Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2500/15.9T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO OBJETIVA DE PUNIBILIDADE
A NÃO NOTIFICAÇÃO DE UM ARGUIDO NÃO APROVEITA AOS DEMAIS
NOTIFICAÇÃO DE SOCIEDADE DECLARADA INSOLVENTE
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JL CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 6.º, 7.º E 105 DO RGIT; ART. 81.º DO CIRE
Sumário: I - A Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que deu a redacção vigente ao art. 105º do RGIT, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social [ex vi, art. 107º, nº 2 do referido regime geral], uma nova condição objectiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2006.

II - Condição que consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só ser punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito feita.

III - A notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente colectivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares, ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.

4 - A notificação em questão, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa, como é óbvio, a sua própria responsabilidade criminal, pode ser feita na pessoa da administrador da insolvência (cfr. Tiago Milheiro, Da Punibilidade nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, Julgar, Maio – Agosto de 2010, EASJP, pág. 81).

V - Para que a condição se verifique em relação a cada arguido é apenas necessária que o mesmo tenha sido regularmente notificado e não tenha, dentro do prazo referido, satisfeito o pagamento devido.

VI - Embora o pagamento feito por um responsável a todos aproveite, na ausência de previsão legal, a falta de notificação de um co-responsável não constitui circunstância impeditiva do prosseguimento do processo quanto aos que, já notificados, não efectuaram o pagamento.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Coimbra – J3, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, dos arguidos A... , Lda., e B... , ambos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, todos do RGIT e art. 30º, nº 2 do C. Penal.

            O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Coimbra, deduziu pedido de indemnização contra os arguidos com vista à sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 15.059,13, a título de prestações em falta, acrescida de juros de mora vencidos, liquidados em € 4.044,48, e juros vincendos até integral pagamento, calculados de acordo com a legislação da segurança social, e ainda no pagamento da quantia de € 11, por outros danos.

  

            Por sentença de 2 de Fevereiro de 2017, depositada no dia imediato [cfr. fls. 389], foram os arguidos absolvidos da prática do crime e do pedido de indemnização deduzido.


*

Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1º. Nos autos à margem identificados, os arguidos INTER TOOLS – COMÉRCIO DE MÁQUINAS E FERRAMENTAS, LDA e B... encontram-se acusados da prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, do regime Geral das Infrações Tributárias (doravante RGIT) e 30º, nº 2, do CP;

2º Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que absolveu os arguidos da prática do crime que lhes vinha imputado;

3º Porém, analisada a sentença recorrida, afigura-se-nos que, do seu texto, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultam os vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, a que aludem as alíneas b) e c), do nº 2, do artº 410º, do CPP;

4º Com efeito, o Tribunal a quo deu com provada a prática, pelos arguidos, de factos integradores dos elementos típicos, objetivo e subjetivo, do aludido crime de abuso de confiança contra a segurança social, dando ainda como provada a prática, pelo outro gerente da sociedade arguida, C... , de factos (não descritos na acusação) integradores do mesmo tipo legal de crime (matéria de facto dada como provada, constante dos parágrafos 1 a 13 do ponto II da sentença recorrida) e conclui até que “dúvidas não restam que estão preenchidos os elementos típicos do crime”.

5º Porém, o mesmo Tribunal veio a absolver os arguidos da prática do aludido crime, por ter concluído que “não se verificam – in casu – as condições de punibilidade do mesmo” pela circunstância de um dos gerentes da sociedade arguida, C... , não ter sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artº 105º, nº 4, al. b), do RGIT, o que, no seu entender, coarta, “a cada um e a todos, a possibilidade do pagamento da quantia em dívida”.

6º Ora, tais afirmações – se analisadas à luz das regras da experiência, como impõe o artº 127º, do CPP – traduzem uma contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;

7º Acresce que o Tribunal recorrido extraiu dos factos dados como provados uma conclusão ilógica, inaceitável e desadequada, notoriamente violadora das regras da experiência comum.

8º. Com efeito, o facto de a obrigação de pagamento à segurança social das quotizações em dívida, acrescidas de juros e da coima aplicável, constituir uma obrigação solidária e a circunstância de, relativamente a um dos gerentes – que não veio a ser acusado – se não encontrar verificada uma das condições objetivas de punibilidade, não afasta a responsabilidade criminal dos dois arguidos que vieram a ser acusados;

9º De facto, relativamente a estes arguidos, a notificação prevista no artº 105º, nº 4, al. b), do RGIT foi efetivamente efetuada e aqueles não procederam ao pagamento, no prazo de 30 dias após essa notificação, das quantias em dívida à segurança social, acrescidas dos juros respetivos e da coima aplicável;

10º Por isso, esses arguidos vieram a ser acusados e, relativamente a eles, foi feita prova, em sede de audiência de julgamento, do preenchimento, pela respetiva conduta, dos elementos típicos, objetivo e subjetivo, do crime que lhes vinha imputado.

