAU, o ónus de impugnação do valor patrimonial tributário constante da caderneta predial do imóvel locado (cfr. art. 31º/6 do RNRAU e a disposição transitória do art. 6º da Lei 79/2014), competindo-lhe por isso o correspondente ónus de alegação e prova.

No entanto, em casos como o dos autos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da Lei 79/2014, de 19/12, não estava reconhecida ao inquilino a faculdade de impugnação acabada de ser enunciada, a significar que o inquilino estava absolutamente impedido de suscitar no âmbito tributário qualquer incidente ou mecanismo processual tendente a alterar o valor patrimonial do locado constante da caderneta predial, por mais errado e contra legem que o mesmo se apresentasse.

Daí resultaria, directa e consequencialmente, uma impossibilidade absoluta do locatário poder impugnar a renda que o locador passasse a exigir-lhe com base naquele valor tributário e da qual discordasse por igualmente discordar deste último, mesmo em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento da renda actualizada unilateralmente pelo locador em função desse valor tributário não aceite pelo locatário.

Ora, como é sabido, a nossa CRP garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).

Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/2013: “O direito de acesso aos tribunais, enquanto fundamento do direito geral à protecção jurídica, traduz-se na possibilidade de deduzir junto de um órgão independente e imparcial com poderes decisórios uma dada pretensão (o pedido de tutela jurisdicional para um direito ou interesse legalmente protegido), pelo que implica uma série de interacções entre quem pede (autor), quem é afectado pelo pedido (réu) e quem decide (juiz), a que corresponde o processo. E a disciplina deste último – o processo em sentido normativo – encontra-se submetida à exigência do processo equitativo: o procedimento de conformação normativa deve ser justo e a própria conformação deve resultar num “processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. XVI ao artigo 20.º, p. 415). Se tal exigência não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, a mesma “impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo (Ac. n.º 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” (cfr. Rui Medeiros in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. XVIII ao artigo 20.º, p. 441). […]”.

Por outro lado, o mesmo Tribunal deixou escrito a este mesmo respeito, no seu acórdão n.º 778/2014, o seguinte: “O artigo 20.º da Constituição, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva», garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de acção, no sentido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).

Acresce ainda que o direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, Volume I, págs. 415 e 416).

Importa ainda salientar que a exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. No entanto, no seu núcleo essencial, tal exigência impõe que os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.» (v., também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 235/2011, 350/2012, 839/2013, 204/2015 ou 569/2015).” – sobre esta temática do direito de acesso aos tribunais e a um processo justo e equitativo, nas diferentes valências em que os mesmos devem concretizar-se, pode consultar-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 462/2016

Assim sendo, particularmente no âmbito do arrendamento habitacional em que estão em causa interesses particularmente sensíveis e dignos de tutela constitucional por via, designadamente, da consagração do direito à habitação (art. 65º/1 da CRP)2, como direito individual e das famílias3 de que emergem necessariamente limitações às medidas privativas da habitação (v.g. em matéria de despejos), no âmbito do vigência do NRAU anterior à entrada em vigor da 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em acções de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada unilateralmente pelo senhorio em função do valor tributário constante da caderneta predial e em desacordo com o locatário, uma qualquer possibilidade processual, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada unilateralmente e com a oposição do locatário a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

Por outro lado, não se diga que a competência nessa matéria cabe exclusivamente às autoridades administrativas e judiciais tributárias, com o consequente impedimento dos tribunais comuns sindicarem o valor tributário por aquelas fixado.

Essa competência dos tribunais comuns em que decorram acções daquele tipo para discutir e decidir sobre todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.

Porém, o reconhecimento ao locatário e ao tribunal comum daquelas faculdade e competência não podem ter como efeito deslocar-se para o senhorio o ónus de alegação e prova que ora está em apreciação, o qual deve recair sobre o inquilino, por estarem em causa, em relação aos efeitos decorrentes do valor patrimonial tributário do locado para a fixação de nova renda, factos impeditivos do direito a que o senhorio se arroga a cobrar a nova renda fixada a partir do valor tributário fixado com força de caso decidido ou de caso julgado, mas que o inquilino não aceita e pretende impugnar (art. 342º/2 do CC).

Tudo para concluir, pois, que não compete ao senhorio, no caso à aqui autora, o ónus de alegação e prova que está em apreço, competindo antes aos inquilinos, ora réus, o ónus de alegação e prova em relação aos factos relevantes para se poder concluir pelo desacerto do valor patrimonial tributário fixado pelas autoridades administrativas ou judiciais tributárias.

Quarta questão: se foi indevidamente fixado em 39.140 euros o valor patrimonial tributário do imóvel locado calculado na avaliação a que esse imóvel foi sujeito em Fevereiro de 2013 e se, por isso, a renda exigida aos réus de 217, 44 euros era superior à permitida legalmente.

           Comece por dizer-se que o valor tributário relevante para os efeitos em análise é o que constar da caderneta predial à data do início do procedimento de transição e de actualização de renda, o qual se iniciou no caso dos autos em 5/4/2013 (ponto 4º dos factos provados).

Em segundo lugar importa ter em consideração que o intuito fraudulento, a intenção de extorquir dinheiro, a alegação de factos falsos, o propósito de prejudicar os réus alegados pelos mesmos nos arts. 23º, 28º, 31º da contestação não encontra o mínimo respaldo nos factos provados.

