Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1032/04.5TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PRESUNÇÃO DE CULPA
SÓCIO GERENTE
EMPRESA
PROPRIETÁRIO
VEÍCULO
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 503º, Nº 3 DO C. CIVIL
Sumário: Sendo um dos veículos intervenientes em acidente de viação conduzido pela sócia-gerente de sociedade que é sua proprietária, no exercício da actividade social, recai sobre ela a presunção de culpa prevista no artigo 503º, nº 3 do C.C.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
G… instaurou uma acção declarativa, com processo ordi­nário contra a Companhia de Seguros …, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a importância global de € 199.605,52, a título de indemnização por danos patrimo­niais e de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese:
- No dia 6 de Dezembro de 2001, pelas 4h15m, na Rua 3 de Janeiro, na localidade de Campina, freguesia de Matas, concelho de Ourém, ocorreu um acidente, traduzido numa colisão entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …GX, conduzido pelo seu proprietário, o Autor G… e no qual seguia, como passageiro, L…, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula …IL, conduzido por M… e pertencente à Padaria …, Lda., sendo que o GX circulava no sentido Matas – Vale Sobreiro e o IL, em sentido contrário;
- O embate entre estas duas viaturas deu-se logo após uma curva para a direita atento o sentido Matas – Vale Sobreiro;
- A culpa pela verificação do acidente é exclusivamente da condutora do IL por seguir a uma velocidade superior a 100 km/hora, razão pela qual, ao descrever a tal curva para a sua esquerda, não conseguiu manter o IL, dentro da hemi-faixa de rodagem da direita, destinada ao seu sentido de trânsito, invadindo a hemi-faixa contrária, onde, ao mesmo tempo circulava, a uma velocidade não superior a 50 km/hora e em obediên­cia a todas as regras do CE, o veículo GX, conduzido pelo Autor que, assim viu a sua linha de trânsito cortada, de forma súbita e inesperada;
- Além disso, presume-se a culpa da condutora do IL, nos termos do art. 503º, nº 3 do CC, porquanto o veículo por si conduzido pertence à Padaria das …, Lda., que é a entidade patronal da mesma condutora e esta conduzia o IL ao serviço da mesma empresa.
- Em resultado deste acidente sofreu os danos que expôs nos arts. 27º a 114º da petição inicial.

Regularmente citada, a Ré apresentou a sua contestação, na qual imputou ao próprio Autor a responsabilidade exclusiva pelo acidente, invocando que o mesmo conduzia a uma velocidade não inferior a 80Km/hora e foi ele quem não conseguiu deter a marcha do seu veículo, por si conduzido, no interior da hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de trânsito, tendo sido ele quem invadiu a metade da estrada, por onde circulava, na sua mão de trânsito, a condutora do IL;
Acrescentou que, em todo o caso, o valor peticionado pelo Autor, ou não tem suporte factual ou documental ou está muito inflacionado, por referência aos critérios jurisprudenciais em matéria de fixação do quantum da indemnização.
Concluiu pela improcedência da acção e pediu a sua absolvição do pedido.

Por despacho proferido a fls. 165 foi determinada a apensação a esta acção ordinária n.º 1032/04.5TBVNO, deste 2º Juízo de Ourém, nos termos previstos no art. 275º do CPC, das seguintes acções, igualmente pendentes, neste Tribunal:

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
Julgo a acção ordinária nº 1196/04.8TBVNO apensa parcialmente provada e procedente e, em consequência, condeno a Ré Companhia de Seguros…, S.A. a pagar ao Autor L…, as seguintes quantias:
€ 7.727,37, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação (11 de Novembro de 2004), até integral pagamento;
€ 18.500,00, a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, emer­gentes da IPP de 35%, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação (11 de Novembro de 2004), até integral pagamento;
€ 26.250,00, a título de compensação por danos não patrimoniais, acresci­dos de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente decisão, até integral pagamento;
Absolvo a Ré  do remanescente do pedido.
Julgo a acção ordinária nº 1291/04.3TBVNO apensa parcialmente provada e procedente e, em consequência, condeno a Ré Companhia de Seguros…, S.A. a pagar à Autora M…, as seguintes quantias:
A importância de € 45,00 e o que vier a ser liquidado em incidente próprio, em relação às quantias gastas com a contratação de terceiras pessoas para prestação de assistência, à mesma Autora, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação (2 de Dezembro de 2004), até integral pagamento;
€ 20.250,00, a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, emer­gentes da IPA, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação (2 de Dezembro de 2004), até integral pagamento;
€ 90.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais, acresci­dos de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente decisão, até integral pagamento;
Absolvo a Ré  do remanescente do pedido.

