Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/14.1TATBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 09/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL DE TÁBUA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 211.º E 212.º DO DL N.º 10/2009, DE 16-9; ART. 3.º DO DL 73/99, DE 16-03; LEI N.º 4/2007, DE 16-01
Sumário: Na aplicação da taxa de juro por dívidas à segurança social, em condenação de indemnização cível, por procedência de pedido formulado em processo crime, por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, 105.º, 6.º e 7.º, do RGIT, e art. 30.º, do Código Penal, pelo qual os arguidos foram condenados, deve ser aplicada a lei especial, designadamente a Lei n.º 4/2007, de 16/1 que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e art. 211.º e 212.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, devendo os juros de mora ser calculados por cada mês de calendário ou fracção, de acordo com os diversos diplomas acima mencionados.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os juízes da 4.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado foram julgados, os seguintes arguidos:

1. A... , L.da, com sede na Rua (...) , Tábua, pessoa colectiva n.º (...) , registada na Conservatória do Registo Comercial de Tábua com o mesmo número;

2. B... , solteira, consultora imobiliária, nascida em 26/06/1985, natural da freguesia de (...) , concelho de Tábua, filha de (...) e de (...) , portadora do cartão de cidadão (...) , residente na Rua (...) , Torres Vedras; e 

3. C... , divorciado, desempregado, nascido em 18/08/1975, natural de França, filho de (...) e de (...) , portador do cartão do cidadão (...) , residente na Rua (...) , Barrosas.


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O Ministério Público imputa na douta acusação, a cada um dos arguidos a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, conjugados com os n.ºs 1, 4, 5 e 7, do art. 105.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/06 (“R.G.I.T.”), arts. 7.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, e 30.º, n.º 2, do Código Penal.

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O Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra deduziu pedido de indemnização civil contra os Arguidos, peticionando a sua condenação, solidária, no pagamento da quantia de 5.208,12€, relativo às cotizações em falta, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos, calculados desde o 15.º dia do mês seguinte ao que respeitam cada uma das cotizações em dívida, calculados à luz da legislação especial aplicável, que se computavam à data da apresentação do pedido, no valor de 1.538,83€, bem como dos juros vincendos até integral pagamento.

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O tribunal decidiu:

I – Julgando parcialmente procedente a acusação:

a) Condenar a arguida B... pela prática, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, 105.º, 6.º e 7.º, do RGIT, e art. 30.º, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor global de 960,00€ (novecentos e sessenta euros);

b) Condenar o arguido C... pela prática, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, 105.º, 6.º e 7.º, do RGIT, e art. 30.º, do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€, no valor global de 900,00€ (novecentos euros);

c) Condenar a arguida A... , L.da, pela prática, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, 105.º, 6.º e 7.º, do RGIT, e art. 30.º, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 8,00€, no valor global de 1.600,00€ (mil e seiscentos euros).


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II – Julgando parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra:

a) Condenar todos os arguidos a pagar, solidariamente, ao demandante a quantia de 3.079,07€ (três mil, setenta e nove euros e sete cêntimos);

b) Condenar os arguidos B... e A... , L.da, a pagar, solidariamente, ao demandante, a quantia restante de 1.013,65€ (mil e treze euros e sessenta e cinco cêntimos);

c) Condenar todos os arguidos a pagar ao demandante, os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa de juro civil, desde da data de vencimento de cada uma das obrigações contributivas, em causa nos autos, até ao efectivo e integral pagamento.


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Inconformado com a sentença, por discordar dos juros aplicados recorreu o demandante Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª - Os demandados procederam, nos períodos indicados entre “Fevereiro de 2009 a Novembro de 2010” e entre "Dezembro de 2010 e Dezembro de 2011",-, ao pagamento das remunerações laborais devidas pela prestação de trabalho tendo procedido aos descontos legais referentes às quotizações à SS de € 3.079,07 e € 1.013,65.

2.ª - Sabiam que deviam pagar esses descontos legais na SS, até 31 de dezembro de 2010 - este pagamento devia ser efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dissesse respeito (art. 5.º n.º 3 do DL 103/80, de 9 de Maio e art. 10.º n.º 2 do DL 199/99, de 8 de Junho), e a partir daquela data deve ser efectuado até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que disser respeito (artigos 43.º da lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro), ou nos 90 dias seguintes.

3.ª - Os mesmos apelados demandados não procederam a essas entregas/pagamento.

4.ª - E foram condenados, como atrás se disse em 4 e 5.