11º Assim, não podia o Tribunal a quo ter absolvido os arguidos da prática do crime de abuso de confiança social, por não se verificar, quanto a eles, a condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4, do artº 105º., do RGIT.

12º Pelo exposto, consideramos que a sentença recorrida violou o disposto nos artºs 127º e 410º, nº 2, als. b) e c), do CPP, 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, do RGIT e 30º, nº 2, do CP.

Termos em que, deverão Vªs Exas., dando provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e substituí-la por outra que condene os arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, do RGIT e 30º, nº 2, do CP, assim se fazendo, JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a sociedade arguida, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1. A presente decisão de absolvição, que não merece qualquer censura, resulta do não preenchimento dos requisitos objectivos de punibilidade, previstos no artigo 105º n.º 4, al. b, do RGIT.

2. Prevê tal normativo que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.”

3. Foram dados como provados os seguintes factos:

“Notificados o Administrador da sociedade arguida já insolvente e o arguido B... , para efetuar o pagamento das quantias supramencionadas, no prazo de 30 dias, acrescidas dos respetivos juros legais e do valor da coima aplicável, tais quantias não foram pagas.” E que,

“ C... , gerente da sociedade arguida não foi localizado e notificado para efetuar o pagamento das quantias supramencionadas no prazo de 30 dias, acrescidas dos respetivos juros legais e do valor da coima aplicável.”

4. Para que a sociedade arguida pudesse ser criminalmente responsabilizada, os seus gerentes (todos eles) deveriam ter sido notificados, nessa qualidade e enquanto responsáveis pela sociedade (e não apenas a título próprio), não podendo essa notificação ser feita na pessoa do Administrador da Insolvência, contrariamente ao que sucedeu no presente caso.

5. De facto, “I – Nos termos do disposto no artigo 81.º, n.º 4, do CIRE, a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

6. II – Nas demais vertentes, designadamente as que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta), a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes (n.º 2 do art. 82º do CIRE).” – Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 14-10-2015.

7. Acresce que o facto de não se ter notificado o gerente C... obsta a que se consiga apurar a verdadeira responsabilidade da aqui sociedade arguida.

8. De facto, a sociedade arguida não tem vida própria, dependendo da actuação de pessoas físicas, no caso concreto, de ambos os gerentes e não apenas de um, sendo certo que “não se sabe se esse responsável é imputável, actuou com dolo – exigível neste tipo de crime – se existe alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.”, o que poderia, em último caso, alterar a responsabilidade da própria sociedade arguida.

9. Resulta, pois, que todos os intervenientes (sociedade arguida e seus gerentes) devem ser notificados, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, para que, dessa forma, seja dada a todos a oportunidade de efectuar o pagamento das quantias constantes da notificação, no prazo de 30 dias, uma vez que, o pagamento feito por um a todos libera, ficando, com o pagamento de um, excluída a responsabilidade criminal e a punibilidade de todos os responsáveis envolvidos.

10. Desta forma, não tendo sido notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, o gerente C... , bem andou o Tribunal a quo em absolver os arguidos, por falta de verificação da condição objectiva de punibilidade, não merecendo a decisão qualquer censura.

11. A absolvição dos arguidos não resulta de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, bem como de erro notório na apreciação da prova.

12. Não merecendo qualquer censura a decisão a quo, deve improceder o recurso e manter-se a decisão recorrida que absolveu a sociedade arguida da prática do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p.p pelos artigos 6.º, n.º1, 7.º, 105.º, n.º 1, 4 e 7 e 107.º, n.º 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

            TERMOS EM QUE:

            Deve o recurso ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão proferida em primeira instância.

            Porém, Vossas Excelências farão a costumada JUSTIÇA!


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            Também o arguido respondeu ao recurso, alegando, em síntese, que, devendo ser notificados para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, todos os gerentes e nessa mesma qualidade, e não o tendo sido o gerente C... , não está verificada a condição objectiva de punibilidade exigida para o preenchimento do tipo pelo que se impunha a decidida absolvição, acrescendo não se verificar, pelas mesmas razões, o invocado vício de erro notório na apreciação da prova, e concluiu pela integral manutenção da sentença recorrida.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concordando com os fundamentos da motivação do Ministério Público, afirmando a existência de incorrecta interpretação e aplicação das normas legais convocadas, e concluiu pela procedência do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência dos vícios de contradição da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova;

- A verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT e a consequente condenação dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social e no pedido de indemnização.


