Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
72/19.4T8PNI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
OFENSA DA DIGNIDADE DO LESADO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 26º DA CONSTITUIÇÃO DA REP. PORTUGUESA; ARTºS 72º, 483º E 484º DO C. CIVIL.
Sumário: 1- Tendo um advogado, atuando em causa própria, em sede de alegações orais finais feitas em plena audiência de julgamento, e dirigindo-se a outro advogado ali presente - pleiteando igualmente em causa própria –, proferido as seguintes expressões que “falsificava procurações”; que “era um parasita”; que “era um oportunista”; que “usava abusivamente de processos judiciais”; e que “há muito que devia ter a sua inscrição na Ordem suspensa” – fazendo-o de viva voz, de forma voluntária e de modo livre, e sabendo que ao proferir tais expressões ofenderia o mesmo, o que veio a acontecer, provocando-lhe abalo moral, e causando-lhe desgosto, mágoa e angústia -, tais expressões são atentatórias do bom nome, da honra, da reputação e da dignidade desse advogado (quer na sua vertente estritamente pessoal, enquanto cidadão, quer na sua vertente profissional, enquanto advogado), violando, assim, com elas – e tanto mais que nem sequer foram provados os factos a que as mesmas se reportam -, claramente aqueles seus diretos de personalidade.

II- Sendo esses direitos merecedores de tutela jurídica/constitucional, essa sua violação faz incorrer, além do mais, o autor dessas expressões em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, obrigando-o a ressarcir/indemnizar o visado com tais expressões pelos danos (desde logo) de natureza não patrimonial que lhe tenha causado por virtude delas (e verificados que se mostrem, a par da ilicitude que comporta esse facto, os demais pressupostos daquela responsabilidade).

Decisão Texto Integral:







Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica de Peniche – o autor, A..., advogado, instaurou (em 16/03/2019), contra a ré, A..., advogada, ambos com os demais sinais dos autos, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo no final a condenação da ré a pagar-lhe a quantia a quantia de €8.000,00 (oito mil euros), a título de danos não patrimoniais que lhe causou com a sua conduta.

Para o efeito, e em síntese, alegou:

Ter instaurado contra a ré ação (autuada com o nº. ...) na qual pedia a condenação da mesma a pagar-lhe determinada quantia a título de honorários.

Acontece que no dia em que se realizou a audiência de discussão e julgamento, em pleno decurso da mesma e na presença de todos que nela intervinham ou assistiam, a ré, quando o estava a inquirir a propósito da declarações de parte que ali prestou, chamou-lhe mentiroso, e no uso da palavra em sede de alegações finais afirmou que o autor falsificava procurações; que era um parasita; que era um oportunista; que usava abusivamente de processos judiciais e que há muito que devia ter a sua inscrição na ordem suspensa.

Ao fazê-lo a ré teve o propósito de vexar, ofender a honra, a consideração e a dignidade profissional do autor, o que conseguiu, ofendendo-o, provocando-lhe um forte abalo moral e um profundo desgosto, mágoa e angústia.

2. Contestou a ré, defendendo-se por impugnação motivada, negando que tivesse proferido as expressões injuriosas que o autor lhe imputa.

Por outro lasdo, e ao contrário do que o autor alegou na sobredita ação, nunca a ré o mandatou para instaurar aquela outra ação com base na qual veio peticionar de si os honorários.

Terminou pedindo a improcedência da ação, e a sua absolvição do pedido.

3. No despacho saneador, afirmou-se depois a validade e a regularidade da instância.

4. Mais tarde realizou-se a audiência de discussão e julgamento (que foi gravada).

5. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu julgar a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.

6. Inconformado com tal sentença, dela apelou autor, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

II- Fundamentação

1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2 – fine -, do CPC).
Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso do A./apelante, verifica-se que as questões nelas colocadas e que cumpre aqui apreciar são as seguintes:

a) Da nulidade da sentença;

b) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;

c) Do julgamento do mérito da causa.

2. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se a ortografia e a ordem numeração e descrição):

A. O autor interpôs uma acção contra a ora ré, que correu termos neste tribunal sob o processo nº. ..., a peticionar honorários.

