Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
288/16.5T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO DE CONTRAORDENACIONAL
DIREITO DE DEFESA
CONSULTA DO PROCESSO
Data do Acordão: 01/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 32.º, N.º10 DA CRP; ARTS. 41.º, N.º 1, 50.º E 55.º DO DL N.º 433/82, DE 27-10; ART. 89.º E 123.º DO CPP
Sumário: 1. Constatando-se [em processo de contraordenação] que à arguida não foi proporcionado a consulta dos autos para exercer na sua plenitude o direito de impugnação da decisão administrativa, existe manifestamente a preterição de uma formalidade legal, um vício que se reflete nesse direito de defesa.
2. Este vício cai no âmbito de mera irregularidade, prevista no artigo 123.º, n.º 1, do CPP.

3. Arguido o vício em causa no prazo exigido pelo artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – nos 3 dias seguintes, deve o requerimento ser apreciado.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos autos supra identificados,

 Por decisão de 28 de Março de 2014 da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, foi a arguida A... , melhor id. nos autos, condenada pela prática da contraordenação, p. e p. pelos artigos 27º, nºs 2, a), 3º §, 138º e 146º, nº 1, i), Cód. Estrada, na coima de € 450,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias (excesso do limite legal de velocidade), factos que foram praticados no dia 16.9.2013.

            2. Inconformada, interpôs a recorrente recurso judicial de impugnação da decisão para o tribunal competente, pugnando pela declaração de nulidade dos atos praticados nos

autos após o requerimento de consulta do processo, que não foi satisfeito, e da própria

decisão administrativa, por falta de assinatura.

            3. O Tribunal recorrido proferiu decisão, julgando improcedente, a impugnação, mantendo a decisão proferida pelo tribunal a quo.

            4. Desta decisão judicial recorre agora a arguida para este Tribunal da Relação de Coimbra, formulando as seguintes conclusões:


I. A arguida foi impedida de consultar o processo para efeitos de apresentação do seu recurso de impugnação da decisão administrativa devidamente instruído.


II. Deveria o Tribunal considerar nulos todos os actos praticados no processo após o pedido de consulta do processo, e enviar o processo para a ANSR a fim de permitir que o processo seja lá consultado e apresentado o devido recurso de impugnação judicial, altura em que a ANSR, na posse de um recurso verdadeiramente instruído, avaliará os argumentos da arguida, e logo decidirá se revoga a decisão ou envia o processo para Tribunal.


III. Quando a ANSR recebeu o pedido de consulta deveria ter-se pronunciado relativamente ao mesmo e nunca o fez.


IV. Deveria a ANSR ter dado 10 dias para a arguida consultar o processo e apresentar o seu recurso devidamente instruído.


V. SE ASSIM NÃO FOR ENTENDIDO, QUAL A DIFERENÇA ENTRE ENTREGAR-SE UM PEDIDO DE CONSULTA DO PROCESSO PARA EFEITOS DE APRESENTAÇÃO DE RECURSO, DENTRO E FORA DO PRAZO DOS 15 DIAS? NÃO HAVERIA DIFERENÇA O QUE ATENTA CONTRA AS MAIS ELEMENTARES regras de direito.


VI. A ANSR ter dado mais 10 dias de prazo para consultar o processo não teria perturbado em nada os timings do processo.


VII. Um processo que esteve parado tantos e tantos meses, é por um dia que ficava prejudicado?


VIII. Esta interpretação feita dos prazos pelo Tribunal A Quo é muito prejudicial para o direito de defesa dos arguidos, o qual está constitucionalmente protegido e foi violado pela ANSR e está a ter o consentimento do Tribunal de 1ª Instância.


IX. O pedido de consulta do processo, quando a entidade administrativa não o tem à disposição do arguido a não ser mediante requerimento escrito, como é o caso, interrompe o prazo de apresentação de recurso, ou pelo menos dariam mais 10 dias para o fazer por efeito do prazo regular previsto no CPP. VEJA-SE EM ANEXO OFICIO DA ANSR NESSE SENTIDO.