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            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Assim, nela foram considerados provados os seguintes factos [por nós numerados]:

            “ (…).

            1. A arguida " A... , Lda." é uma sociedade por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o n.º (...) , com o NISS n.º (...) e com sede (...) , em Coimbra, que tem por objeto o comércio, a importação e exportação de máquinas, ferramentas e equipamentos.

2. O arguido B... e C... eram, à data dos factos, gerentes da sociedade arguida, cabendo aos mesmos representar a sociedade, pagar os vencimentos a si e aos seus trabalhadores e fazer os respetivos descontos para a Segurança Social.

            3. A sociedade, tendo tido trabalhadores a seu cargo, no regime geral, encontrava-se obrigada, através do arguido B... e ainda através de C... , a deduzir das remunerações base pagas aos seus trabalhadores a quantia de 11%, assim como se encontrava obrigada a deduzir das remunerações pagas aos órgãos estatutários, à data, a quantia de 9,3%, estando ainda obrigada a deduzir das remunerações pagas aos trabalhadores/membros de órgãos estatutários pensionistas por velhice a quantia de 7,5% .

4. Sendo que o correspondente a essas deduções deveria ser entregue ao Instituto de Gestão Financeira do Instituto da Solidariedade e Segurança Social – Centro Distrital de Coimbra, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que diziam respeito.

5. Porém, a arguida sociedade, representada à data infra mencionada, pelo arguido B... e ainda por C... não entregou à Segurança Social, nos meses de Maio a Julho de 2011, Nov. e Dez. de 2011 e Jan. a Maio de 2012 em tal prazo, nem nos 90 dias seguintes, as seguintes quantias, efetivamente deduzidas nas remunerações pagas aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, no valor global de € 15.059,13, nos termos descriminados nos quadros que fls. 176 verso que aqui se dá por reproduzido.

6. Notificados o Administrador da sociedade arguida já insolvente e o arguido B... , para efetuar o pagamento das quantias supramencionadas, no prazo de 30 dias, acrescidas dos respetivos juros legais e do valor da coima aplicável, tais quantias não foram pagas.

7. C... , gerente da sociedade arguida não foi localizado e notificado para efetuar o pagamento das quantias supramencionadas no prazo de 30 dias, acrescidas dos respetivos juros legais e do valor da coima aplicável.

8. O arguido B... sabia que os montantes deduzidos em sede de contribuições à segurança social não pertenciam à sociedade arguida, devendo ser entregues a essa entidade.

9. Os gerentes da sociedade agiram no interesse da sociedade arguida, atuando com intenção de fazer face às dificuldades de tesouraria que se colocavam perante a crise económica, que afetou gravemente a construção civil e o país.

10. B... agiu livre, voluntária e conscientemente, em representação e no interesse da sociedade, sabendo que aquele dinheiro pertencia à segurança social e a esta devia fazer chegar.

11. A falta de entrega causou à segurança social uma diminuição das receitas de montante idêntico ao benefício alcançado, valor esse que não se mostra ainda pago.

12. A atuação descrita ocorreu de forma homogénea, ao abrigo da oportunidade favorável à prática dos factos descritos, dado que após a prática dos primeiros factos não foi levada a cabo qualquer fiscalização ou penalização, mantendo-se as possibilidades de repetição da conduta descrita a qual, sabia o arguido B... , ser proibida e punida pela lei penal.

13. Por sentença transitada em julgado em 02.01.2013, a sociedade arguida foi declarada insolvente.

            14. O arguido tem os antecedentes criminais descriminados no C.R.C. ora junto aos autos onde constam duas condenações por crime de abuso de confiança fiscal (factos de 2011 e 2012, sentenças de 2013 e 2014), tendo-lhe sido aplicadas penas de multa.

            15. Vive com a esposa doente oncológica; aufere uma reforma de € 1089,00, habita em casa de pessoas amigas e tem de habilitações literárias o curso comercial.

            16. Admitiu os factos, esclarecendo o contexto económico da atuação.

            (…)”.

            B) Inexistem factos não provados e dela consta a seguinte fundamentação de direito quanto à [não verificação da] condição objectiva de punibilidade:

            “ (…).

            Dúvidas não restam que estão preenchidos os elementos típicos do crime.

No entanto, cremos que não se verificam – in casu – as condições de punibilidade do mesmo. Com efeito, prescreve o artigo 10sº n.º 4, do RGIT que:

            "Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito".