B. No dia 14 de Março de 2019 realizou-se o julgamento, com produção de prova, inquirição de testemunhas e alegações.

C. O autor prestou declarações de parte, sendo que a ré ao o inquiri-lo afirmou que o autor estava a mentir.

D. Em sede alegações afirmou:

a. Que o autor falsificava procurações.

b. Que o autor era um parasita.

c. Que o autor era um oportunista.

d. Que o autor usava abusivamente de processos judiciais.

e. Que o autor há muito que devia ter a sua inscrição na ordem suspensa.

E. Tais afirmações foram proferidas na sala de audiências perante a Mª Juíza, advogados e demais pessoas presentes, tendo as mesmas sido gravadas pelo sistema áudio do tribunal.

F. A ré fez tais afirmações de viva e alta voz, de modo a ser ouvida por todas as pessoas que se encontravam na sala de audiências e no Tribunal.

G. A ré agiu de forma voluntária e de modo livre.

Factos não provados (dados pelo mesmo tribunal):

1. A conduta da ré provocou abalo moral no autor.

2. As afirmações e juízos de desvalor referidos em C e D provocaram neste abalo moral, causando-lhe profundo desgosto, mágoa, angústia, feitos pela ré de forma gratuita.

3. Ao proferir as expressões referidas em C) e D) a Ré agiu com o firme propósito de injuriar e ofender o autor.

3. Quanto à 1ª. questão

- Da nulidade da sentença.

No final das suas conclusões daa alegações (conclusão 8ª), invoca o apelante que a sentença recorrida violou disposto na al. c) do nº 1 do artº. 615º do CPC.

Muito embora não se alcance das alegações de recurso onde é que o apelante concretiza verdadeiramente essa violação, dir-se-á, mesmo assim, o seguinte:

O artº. 615º do atual CPC (que, na sua essência, corresponde ao artº. 668º do CPC61) configura, nas diversas alíneas do seu nº. 1, várias situações que podem levar à nulidade da sentença (embora no bom rigor jurídico - e como bem salienta o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Ed., 2ª vol., pág. 669” – se tratem mais de causas de anulabilidade - da decisão viciada - do que de nulidade da mesma).

Como é sabido, as nulidades da sentença, aí taxativamente previstas, reconduzem-se a vícios intrínsecos da mesma, traduzidos em erros de atividade ou de construção e não se confundem com o erro de julgamento (de facto e/ou de direito).

Dispõe-se no invocado artº. 615º, nº. 1, al. c), do CPC, que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão inteligível.

Decorre de tal normativo que, à sua luz, a nulidade da sentença pode ocorrer com base em dois vícios.

O primeiro deles ocorre quando os fundamentos se encontram em oposição com a decisão, e tal ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange, como atrás já se referiu, o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo.

Assim, e por outras palavras, só ocorrerá essa causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto» (cfr. o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”). Ou melhor ainda, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído.

O segundo desses vícios, ocorre quando a decisão se mostre ininteligível, por ser ambígua ou obscura.

Por sua vez, o vício da ambiguidade ou obscuridade pressupõe inteligibilidade de uma decisão ou resposta, ou seja, quando não pode, com segurança, determinar-se o sentido exato dessa decisão ou resposta, quer porque não se mostra claramente expresso, quer porque contém em si mais do que um sentido.

Diga-se ainda que constitui entendimento prevalecente que só existe contradição entre factos ou respostas quando eles se mostrem absolutamente incompatíveis entre si, apresentando-se com um conteúdo logicamente incompatível de tal modo que ambos não possam coexistir ou subsistir entre si.

No sentido que se deixou exposto, Vide, por todos, Ac. da RC de 22/02/2000, in “CJ, Ano XXV, T1 – 29”; Ac. do STJ de 22/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 22”; Ac. do STJ de 08/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 14”; e Ac. da RC de 26/05/1992, in “BMJ, nº. 417 – 835” – proferidos no domínio do anterior CPC mas cuja doutrina continua plenamente válida à luz do atual CPC -, o cons. Abrantes Geraldes, inRecursos no Novo Código de Processos Civil, 2013, Almedina, págs. 239/240 – e jurisprudência aí citada em nota de rodapé -, e o prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.”).

Ora, calcorreando a sentença em apreço afigura-se-nos, e salvo o devido respeito por outra opinião, que todas aquelas suas premissas e dados factuais e jurídicos em que assentou, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos.