Julgo a acção sumária 1255/04.7TBVNO apensa parcialmente provada e procedente e, em consequência, condeno as Rés Seguros…, S.A. e Companhia de Seguros …, S.A. a pagarem ao Autor Centro Hospitalar do…, a quantia de € 6.312,05, na proporção de metade, para cada uma das Rés, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia 25 de Novembro de 2004, quanto à Ré Seguros e desde o dia 26 de Novembro de 2004, quanto à Ré Companhia de Seguros, até integral pagamento.
Absolvo as Rés do remanescente do pedido.


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Inconformada a Ré Companhia de Seguros…, S. A, recorreu da decisão na parte respei­tante à acção 1291/04.3TBVNO, formulando as seguintes conclusões:
...
Conclui pela procedência do recurso.

A Autora apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto do recurso
O objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente.
Nessas conclusões a Recorrente manifesta a sua discordância quanto ao teor da resposta dada ao quesito 193º da base instrutória em que se considerou provado que M… na altura do acidente conduzia o IL, no exercício da actividade de distribuição de pão, porta a porta, a que a Padaria …, Lda., se dedica e na qualidade de sócia gerente desta sociedade.
Contudo a Recorrente não deduziu a correspondente impugnação da decisão da matéria de facto, quanto a este ponto, nos termos exigidos pelo artigo 685º-B, do C. P. Civil, pelo que não pode essa discordância ser apreciada neste recurso, não inte­grando por isso o seu objecto.
Assim, apenas devem ser apreciadas as seguintes questões:
a) Sobre a condutora do veículo de matrícula …IL, recai a presunção de culpa estabelecida no artigo 503º, nº 3 do C. Civil?
 b) O montante da indemnização estabelecida para os danos não patrimo­niais é exagerado?

2. Os factos provados

3. Do direito aplicável
Previamente, note-se que no presente recurso apenas se pretende a alteração da decisão recorrida no segmento em que julgou a acção n.º 1291/04.3TBVNO, pelo que a decisão que vier a ser aqui proferida apenas poderá afectar essa parte da sentença recorrida.
As únicas questões colocadas nas alegações de recurso radicam na medida das responsabilidades de cada um dos intervenientes do acidente, considerando a qualidade em que a Autora conduzia o veículo e no montante indemnizatório que lhe foi atribuído.
A Recorrente, sem colocar em crise a dinâmica do acidente tal como a mesma foi julgada provada revela a sua discordância quanto ao facto de não se ter considerado que sobre a Autora M… impendia a presunção de culpa prove­niente da sua qualidade de comissária, prevista no nº 3 do art.º 503º do C. Civil.
Dos factos apurados resulta que no momento do acidente a Autora M… conduzia o IL, no exercício da actividade de distribuição de pão, porta a porta, a que a Padaria …, Lda., se dedica e na qualidade de sócia-gerente desta sociedade (resposta ao n.º 193 da base instrutória).
O nº 3, do art.º 503º do C. Civil, dispõe:
Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém o conduzir fora das funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.
Esta norma, na sua 1ª parte, estabelece, quanto aos danos causados pelo con­dutor do veículo por conta de outrem, uma verdadeira presunção de culpa, abrangida na ressalva do nº 1 do art.º 487º do C. Civil [1].
A medida excepcional de agravamento da responsabilidade do condutor do veículo por conta de outrem tem algumas ponderosas razões na sua base.
Não se esqueça que o condutor por conta de outrem (o comissário) é, na grande generalidade dos casos, o motorista profissional que trabalha para a empresa ou a entidade particular, que contratam os seus serviços. Só excepcionalmente, em número muito limitado de casos, se tratará hoje do motorista amador que, a título acidental ou esporádico, realiza com a viatura um serviço (uma tarefa ou comissão) de que tenha sido incumbido pelo dono (ou detentor) dela.