O preenchimento deste tipo de crime depende, assim, da verificação de duas condições objetivas punibilidade, que são cumulativas: o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e a falta de pagamento da prestação, acrescido dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

A propósito da natureza jurídica da notificação a que alude o artigo 105º nº 4 al. b) do citado preceito legal, o acórdão n.º 6/2008, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Abril de 2008, publicado no DR, 1.ª série, fixou jurisprudência nos seguintes termos: "A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo."

Contudo, cremos que a exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT se estende a todos e a cada um dos responsáveis legais pelo pagamento da dívida. Com efeito, tratando-se de uma obrigação solidária (cfr. artigo 512º do CC) o pagamento da dívida por um destes, a todos libera.

Daí que a não notificação de um destes coartar, a cada um e a todos, a possibilidade do pagamento da quantia em dívida.

Na verdade, o pagamento de um exclui a punibilidade dos factos relativamente a todos.

Estando em aberto esta possibilidade afigura-se-nos, defensável a tese apresentada pela defesa, em sede de alegações.

Com efeito, mutatis mutandis podemos ler o acórdão da RP de 13.05.2009, processo n.º 142/0S.6IDPRT.P1 – citado por Tiago Milheira, em Rev. Julgar, nº 11, pag. 69 e ss. "sendo arguidos a sociedade e o gerente, a notificação deste, na qualidade de representante legal daquela, para o efeito previsto no art. 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não dispensa a mesma notificação em seu nome pessoal, pois são diversas as qualidades em que intervém no processo".

Refere o mesmo Autor (ob. cit. pag. 82) que, para tanto, devem ser notificados os autores, os co-autores, instigadores ou cúmplices, e inclusivamente as sociedades arguidas, na pessoa dos seus legais representantes (incluindo os administradores, gerentes ou administradores da insolvência, caso a sociedade já tenha sido declarada insolvente), adiantando que "(…) nada impede que o pagamento seja repartido pelos vários agentes, sendo que se um deles pagar o montante que consta da notificação se exclui a punibilidade de todos.

Sabemos que "as condições de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito impostas aos elementos do tipo. Na sua falta, não estão verificados todos os pressupostos indispensáveis para que a punição possa desencadear-se. Com efeito, «em vez de dizer-se que os pressupostos de punibilidade desencadeiam sem mais a punição, melhor se dirá que, uma vez eles verificados, se perfecciona o Tatbestand (no sentido da Teoria Geral do Direito) que faz entrar em jogo a consequência jurídica (Rechtsfolge) e a sua doutrina autónoma» (FIGUEIREDO DIAS Direito Penal, p. 215 – in ob. cit.).

O que vem de se dizer valerá, por maioria de razão, para a responsabilidade civil que, in casu, assentava na infração criminal e na reunião dos pressupostos substantivos e adjetivos da sua verificação.

Acresce que, tendo sido determinado o arquivamento do processo relativamente a um dos gerentes (por impossibilidade de notificação pessoal do visado C... nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT) cremos que os ora arguidos – pessoa singular e coletiva – não terão que responder pelo cometimento do ilícito em questão.

O Estado tem combatido fortemente este tipo de crimes, existindo uma forte necessidade de consciencialização do significado social destas condutas omissivas, que são por vezes consideradas não criminosas e neutramente aceites.

Esta consideração porém não poderá alhear-se do conhecimento e valoração da crise económica que assolou e assola o País.

(…)”.


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            Da existência de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova

            1. Alega a Digna Magistrada recorrente – conclusões 3 a 7 – que face ao texto da decisão recorrida, o tribunal a quo deu como provada a prática, pelos arguidos e por C... , de factos preenchedores do tipo do crime imputado, mas veio a absolver os arguidos, por entender que a falta de notificação do referido C... , enquanto gerente da sociedade arguida coarctou a todos e a cada um deles, a possibilidade do pagamento da quantia em dívida, o que constitui contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e um erro notório na apreciação da prova, por se traduzir numa conclusão ilógica, inaceitável e violadora das regras da experiência comum.

            Oposta é a posição dos arguidos para quem não se verificam as invocadas patologias.

            Vejamos a quem, em nosso entender, assiste razão.

1.1. Os vícios decisórios, previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, são defeitos da estrutura da própria decisão penal e por isso, tal como resulta da norma citada, a lei impõe que a sua evidenciação se faça apenas através do respectivo texto, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para este efeito, lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do respectivo processo.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode revestir diversas formas, entre elas, como uma oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], como uma oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], como uma incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].

Por sua vez, existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valora contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341). Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, 2007, Editora Rei dos Livros, pág. 74).