Não existem nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo. Na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se deteta, pois, a nosso ver, qualquer oposição ou contradição.

E fê-lo de forma clara e compreensível.

Na verdade, depois de enquadrar a situação no domínio da responsabilidade civil extracontratual civil por factos ilícitos, concluiu, à luz dos factos apurados, que, desde logo, não se mostrava preenchido um dos desses pressupostos legais dessa responsabilidade: a ilicitude do facto. E daí que tenha concluído pela improcedência da ação, com a absolvição da ré do pedido.

Torna-se patente que o apelante discorda do julgamento de direito (e quiçá também de facto) ali feito, mas esse eventual erro de julgamento não se enquadra, como deixámos acima referido, no referido vício de nulidade da sentença.

Saber se a decisão (de mérito) final está ou não em conformidade com as regras do direito aplicáveis aos factos dados como provados, a ponto da solução final dever ser outra que não aquela que foi tomada, nada tem a ver com o aludido vício de nulidade.

Não enferma, assim, a sentença do invocado vício de nulidade, pelo que nessa parte o recurso improcede.

4. Quanto à 2ª. questão.

- Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto.

Com o fundamento de ter o tribunal a quo procedido a uma incorreta apreciação e valoração da prova produzida, insurge-se a A./apelante contra a decisão da matéria de facto na parte em que deu como não provados os factos acima descritos sob os nºs. 1. “A conduta da ré provocou abalo moral no autor.”; 2. (“As afirmações e juízos de desvalor referidos em C e D provocaram neste abalo moral, causando-lhe profundo desgosto, mágoa, angústia, feitos pela ré de forma gratuita.”; e 3. (“Ao proferir as expressões referidas em C) e D) a Ré agiu com o firme propósito de injuriar e ofender o autor.”).

Para sustentar essa impugnação o apelante invoca essencialmente o depoimento prestado pela testemunha ...

Apreciemos.

...

Desse modo, igualmente num juízo de ponderação global dessa prova, decide-se aditar, sob a alínea I), aos factos provados o seguinte facto: “Ao proferir as expressões referidas em C) e D) a ré sabia que com elas ofenderia o autor.”

Pelo que, na parcial da procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, se impõe descrever os factos dados como provados (pelo tribunal da 1ª instância, com as alterações que atrás lhe foram introduzidas à sua decisão de facto nos termos que atrás se deixaram exarados - mantendo, na medida do possível, a sua numeração e respeitando-se a ortografia aí descrita).

5. Os factos (definitivos) provados.

A) O autor interpôs uma acção contra a ora ré, que correu termos neste tribunal sob o processo nº. ..., a peticionar honorários.

B) No dia 14 de Março de 2019 realizou-se o julgamento, com produção de prova, inquirição de testemunhas e alegações.

C) O autor prestou declarações de parte, sendo que a ré ao o inquiri-lo, afirmou que o autor estava a mentir.

D) Em sede alegações afirmou:

a. Que o autor falsificava procurações.

b. Que o autor era um parasita.

c. Que o autor era um oportunista.

d. Que o autor usava abusivamente de processos judiciais.

e. Que o autor há muito que devia ter a sua inscrição na Ordem suspensa.

E) Tais afirmações foram proferidas na sala de audiências perante a Mª Juíza, advogados e demais pessoas presentes, tendo as mesmas sido gravadas pelo sistema áudio do tribunal.

F) A ré fez tais afirmações de viva e alta voz, de modo a ser ouvida por todas as pessoas que se encontravam na sala de audiências e no Tribunal.

G) A ré agiu de forma voluntária e de modo livre.

H) As afirmações e juízos referidos em C) e D) provocaram no autor abalo moral, causando-lhe desgosto, mágoa, angústia.

I) Ao proferir as expressões referidas em C) e D) a ré sabia que com elas ofenderia o autor.

6. Quanto à 3ª. questão.

6.1 Essa questão tem a ver com o mérito da causa e o saber se houve ou não erro no julgamento (de direito) da mesma.

Dada a forma como o autor estruturou a ação, em termos de pedido e de causa de pedir, é claro que nos encontramos no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, pois que através dela o autor pretende responsabilizar (civilmente) a ré por um alegado comportamento da mesma que terá violado os seus diretos de personalidade, designadamente os seus direitos ao bom nome, à honra, e à dignidade profissional, pretendendo, em consequência, ser dela ressarcido/indemnizado pelos danos (não patrimoniais) que lhe causou com essa lesão.

O tribunal a quo julgou a improcedente a ação com o fundamento de que não se verifica, desde logo, preenchido o primeiro pressuposto dessa responsabilidade: a ilicitude do facto praticado pela ré.

Contra tal entendimento do tribunal a quo se insurge o A./apelante, defendendo não só mostrar-se preenchido tal requisito, como também os demais da aludida responsabilidade.

6.1.2 Apreciemos.

6.1.2.1 Dispõe-se no artº. 26º da nossa Magna Carta (Constituição da República Portuguesa – CRP), sob a epígrafe, Outros direitos pessoais”, queA todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (…).” (sublinhado nosso)

Ao reunir nesse único artigo (como escrevem os profs, Gomes Canotilho e Vital, Moreira, in ” Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª. ed. revista, Coimbra Editora, pág. 179”), “nada menos do que sete direitos distintos, a Constituição sublinha aquilo que, para além da sua diversidade, lhe confere carácter comum, e que consiste em todos eles estarem directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida, abarcando fundamentalmente aquilo que a literatura juscivilista designa por direitos de personalidade. (…). Daí que, que tal como esses, alguns destes direitos de personalidade gozem de protecção penal, e que eles constituam igualmente limite de outros direitos fundamentais que com eles possam conflituar (…).” (sublinhado nosso)

E concretizando a proteção desses constitucionalmente consagrados direitos de personalidade o legislador ordinário passou a disciplinar os mesmos na Secção II do Titulo II do Livro I do Código Civil (sob a epígrafe “Direitos de de Personalidade”), dispondo, desde logo, no artº 72º que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (nº. 1) e que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.” (nº. 2).

Muito embora esse normativo se limite “a declarar, em termos muito genéricos e muito sucintos, a ilicitude das ofensas ou das ameaças à personalidade física ou moral dos indivíduos”, sem descer à minuciosa referência analítica a que recorrem alguns diplomas codificados de outros países (vg. o Código Civil Francês), todavia, e como escrevem os profs. Pires de Lima e A. Varela, (in “Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., revista e actualizada, pág. 103”), dessa “referência genérica pode, sem dúvida, inferir-se a existência de uma série de direitos (à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome (,,,) etc.), que a lei tutela nos termos do nº. 1 do artigo.” (sublinhado nosso)

Pode dizer-se que o direito ao bom nome e à reputação consiste, essencialmente, em a pessoa não ser ofendida ou lesada na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a correspondente reparação (cfr. Ac. do STJ de 10/12/2019, proc. 16687/16.0T8PRT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Para Maria Paula G. Andrade a honra “é um bem da personalidade, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português. E enquanto bem da personalidade, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso”. (in “Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, Contributo para o Estudo do artigo 484º do Código Civil, Tempus Editores, 1996, pág. 97.”).

Já para Rabindranath Capelo de Sousa (in “O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág. 303-305”) “a honra em sentido amplo inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses de apreço social pelas qualidades determinantes de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.”

Por fim, e nas palavras de Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos (in “Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, 2011, págs. 115 a 120”) por bom nome “poder-se-á entender o prestígio, a reputação, o bom conceito associado à pessoa no meio social onde vive ou exerce a sua actividade profissional (…). Em relação ao bom nome, está fundamentalmente em causa uma ideia global, formada a partir das convenções sociais vigentes em determinado momento, acerca do perfil ou posição social de uma pessoa.”

Resulta do exposto que os direitos de personalidade (entre os quais se incluem o direito ao bom nome, à honra e à reputação) assumem a natureza categoria de direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm de respeitar.

A violação desses direitos, e das suas consequências, deverá, no âmbito da responsabilidade civil (extracontratual), que é aquela em que aqui se discute, ser apreciada, em termos gerais, à luz dos artºs. 483º e ss do Código Civil (cfr., por todos, profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., pág. 103”).

Ora, estatui-se no citado artº. 483º do Código Civil - e a cujo diploma pertencerão os normativos doravante indicados, sem que se mencione a sua fonte – que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” (nº. 1), sendo que “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.” (nº. 2).

Por sua vez, dispõe-se no artº. 484º que “quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.”

Do exposto resulta, assim, que o caso em apreço terá que ser analisado ao nível da responsabilidade subjetiva, e mais concretamente no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, já que é nela que se funda, como já deixamos expresso, a pretensão indemnizatória do autor por via desta ação que intentou contra a ré.

Com decorre do citado artº. 483º são vários os pressupostos legais que impõem a obrigação de indemnizar com base em tal responsabilidade, e que, no essencial, se traduzem na existência de um facto (voluntário) ilícito ligado ao lesante por um nexo de imputação subjetiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse facto ao lesado. (Vide, por todos, e para maior desenvolvimento, entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit. pág. 444 e ss.). Ou seja, a obrigação de indemnizar com base em tal responsabilidade pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos/requisitos legais: a) a existência de um facto voluntário do agente; b) que esse facto seja ilícito; c) que verifique um nexo de imputação do facto ao agente, isto é, que esse facto seja imputável ao agente a título de culpa; d) que ocorra um dano; e) e que se verifique um nexo de causalidade (adequada) entre o facto e o dano.

Como é sabido, o facto traduz-se num comportamento humano voluntário, isto é, num facto controlável ou dominável pela vontade do agente.

Por sua vez, a ilicitude revela-se na lesão de um direito de outrem ou violação da lei que protege interesses alheios, ou seja, numa negação dos valores tutelados pela ordem jurídica, tendo em conta uma apreciação objetiva.

O nexo de imputação subjetiva (culpa) refere-se à ligação psicológica do agente com a produção do evento e ao grau de censurabilidade que a sua conduta merece. A conduta do lesante será reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.

A culpa, como facto constitutivo do seu direito, - como sucede, aliás, com os restantes pressupostos da obrigação de indemnizar - incumbe ao lesado provar, a não ser que beneficie, a esse respeito, da existência alguma presunção prevista na lei que dispense dessa prova (cfr. artºs. 342º, nº. 1, 487º, nº. 1, e 350º, nº. 1).

Em matéria de responsabilidade civil extracontratual (por factos ilícitos) consagrou-se um critério de apreciação da culpa em abstrato, pois releva a diligência de um bom pai de família e não a diligência normal do causador do dano, ainda que tal apreciação se faça em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, releva a diligência que o homem normal teria perante o condicionalismo concreto - artº. 487º, nº. 2. (Vide os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “0b. cit., pág. 462”).

No que concerne ao nexo causal (entre o facto e do dano), como é sabido, a lei civil (artº. 563º) adotou a teoria da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstrato ou em geral, seja causa adequada do mesmo (nexo de adequação). Como constitui entre nós entendimento prevalecente, releva a causalidade adequada na sua formulação negativa: a condição deixará de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequado para esse dano.

A teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indireta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano.

Diga-se, por fim, que o dano se pode definir, grosso modo, como o prejuízo in natura que alguém (o lesado) sofreu nos seus interesses (materiais, espirituais/morais) que se encontram tutelados pela ordem jurídica, sendo no que primeiro caso (lesão dos interesses materiais, suscetíveis de avaliação pecuniária) os mesmos reportam-se aos designados danos patrimoniais, enquanto que no segundo caso (lesão dos interesses imateriais/espirituais/morais, insuscetíveis de avaliação pecuniária) os mesmos reportam-se aos chamados danos não patrimoniais.

6.1.2.2 Tendo presente estas gerais considerações preliminares, de cariz teórico-técnico, debrucemo-nos, agora, mais de perto sobre a caso em apreço, subsumindo-as aos factos apurados.

Perscrutando a matéria a matéria de facto apurada ela nos diz-nos o seguinte:

No dia 14/03/2019, em plena audiência de discussão e julgamento referente ao processo autuado com o nº. ... (no qual eram partes o agora autor e a agora ré, advogados, pleiteando em causa própria, que decorria na sala de audiências do tribunal), a ré quando inqueria (exercendo a instância) o autor afirmou (a dado momento) que o mesmo estava a mentir, e já em sede de alegações finais afirmou - de viva e alta voz, e perante todos quantos se encontravam presentes na sala – que o autor “falsificava procurações”; que “era um parasita”; que “era um oportunista”; que “usava abusivamente de processos judiciais”; e que “ há muito que devia ter a sua inscrição na ordem suspensa.” E fê-lo de forma voluntária e de modo livre, e sabendo que ao proferir tais expressões ofenderia o autor, o que veio a acontecer, provocando-lhe abalo moral, e causando-lhe desgosto, mágoa e angustia.

Expressões essas que, pela carga negativa axiológica/valorativa que lhe está associada,  no seu sentir e compreensão, quer pela comunidade comum, quer pela comunidade jurídica, é inolvidável, a nosso ver, que são atentatórias do bom nome, da honra, da reputação e da dignidade do autor (quer na sua vertente estritamente pessoal, enquanto cidadão, quer na sua vertente profissional, enquanto advogado), violando, assim, claramente aqueles seus diretos de personalidade, merecedores, como vimos, de tutela jurídica/constitucional.
E ao fazê-lo, a ré desrespeitou ainda o comando geral do artº. 9º do CPC que impõe a todos a todos os intervenientes no processo o dever de agir “em conformidade com um dever de recíproca correção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade” (nº. 1), proibindo ainda as partes de usarem, “nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, (…)” (nº. 2), bem como o seu próprio Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei nº. 145/2015, de 09/09) que, no seu artº 112º, nº. 1 al. a), estatui que “constituem deveres dos advogados nas suas relações recíprocas proceder com a maior correção e urbanidade, abstendo-se de qualquer ataque pessoal, alusão deprimente ou crítica desprimorosa, de fundo ou de forma.” (sublinhado nosso).
Diga-se, por outro lado, que embora se pudesse porventura entender (no calor do exercício da instância que exercia) que a ré tivesse dito ao autor, quando o inquiria (em declarações de parte) que estaria a mentir, ou seja, a faltar à verdade, porém, já as demais expressões utilizadas pela mesma em sede de alegações orais se mostram, à luz dos factos apurados no processo - e só a esses nos podemos aqui cingir e considerar (sendo certo ainda que além daqueles acima descritos, como provados, mais nenhum outro consta, mesmo sequer do rol daqueles dados como não provados) - totalmente despropositadas/desnecessárias e desproporcionais na defesa da causa em discussão (sendo certo, diga-se, e como se infere do atrás referido, que a ré nem sequer logrou provar nenhum dos factos a que respeitam as aludidas expressões).
É, pois, assim, para nós, patente que se mostram preenchidos todos os pressupostos/requisitos legais que acima enunciamos que integram a responsabilidade civil extracontratual – e desde logo a ilicitude do facto ou da conduta da ré, ao contrário do que concluiu o tribunal a quo – e que impõem à ré a obrigação de indemnizar o autor pelos danos que lhe causou com essa sua conduta.

6.1.2.3 Em termos gerais, e como resulta do artº. 562º, o objetivo da indemnização consiste em colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o acontecimento produtor do dano, desde que este seja resultante desse evento em termos de causalidade adequada.

Tal resultado deve ser procurado, em primeiro lugar, pela reposição da situação tal como estava antes da produção do dano - princípio da restauração natural.

Todavia, não raras vezes essa reposição apresenta-se muito difícil ou mesmo impossível (como acontece no caso dos danos não patrimoniais), tendo lugar, então, a indemnização em dinheiro (cfr. artº. 566º, nº. 1).

E é precisamente o que acontece no caso em apreço destes autos, em que tão somente se discute a obrigação de ré indemnizar/ressarcir os danos não patrimoniais que causou ao A. com aquela sua conduta.

Sabe-se que para efeitos de indemnização desses danos só deverão ser considerados aqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo essa gravidade medida por um padrão objetivo e não à luz de fatores subjetivos (artº. 496º, nº. 1), e que caberá, desse modo, ao tribunal, em cada caso concreto, dizer se o dano (não patrimonial) é ou não merecedor de tutela jurídica.

Como decorre de tudo que supra se deixou exarado, é para nós indiscutível que a ré com aquela sua conduta causou ao A. danos de natureza não patrimonial, pois que com ela ofendeu/lesou os seus sobreditos direitos de personalidade, o que lhe provocou/causou abalo moral, desgosto, mágoa e angústia.

Danos esses merecem, assim, a tutela do direito.

Desse modo, resta, assim, proceder ao cálculo do montante da indemnização por tais danos, o qual deverá ser feito com base em critérios de equidade (artºs. 496º, nº. 3, e 494º), atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, devendo ser proporcional à gravidade do dano e tomando em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida (vide, por todos, os profs. Pires Lima e Antunes Varela, in “Ob. cit. págs. 473/474”, e Acs. do STJ de 17/12/2019, proc. 2224/17.2T8BRG.G1.S1, e de 17/12/2019, proc. 480/1.TBMMV.C1.S2, disponíveis in dgsi.pt).

Relembremos que por tais danos o A. reclama uma compensação pecuniária no montante de €8.000,00.

Porém – e apesar de nos encontrarmos entre aquela corrente de opinião jurisprudencial entre nós vem grassando no sentido de tais danos serem condignamente compensados -, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos, in casu, tal montante manifestamente exagerado.

É que no caso como consequência da aludida lesão de tais direitos de personalidade somente ficou provado que ela apenas teve como efeitos (imediatos/diretos) ter provocado/causado no A. um abalo moral, desgosto, mágoa e angústia, sem quaisquer outras repercussões a outro nível.

Por outro lado, não podemos deixar de considerar a gravidade que algumas daquelas expressões configuram em si, o local em que foram proferidas (em plena sala de audiências de julgamento, com vários intervenientes processuais e pessoas a assistir), a intensidade culpa e que a lesante e lesado são advogados.

Assim, num juízo ponderação global de tais circunstâncias e de equidade, afigura-se-nos como ajustado fixar o montante compensatório de tais danos não patrimoniais, sofridos pelo autor e a pagar pela ré, em €4.000.00 (quatro mil euros).

Não se fixam juros moratórios a pagar pela ré, sobre tal quantia, dado que não foram peticionados (cfr. Ac. do STJ, UJ, nº. 9/2015, de 14/05, DR, 1ª. S, de 24/06/2015).

Assim, em face de tudo o exposto, decide-se, na parcial procedência do recurso, em revogar a sentença recorrida da 1ª. instância, e condenar a ré a pagar ao autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais que lhe causou, a quantia de €4.000.00 (quatro mil euros).


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se – na procedência parcial do recurso e na revogação da sentença da 1ª. instância – em condenar a ré, A..., a pagar ao autor, A..., a quantia indemnizatória de €4.000,00 (quatro mil euros).

Custas da ação e do recurso na proporção do decaimento, que para o efeito se fixa em 50% para cada uma das partes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).

Sumário:

1- Tendo um advogado, atuando em causa própria, em sede de alegações orais finais feitas em plena audiência de julgamento, e dirigindo-se a outro advogado ali presente - pleiteando igualmente em causa própria –, proferido as seguintes expressões que “falsificava procurações”; que “era um parasita”; que “era um oportunista”; que “usava abusivamente de processos judiciais”; e que “há muito que devia ter a sua inscrição na Ordem suspensa” – fazendo-o, de viva voz, de forma voluntária e de modo livre, e sabendo que ao proferir tais expressões ofenderia o mesmo, o que veio a acontecer, provocando-lhe abalo moral e causando-lhe desgosto, mágoa e angústia. -, tais expressões são atentatórias do bom nome, da honra, da reputação e da dignidade desse advogado (quer na sua vertente estritamente pessoal, enquanto cidadão, quer na sua vertente profissional, enquanto advogado), violando, assim, com elas – e tanto mais que nem sequer foram provados os factos a que as mesmas se reportam -, claramente aqueles seus diretos de personalidade.

II- Sendo esses direitos merecedores de tutela jurídica/constitucional, essa sua violação faz incorrer, além do mais, o autor dessas expressões em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, obrigando-o a ressarcir/indemnizar o visado com tais expressões pelos danos (desde logo) de natureza não patrimonial que lhe tenha causado por virtude delas (e verificados que se mostrem, a par da ilicitude que comporta esse facto, os demais pressupostos daquela responsabilidade).

Coimbra, 2020/11/10