Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
987/09.8TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 566.º E 1311.º DO CC
Sumário: I – Quando o juiz decide com fundamento num facto de que não podia tomar conhecimento, comete um erro de julgamento e não alguma das nulidades previstas no artigo 668.º CPP.

II – Na acção de reivindicação o que se pretende é a restituição da coisa e não uma indemnização por um eventual dano causado nela, pelo que essa pretensão deve ser decidida à luz do disposto no n.º 2 do artigo 1311.º CC e não segundo o regime estabelecido no artigo 566.º do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

Associação A... de Aveiro instaurou, na comarca do Baixo Vouga, Grande Instância Cível de Aveiro, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B... L.da, em que pede que seja reconhecido o seu direito de propriedade "sobre o prédio sito na Rua ..., da freguesia da ..., do conselho de Aveiro, que se compõe de casa de três pavimentos e quintal, com superfície coberta de cento e oitenta metros quadrados e quintal com a superfície de cento e noventa metros quadrados, inscrito na matriz urbano daquela freguesia sob o artigo ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º ... e por essa via, ser a R. condenada a:

a) desocupar o supra identificado prédio, restituindo a posse da parte ilegitimamente ocupada à A., demolindo as construções ilicitamente erigidas sobre o prédio da A., na área de 70, 83 m2, no prazo de 20 dias.

b) tapar todas as aberturas e janelas abertas para o prédio da A. que não distam no mínimo 1,5 m, no prazo de 20 dias.

Ainda muito respeitosamente, requer-se a impugnação judicial da rectificação da área do prédio da R., descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º ..., da freguesia da ..., inscrito na matriz sob o artigo n.º ... urbano e em conformidade, que seja notificada esta conservatória para ficar suspensa esta rectificação, até trânsito em julgado da presente acção."

Alega, em síntese, que adquiriu, por compra, aquele prédio urbano que confronta com um imóvel onde a ré levou a efeito a construção de um edifício. Ao fazê-lo a ré invadiu uma área do prédio da autora e rasgou duas janelas na parede do seu edifício, as quais deitam directamente para o prédio desta. Mais alega que o prédio da ré tem a área de 1157,47 m2 não a de 1229 m2, conforme declarou perante o Conservador do Registo Predial.

A ré contestou invocando a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e disse, em suma, que o seu prédio confronta, a poente, com o da autora e que aí construiu uma construção de acordo com as plantas e mapas de implantação que apresentou perante a CM de Aveiro, que fiscalizou a obra sem ter detectado qualquer irregularidade.

Diz ainda que o seu prédio foi construído, naquela zona, com alinhamento com o muro do prédio da autora, sem ter existido invasão deste. Mais afirma que as janelas distam três metros do prédio da autora e opõe-se à pretendida alteração da descrição predial do seu prédio, em termos de áreas.

A autora replicou sustentado não que a petição inicial não está ferida da apontada ineptidão.

Proferiu-se despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial.

Fixaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizou-se julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, absolvendo-se a Ré do demais peticionado, declara-se a A. dona do imóvel supra descrito em 1, e condena-se a Ré a tapar as aberturas que construiu na parede poente do seu imóvel referidas supra, em 6, no prazo de 20 dias."

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A – O presente recurso centra-se na matéria de direito, pelo que com todo o devido respeito, parte de elementos não provados e que nem sequer se podiam considerar provados (vejamos que a R. nem esteve presente em audiência de discussão e julgamento e nem sequer fez qualquer prova!), parte de elementos que nem constam do despacho saneador e vai enredando o seu raciocínio com algumas contradições, chegando a uma conclusão, que – de todo – se pode acolher.

B - PRIMUS – O art. 566.º n.º1 in fine do CC não é aplicável a situações em que existe a adopção de uma conduta dolosa com vista à obtenção da coisa e que, por aplicação de tal norma, o agente consegue assim, obter a mesma. Estamos perante um violação do escopo, o fim a proteger, a essência da norma e o objecto teleológico do art. 566.º n.º 1 in fine do CC.

C - SECUNDUS – A sentença não pode valorar factos que não foram provados, nem sequer se levaram à base instrutória.

D - Como sabe o Tribunal a quo que a demolição implica grande volume de trabalho? Qual o volume de trabalho de demolir uma parede e encurtar as divisórias? Qual o tempo? Um dia? Um dia e meio? Quais as despesas? E - por seu turno, quanto custa 13,8 m2 de prédio urbano no centro nevrálgico de Aveiro?

E - Vejamos: A R. não juntou documentos nem fez qualquer prova!

F - Toda a base instrutória deu-se como provado, sendo que apenas a parte dos 70,83 m2 é de 13,8 m2.

G - TERTIUS: A R. alega, mas nada logrou provar - Allegatio et non probatio, quasi non allegatio!

H - Como sabe o tribunal que se trata de habitações familiares?

I - É que apenas se deu como provado que “construiu um prédio para habitação” - o que é muito diferente de tratar-se de “habitações familiares” - é que tal não é habitação de ninguém.

J - As fracções confinantes encontram-se devolutas!

K - QUARTUS: 1ª incongruência - em causa de nulidade nos termos do art. 668.º n.º 1 c) do CPC - Como sabe o tribunal que se trata de bloco destinado a habitação, comércio e parqueamento, com vários andares?

L - É que de tal não se fez nenhuma prova (não se sabe se em causa esta habitação ou comércio ou parques) – se o Tribunal a quo considerou (que não diz) as plantas, então as plantas servem para provar o destino e o que foi implantado (que – pelo vistos - até se concluiu que se faz tale quale a planta) e não servem para medir a invasão do terreno?  - A R. não juntou nenhum documento e todos os quesitos deram-se como provados!

N - QUINTUS: Nulidade da sentença, nos termos do art. 668.º n.º 1 d) in fine, na medida em - como discorre do alegado - o Tribunal a quo não podia conhecer de factos que não constam do despacho saneador, nem dos FACTOS ASSENTES nem da BASE INSTRUTÓRIA, como seja ser excessivamente oneroso, o tempo que se gasta para a demolição, os meios para a demolição, se pretendem as fracções serem vendidas ou não, se algumas fracções já foram vendidas ou não, a despesa global do valor da demolição, o valor de 13,8 m2 naquela zona.

O - SEXTUS: Violação do art. 334.º do CC, por Abuso de Direito, nas duas últimas modalidades referentes na douta sentença, pois como se compreende, a R. não pode conseguir obter através de uma conduta ilegal, o que de facto pretendia obter, com tal conduta, impedindo a A. do seu bem e “roubando” a esta o seu direito de propriedade privada!

P - SETIMUS: Violação do principio do pedido, do ónus probatório e art.342.º n.º1 do CC.

Q - A R. nada logrou provar!

R - OCTAVUS: 2.ª incongruência - em causa de nulidade nos termos do art. 668.º n.º 1 c) do CPC – Bloco ou vão?

S - O Tribunal a quo vem dizer que se trata de “um bloco destinado ao comércio, habitação e parqueamento, com vários andares – mas mais á frente (aquando das aberturas) diz-nos que as aberturas em causa – com a configuração visível a fls.261 – poder-se-iam considerar-se janelas de sacada ou de vão”. Então são apartamentos ou é um vão? É que, se se trata de um vão, eventualmente até apenas será necessário libertar parte desse vão e restituir à A. os 13,8 m2!

T - NONUS: Como todo o devido respeito (que é muito) diz-nos a douta sentença do tribunal a quo que “pelo que demolir a parede poente num extensão correspondente a cinco andares à superfície” – como sabe o Tribunal a quo que tem cinco andares e como sabe ser necessário encurtar nos cinco andares? - “e quatro subterrâneos” – como sabe o Tribunal a quo que existem quatro andares subterrâneos? - “é inequivocamente, trabalho que demandará custos significativos” – Quais custos e em comparação com o quê? - “com prejuízo para as possibilidades de venda das fracções que ainda não o tenham sido ou prejuízo para a utilização das que já o foram”. – Como sabe o Tribunal a quo que já foram vendidas fracções?

U - DECIMUS: Falta de elementos ou termo de comparação.

V - O Tribunal a quo sabe quanto custa 13,8 m2 (não é de um logradouro) de um prédio urbano na zona mais rica e procurada do centro de Aveiro?

X - UNDECIMUS: negocio contrário aos bons costumes e fim contrário à Lei, na esteira do art. 281.º do CC e em violação deste.

Z - Ou seja - o fim atingido com a através da indemnização, alberga e protege uma conduta ilegal da R. de apossar-se e ficar proprietária do prédio da A., com a inerente consequência, não apenas desta ficar sem a sua propriedade, como de não poder adquirir outra, pela situação concreta.

AA - DUODECIMUS: É excessivamente oneroso a A. ser obrigada a perder o seu terreno e obrigada a aceitar a indemnização, uma vez que estamos num “espaço não indemnizável”.

BB - No caso em apreço estamos perante exactamente o oposto, pois por mais dinheiro que recebesse (e que não quer!) a A. nunca conseguia comprar 13,8 m2 (ou qualquer outra) área naquela zona, porque não existe para comprar.

CC - TERTIUS DECIMOS: Na esteira do ante alegado, a R. encontra-se a obter um enriquecimento sem causa, nos termos do art. 473.º do CC, uma vez que o bem que obteve de forma ilegítima é (digamos) um bem sem preço, na medida em que não se pode adquirir semelhante terreno, naquela zona.

DD - Pelo exposto, deveria ter sido ordenada a demolição do prédio sub judice.

Termina pedindo que seja "revogada a decisão proferida em 1ª instância, sendo condenada a R. a demolir a construção erigida no prédio confinante ao da A., desocupando a favor desta, a área de 13,8 m2, no prazo de 20 dias".

A ré não contra-alegou.

A Meritíssima Juíza a quo pronunciou-se no sentido de que a sentença não padece das nulidades que lhe são apontadas.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) a sentença padece das nulidades previstas no artigo 668.º n.º 1 c) e d);

b) a ré deve ser condenada a desocupar e restituir os 13,80 m2 do prédio da autora, demolindo, em 20 dias, as construções que ali construiu.


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

1 - A A. é proprietária de um prédio sito na R. ..., n.º ..., freguesia de ..., concelho de Aveiro, que se compõe de casa de três pavimentos e quintal, com superfície coberta de 180 m2 e quintal com a superfície de 190 m2, a confrontar a norte com R. ..., sul Rua ..., nascente ...e poente ... e outros, inscrito na matriz urbana daquele freguesia sob o art.º ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº. ... (al. A).

2 - Este imóvel foi adquirido à Câmara Municipal de Aveiro por escritura outorgada no dia 28.6.99 (al. B).

3 - Na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, freguesia de ..., encontra-se descrito sob o n.º ... e aí inscrito em nome da Ré, o prédio urbano sito no Gaveto formado pela Ruas ... com o Largo ..., área total de 1228,03 m2, área coberta de 1048, 2 m2, área descoberta, 179,83 m2, inscrito na matriz sob o art.º ...º e aí descrito assim: Bloco de comércio, habitação e parqueamento, de 2 volumes, um do lado poente de um só corpo e outro do lado nascente, de dois corpos, de cave menos um, cave menos dois, cave menos três e cave menos quatro, r/c, meio piso, 1.º, 2.º e 3.º andares, quarto andar recuado e no corpo poente do volume nascente, ainda um 5.º andar duplex, confrontando a norte com Rua ..., sul, R. ..., nascente, Largo de ... e poente, ... (doc. de fls, 53) – al. C).

4 - Em requerimento de 111 e 112, dirigido ao Conservador do Registo Predial de Aveiro, entre o mais, a Ré fez consignar o seguinte: “(…) proprietária do prédio descrito nessa Conservatória sob o n.º ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o art.º ....º, tendo constatado, através de medição que mandou efectuar àquele prédio, que o mesmo não tem a área de 1157, 47 m2, mas sim a área de 1229 m2, vem pedir a V. Exª que mande rectificar a área daquele prédio para a área correcta (…)” – al. D).

5 - A Ré construiu um prédio para habitação confinante com o prédio da A., a nascente deste último, com o qual ocupou uma área de cerca de 13,8 m2 do logradouro do imóvel da A. (resposta aos 1.º e 2.º da BI).

6 - Na parede poente do prédio construído pela Ré se encontram duas aberturas com largura e comprimento superiores a 1 metro – visíveis na fotografia de fls. 261 – as quais deitam directamente sobre o prédio da A. (resposta ao 3.º da BI).

7 - Tais aberturas não distam mais de um metro do prédio da A. (resposta ao 4.º da BI).


2.º

A autora considera que a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 668.º n.º 1 c)[1].

Como é sabido, essa nulidade verifica-se quando "os fundamentos estejam em oposição com a decisão".

Nestes casos "há um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença); a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente"[2], com efeito, se a decisão é "a conclusão de um raciocínio" a fundamentação são as "premissas de que ela emerge"[3]. Deste modo "a nulidade da sentença proveniente de os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão consubstancia um vício, puramente, lógico do discurso judicial e não um erro de julgamento, e consiste no facto de os fundamentos aduzidos pelo juiz para neles basear a sua decisão, constituindo o seu respectivo antecedente lógico, estarem em oposição com a mesma, conduzindo a um resultado oposto ao que está expresso nesta"[4].

Segundo a autora essa nulidade ocorre, antes de mais, por que há uma "1.ª incongruência" na medida em que o tribunal, não pode afirmar "que se trata de bloco destinado a habitação, comércio e parqueamento, com vários andares", dado que "de tal não se fez nenhuma prova".[5]

Na decisão recorrida a Meritíssima Juíza a quo afirmou que "o prédio da Ré é um dos dois volumes de um bloco destinado a comércio, habitação e parqueamento, com vários andares (cave menos um, cave menos dois, cave menos três e cave menos quatro, r/c, meio piso, 1º, 2º e 3º andares, quarto andar recuado e no corpo poente do volume nascente, ainda um 5.º andar duplex."

Admitindo que, tal como defende a autora, não se pode considerar que, apesar do que figura sob 3 e 5 dos factos provados, este facto não está provado, então, nesse caso, a Meritíssima Juíza terá fundado a sua decisão num facto que não podia considerar, por não figurar entre os que estão provados. Nesse cenário, "quando o juiz tome conhecimento de factos de que não podia servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte" da alínea d) do n.º 1 do artigo 668. "Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão."[6]  E muito menos se trata de uma nulidade da alínea b) desse n.º 1, pois não há aqui contradição alguma; antes pelo contrário, a decisão está conforme esta premissa. Questão diversa é a de saber se podia ter considerado tal premissa.

Quando o juiz decide com fundamento num facto de que não podia tomar conhecimento, não comete nenhuma das nulidades previstas no artigo 668.º; nessa situação estamos, sim, perante um erro de julgamento[7]. E para tal conclusão é decisiva circunstância de neste preceito se fazer uma "enumeração taxativa das causa de nulidade".[8]

Mas, a autora entende que há igual vício por causa de uma "2.ª incongruência" resultante da Meritíssima Juíza a quo "dizer que se trata de “um bloco destinado ao comércio, habitação e parqueamento, com vários andares – mas mais á frente (aquando das aberturas) diz-nos que as aberturas em causa – com a configuração visível a fls.261 – poder-se-iam considerar-se janelas de sacada ou de vão”. Então são apartamentos ou é um vão?"[9]

"Vão" é "um espaço desocupado" ou "uma abertura formada numa parede por janela ou porta".[10]

Não se vê que contradição possa existir em, por um lado falar-se na existência de "um bloco destinado ao comércio, habitação e parqueamento, com vários andares" e, por outro, admitir-se que nele haja um vão. Será que não é normal ou possível que num, "bloco destinado ao comércio, habitação e parqueamento, com vários andares" exista um vão?

Também aqui não se descortina qualquer nulidade.

No capítulo das nulidades, a autora considera, por último, que a sentença recorrida está igualmente ferida da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º, onde se dispõe que a sentença é nula quando "o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento", sendo certo que por força do disposto no n.º 2 do artigo 660.º aquele "não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras."

Para o efeito a autora diz que "o Tribunal a quo não podia conhecer de factos que não constam do despacho saneador, nem dos Factos Assentes nem da Base Instrutória"[11] e que, apesar disso, teve em considerações factos que ali não se encontram. Independentemente de, dado o disposto no artigo 659.º n.º 3, esta afirmação de princípio não ser exacta, a verdade é que, como acima já se deixou dito, quando o juiz decide com fundamento num facto de que não podia tomar conhecimento, não comete a nulidade prevista nesta alínea d); comete, sim, um erro de julgamento.

Para além disso, algumas das expressões que a este propósito a autora menciona[12], tais como "excessivamente oneroso", "o tempo que se gasta para a demolição", "os meios para a demolição", "a despesa global do valor da demolição" não comportam qualquer facto, uma vez que estes são "as ocorrências concretas da vida real".[13] Aquelas expressões correspondem a juízos conclusivos ou afirmações vagas e sem efectivo suporte factual.

Portanto, na sentença recorrida não há qualquer uma das nulidades que a autora lhe aponta.


3.º

A autora formulou nos autos os pedidos de que se declare que é proprietária de um prédio que identifica e se condene a ré a desocupar e restituir-lhe tal imóvel, demolindo, em 20 dias, as construções que ali edificou, numa área de 70,83 m2.

«A defesa judicial do direito de propriedade efectua-se, através da acção de reivindicação, que o artigo 1311.º, do mesmo Código, no seu n.º 1, concretiza, ao dispor que "o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence".

Na acção de reivindicação há, assim, "um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide".[14]

São, pois, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o pedido principal, de efectivo reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio), e o consequente pedido de restituição da coisa (condemnatio), apesar deste ser a consequência lógica daquele reconhecimento.[15]»[16]

Estamos, então, na presença de uma acção de reivindicação.

No que se refere ao invocado direito de propriedade da autora sobre o imóvel que diz pertence-lhe, ele encontra-se reconhecido na decisão recorrida e, esse segmento, não foi atacado pela ré, pelo que se tem que ter por assente a existência desse direito, estando ele já reconhecido.

Por sua vez, o pedido de desocupação e de restituição da área indevidamente ocupada pela ré será considerado em relação aos 13,80 m2 que figuram nos factos provados e não quanto aos alegados 70,83 m2.

Trata-se, assim, de uma pretensão de natureza real (e não obrigacional), visto que o que aqui está em causa "é o direito real de gozo violado com a posse ou a detenção do réu."[17] O que se pretende é a restituição da coisa ocupada e não uma indemnização por um eventual dano causado nela. Desta forma, esta pretensão deve ser decidida à luz do disposto no n.º 2 do citado artigo 1311.º[18], onde se afirma que "havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei." E "a recusa da restituição ocorrerá sempre que o possuidor ou detentor for titular de algum direito que legitime essa posse ou detenção, designadamente um direito real ou pessoal de gozo relativo á coisa."[19] Na verdade, "o possuidor ou detentor só poderá evitar a restituição peticionada naquela acção se conseguir provar uma de três coisas: a) que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse; c) que a detém por virtude de direito pessoal bastante."[20]

Sendo assim, não se vendo nos factos provados nada que se traduza num dos "casos previstos na lei" que fundamente uma recusa da restituição da parcela indevidamente ocupada pela ré, tem que se proceder a essa restituição, com a sua prévia desocupação, o que obriga a demolir o que esta aí construiu.

A autora pretende também que se fixe o prazo de 20 dias para a demolição da edificação que se encontra a ocupar essa parte do seu logradouro.

Sucede que, não se sabendo, face aos factos provados, o que realmente está construído nesses 13,80 m2, não se tem conhecimento duma realidade concreta que permita afirmar, com a necessária segurança, que vinte dias são suficientes para executar a tarefa em causa. Por isso, não havendo elementos que possibilitem determinar um prazo para levar a cabo esses trabalhos, nesta parte, o pedido não pode ser satisfeito.


4.º

Mas, se entendesse, como entendeu o tribunal a quo, que ao caso em apreço havia que aplicar o regime que se encontra consagrado no artigo 566.º do Código Civil, então, teria que, em primeiro lugar, ter-se presente que do seu n.º 1 resulta "uma nítida preferência pela indemnização específica, considerada mais perfeita do ponto de vista da reparação do dano."[21] Assim, só não se recorrerá à "reconstituição natural" quando esta "não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor." E, nos "casos de excessiva onerosidade, será, naturalmente, a requerimento do devedor que a obrigação de restauração natural se converterá em obrigação pecuniária."[22]

Ora, a ré não nada alegou de concreto no sentido de que a restituição da parte do imóvel da autora que ocupou é excessivamente onerosa, nem, tão pouco, pediu que, por isso mesmo, a obrigação de restitui-la fosse substituída por uma indemnização fixada em dinheiro. O mais que alega quanto a esta matéria, de modo aliás algo contraditório, conclusivo e vago, é que "tal demolição, a ser ordenada, implicaria a demolição de um prédio de habitação, ou pelo menos, parte dele."[23]

Acresce que dos (poucos) factos provados nada de concreto, palpável e seguro se encontra que permita concluir, como concluiu a Meritíssima Juíza, que "demolir a parede poente numa extensão corresponde a cinco andares à superfície e quatro subterrâneos é, inequivocamente, trabalho que demandará custos significativos com prejuízo para as possibilidades de venda das fracções que ainda o não tenham sido ou prejuízo para a utilização das que o já foram. Esta pretensão da A. implica um volume de trabalho, tempo e despesa global de valor muito superior à parte do direito que viu violado uma pequena área de um logradouro."

Para já, aceitando que da conjugação dos factos 3 e 5 se pode extrair que está provado[24] que, tal como figura na descrição predial, a ré construiu, efectivamente, um prédio composto de bloco de comércio, habitação e parqueamento, de 2 volumes, um do lado poente de um só corpo e outro do lado nascente, de dois corpos, de cave menos um, cave menos dois, cave menos três e cave menos quatro, r/c, meio piso, 1.º, 2.º e 3.º andares, quarto andar recuado e no corpo poente do volume nascente e um 5.º andar duplex, daí não resulta necessariamente que os 13,80 m2 do imóvel da autora ocupados com essa construção incluem os quatro níveis de caves e os cinco andares à superfície. No campo das hipóteses, tanto pode ter acontecido isso, como também é possível que esses 13,80 m2 estejam ocupados somente por uma pequena parte da edificação, facilmente removível.

Por outro lado, não só não se sabe qual é o valor desses 13,80 m2, como igualmente se desconhece em que medida é que, retirando tal área ao imóvel da autora, este fica desvalorizado, nomeadamente para efeitos de construção. E esse desconhecimento estende-se ao custo que a ré teria que suportar para restituir à autora o espaço desta que ocupou, não se tendo a menor ideia dos trabalhos que isso implicaria. 

A decisão a proferir tem que assentar em factos provados; não em conjecturas, por mais prováveis que elas se possam apresentar.

Perante este quadro, se houvesse lugar à aplicação do disposto no artigo 566.º do Código Civil, nessa hipótese não se poderia acompanhar a Meritíssima Juíza a quo quando chega à conclusão de que "a reposição da situação ao statu quo ante (princípio da reposição natural), primeiro critério de reparação daquele dano (artº 562º Código Civil), se nos afigura excessiva face aos dados concretos em presença" e que "o direito de propriedade violado, na reduzida área em que o foi e tendo conta a situação actual[25], poderá ser reposto com maior justiça e equilíbrio se, ao invés da reposição natural, se fizer apelo às regras da indemnização em dinheiro."


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, pelo que se condena a ré a desocupar e restituir à autora os 13,80 m2 do imóvel desta que ocupou, demolindo as construções que aí construiu, revogando-se neste segmento da decisão recorrida, e mantendo-se no mais o decidido na sentença do tribunal a quo.

Custas pela autora e ré, na proporção de 1/10 para aquela e 9/10 para esta.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                             Hélder Almeida


[1] Cfr. nomeadamente as conclusões K e R.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 690.
[3] Alberto dos Reis, Comentário, Vol. II, 1945, pág. 172 e 173.

[4] Ac. STJ de 20-10-09 Proc. 3763/06.6.YXLSB.S1, www.gde.mj.pt.
[5] Cfr. conclusões K e L.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1952, Vol. V, pág. 144 e 145.
[7] Cfr. a limitação decorrente da 2.ª parte do artigo 664.º.
[8] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, obra citada, pág. 686. No mesmo sentido Alberto dos Reis, obra citada, pág. 137
[9] Cfr. conclusões R e S.
[10] Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Vol. II, 15.ª Edição, pág. 1274.
[11] Cfr. conclusão N.
[12] Cfr. conclusão N.
[13] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra citada, pág. 406. Defendendo esse entendimento, veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 525 e 526.
[14] Segundo Manuel Rodrigues, A Reivindicação no Direito Civil Português, RLJ, ano 57.º, pág. 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 4.ª Edição, pág. 114; cfr. ainda Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, págs. 238/239.
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 113.
[16] Ac. STJ de 29-11-2011 Proc. 2916/06.1TACB.C1.S1, www.gde.mj.pt.
[17] José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pág. 489.
[18] Não tendo cabimento resolver a questão segundo o regime estabelecido no artigo 566.º do Código Civil, como fez o tribunal a quo.
[19] Menezes Leitão, Direitos Reais, pág. 257.
[20] Ac. STJ de 6-12-2011 no Proc. 2916/06.1TACB.C1.S1, www.gde.mj.pt.
[21] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, pág. 724.
[22] Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 582.
[23] Cfr. artigos 84.º e 85.º da contestação.
[24] O que não se afigura pacífico.
[25] A Meritíssima Juíza está a referir-se à circunstância da ré, já no decorrer da acção, ter sido declarada insolvente. Salvo melhor juízo, não se vê em que é que esse facto possa ser relevante para os efeitos dos artigos 1311.º e/ou 566.º do Código Civil.