A. Termos em que deverá o Tribunal da Relação de Lisboa[1] determinar a revogação da Sentença proferida pelo Tribunal “Quo), e reenviar o processo para a ANSR a fim de ser dada a oportunidade á arguida de consultar o processo e apresentar de uma vez por todas o seu recurso devidamente instruído, revogando todos os actos processuais posteriores ao pedido de consulta do processo.

            5. O recorrido Ministério Público respondeu, dizendo, em síntese, que o recurso não merece provimento[2].

            6. Nesta instância, O Ministério Público emitiu parecer também no sentido da improcedência do recurso.

III

Questão a apreciar:

A eventual nulidade por violação do princípio do contraditório – direito da arguida a consultar o processo para exercer o seu direito de defesa.

                                                                IV

1. O Tribunal recorrido decidiu a questão colocada pela recorrente no seu recurso de impugnação nos seguintes termos:

            III. Da nulidade do processado

            A arguida invocou, ainda, a nulidade decorrente da violação do disposto no art. 50º,

R.G.C.O. e 32º, nº10, CRP, em virtude da falta de acesso à consulta do processo, requerida

para efeito de impugnação judicial da decisão.

            Vejamos.

            Não cuidaremos de discorrer sobre o direito, que é inequívoco, de o arguido em processo contraordenacional ter acesso aos autos e conhecer os meios probatórios existentes, a fim de exercer de forma cabal e eficiente o seu direito de defesa e de contraditório, previsto, desde logo, no art. 32º, nº5, CRP.

            Sucede que a preterição do direito de consulta dos autos invocada pela arguida, visando impugnar judicialmente de forma adequada a decisão, não violou, em concreto, qualquer direito de defesa ou contraditório da arguida.

            De facto, o requerimento de consulta dos autos, formulado no próprio requerimento de

impugnação, após a prolação da decisão administrativa, uma vez não satisfeito, não é suscetível, porque posterior à decisão, de afetar a validade da mesma (cfr. art. 122º, CPP, ex vi art. 41º R.G.C.O.)

            Por outro lado, o aludido requerimento deu entrada no último dia do prazo para a impugnação judicial (cfr. fls. 14, 15 e arts. 181º, nº2, a), Cód. Estrada, 60º, R.G.C.O.), o que significa que, não sendo exigível à autoridade administrativa que apresentasse os autos para consulta de imediato, sempre se esgotaria o prazo de impugnação judicial, sem que os autos fossem consultados e sem que houvesse qualquer “suspensão” do prazo de impugnação.

            De facto, sob pena de uma injustificada prorrogação do prazo, ao prazo de impugnação devem ser, tão-somente, “descontados” os dias que o arguido aguardou pela consulta dos autos, requerida para preparação da aludida impugnação (em sentido idêntico, embora a propósito da entrega da cópia da gravação em processo penal, Ac. TC n.º 546/2006, de 27/9/06).

            Tal significa que, ainda que se determinasse o deferimento da consulta dos autos pela

arguida, concedendo novo prazo de impugnação judicial a partir desse momento, sempre haveria que descontar nesse novo prazo os dias que a arguida deixou decorrer entre a notificação da decisão administrativa e a formulação do requerimento de consulta dos autos, pelo que, uma vez que esse requerimento ocorreu ao 15º dia útil contado da notificação da decisão, não remanesceria qualquer prazo para apresentação de nova impugnação judicial, não se revestindo a consulta dos autos, neste momento, de qualquer utilidade.

            Em consequência, uma vez que o não deferimento de consulta do processo não prejudicou o direito de impugnação da decisão administrativa, já que o prazo de impugnação se exauria nesse mesmo dia em que foi apresentado o requerimento, não foi cometida qualquer nulidade por violação do direito de defesa e de contraditório, pelo que inexiste a invocada nulidade do procedimento.

            Em suma, soçobram os dois fundamentos da impugnação judicial apresentada (e validamente recebida, conforme resulta de fls. 49, 100 e ss., 103), não se vislumbrando esses ou quaisquer outros fundamentos para a revogação da decisão administrativa.

            IV. DECISÃO

            Pelo exposto, julgo improcedente a presente impugnação e, em consequência, mantenho a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária proferida contra a arguida A... , pela prática da contraordenação, p. e p. pelos artigos 27º, nºs 2, a), 3º §, 138º e 146º, nº1, i), Cód. Estrada.