1.2. Assim delimitados os vícios invocados, torna-se evidente, face à argumentação apresentada pela Digna Magistrada recorrente, sempre com ressalva do respeito devido, que deles não padece a sentença em crise. Explicando.

O Acórdão Uniformizador nº 6/2008, de 9 de Abril de 2008, fixou jurisprudência no sentido de que a exigência prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, na redacção da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, configura uma nova condição objectiva de punibilidade.

Brevitatis causa diremos que o sistema do facto punível é composto pelo tipo de ilícito [concretização do conceito material de crime], pelo tipo de culpa [o juízo de censura do agente, referido ao ilícito típico] e, em certos casos, a punibilidade, a dignidade punitiva do facto como um todo, onde se contam, entre outras, as condições objectivas de punibilidade (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 263). A afirmação feita na sentença recorrida de que «Dúvidas não restam que estão preenchidos os elementos típicos do crime» refere-se, como parece evidente, àquela primeira categoria, ao tipo de ilícito pelo que, nada existe de contraditório quando, não obstante tal afirmação, por se considerar não estar verificada uma condição objectiva de punibilidade, de decide, com tal fundamento, pela absolvição dos arguidos. Na verdade, a ser, como entende a Digna Magistrada recorrente, incorrecta a decisão proferida, ela nada tem a ver, no entanto, com o vício da contradição insanável mas, eventualmente, com uma errada aplicação do direito.

E também não existe erro notório na apreciação da prova porque este, como a própria designação intui, consiste num erro grosseiro e patente sobre a matéria de facto considerada como provada [sempre, como já referido, revelado pelo texto da decisão, ainda que conjugado com as regras da experiência comum], enquanto a questão suscitada pela Digna Magistrada recorrente nada tem a ver com a matéria de facto provada [não subsiste qualquer dúvida sobre o acerto de se ter considerado provado que um dos gerentes da sociedade arguida não foi notificado para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT] mas com as consequências jurídicas tiradas pelo tribunal a quo quanto a esta factualidade.    

Para terminar este ponto, porque é oficioso o conhecimento dos vícios decisórios, diremos ainda que na sentença recorrida também não se evidencia a presença do vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.


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Da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT e da consequente condenação dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social e no pedido de indemnização

2. A decidida absolvição dos arguidos, pela não verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT assentou na consideração de que, abrangendo aquela todos os responsáveis legais pelo pagamento das prestações tributárias e das prestações de segurança social, deduzidas e não entregues, estando em causa uma obrigação solidária, o pagamento por um dos obrigados, a todos libera, o que significa que o pagamento efectuado por um dos obrigados exclui a punibilidade da sua conduta e da conduta dos demais e daí que, a não notificação de um, para os efeitos da supra identificada norma, coarcte a todos e a cada um, a possibilidade do pagamento da quantia em falta.

Vejamos.

A Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que deu a redacção vigente ao art. 105º do RGIT, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social [ex vi, art. 107º, nº 2 do referido regime geral], uma nova condição objectiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2006, supra referido – e que consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só ser punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito feita.

 Resulta das disposições conjugadas dos arts. 6º e 7º do RGIT que no âmbito dos crimes tributários vigora uma regra de responsabilidade cumulativa do ente colectivo e das pessoas singulares que, enquanto suporte de órgão ou representante, actuaram em seu nome e no seu [do ente colectivo] interesse, no cometimento da infracção (cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, FDL, nº 5, 2006, Almedina, pág. 60).

Trata-se, portanto, de uma responsabilidade penal atribuída a distintos sujeitos – o ente colectivo e a pessoa ou as pessoas singulares que o representam e actuam a sua vontade – fundada, embora, no mesmo facto, plenamente justificada pela circunstância de a vontade do ente colectivo, v.g., da sociedade, não se confundir com a vontade dos titulares dos seu órgãos, dos seus gerentes ou administradores.

Deste modo, a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente colectivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares e portanto, fora daquela veste estatutária ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.

Quando deva ocorrer na pendência do processo criminal, a notificação está sujeita às regras previstas no C. de Processo Penal, devendo ser feita ao próprio arguido.

Por outro lado, no caso especifico das sociedades comerciais, quando haja já declaração de insolvência, a notificação pode ser feita ao administrador da insolvência. Não desconhecemos o teor do nº 4 do art. 81º do CIRE nem a jurisprudência que se tem pronunciado no sentido de que, mesmo com a declaração de insolvência, a notificação deve ser feita ao gerente ou ao administrador (cfr. acs. da R. de Coimbra de 28 de Setembro de 2011, processo nº 123/09.0IDSTR.C1 e da R. do Porto de 22 de Junho de 2011, processo n.º 17716/09.9TDPRT.P1, in, www.dgsi.pt), afigura-se-nos excessivamente redutor o entendimento de que a representação do administrador da insolvência prevista na norma citada abrange apenas questões patrimoniais relativas à insolvência, estando excluídas, portanto, questões de natureza criminal sendo que, tem esta natureza, a notificação em análise.