Por um lado, a condução habitual do veículo por quem não seja o seu dono não oferece, em princípio, as mesmas garantias de vigilância da viatura e regular manutenção do seu funcionamento, que existem na condução pelo próprio dono.
O dono – puro comitente – não conduz o veículo não sente na própria pele o risco do seu mau funcionamento, não se apercebe directamente das falhas da viatura.
O condutor-comissário, como não é o dono, também não sente no patrimó­nio o risco da avaria ou inutilização do carro…

E não haverá, na generalidade dos casos, nenhuma injustiça neste agrava­mento da responsabilidade civil por conta de outrem. Trata-se, em regra, de pessoas de quem pela sua formação profissional, fundadamente se pode exigir especial perícia na condução e que, mais facilmente do que o comum dos condutores, podem identificar e provar a causa do acidente (o motivo de força maior ou o caso fortuito quer inerente, quer estranho ao funcionamento do veículo; o facto imputável à vítima do acidente ou a terceiro) capaz de afastar a presunção legal da sua culpa.[2]
No caso dos autos provou-se que a condutora de um dos veículos interve­nientes no acidente, o fazia na qualidade de sócia-gerente da sociedade proprietária desse veículo, no exercício da actividade de distribuição de pão, porta a porta, a que essa sociedade se dedica.
Em situações semelhantes, a jurisprudência não decidiu uniformemente.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 22 de Fevereiro de 2001, decidiu que nestes casos funciona a presunção do artigo 503º, nº 3 do C. Civil, sobre aquele condutor [3]. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do mesmo tribu­nal, proferido em 23 de Maio de 2006 [4].
Posteriormente, optaram por posição contrária, o acórdão do Supremo Tri­bunal de Justiça de 19 de Junho de 2008 [5].
A solução desta questão não deve passar por uma definição rigorosa quer do conceito jurídico de comissão, quer da construção jurídica das relações existentes entre os sócios-gerentes e a sociedade de que fazem parte.
Há que ter antes em consideração os fundamentos da presunção estabelecida pelo legislador e acima enunciados na voz autorizada de Antunes Varela e a sua ade­quação à situação em que um sócio-gerente de uma sociedade conduz um veículo desta, no exercício das suas funções de gerente, ao serviço da sociedade e no desempenho da sua actividade social.
Recorde-se que a presunção de culpa contida naquela norma tem unicamente em vista a da responsabilização da condução por conta de outrem, nela se incluindo a situação de todos que exercem a condução automóvel, encontrando justificação para a sua consagração no facto de condutores de veículos por conta de outrem, em condições normais, não terem a diligência requerida na vigilância do veículo, nem sentirem o risco da sua inutilização, porque não ele lhes pertence, bem como no facto de serem, em grande número, condutores profissionais.
No circunstancialismo fáctico apurado é inegável que o veículo circulava no interesse do seu proprietário que é a sociedade, e, portanto, por conta daquela, sendo que o facto da sua condutora ter a qualidade de sócia-gerente dessa sociedade não permite concluir que era ela que detinha a direcção efectiva do veículo.
Quanto a este aspecto discorda-se da decisão recorrida, pois, não colocando em crise a afirmação que o gerente de uma sociedade fixa os objectivos da mesma, em ordem à prossecução do respectivo objecto social, toma as decisões pertinentes e a representa, não deixando de ter essa qualidade e esses poderes quando, de forma pessoal contribui com o seu próprio trabalho para a concretização do objecto social da empresa que gere, o certo é que a sua qualidade de sócio ou gerente não se confunde com a titularidade do veículo pertencente à sociedade, não se reflectindo, pelo menos directamente, na sua esfera jurídica os efeitos que possam advir da condução que faça daquele veículo.