5.ª - O recorrente ISS/IP Centro distrital de Coimbra, apenas discorda da douta sentença, na parte em que condena em juros de mora à taxa civil de 4% nos termos gerais (artigo 806.°, n.º 1 e 2 do Código Civil), e não nas taxas previstas na legislação especial por dívidas à Segurança Social.

6.ª - De facto, os juros do demandante, nos termos dos artigos 211.º e 212.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (C.R.C.S.P.S.S.), instituído pela Lei da lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro e do art. 18.º do revogado do Dec. - Lei 103/80, de 9 de Maio e art. 16.º do revogado Dec. -Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro, devem ser calculados por cada mês de calendário de acordo com a legislação, e as taxas em vigor durante o período contributivo em dívida e até ao presente devem ser apuradas nos termos do artigo 3.° do DL n.º 73/99, de 16 de Março (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3-8/2010 de 28 de abril e pela Lei n.º 55-A/2010 de 31 de Dezembro).

7.ª - Nos lermos legais, as entidades patronais que efectuarem pagamentos pela prestação de trabalho, têm de proceder aos descontos referentes às quotizações devidas à SS, devendo entregar estes descontos até 31 de dezembro de 2010. Este pagamento devia ser efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disser respeito (art. 5.º, n.º 3 do DL 103/80, de 9 de Maio e art. 10.º n.º 2 do DL 199/99, de 8 de Junho), e a partir daquela data deve ser efectuado até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que disser respeito (artigos 43.º da lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro), ou nos 90 dias seguintes.

8.ª - Provou-se que os demandados pagaram as remunerações devidas pela prestação de serviço tendo, nos prazos referidos, procedido aos legais descontos referentes às quotizações para a SS mas, retiveram esses descontos, não os tendo pago, quando deviam e foram os demandados condenados no pagamento desses descontos das quotizações para a SS e como caíram ou entraram em mora, por não terem pago quando deviam ter feito, foram condenados em indemnização pela mora.

9.ª - Mas, apenas se considerou para efeitos de mora, a taxa civil de 4% ao ano e não as taxas privativas por dívidas à segurança Social.

10.ª - Sobre a indemnização apurada incidem juros moratórias, não nos termos gerais (artigo 806.°, n.º 1 e 2 do Código Civil), mas de acordo com as taxas privativas da Segurança Social, como atrás se disse em 8.

11.ª - De acordo com o preâmbulo do Decreto Lei n.º 140/95, de 14/6 "Dada a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa, considera-se indispensável a tomada de medidas que combatam eficazmente tal situação e conduzam à consciencialização dos cidadãos, quanto a tais valores sociais, bem como ao afastamento da convicção de uma certa impunidade pelas infracções praticadas no âmbito dos regimes de Segurança Social".

12.ª - Ora, a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa tem a ver com a "sustentabilidade financeira do sistema previdencial da segurança Social" e com os princípios da solidariedade intergeracional, profissional e nacional, sendo do conhecimento público, que o sistema previdencial da Segurança Social, já não é auto-sustentável, devido à quebra de natalidade, ao aumento médio da esperança de vida, à emigração e às enormes dívidas das entidades empregadoras, quer de contribuições quer de quotizações à Segurança social.

13.ª - Assim, o Estado para continuar a pagar pensões por velhice e invalidez, subsídios de doença e de desemprego, num sistema que deixou de se autofinanciar, teve de se endividar e quando não conseguiu obter crédito, teve de aumentar exponencialmente os impostos, impondo aos cidadãos que estes, por via indirecta (através dos seus impostos e de transferências do Orçamento de estado para a Segurança social), paguem os impostos, que os outros decidiram não pagar, nomeadamente as sociedades que retêm no salário do trabalhador as quotizações para a Segurança social e que depois decidem não entregar essas quotizações deduzidas nos salários à Segurança Social, pondo em risco o principio da solidariedade consagrado no art. 8.º da Lei de Bases - Lei n.º 4/2007 de 16 de janeiro, sobretudo na vertente da solidariedade entre gerações, pois a geração que hoje trabalha, paga as pensões dos que estão reformados e no futuro não vai receber pensão, ou só receberá uma pensão simbólica, o que poderá conduzir a situações de pobreza, convulsões sociais e violência.