V

Cumpre decidir:

1. Consta dos autos que[3]:

1.1. Notificada que foi a arguida para proceder ao pagamento voluntário da coima pela prática da contraordenação, veio e mesma (arguida) exercer o seu direito de resposta, o que fez através do expediente e requerimento de fls. 6 a 8.

1.2. Todavia, sem proceder a qualquer diligência das requeridas pela arguida, a Autoridade Administrativa (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), por decisão de 28 de Março de 2014, condenou a arguida pela prática da contraordenação, p. e p. pelos artigos 27º, nºs 2, a), 3º §, 138º e 146º, nº1, i), Cód. Estrada, na coima de € 450,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.

1.3. Notificada desta condenação, em 5.6.2014 (segundo os elementos dos autos, no 15º dia útil após a notificação), veio a arguida:

- Requerer à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária a consulta dos autos para exercer o seu direito ao recurso de impugnação da decisão condenatória.

- Por cautela, apresentar já o seu recurso de impugnação.

- Neste recurso invoca desde logo a nulidade por violação do seu direito de defesa nos termos do artigo 32º, nº 10, da CRP.

1.4. Em 20 de Novembro de 2015 a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária manteve a decisão de condenação da arguida – v. fls. 44 -, não se tendo pronunciado expressamente, nesta decisão, sobre o pedido de consulta dos autos pela arguida[4].

Foi ordenado a remessa dos autos ao Ministério Público.

1.5. O recurso de impugnação da arguida foi apreciado por despacho judicial, o agora despacho recorrido, que a julgou improcedente nos termos supra transcritos.

2. No domínio das contraordenações, imputados determinados factos a um agente/arguido, o primeiro direito que lhe assiste é o direito de audição e defesa, consagrado no artigo 50º do Regime Geral das Contraordenações ou Ilícito de Mera Ordenação Social - DL n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Dispõe aquele preceito (artº. 50º):

“Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”

Sobre este direito de audição se pronuncia o ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 de 16-10-2002, in DR I Série A de 27-02-2003:

«Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.».

No presente caso, sobre este concreto aspeto, resulta dos autos que a arguida foi efetivamente notificada (tudo indicando sem qualquer elemento processual a não ser o auto de notícia) e a arguida, de motu próprio, exerceu o seu direito de defesa por escrito, conforme requerimento de fls. 6 a 8.

Mas aplicada que foi a sanção – condenação da arguida em coima e na inibição de conduzir – pela autoridade administrativa, o direito de defesa da arguida volta a colocar-se para a impugnação judicial desta mesma condenação.

Esta impugnação judicial é um direito legítimo da arguida, consagrado no artigo 55º, do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, quando diz no nº1:

“1 - As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem”.

Pretendeu a arguida impugnar como efetivamente impugnou a condenação – artigo 55º, nº 1, do Regime Geral das Contraordenações.

Constituiu para o efeito advogado, o que é legalmente aceite e legítimo – artigo 53º, nº 1, do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro[5]

Para o exercício do direito de impugnação entendeu a arguida a necessidade de consulta do processo.

Dessa necessidade e interesse na consulta, deu conta no requerimento de fls. 15 a 18 (supra mencionado), onde por cautela deduziu logo a impugnação.

Sabe-se que o processo em causa é um processo que reveste alguma simplicidade.             Todavia contém o mesmo prova documental, nomeadamente registos fotográficos que justificam a sua consulta ou acesso pela arguida, para uma melhor defesa.

O direito de defesa da arguida neste processo de contraordenação está desde logo assegurado pelo disposto no artigo 32º, nº 10 da CRP, quando diz:

“Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.

Não é concebível o exercício deste direito de defesa, num processo público, sem que o arguido tenha acesso a todos os elementos do mesmo, nomeadamente os probatórios, em que se fundamenta a sua condenação.

Tais elementos podem ser conhecidos por duas vias, um através da notificação que a autoridade fizer ao arguido, remetendo-lhe tais elementos. Situação que não ocorreu no presente caso.

Outra, mediante a consulta do processo pelo arguido ou mandatário constituído.