A propriedade do veículo pertence à sociedade ainda que a disposição que se venha a fazer da utilização do mesmo seja, como no caso das pessoas colectivas, objecto de decisão das pessoas que a representam, as quais, concomitantemente, podem eles próprios serem os executantes dessas decisões.
Não deixando de existir, neste caso, uma clara distinção entre o titular da propriedade do veículo, no interesse do qual ele é conduzido, e a pessoa que o conduz, apesar da relação orgânica que com ele mantém, subsistem ainda os fundamentos do estabelecimento da presunção legal que se apoiam na existência de um menor cuidado por parte do condutor com a sua manutenção e regular funcionamento, assim como, segundo as regras da experiência este não sente de igual modo que um proprietário o risco da danificação ou inutilização do veículo. Apesar de ser sócio-gerente da socie­dade proprietária, ele não se considera o seu dono, encarando-o como pertencendo a outro património, no qual ele tem interesses, mas que não é o seu património.
De igual modo, também neste caso, a indiciação de que estamos perante um condutor profissional, mais habilitado, de quem se pode exigir especial perícia na condução e que, mais facilmente do que o comum dos condutores, pode identificar e provar a causa do acidente capaz de afastar a presunção legal da sua culpa, uma vez que a Autora conduzia o veículo interveniente no acidente no exercício da actividade da sociedade, na sua qualidade de gerente, revelando um desempenho profissional.
Assim, não pode ser impeditivo do funcionamento da presunção contida no nº 3 do art.º 503º do C. Civil, o facto da condutora ser sócia-gerente da sociedade proprietária do veículo, justificando-se que sobre si, enquanto condutora por conta daquela, recaia o ónus de afastamento daquela presunção de culpa.
Aquele que tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – art. 350º, nº 1 do C. Civil – não competindo à Ré a prova de que o embate procedeu de culpa da Autora, mas, pelo contrário, era esta que se encontrava onerada com a tarefa de demonstrar que tal acidente não se ficou a dever a culpa sua.
Não tendo logrado fazer essa prova, como bem evidencia a sentença recor­rida, a solução não passa por uma repartição de responsabilidades, mas sim pela consi­deração de que a culpa pertenceu à Autora, pelo funcionamento da presunção estabele­cida no artigo 503.º, nº 3 do C. Civil.
Sendo considerada sua a responsabilidade pela ocorrência do acidente, não tem a Autora direito a ser indemnizada dos prejuízos por si sofridos, pelo que a acção por ela proposta deve ser julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré recorrente.
Procedendo este primeiro fundamento do recurso, fica prejudicada a aprecia­ção do segundo fundamento, pelo qual se impugnava o valor da indemnização fixada pela sentença recorrida.
Nestes termos deve ser revogada a decisão recorrida na parte em que julgou parcialmente procedente a acção n.º 1291/04.3TBVNO.

Decisão
Pelo exposto,
a) julga-se procedente o recurso;
b) revoga-se a decisão recorrida, na parte em que em que julgou parcial­mente procedente a acção n.º 1291/04.3TBVNO.
c) julga-se improcedente a acção n.º 1291/04.3TBVNO, absolvendo-se a Ré do pedido formulado por M...

Custas da acção n.º 1291/04.3TBVNO e do recurso pela Autora M...
    

Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
Regina Rosa


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pág. 515, 4ª ed., Coimbra Editora.

[2] Antunes Varela, in Parecer Jurídico, no Boletim da Ordem dos Advogados, 22, Lisboa 1984, pág. 4 e segs.
[3] Relatado por Noronha de Nascimento, publicado na Colectânea de Jurisprudência (Ac. do S.T.J.), Ano IX, tomo 2, pág. 23.

[4] Relatado por Azevedo Ramos, proferido no processo n.º 06A1084, acessível em www.dgsi.pt.

[5] Relatado por Custódio Montes, publicado na Colectânea de Jurisprudência (Ac. do S.T.J.), Ano XVI, tomo 2, pág. 115.