É claro que a notificação surge no âmbito de um processo criminal já instaurado ou a, eventualmente, instaurar, caso não seja feito o pagamento da dívida no prazo legal. Mas trata-se sempre de uma dívida, de prestações tributárias ou para-tributárias que, porque têm natureza patrimonial, não podem deixar de interessar à insolvência. Mas se a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81º, nº 1 do CIRE), que sentido útil terá a notificação feita ao gerente ou administrador da sociedade declarada insolvente, nesta qualidade [e não, como vimos, na qualidade de pessoa singular ou seja, na qualidade de autor do crime], para que a própria sociedade, enquanto arguida, proceda ao pagamento da quantia em dívida, assim impedindo a verificação da condição objectiva de punibilidade, quando já não detém poderes de disposição de bens pertencentes ao ente colectivo e portanto, não pode já fazer actuar a vontade colectiva no sentido do pagamento da dívida.

Cremos, assim, que a notificação em questão, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa, como é óbvio, a sua própria responsabilidade criminal, pode ser feita na pessoa da administrador da insolvência (cfr. Tiago Milheiro, Da Punibilidade nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, Julgar, Maio – Agosto de 2010, EASJP, pág. 81).  

3. Revertendo para a questão sub judice, resulta dos autos que o arguido B... foi presencialmente notificado em 10 de Novembro de 2015, pessoalmente e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT (cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial de Coimbra de fls. 47 a 59 e certidão permanente de fls. 149 a 154 e notificação para pagamento voluntário de fls. 118).

Resulta dos autos que por carta registada com aviso de recepção, com aviso assinado em 18 de Março de 2015, foi o administrador da insolvência da sociedade arguida notificado, para os mesmos efeitos (cfr. fls. 44 a 46).

Resulta ainda dos autos que C... , gerente da sociedade arguida, foi notificado, para os mesmos efeitos, por carta registada com aviso de recepção, com aviso assinado em 22 de Abril de 2015, não pelo destinatário, mas por terceira, sem mais explicação (cfr. fls. 37 a 38), que tentada a sua localização a fim de ser notificado presencialmente, a GNR informou os autos que o mesmo não residia na morada indicada – Rua da M (...) Taveiro – há já cerca de quatro anos, estando a residir e a trabalhar em Macau (cfr. fls. 112 a 113), que ordenada pela Digna Magistrada do Ministério Público pesquisa na base de dados, foi obtida e já conhecida morada, solicitada a sua constituição como arguido, informou em 10 de Março de 2016 a GNR que o mesmo se encontra em Macau, não tendo sido possível obter a sua residência nesta região autónoma da República Popular da China (cfr. fls. 145, 155 e 158).

No despacho de arquivamento de 30 de Maio de 2016, a fls. 174 a 175, a Digna Magistrada do Ministério Público, depois de considerar que a notificação por carta registada com aviso de recepção assinado em 22 de Abril de 2015, não por C... , mas por terceiro, não é eficaz, entendeu que, residindo este em Macau, em morada desconhecida, não é viável, no futuro, a notificação pessoal do mesmo e, em consequência, considerou inadmissível, quanto a ele, o procedimento criminal.

Posto isto.

Afigura-se-nos inquestionável que o arguido B... e a sociedade arguida foram correctamente notificados para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT. O primeiro, porque o foi presencialmente e pessoalmente isto é, na qualidade de pessoa singular. A segunda, porque o foi através do seu legal representante, o arguido B... , na qualidade de gerente, e o administrador da insolvência. O outro gerente da sociedade arguida, o referido C... , não foi notificado, nem pessoalmente, nem na mencionada qualidade estatutária.

Com a nova condição objectiva de punibilidade a lei colocou na disponibilidade de cada agente do crime, através de um facere – o pagamento da prestação em falta e juros, dentro do prazo assinalado – a desnecessidade da punição. Assim, para que a condição se verifique em relação a cada arguido é apenas necessária que o mesmo tenha sido regularmente notificado e não tenha, dentro do prazo referido, satisfeito o pagamento devido.

É certo que o pagamento feito por um dos arguidos aproveita aos restantes, ficando excluída a punibilidade das condutas relativamente a todos eles. Todavia, se no campo exclusivo da responsabilidade meramente tributária, é admissível falar-se de responsabilidade solidária, o conceito não é transponível para o campo penal e portanto, para o regime estabelecido na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT. Com efeito, embora o pagamento feito por um responsável a todos aproveite, na ausência de previsão legal, a falta de notificação de um co-responsável não constitui circunstância impeditiva do prosseguimento do processo quanto aos que, já notificados, não efectuaram o pagamento.

É que, feita a notificação aos arguidos, esgotado o prazo e não se mostrando pagas as prestações em dívidas e demais acréscimos legais, está verificada quanto a eles, a referida condição objectiva de punibilidade, independentemente de um outro responsável pelo pagamento ainda não ter sido notificado para o mesmo efeito. Sendo certo que os arguidos, ainda assim, poderiam aproveitar do pagamento que, eventualmente, viesse a ser feito pelo também responsável C... , não existe, no entanto, fundamento legal para que se considere que, só após a notificação deste e a verificação do não pagamento, poderia ser exercida a acção penal.

Na verdade, estando o Ministério Público sujeito, no exercício desta acção, ao princípio da legalidade, não podendo, arbitrariamente, escolher o agente ou os agentes do crime que vai perseguir, a única coisa que os arguidos já notificados e que não efectuaram o pagamento poderiam razoavelmente esperar, é que contra si não fosse deduzida acusação enquanto não fossem efectuadas as diligências tidas por necessárias para a notificação do responsável C... .

Tendo tais diligências sido efectuadas, sem sucesso, deve o processo deve prosseguir para a fase do julgamento, relativamente aos arguidos já notificados.

Deste modo, estando verificada a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT relativamente aos arguidos e preenchendo as suas apuradas condutas, o tipo objectivo e subjectivo do crime de crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, todos do RGIT e art. 30º, nº 2 do C. Penal, como, aliás, é afirmado na sentença recorrida, impõe-se a sua condenação pela prática deste ilícito típico não podendo, em consequência, manter-se a decidida absolvição.

4. Na decorrência do que antecede, cumpre agora proceder à escolha e determinação da medida concreta das penas a aplicar aos arguidos.

Dispõe o art. 40º, nº 1 do C. Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Porém, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo). De forma concordante, estabelece o art. 71º, nº 1 do mesmo código que, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigência de prevenção.

Prevenção e culpa são, pois, os factores fundamentais a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.). Por isso que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84). 

4.1. Muito frequentemente a determinação da pena, entendida em sentido amplo, passa pela operação da respectiva escolha. Assim acontece, desde logo, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade.

Neste caso, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ou seja, as finalidades de prevenção, geral e especial.

Ao crime praticado pelo arguido B... é aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade [prisão até três anos ou multa até 360 dias].

O arguido confessou os factos, esclarecendo o contexto económico da sua actuação e regista duas condenações por crimes de abuso de confiança fiscal, por factos de 2011 e 2012 portanto, temporalmente coincidentes com o cometimento dos factos objecto dos autos, tendo-lhe sido aplicada, em ambos os casos, pena de multa. Por outro lado, o arguido vive com a mulher, que se encontra doente, aufere a pensão de reforma de € 1089, e habita casa cedida por terceiros.

Podendo afirmar-se que foram as dificuldades financeiras atravessadas pela sociedade arguida que determinaram a actuação do arguido, e que as mesmas dificuldades, muito provavelmente, estarão também na origem das duas condenações referidas, por crimes da mesma natureza, e apontando a confissão no sentido de ter o arguido, que se encontra social e familiarmente inserido, interiorizado o desvalor da conduta praticada, entendemos que a pena de multa assegura de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção in casu requeridas.

4.2. O critério legal da determinação da medida da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal. Nos termos do disposto nos seus nºs 1 e 2, tal determinação, tendo em conta a moldura penal abstracta aplicável, é feita ponderando as exigências de prevenção geral e especial, a medida da culpa do arguido e todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor.

Vejamos.

Não é elevado o grau de ilicitude do facto e as suas consequências, face ao prejuízo causado, tendo em conta o montante global das prestações não entregues, não foram particularmente relevantes.

A intensidade do dolo é elevada uma vez que o arguido actuou com dolo directo.

A motivação da conduta teve origem nas dificuldades financeiras por que passava a sociedade arguida, devido à crise que o sector da construção civil atravessava e, como é do conhecimento público, continuou.

O arguido confessou os factos o que, como já referido, revela ter interiorizado o desvalor da conduta praticada, está social e familiarmente inserido, e as duas condenações já sofridas prendem-se com a mesma problemática e envolvem crimes da mesma natureza.

Finalmente, são elevadas as exigências de prevenção geral, dada a frequência com que, por toda a parte, vem sendo praticado este crime [muito frequentemente, reflexo das dificuldades da conjuntura económica] mas não são significativas as exigências de prevenção especial.

No que especificamente respeita à sociedade arguida, há a considerar que, na sequência das referidas dificuldades financeiras, por sentença de 2 de Janeiro de 2013, foi a mesma declarada insolvente.

 

Assim, tudo ponderado, atenta a moldura penal aplicável ao arguido, considera-se adequada e plenamente suportada pela medida da culpa, a pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 840.

E atenta a moldura penal aplicável à sociedade arguida, considera-se adequada a pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 12, perfazendo a multa global de € 2.400.     

5. Atentemos agora nas consequências da condenação penal dos arguidos relativamente ao pedido de indemnização civil contra eles, deduzido.

Como é sabido, no processo penal, onde vigora o princípio da adesão (art. 71º do C. Processo Penal), a indemnização de perdas e danos emergentes da prática de um crime é regulada pela lei civil (art. 129º do C. Penal).

O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Coimbra fundamentou o pedido de indemnização que formulou contra os arguidos, no acto ilícito e culposo por estes praticado, e que conduziu à sua condenação pela prática do crime p. e p. pelo art. 107º, nº 1 do RGIT, de que resultaram danos que se traduziram no não recebimento pela demandante, das quantias retidas e não entregues pelos demandados, relativas às prestações devidas à segurança social, que deduziram das remunerações pagas.

Assim, dúvidas não subsistem de que relativamente aos arguidos e demandados, estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, previstos no art. 483º, nº 1 do C. Civil, pelo que se tornaram ambos, e solidariamente, sujeitos passivos de uma obrigação de indemnizar, de que é sujeito activo a demandante.

            O prejuízo sofrido pela demandante corresponde, desde logo, ao valor global das prestações deduzidas e não entregues, atingindo tal valor, como consta dos factos provados da sentença, a quantia de € 15.059,13.   

            Peticionou ainda a demandante Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Coimbra, a título de outros danos, a quantia de € 11, correspondente aos gastos com papel, tinteiro e electricidade para efectuar os prints necessários à realização da participação criminal (€ 5) e às notificações necessárias para os efeitos previstos no nº 4 do art. 105º do RGIT (€ 6).

            A sentença recorrida é omissa quanto a esta matéria, pois que da respectiva Fundamentação não consta, nem como factos provados, nem como factos não provados.

            Sucede que a declaração da respectiva nulidade (por omissão de pronúncia) traduzir-se-ia, a nosso ver, num acto inútil, dada a inexistência de nexo de causalidade adequada entre a conduta e o prejuízo alegado.

            Improcede, pois, nesta parte, o pedido.

            No que respeita ao pedido acessório de juros, vencidos, no montante de € 4.044,48 e vincendos, calculados de acordo com a legislação especial por dívidas à segurança social, deve o mesmo proceder, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 212º do C. dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro) e 3º, nº 1 do Dec. Lei nº 73/99, de 16 de Março (na redacção da Lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril), e dos Avisos do Instituto de Gestão da Tesouraria e do crédito Público, IP., nº 27831-F/2010, nº 17289/2012, nº 219/2014, nº 130/2015, nº 87/2016 e nº 139/2017.


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III. DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso. Em consequência, decidem:

            A) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu os arguidos A... , Lda., e B... , da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, todos do RGIT e art. 30º, nº 2 do C. Penal.

B) Condenar os arguidos, A... , Lda., e B... , pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1, 7º, nº 1, 105º, nºs 1, 4 e 7 e 107º, nºs 1 e 2, todos do RGIT e art. 30º, nº 2 do C. Penal:

- A sociedade arguida, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 12 (doze euros), perfazendo a multa global de € 2.400 (dois mil e quatrocentos euros);

- O arguido, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete euros), perfazendo a multa global de € 840 (oitocentos e quarenta euros).

C) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu os demandados civis, A... , Lda., e B... do pedido de indemnização civil deduzido pela demandante civil, Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Coimbra.

D) 1. Condenar, solidariamente, os demandados civis no pagamento à demandante civil, da quantia de € 15.059,13 (quinze mil, cinquenta e nove euros e treze cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos liquidados até Junho de 2016, no montante de € 4.044,48 (quatro mil e quarenta e quatro euros e quarenta e oito cêntimos), e nos vincendos e até integral pagamento, todos calculados com a legislação aplicável às dívidas da segurança social, nos termos sobreditos

2. Absolver os demandados civis do demais peticionado.



E) Recurso sem tributação.

Coimbra, 11 de Outubro de 2017



Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)