Isto dito, importa ter em conta que o valor patrimonial tributário de um prédio urbano deve ser calculado de acordo com a fórmula enunciada no art. 38º/1 do CIMI, ou seja, Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv, em que: Vt = valor patrimonial tributário; Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização; Cq = coeficiente de qualidade e conforto; Cv = coeficiente de vetustez.

Está dado como provado, sem impugnação de quem quer que seja, que o imóvel locado foi construído por volta do ano de 1980 (ponto 27º dos factos provados), razão pela qual o coeficiente de vetustez de 0,75 utilizado pela autoridade tributária na avaliação de 2013 respeita o comando normativo do art. 44º do CIMI.

Também não se vislumbra matéria de facto relevante para colocar em causa os valores utilizados pela autoridade tributária para efeitos do Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização.

No que concerne ao coeficiente de qualidade e conforto, utilizou a autoridade tributária o de 0,96.

A nosso ver indevidamente.

Esse coeficiente é calculado a partir da unidade, podendo ser majorado até 1,7 e minorado até 0,5, adicionando-se à unidade os coeficientes majorativos e subtraindo-se os minorativos que constam da Tabela I anexa ao art. 43º do CIMI.

No caso em apreço não se vislumbra matéria de facto que permita efectuar qualquer espécie de majoração.

No que concerne a minorações, temos que: i) flui do ponto 21º) dos factos provados que o locado não dispõe de rede privada de água, o que corresponde a um coeficiente minorativo de 0,08; ii) ocorrem infiltrações de água no interior do locado (ponto 24º dos factos provados), o que não pode deixar de ser valorizado nos termos e para os efeitos do coeficiente minorativo “Estado deficiente de conservação”, mesmo que pelo seu mínimo (0,01).

Em face do que antecede, e mesmo desprezando os coeficientes minorativos de inexistência de rede pública ou privada de gás (0,02) e de existência de áreas inferiores às regulamentares (0,05) que estão invocados na perícia documentada a fls. 127 e 128 mas que não encontram respaldo nos factos provados, logo se verifica que o coeficiente de qualidade e de conforto a utilizar na determinação do valor patrimonial tributário do locado não poderia exceder 0,91, razão pela qual o valor tributário em causa não poderia exceder 37.100 euros.

Partindo deste valor tributário, considerando que os inquilinos tinham, à data de início do procedimento de actualização, mais de 65 anos e invocaram-no na resposta dada ao senhorio (pontos 7 e 9 dos factos provados), a renda mensal nunca poderia exceder o valor mensal de 206, 11 euros (arts. 35º/2/a, ex vi do art. 36º/6, ambos do NRAU), inferior aos 217, 44 euros reclamados pelo senhorio (autora e seus antecessores – pontos 11º e 14º dos factos descritos como provados).

A significar que aos réus foi exigida uma renda superior àquela que o poderia ter sido, com a consequente nulidade dessa exigência, porque ofensiva de normas imperativas (arts. 35º/2/a e 32º/6 do NRAU; arts. 294º e 295º do CC), tudo devendo passar-se como se tal exigência não tivesse tido lugar (art. 289º/1 CC), com a consequente manutenção inalterada da renda que vinha sendo devida pelos réus (21, 21 euros).

Logo, ao não pagarem a referenciada renda de 217, 44 euros os réus não incorreram em mora no que concerne à obrigação do pagamento da renda invocada como fundamento da resolução do contrato de arrendamento peticionada pela autora.

Por outro lado, a resolução do contrato de arrendamento não vem peticionada com fundamento na falta de pagamento da renda de 21,21 euros acima referenciada, única que licitamente poderia ser exigida aos réus, pelo que com esse putativo fundamento não poderia ser decretada a resolução contratual peticionada pela autora.

Aliás, dos factos provados também não emerge que alguma vez os réus não tenham oferecido o pagamento desses 21,21 euros de renda.

Emerge de tudo quanto vem de referir-se que não devia ter sido decretada a resolução do contrato de arrendamento, devendo proceder a presente apelação.

Face ao decidido na questão 4ª), fica prejudicado o conhecimentos das questões 5ª) e 6º).

IV- DECISÃO

           Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se os réus das condenações que nela lhes foram impostas.

Custas pela apelada.

Coimbra, 22/11/2016.

                                                          (Jorge Manuel Loureiro)

                                                          (Maria Domingas Simões)

                                                          (Jaime Carlos Ferreira)

Sumário:

I) No domínio dos contratos de arrendamento para habitação anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, não cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

II) Nos casos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em acções de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada em função do valor tributário constante da caderneta predial, uma qualquer possibilidade, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

III) A competência dos tribunais comuns para os efeitos de sindicarem o valor tributário referido em II) na base de uma apreciação de todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.

                                                                      (Jorge Manuel Loureiro)

1 Esta redacção deste ponto é alterada em sede de reapreciação da matéria de facto.

2 Direito este cuja concretização pressupõe mediação do legislador ordinário implementadora das opções político-legislativas “… em que em princípio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas várias alíneas do nº2 do artigo 65 da CR, nem aos tribunais compete substituir o legislador nesta matéria.” (acórdão do Tribunal Constitucional 633/1995).

Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 131/92, retomado no acórdão nº 581/14, “O "direito à habitação", ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas ações ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efetividade está dependente da chamada "reserva do possível" (Vorbehalt des Möglichen),em termos políticos, económicos e sociais [cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365,e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia" - 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.].

O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efetiva, já que não é diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo.

O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei. Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é suscetível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento, quando necessitar do prédio para sua habitação.”.

Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I,


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