Este direito de consulta insere-se, desde logo, no direito consagrado no artigo 32º, nº 10 da CRP e ainda, no disposto no artigo 89º, nº 1, do Código de Processo Penal[6]:

“Durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões, salvo quando, tratando-se de processo que se encontre em segredo de justiça, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas”.

Acrescentando o nº 4:

“Quando, nos termos dos nºs 1, 4 e 5 do artigo 86.º, o processo se tornar público, as pessoas mencionadas no n.º 1 podem requerer à autoridade judiciária competente o exame gratuito dos autos fora da secretaria, devendo o despacho que o autorizar fixar o prazo para o efeito”.

3. Constatando-se que à arguida A... não foi proporcionado a consulta dos autos para exercer na sua plenitude o direito de impugnação da decisão administrativa, existe manifestamente a preterição de uma formalidade legal, um vício que se reflete nesse direito de defesa.

E afirma-se que não foi satisfeita a pretensão da arguida porquanto a mesma manifestou esse interesse no momento da apresentação do requerimento de fls. 15 e seguintes – com data de registo de entrada em 5.6.2014 -, que se inicia precisamente com esse pedido – requerimento onde foi deduzida igualmente a impugnação, por cautela.

Sobre este requerimento pronunciou-se a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária apenas em 20 de Novembro de 2015 – fls. 44 e 44v -, proferindo decisão de manutenção da decisão anterior e ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público.    Tácita ou implicitamente, está negado o acesso dos autos à arguida, pois a decisão nem se pronuncia expressamente sobre este pedido.

Importa qualificar este vício.

Atente-se que não está em causa a violação direta do disposto no artigo 50º, do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro – pois a arguida exerceu este direito de audiência ou resposta, como supra se assinalou -, mas sim a não oportunidade de consulta dos autos para exercer o direito de impugnação da decisão condenatória.

Este vício, esta omissão, este não deferimento da pretensão da arguida não está legalmente previsto como nulidade nem se integra nas nulidades referidas no artigo 122º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, entendemos que o mesmo cai no âmbito de mera irregularidade, prevista no artigo 123º, nº1, do mesmo diploma:

“Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.

Que este não acesso da arguida à consulta do processo é relevante para a sua defesa, não suscita dúvidas.

E aqui não se acompanha de todo a decisão recorrida quando afirma que:

            “Sucede que a preterição do direito de consulta dos autos invocada pela arguida, visando impugnar judicialmente de forma adequada a decisão, não violou, em concreto, qualquer direito de defesa ou contraditório da arguida.

            …

            Por outro lado, o aludido requerimento deu entrada no último dia do prazo para a impugnação judicial (cfr. fls. 14, 15 e arts. 181º, nº2, a), Cód. Estrada, 60º, R.G.C.O.), o que significa que, não sendo exigível à autoridade administrativa que apresentasse os autos para consulta de imediato, sempre se esgotaria o prazo de impugnação judicial, sem que os autos fossem consultados e sem que houvesse qualquer “suspensão” do prazo de impugnação.

            …

            Tal significa que, ainda que se determinasse o deferimento da consulta dos autos pela

arguida, concedendo novo prazo de impugnação judicial a partir desse momento, sempre haveria que descontar nesse novo prazo os dias que a arguida deixou decorrer entre a notificação da decisão administrativa e a formulação do requerimento de consulta dos autos, pelo que, uma vez que esse requerimento ocorreu ao 15º dia útil contado da notificação da decisão, não remanesceria qualquer prazo para apresentação de nova impugnação judicial, não se revestindo a consulta dos autos, neste momento, de qualquer utilidade”.

            Existe um erro de raciocínio nesta contagem do prazo e consequente decisão do julgador a quo.

            Mesmo aplicando a jurisprudência do TC citada na decisão recorrida de que “…sob pena de uma injustificada prorrogação do prazo, ao prazo de impugnação devem ser, tão-somente, “descontados” os dias que o arguido aguardou pela consulta dos autos, requerida para preparação da aludida impugnação (em sentido idêntico, embora a propósito da entrega da cópia da gravação em processo penal, Ac. TC n.º 546/2006, de 27/9/06)”, tem de entender-se que, apresentado o pedido ainda dentro do prazo de impugnação da decisão, ainda que no último, com este pedido tem que considerar-se “suspenso” o prazo em curso. O que significa que a arguida tinha, no mínimo, ainda um dia para a consulta do processo e a apresentação da impugnação. Ou seja, precisamente esse “último” dia.