14.ª - Daí que, a taxa de juros pelo não pagamento das dívidas à Segurança social, seja superior às taxas bancárias e superiores à taxa legal de 4% ao ano, prevista no Código civil, sendo que até 2010, essa taxa era de 1% ao mês, 12% ao ano e em 2015, foi apenas de 0,46% ao mês, 5,5% ao ano, pelo que tem vindo a decair de forma substancial, não sendo estes juros usurários, pois o seu montante elevado, pretende precisamente dissuadir o incumprimento por parte das entidades empregadoras.

15.ª - Em consequência, existe legislação especial relativamente aos juros por dívidas ao Estado, pois o reconhecimento dos direitos e cumprimento das obrigações decorrentes dos regimes de segurança social estão consagrados em legislação especial (v.g. Lei de Bases da Segurança Social - Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro e artigos 211.º e 212.° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (C.R.C.S.P.S.S.), instituído pela Lei n.º 110/2009 de 16 de Setembro e as taxas em vigor durante o período contributivo em dívida e até ao presente, apuradas nos termos do artigo 3.º do DL n.º 73/99, de 16 de Março (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 3B/2010 de 28 de abril, e pela Lei n.º 55-A/2010 de 31 de Dezembro) de acordo com as taxas privativas da Segurança Social.

16.ª - Ora, nos termos do art. 7.º n.º 3 do Código Civil, a lei especial prevalece sobre a lei geral, salvo quando for outra a intenção inequívoca do legislador e nenhuma disposição legal aponta no sentido, e muito menos, inequívoco, de que foi propósito do legislador afastar a aplicação das taxas de juro moratórias que se encontram previstas na legislação especial a que aludimos.

17.ª - Por outro lado, o art. 129.º do Código Penal, quando alude à “lei civil”, não pode ser interpretado no sentido de excluir a aplicação da lei tributária, quando esteja em causa a prática de um crime tributário do qual resultou responsabilidade civil.

18.ª - Assim, existindo legislação especial quanto a taxas de juro e cálculo destes, relativamente às dívidas por contribuições à Segurança Social, deve tal legislação ser aplicável aos pedidos de indemnização deduzidos em processo-crime que tenha por objecto uma infracção tributária (em que seja lesada a segurança social) e não a legislação geral.

19.ª - A conceder-se a contagem de juros que o tribunal a quo pretende, a prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, acarretaria para a segurança social um dano acrescido, beneficiando os arguidos de redução da taxa de juro aplicada à sua dívida de quotizações; veríamos os arguidos condenados apenas no capital em dívida acrescido dos juros de mora contados a partir da notificação do pedido cível até pagamento à taxa de 4% ao ano e tal implicaria até um "perdão" de juros aos arguidos condenados pelo crime de abuso de confiança contra a SS, que pagariam juros a 4% ao ano em vez de 5,56% ao ano (0,46% ao mês).

20.ª - Assim, os arguidos que decidem pagar quando são notificados nos termos do art. 105.º , n.º 4 do RGIT, para se "verem livres do crime e do julgamento", seriam prejudicados, pois pagariam uma taxa de juro mais alta, relativamente aqueles que são condenados no pedido de indemnização civil, pelo que a aceitar a decisão da juiz a quo, seria caso para dizer que o "crime compensa".

21.ª - Foram violadas as disposições legais referidas, que aqui se dão como reproduzidas e especial e designadamente o art. 7.º, n.º 3 do C. Civil.

Termo em que, com o douto suprimento, deve dar-se procedência ao recurso, revogando a douta decisão apelada, na parte em que não condena nos juros de mora vencidos e liquidados às taxas privativas da Segurança Social, aquando do PIC, condenando os apelados nesses juros».


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 Em cumprimentos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, notificados os sujeitos processuais, não houve respostas.

Nesta instância, os autos tiveram vista do Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, tendo-se limitado a apor visto, uma vez que o recurso se limita a uma questão cível.


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Foi cumprido o art. 418.º, do CPP, e uma vez colhidos os vistos legais, indo os autos à conferência, cumpre decidir.

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A factualidade dada como provada é a seguinte:

Factos provados:

1. A Arguida A... , Lda., tem o número de pessoa colectiva 506 040 607, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Tábua, sob o mesmo número, e tem o capital social de 5.000,00 EUR, encontrando-se a sua constituição registada por Ap. 04/200050706.

2. A Arguida A... , Lda., tem como objecto social bares, hotelaria e restauração, tendo a sua sede social registada em Rua (...) , concelho de Tábua.

3. Actualmente, são sócios da sociedade Arguida os Arguidos B... e C... , cada um titular de uma quota com o valor nominal de 2.500,00 EUR (dois mil e quinhentos euros).

4. O Arguido C... é sócio desde da data de constituição da Sociedade Arguida, sendo que a essa data era único gerente registado da sociedade.

5. Em 01/01/2009, a Arguida B... adquiriu a quota representativa do capital social da Sociedade Arguida no valor nominal de 2.500,00 EUR.

6. Mediante Ap. 2/20090101, encontra-se registada alteração ao contrato de sociedade e designação de membros de órgão social, nos termos da qual a Arguida B... passou a exercer o cargo de gerente da Sociedade Arguida, sendo que a forma de vinculação desta sociedade passou a exigir a assinatura dos dois sócios gerentes.

7. Entre 01/01/2009 até Dezembro de 2010, os arguidos B... e C... dirigiram, conjuntamente, as actividades da Arguida sociedade, nomeadamente, contratação de pessoal, direcção de funcionários, representação da arguida sociedade perante terceiros, fornecedores e funcionários, pagamento de salários, entrega de recibos, retenção e entrega dos montantes retidos ao Instituto de Segurança Social, gerindo e controlando de facto a sociedade arguida.

8. A partir de data não concretamente apurada, mas não antes de Dezembro de 2010, as funções descritas no número anterior passaram a ser exclusivamente realizadas pela Arguida B... .

9. A sociedade Arguida, por intermédio dos Arguidos B... e C... , estava obrigada, no final de cada mês de prestação de trabalho efectivo, a liquidar o montante das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores e gerentes ao Instituto de Segurança Social, o que estes sabiam.

10. A sociedade Arguida assumindo-se como mero substituto tributário, funcionava como um depositário das importâncias pagas pelos colaboradores e que lhes foram por esta retidas e descontadas, com a obrigação de as entregar nos cofres das Instituições de Segurança Social nos prazos regulados por lei, facto que os arguidos B... e C... conheciam.

11. A sociedade Arguida, por intermédio dos arguidos B... e C... , estava obrigada a entregar todos os valores retidos a título de cotizações ao Instituto da Segurança Social, mensalmente e até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as contribuições dissessem respeito, facto que estes conheciam.

12. Os arguidos B... e C... , no âmbito das suas funções de gerência na arguida sociedade, entre os meses de Fevereiro de 2009 ao mês de Dezembro de 2010, procederam, em nome desta, ao desconto mensal prévio nas remunerações salariais pagas aos seus trabalhadores e ao gerente C... do valor das cotizações devidas ao Instituto de Segurança Social.

13. A Arguida B... , no âmbito das suas funções de gerência na arguida sociedade, entre Dezembro de 2010 a Dezembro de 2011, procedeu, em nome desta, ao desconto mensal prévio nas remunerações salariais pagas aos seus trabalhadores do valor das cotizações devidas ao Instituto de Segurança Social.

14. Por decisão tomada pelos Arguidos B... e C... , nem a sociedade Arguida, nem os primeiros Arguidos, procedeu à entrega ao Instituto de Segurança Social dos valores retidos e liquidados a título de cotizações das remunerações dos trabalhadores e membros de órgãos sociais, no prazo legalmente estipulado, ou seja, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam.

15. Nem o fizeram nos noventa dias volvidos sobre essa data, nem o fizeram até à presente data.

16. Nem, ainda, quando foram notificados pelo Instituto de Segurança Social para, em 30 dias, procederem ao pagamento dos montantes em falta, acrescida dos valores dos juros respectivos e da coima aplicável.

17. Encontrando-se, assim, em falta, em sede de contribuições devidas ao Instituto de Segurança Social, o montante global de 4.092,72 EUR (quatro mil, noventa e dois euros e setenta e dois cêntimos), em relação aos meses, montantes e categorias de rendimento a seguir melhor discriminados, contrariando o que lhes era legalmente imposto,

Ano       Mês de referência       Cotizações Regime Geral código 000 (11%)  Cotizações Regime Gerentes Código 669 (9,3%)

2009      Fevereiro         49,50 EUR      45,00 EUR

  Março  49,50 EUR      45,00 EUR

  Abril    49,50 EUR      45,00 EUR

  Maio    49,50 EUR      45,00 EUR

  Junho  49,50 EUR      45,00 EUR

  Julho   49,50 EUR      45,00 EUR

  Agosto 49,50 EUR      45,00 EUR

  Setembro         49,50 EUR      45,00 EUR

  Outubro           49,50 EUR      45,00 EUR

  Novembro       49,50 EUR      45,00 EUR

  Dezembro       49,50 EUR      45,00 EUR

2010      Janeiro 52,25 EUR      47,50 EUR

  Fevereiro         52,25 EUR      47,50 EUR

  Março  52,25 EUR      47,50 EUR

  Abril    52,25 EUR      47,50 EUR

  Maio    52,25 EUR      47,50 EUR

  Junho  52,25 EUR      47,50 EUR

  Julho   52,25 EUR      47,50 EUR

  Agosto 52,25 EUR      47,50 EUR

  Setembro         52,25 EUR      47,50 EUR

  Outubro           52,25 EUR      47,50 EUR

  Novembro       52,25 EUR      47,50 EUR

                         

2011      Janeiro 53,35 EUR     

  Fevereiro         53,35 EUR     

  Março  53,35 EUR     

  Abril    106,70 EUR   

  Maio    106,70 EUR   

  Junho  106,70 EUR   

  Julho   106,70 EUR   

  Agosto 106,70 EUR   

  Setembro         106,70 EUR   

  Outubro           53,35 EUR     

  Novembro       106,70 EUR   

  Dezembro       53,35 EUR     

                         

  TOTAIS          3.075,22 EUR 1.017,50 EUR

 

18. Os arguidos B... e C... enquanto sócios e gerentes, de facto e de direito, da arguida sociedade, durante e por referência a cada um deles aos períodos temporais indicados nos pontos 7, 8 e 9, sabiam que estavam obrigados em nome da sociedade Arguida a liquidar e a entregar os montantes das contribuições mensais devidas pelos seus trabalhadores e membros de órgãos sociais às Instituições de Segurança Social.

19. Bem como sabiam que os referidos montantes pertenciam à Segurança Social, contrariando o que lhes era legalmente imposto.

20. Não obstante, os Arguidos B... e C... , durante e por referência a cada um deles aos períodos temporais indicados nos pontos 7, 8 e 9, decidiram não entregar esses montantes retidos e liquidados nas remunerações e antes usá-los em benefício da sociedade arguida.

21. Os arguidos B... e C... enquanto sócios gerentes, de facto e de direito, da arguida sociedade, passaram a dispor dos montantes das cotizações devidas ao Instituto de Segurança Social acima indicados, fazendo as referidas quantias da sociedade arguida, que geriam, durante e por referência a cada um deles aos períodos temporais indicados nos pontos 7, 8 e 9.

22. Integrando tais quantias no património da Arguida sociedade.

23. Utilizando-as em proveito daquela sociedade, como se lhe pertencesse.

24. Enriquecendo deste modo o património da sociedade arguida, em igual montante, e prejudicando o Instituto de Segurança Social, pelo menos, em valor equivalente, ao montante não entregue de 4.092,72 EUR.

25. Obtendo vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei.

26. Os Arguidos B... e C... agiram na qualidade de sócios e de gerentes, de facto e de direito, da arguida sociedade e no interesse desta e nos seus próprios interesses, respectivamente, durante e por referência aos lapsos temporais indicados nos pontos 7, 8 e 9.

27. Os Arguidos B... e C... após não terem entregado pela primeira vez os montantes destinados ao Instituto da Segurança Social e que haviam retido nas referidas remunerações praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos meses seguintes, respectivamente, durante e por referência aos lapsos temporais indicados nos pontos 7, 8 e 9.

28. Aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos, nomeadamente, o facto de após a prática dos primeiros factos, a Arguida sociedade não ter sido alvo de qualquer fiscalização ou penalização.

29. E por terem verificado que persistia a possibilidade de repetirem as suas condutas, convencendo-se de que as suas actuações estavas a ser bem sucedidas, o que motivou a reiteração da prática descrita, de forma homogénea, ao longo do período de tempo referido, movidos pela facilidade com que sucessivamente logravam concretizar os seus intentos.

30. Os arguidos B... e C... agiram de forma livre, deliberada, consciente e de comum acordo, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

31. O Arguido C... encontra-se desempregado e tem empresas de catering que realizam algumas actividades esporádicas.

32. Vive com a companheira, filha desta de 9 anos e filha comum de 2 anos.

33. A companheira encontra-se empregada e aufere a quantia mensal de cerca de 530,00 EUR.

34. Vivem em casa dos pais do Arguido que se encontra penhorada.

35. Tem o 11.º ano de escolaridade.

36. A arguida B... é consultora imobiliária, aufere com essa actividade quantia mensal variável entre 500,00 EUR a 1.000,00 EUR, sendo que recebe à comissão.

37. Vive com o companheiro e os três filhos menores de 10, 8 e 4 anos.

38. O companheiro trabalha na área da construção civil.

39. Vivem em casa arrendada pela qual pagam renda mensal de 400,00 EUR.

40. A Arguida tem o 12.º ano de escolaridade.

41. A Sociedade Arguida e os Arguidos não têm antecedentes criminais.

42. Durante o lapso temporal descrito no ponto 19, a Sociedade Arguida estava a atravessar situação financeira deficitária.


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II - O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir

Juros aplicáveis sobre as prestações em dívida à Segurança Social em que os arguidos demandados foram condenados, em consequência do crime abuso de confiança contra a segurança fiscal.

Apreciando:

O Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra deduziu pedido de indemnização civil contra os Arguidos, peticionando a sua condenação, solidária, no pagamento da quantia de 5.208,12€, relativo às cotizações em falta, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos, calculados desde o 15.º dia do mês seguinte ao que respeitam cada uma das cotizações em dívida, calculados à luz da legislação especial aplicável, que se computavam à data da apresentação do pedido, no valor de 1.538,83€, bem como dos juros vincendos até integral pagamento.

O tribunal colectivo deliberou julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e condenou todos os arguidos a pagar, solidariamente, ao demandante a quantia de 3.079,07€ (três mil, setenta e nove euros e sete cêntimos) e os arguidos B... e A... , L.da, a pagar, solidariamente, ao demandante, a quantia restante de 1.013,65€ (mil e treze euros e sessenta e cinco cêntimos), incidindo sobre estas quantias juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa de juro civil, desde da data de vencimento de cada uma das obrigações contributivas, em causa nos autos, até ao efectivo e integral pagamento.

A questão a decidir resume-se ao facto de saber se os arguidos devem ser condenados a pagar os juros peticionados calculados à luz da legislação especial aplicável ou os juros calculados à taxa de juro civil, desde da data de vencimento de cada uma das obrigações contributivas.

Nos termos dos art. 211.º e 212.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, instituído pela Lei 110/2009, de 16/9 e do art. 18.º do revogado DL 103/80, de 9/5 e art. 16.º, do revogado DL 411/91, de 17/10, pelo não pagamento de contribuições e quotizações nos prazos legais, são devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção, sendo a taxa de juros de mora igual à estabelecida no regime geral dos juros de mora para as dívidas ao Estado. 

No caso dos autos as contribuições em dívida à Segurança Social referem-se ao período compreendido entre Fevereiro e Dezembro de 2009 e anos de 2010 e 2011.

Nesta conformidade as taxas em vigor durante o período contributivo em dívida até à presente data, apuradas de acordo com o que dispõe o art. 3.º, do DL 73/99, de 16/3, na redacção que lhe foi dada pela Lei 3-B/2010, de 28/4 e pela Lei 55-A/2010, de 31/12, são as seguintes:

• Até Dezembro de 2010: 1%

• De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2011: 6,351% ao ano ou 0,5293% ao mês (Aviso n.º 27831-F/2010, do Instituto de Gestão e do Crédito Público, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 253, de 31 de Dezembro de 2010);

• De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2012: 7,007% ao ano ou 0,5839% ao mês (Aviso n.º 24866-A/2011, do Instituto de Gestão e do Crédito Público, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 248, de 28 de Dezembro de 2011);

• De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2013: 6,112% ao ano, ou 0,5093% ao mês (Aviso n.º 17289/2012, da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 251, de 28 de Dezembro de 2012);

• De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2014: 5,535% ao ano ou 0,4613% ao mês (Aviso n.º 219/2014, da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 4, de 7 de Janeiro de 2014);

• De 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2015: 5,476% ao ano ou 0,456% ao mês (Aviso n.º 130/2015, da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 4, de 7 de Janeiro de 2015);

• A partir de 1 de Janeiro de 2016: 5,168% ao ano ou 0,431% ao mês (Aviso n.º 87/2016, da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, IP, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 3, de 6 de Janeiro de 2016).

Não obstante a estipulação especial do 212.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, quanto à taxa de juro aplicável, o tribunal a quo condenou os arguidos a pagar ao demandante, os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa de juro civil, desde da data de vencimento de cada uma das obrigações contributivas, em causa nos autos, até ao efectivo e integral pagamento.

E afastou a aplicação do regime especial acima apontado com o fundamento de estar no âmbito de responsabilidade civil pela prática de acto ilícito (arts. 483.º, 805.º e 806.º, do Código Civil), acompanhando o entendimento no sentido de que a indemnização peticionada, nos presentes autos, “não se destina a liquidar uma obrigação tributária para a Segurança Social (para a qual a lei estabelece mecanismos próprios), devendo, antes, ser fixada segundo os critérios da lei civil”, perfilhado pelo Ac. do TRL de 17/05/2013 - Proc. n.º 2020/08.8TAVFX.L1-3, in http://www.dgsi.pt).

Não partilhamos de tal entendimento.

Temos por mais adequado o entendimento do Ac. do TRP, de 26/5/2015 – Proc. n.º 684/11.4TAVLG.P2, in http://www.lexpoint.pt.

Salvo o devido respeito pela opinião contrária, cremos não poder ser esse o sentido da lei, sob pena de penalizar de forma mais acentuada aqueles que não pagaram as contribuições dentro do prazo legal e depois regularizaram a situação, relativamente aos devedores, cuja conduta que deu origem ao não pagamento consubstancia a prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

A ser assim, estaríamos perante um sistema injusto relativamente àqueles, que, embora com atraso conseguiram regularizar as contribuições devidas à segurança social.

E aqui poder-se-á dizer até que o crime compensa, por a lei, segundo o entendimento seguido pela Ex.ma Juíza tratar de forma mais favorável o “criminoso”, relativamente àquele que é simples devedor.

O legislador, movido por razões de necessidade de prevenção e repressão das infracções no âmbito da Segurança Social, através do DL 140/95, de 14/6, que alterou o RJIFNA, aditou-lhe o Capítulo II, sob a epígrafe “Dos crimes da Segurança Social” (artigos 27.º-A, 27.º-B, 27.º-C e 27.º-D), onde previu designadamente os crimes de fraude, abuso de confiança e frustração de créditos.

E o mesmo legislador no preâmbulo de tal diploma aponta as razões para a necessidade de definir determinadas condutas num estado de direito que se pretende mais justo, mais fraterno e mais solidário como crime, constando do mesmo o seguinte:

«O quadro sancionatório dos regimes de segurança social tem-se mostrado incapaz de prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante o sistema de segurança social.

São sobretudo gravosas as condutas ilícitas que não proporcionam ao sistema o conhecimento de situações determinantes das respectivas contribuições e, muito especialmente, aquelas em que a entidade empregadora se apropria dos valores deduzidos das remunerações dos trabalhadores para efeitos da respectiva protecção.

Dada a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa, considera-se indispensável a tomada de medidas que combatam eficazmente tal situação e conduzam à consciencialização dos cidadãos quanto a tais valores sociais, bem como ao afastamento da convicção de uma certa impunidade pelas infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social».

Ora, a natureza dos interesses humanos e sociais tem a ver com a sustentabilidade financeira do sistema previdencial da segurança social e com os princípios da solidariedade intergeracional, profissional e nacional.

A Lei n.º 4/2007, de 16/1 aprova as bases gerais do sistema de segurança social, consagrando três grandes sistemas de Segurança Social: Sistema de protecção social de cidadania (art. 26.º e segts.), sistema previdencial (art. 50.º e segts.) e sistema complementar (art. 81.º e segts.).

Nos termos do art. 26.º, n.º 1, o sistema de protecção social de cidadania tem por objectivos garantir direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão sociais.

Segundo o artigo 50.º, o sistema previdencial visa garantir, assente no princípio de solidariedade de base profissional, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas. 

Por fim de acordo com o art. 81.º o sistema complementar compreende um regime público de capitalização e regimes complementares de iniciativa colectiva e de iniciativa individual.

No caso dos autos estamos perante o sistema previdencial, ao qual só podem aceder os trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes, ou seja, só as pessoas que trabalharam e descontaram podem aceder a este sistema.

Conforme dispõe o art. 52.º da Lei de Bases, as eventualidades a que se refere o art. 50.º são a doença, maternidade, paternidade e adopção, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais, invalidez velhice e morte.

Resulta dos art. 51.º n.º 1, 53 a 57.º, 59.º, 90.º n.º 2 e 92.º, al. a) e b), que o sistema previdencial, ao contrário do sistema da protecção social da cidadania, que é financiado por transferências do Orçamento de Estado, com base na ajuda ao necessitado, independentemente de ter trabalhado e descontado, é um sistema autofinanciado por quotizações dos trabalhadores e por contribuições das entidades pagadoras, tendo por base uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações.

O sistema previdencial da segurança social é posto em causa quanto à sua auto-sustentabilidade, por razões de diminuição acentuada da natalidade, ao aumento médio da esperança de vida, à emigração e às avultadas dívidas respeitantes a contribuições e quotizações à segurança social por parte das entidades empregadoras.

Perante um sistema que deixou de se autofinanciar, o Estado para continuar a pagar as pensões por aposentação e invalidez e subsídios de doença e desemprego, foi obrigado a endividar-se e quando não conseguiu obter crédito teve de aumentar os impostos, impondo sacrifícios desproporcionados aos cidadãos e que estes por via indirecta, através dos impostos e de transferências do Orçamento de Estado para a Segurança Social, paguem as quotizações deduzidas nos salários dos trabalhadores que outros retiveram e decidiram não pagar.

É assim posto em causa o princípio da solidariedade vertido no art. 8.º, da Lei 4/2007, de 16/1, sobretudo na vertente da solidariedade entre gerações, sendo certo que, a não haver uma inversão da situação que hoje vivemos, inevitavelmente a geração que hoje trabalha e contribui para a sustentabilidade do sistema previdencial, quando estiver numa situação de velhice ou incapacidade, não receberá a contraprestação digna e justa a que teria direito em consequência dos descontos efectuados enquanto esteve no activo ou então receberá uma pensão insignificante.

Por isso mesmo, em nome de um Estado mais justo e solidário para quem trabalha e para melhor assegurar a solidariedade entre gerações e face aos princípio que norteiam a sua aplicação se justifica que a taxa de juros pelo não pagamento das dívidas à Segurança Social seja superior às taxas bancárias e superior “à taxa de juro civil” em que os demandados foram condenados a pagar na sentença recorrida, pretendendo o legislador com a sua aplicação também não só assegurar a sustentabilidade do sistema como ainda dissuadir as entidade empregadoras que retiveram as contribuições nos salários dos trabalhadores e não procederam à sua entrega.

Nesta conformidade, na aplicação da taxa de juro por dívidas à segurança social, em condenação de indemnização cível, por procedência de pedido formulado em processo crime, por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107.º, n.ºs 1 e 2, 105.º, 6.º e 7.º, do RGIT, e art. 30.º, do Código Penal, pelo qual os arguidos foram condenados, deve ser aplicada a lei especial, designadamente a Lei n.º 4/2007, de 16/1 que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e art. 211.º e 212.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, devendo os juros de mora ser calculados por cada mês de calendário ou fracção, de acordo com os diversos diplomas acima mencionados.

Nos termos do art. 7.º, n.º 3, do CC a lei especial prevalece sobre a lei geral, excepto se for outra a intenção inequívoca do legislador.

Havendo legislação especial relativamente a taxas de juro e cálculo dos mesmos relativamente a dívidas por contribuições à Segurança Social, deve a legislação ser aplicável aos pedidos de indemnização deduzidos em processo crime e não a legislação geral.

Não há disposição legal no sentido de afastar a aplicação das taxas de juro moratórias que se encontram previstas na legislação especial acima apontada, sendo certo que quando no art. 129.º, do CP refere que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, não se pode interpretar no sentido de que se pretende afastar a aplicação da lei tributária, quando esteja em causa a prática de um crime desta natureza, do qual resultou responsabilidade civil.

Aliás, não faria sentido aplicar uma taxa de juro mais penalizadora aos arguidos que decidem pagar a dívida, quando notificados para os termos do art. 105.º, do RGIT, para não serem julgados pelo crime que lhes é imputado, pagando os juros calculados segundo a lei especial mais gravosa e os juros moratórios de arguidos que acabaram de ser condenados pelo crime serem mais benévolos, calculados nos termos gerais do art. 806.º, 1 e 2 do Código Civil.   


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III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, conceder provimento ao recurso interposto pelo Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de Coimbra, e, em consequência se revoga a sentença recorrida na parte em que condenou os arguidos a pagar ao demandante, os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa de juro civil, a qual se substitui nesta parte pela condenação em juros, calculados nos termos peticionados pelo recorrente.


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Sem custas.       

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NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 21 de Setembro de 2016

(Inácio Monteiro - Relator)

(Alice Santos - Adjunta)