            O dever legal da Autoridade Administrativa era apreciar o pedido da arguida.

            A arguida não pode responder muito menos ser lesada, pelos atrasos da Autoridade Administrativa quanto ao momento da apreciação de qualquer pedido ou da impugnação da decisão. No presente caso, foi apreciada muitos meses depois e apenas parcialmente, pois o pedido da consulta dos autos nem sequer mereceu resposta.

            Não será exigível que responda no próprio dia mas pode/deve fazê-lo em tempo processual conducente com uma regular tramitação, nomeadamente preservando os riscos de prescrição e assegurando os direitos de defesa.

            Não deve ser uma preocupação para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária se, mediante a consulta do processo, a arguida apenas tenha um dia para deduzir a sua impugnação. Este prazo passa a ser já da responsabilidade da arguida. É ela que define a sua estratégia de defesa e não a autoridade administrativa. Poderiam estar em causa apenas horas. O que releva e o que a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária está obrigada a observar é o direito de defesa da arguida, independentemente dos minutos, horas ou dias que ainda lhe restam para exercer esse direito.

            Ora, não tendo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária apreciado sequer, pelo menos expressamente, resultando um não exercício desse direito por parte da arguida com a remessa dos autos ao Ministério Público, significa que foi preterida uma formalidade essencial que releva na tramitação normal da contraordenação, lesando o direito de defesa da arguida.

            A arguida apenas teve conhecimento da violação deste direito, com a notificação feita já pelo tribunal, do despacho de fls. 49, datado de 22.2.2016, onde designa data para a audiência de julgamento – pois a decisão da autoridade administrativa de fls. 44, data de 20 de novembro de 2015, não foi notificada à arguida.

             Aquele despacho que designou data para a audiência de julgamento foi notificado à arguida e ao seu defensor por carta de 23.02.2016 – v. fls. 51 e 52.

            A arguida veio arguir o vício em causa, por requerimento entrado em juízo em 25.02.2016 – v. fls. 54 e seguintes.

            Logo, está em tempo, perante o prazo exigido pelo artigo 123º, nº 1, do Código de Processo Penal – nos 3 dias seguintes.

            O que significa que assiste razão à arguida.

            O que vale por dizer que merece censura a decisão recorrida que não reconheceu este direito, mantendo a decisão de condenação da mesma.

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se:

1. Julgar procedente o recurso da arguida A... quanto à questão de não lhe ter sido facultado o processo para consulta para exercício do seu direito de impugnação da decisão de condenação.

2. Julgar verificada a respetiva irregularidade e, consequentemente, julgar inválido o ato que negou o exercício desse direito bem como todos os atos subsequentes, o que significa que devem os autos regressar à autoridade administrativa, ser facultada a sua consulta pelo prazo ainda legalmente previsto – que se entende ser de um dia -, seguindo-se os demais termos posteriores legalmente previstos.

Sem custas.

 

Coimbra, 18 de Janeiro de 2017

(Luís Teixeira - relator)

Vasques Osório (adjunto)


[1] Anota-se que o Tribunal competente atualmente é o Tribunal da Relação de Coimbra.
[2] Consigna-se que na vista que o Ministério Público teve nos autos antes da prolação da decisão recorrida, foi promovido que, assistindo razão à defesa na nulidade invocada sobre a falta de consulta do processo conforme jurisprudência junta pela mesma defesa, deveria ser proferida decisão em conformidade.

[3] Para além dos elementos já supra consignados no relatório deste acórdão.
[4] Apenas refere genericamente que, “analisado o teor de recurso, conclui-se não existir motivo para revogar a decisão e que não existem nulidades”.
[5] “1 - O arguido da prática de uma contra-ordenação tem o direito de se fazer acompanhar de advogado, escolhido em qualquer fase do processo”.
[6] Aplicável, ex vi, do artigo 41º, nº 1, do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro