Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/13.2RTPNH-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VITOR AMARAL
Descritores: CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
FACTOS A CONSIDERAR NO INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
BOA FÉ OBJETIVA
PARQUEAMENTO DE VEÍCULO SINISTRADO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - PINHEL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 609.º, N.º 2, DO NCPCIV.; 334º E 566.º, N.º 3, DO CCIV.
Sumário: 1. - Ao relegar para ulterior fase/incidente de liquidação o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, onde já não se discute a existência do crédito.

2. - Por isso, tornada definitiva a decisão carecida de liquidação, não releva na fase de liquidação o apuramento de factos tendentes a pôr em dúvida a existência do crédito, nem a respetiva sindicância recursiva.

3. - A boa-fé objetiva, com acolhimento na figura do abuso do direito, postula a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável e transparente, sempre reportada ao correto agir, ao viver honesto, à atuação como pessoa de bem.

4. - Estando em causa a liquidação de quantia correspondente ao custo de parqueamento de veículo automóvel em oficina, desde determinada data até efetiva reparação da viatura, na lógica da respetiva condenação, com projeção para o futuro, a reparação efetiva surge como pressuposto ou condição da responsabilização da contraparte (no pagamento dos custos de parqueamento a apurar), visto somente fazer sentido a manutenção do veículo no espaço pago da oficina com vista à sua reparação.

5. - Se, porém, o lesado, ao fim de vários anos de permanência do veículo na oficina, com elevado custo de parqueamento, que pretende imputar à contraparte, retira a viatura e impede a respetiva reparação, tal obriga a concluir ter ele inviabilizado o cumprimento da condição estabelecida – ou do pressuposto configurado, em termos projetivos – na decisão condenatória, sendo a sua conduta culposa idónea a excluir a indemnização (art.º 570.º, n.º 1, do CCiv.).

6. - Um tal comportamento do lesado sempre surgiria como clamorosamente contraditório e, como tal, manifestamente abusivo e oposto aos ditames da boa-fé objetiva (art.º 334.º, n.º 1, do CCiv.), ao pretender uma indemnização dependente de uma reparação (de veículo automóvel) que o mesmo impediu: primeiro pediu indemnização pelo custo de parqueamento de viatura mantida em oficina para reparação; depois, quando se venceu elevado custo de parqueamento, retirou a viatura da oficina sem qualquer reparação.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Em autos de processo incidental para liquidação de obrigação pecuniária,

que N..., com os sinais dos autos,

intentou contra

V... Seguros, S. A.”, também com os sinais dos autos,

pediu aquele que se procedesse à liquidação no montante de € 27.234,10, acrescido de juros de mora vincendos, até integral pagamento, da quantia a pagar por esta a título de indemnização correspondente ao parqueamento de viatura determinada, desde 31/10/2012 e até à efetiva reparação da mesma, com condenação em conformidade.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- por acórdão transitado em julgado foi a R./Requerida condenada a pagar ao A./Requerente a quantia correspondente ao parqueamento da sua viatura, desde 31/10/2012 até à respetiva reparação, a liquidar em sentença, acrescida de juros de mora, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento, à taxa supletiva legal;

- tal viatura encontra-se parqueado em oficina desde 31/10/2012, data do sinistro;

- a dita oficina imputa ao A./Requerente a quantia de €10,00 diários, acrescidos dos legais encargos, devidos pela guarda e ocupação do espaço da viatura, com um custo do parqueamento que ascendia em 06/02/2019 à quantia de € 22.280,00 [2.228/dias x €10,00], a que acrescem os mencionados juros de mora (contabilizados desde a citação e ascendendo os já vencidos à quantia de € 4.954,10, para além dos vincendos).

A R./Requerida contestou:

- excecionando a falta de legitimidade do A./Requerente, por o montante peticionado ser devido à oficina e não àquele, nem ter a R./Requerida sido condenada a pagar o aludido montante ao Requerente, não especificando o acórdão a quem deve ser paga tal quantia;

- impugnando a factualidade alegada pelo A./Requerente, âmbito em que referiu que as despesas de parqueamento nunca foram comunicadas à R./Requerida, nem o relatório de peritagem elaborado refere qualquer montante a título de parqueamento;

- e concluindo que o comportamento do A./Requerente é contrário às regras do bom senso e da experiência comum, por não ter havido um prazo para a reparação do veículo, por este ter um valor venal de €1.2510,00, ou seja, muito inferior ao montante ora peticionado a título de parqueamento, o que torna altamente improvável e irracional que alguém confie um veículo, que vale pouco mais de mil euros e que se encontra com danos avultados, a uma oficina, sem ordem de reparação, sem saber quanto tempo a viatura lá vai permanecer, sem saber se alguma vez irá ser reparado ou quem poderá ser o responsável pelo pagamento dessa reparação e, ainda assim, acordar a liquidação de €10,00 por cada dia que o automóvel lá se encontrar parqueado.

Observado o contraditório, foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade do A., com enunciação, ainda, do objeto do litigio e dos temas da prova.

Produzida prova pericial, veio a R./Requerida deduzir articulado superveniente, impugnando a contraparte, por sua vez, a factualidade ali vertida.

Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

«(…) decide-se julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o presente incidente e liquidar:

a) em €21.910,00 acrescidos de IVA à taxa legal de 23% o que perfaz a quantia global de 26.949,30€ devida pela requerida V... Seguros S.A ao requerente N..., pelo parqueamento do veículo sinistrado, acrescida de juros de mora contabilizados desde a data da citação – 18.07.2013 até 30.10.2018, e ainda dos juros de mora contabilizados até efectivo e integral pagamento contados da presente decisão, à taxa supletiva legal para obrigações civis, absolvendo-se a requerida do demais peticionado.».

Inconformada, recorre a R. – recurso admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo –, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

(…)

O A./Apelado contra-alegou, pronunciando-se sobre as questões suscitadas em sede de recurso e concluindo pela total improcedência da apelação.


***

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi mantido o regime e efeito fixados ao recurso, pelo que, nada obstando, na legal tramitação dos autos, ao conhecimento do mérito recursivo, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([3]) –, importa saber, com referência à decisão da matéria de facto e de direito:

a) Se ocorrem as invocadas causas de nulidade da sentença [cfr. conclusão 18.ª aperfeiçoada, reportada às al.ªs b) a e) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv.];

b) Se deve proceder a impugnação da decisão de facto, alterando-se tal decisão [cfr. conclusões 19.ª e segs.];

c) Se ocorreu errada aplicação do direito, devendo a R./Recorrente ser absolvida do pedido, designadamente (para além do mais invocado) por se demonstrar ter havido simulação quanto à ordem de reparação da viatura e ao respetivo pagamento e por a oficina não ter como prática a cobrança de parqueamento aos seus clientes [cfr. conclusões 36.ª e 84.ª segs.].

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

...

2. - E foi julgado como não provado:

...

B) Das invocadas causas de nulidade da sentença

Entende a R./Recorrente que estão verificados os vícios de nulidade da sentença a que aludem as al.ªs b) a e) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv., pelo que é sobre esta matéria que cabe começar por indagar, no plano da sindicância recursiva.

Cabia, por isso, à Apelante, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Em seguida se verá se o fez, começando-se pelas questões ligadas à fundamentação, a que aludem as al.ªs b) e c) do n.º 1 daquele art.º 615.º.

1. - Da ausência de fundamentação e obscuridade/ambiguidade

Defende a parte recorrente que ocorre falta de fundamentação da sentença, bem como obscuridade/ambiguidade, tornando a decisão ininteligível (cfr. conclusões aperfeiçoadas 12.ª e segs.).

Enquanto o preceito da al.ª b) se refere à falta/ausência de fundamentação, já a norma da al.ª c) do mesmo n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv. se reporta, por sua vez, à oposição entre fundamentos e decisão ou à existência de ambiguidade ou obscuridade geradoras de ininteligibilidade.

Com efeito, dispõe a primeira daquelas al.ªs que a sentença é nula se não especificar «os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão», enquanto a outra estabelece ser nula a sentença, desde logo, quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, mas também quanto ocorram aquelas ambiguidade ou obscuridade geradoras de ininteligibilidade.

Assim, se a oposição se reporta a contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou direção diferente ([4]), inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.ºs 667.º e 668.º do anterior CPCiv. ([5]) – hoje art.ºs 614.º e seg. do NCPCiv. –, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal, a ininteligibilidade da decisão resultante das ditas ambiguidade ou obscuridade reporta-se, no mesmo plano de vícios formais, a fundamentos ([6]) enunciados de tal modo que não seja possível entendê-los, mormente na sua correspondência com a decisão e o seu sentido/alcance, de molde a não conseguir estabelecer-se o caminho seguido pelo tribunal para atingir o dispositivo da sentença.

Ora, a Apelante limita-se a invocar, de relevante, que da leitura da sentença não se consegue compreender a razão da condenação no montante estabelecido, daí extraindo a conclusão no sentido da sua ininteligibilidade por via de ambiguidade e obscuridade (conclusões 14.ª e 15.ª).

Porém, lida a sentença, deve dizer-se que não se surpreende tal ininteligibilidade: por um lado, da decisão constam expressos os factos dados como provados e os tidos por não provados; fixados, assim, os factos, procedeu-se à fundamentação de direito, encontrando-se um valor diário de parqueamento (fixado em €10,00, dentro do limite máximo admitido pela decisão condenatória) e um período de parqueamento atendível (entre a data do sinistro, 31/10/2012 e, atenta a explicitada «inércia do requerente», 30/10/2018, perfazendo um total de 2191 dias); por outro lado, procedeu-se à respetiva contabilização, incluindo IVA, perfazendo a «quantia global de 26.949,30€»; por fim, no dispositivo da sentença, procedeu-se à liquidação em conformidade, naquela «quantia global de 26.949,30€», acrescida de juros de mora (cfr. dispositivo de fls. 200 do processo físico).

Em suma, tem de concluir-se que a sentença, mostrando-se fundamentada (de facto e de direito), não padece de contradição, ambiguidade ou obscuridade, muito menos em termos que a tornassem ininteligível.

Ao invés, é bem percetível a argumentação do Tribunal a quo, no seu iter decisório até ao dispositivo formulado, mostrando-se este último concorde com os fundamentos que o antecedem.

Inexistem, pois, estes invocados vícios da sentença.

O que parece notar-se é uma total discordância da Apelante com o sentido da decisão, o que sempre nos reconduziria para o campo do (eventual) erro de julgamento de facto, a ser objeto de impugnação recursória da decisão da matéria de facto, ou de direito, com a correspondente impugnação jurídica, e não qualquer causa de nulidade da sentença.

Estar-se-ia, então, como é patente, em face de discordância perante o sentido da decisão, no concernente ao julgamento da causa, o que se prende com o juízo de mérito, e não qualquer contradição, ambiguidade ou obscuridade da sentença.

No mais, deve reiterar-se que a sentença se apresenta fundamentada, sendo consabidas as exigências de fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. art.º 154.º, n.º 1, do NCPCiv., tal como o antecedente art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv./2007), sejam sentenças ou despachos – em termos de fundamentos de facto e de direito respetivos –, a que se reporta o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do NCPCiv. (tal como o anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv./2007), e cuja violação, uma vez verificada, é causa de nulidade da sentença ([7]), cabendo naturalmente à Recorrente clarificar onde pudesse ter faltado a decisão à fundamentação devida/exigível, em termos de omissão absoluta de fundamentos, o que in casu não ocorreu.

Com efeito, este Tribunal não logra descortinar onde mais pretendesse a Apelante ocorrer falta de fundamentação da sentença, sendo que não se trata de matéria de conhecimento oficioso do Tribunal ([8]).

Donde que seja de concluir pela não verificação destes vícios invocados de nulidade da sentença.

2. - Da omissão de pronúncia

Resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, inversamente, conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([9]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([10]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([11]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([12]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de omissão (ou excesso) de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são, obviamente, questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal ([13]).

Ora, dito isto, a Apelante esgrime que o Tribunal não se pronunciou sobre a questão que deveria conhecer e decidir no âmbito dos autos de liquidação (conclusão 16.ª).

Porém, como visto já, é patente que a 1.ª instância se debruçou – bem ou mal, não importa agora – sobre a questão decidenda em sede de liquidação, como o demonstram os fundamentos da sentença e o respetivo dispositivo, alcançando – como era escopo dos autos – um valor determinado de liquidação, assim esgotando o objeto do processo, para o que conheceu das matérias/questões de que devia conhecer (não deixando de eleger um valor diário, que adotou, de custo de parqueamento). Questão diversa, no plano recursivo, é a do erro de julgamento, de que cabe conhecer/sindicar, no plano de meritis, a jusante.

Termos em que também não pode ter-se por verificado este imputado vício formal da decisão em crise.

3. - Da condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido

Tendo em conta o esgrimido sob a conclusão 17.ª (aperfeiçoada) e o disposto na al.ª e) do n.º 1 do mencionado art.º 615.º, importa saber se o Tribunal recorrido condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Ora, vem provado (decisão da 2.ª instância proferida nos autos principais) o seguinte sentido condenatório:

«- a pagar a quantia correspondente ao parqueamento da viatura, desde 31.12.2012 até efectiva reparação da mesma, a liquidar em sentença, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva legal para obrigações meramente civis. (acórdão junto a fls. 379 ss)» ([14]).

No pedido deduzido em sede de incidental liquidação consta, como já visto, o montante (peticionado) de € 27.234,10 – por referência ao capital de € 22.280,00 e juros de mora vencidos de € 4.954,10 –, acrescido de juros de mora vincendos.

Na liquidação em crise figura, como também mencionado, o quantum de € 21.910,00, acrescido de IVA, perfazendo a quantia global de € 26.949,30, a que acrescem juros de mora até efetivo e integral pagamento.

Assim sendo, dentro do objeto do processo e da globalidade do pedido da liquidação (incidental), a quantificação operada (total de «26.949,30€, acrescida de juros») não excede o quantum peticionado nesta sede (€ 27.234,10 + juros).

Questão diversa – de que não cabe conhecer no âmbito invocado da nulidade da sentença –, e que já se prenderia com o plano de mérito, seria a de saber se este pedido incidental e a respetiva decisão se conformam com o pedido formulado no processo principal (o pedido originário, que constitui um dos pontos cardeais da bússola da liquidação). Porém, esta é questão que não foi colocada pela Recorrente e sobre a qual, por isso, não cabe sindicar.

Termos em que improcedem as conclusões da Apelante em contrário, tanto mais que esta reporta a invocada nulidade a uma pretensa condenação (na liquidação) «em quantidade superior ao estipulado pelo Acórdão da Relação de Coimbra», o que não ocorre.

C) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

A Apelante defende que ocorreu erro de julgamento de facto quanto à seguinte materialidade dada como não provada:

«b) A Oficina utiliza toda a via pública envolvente às suas instalações para parquear as viaturas que se destinam a ser reparadas, e o seu logradouro está repleto de sucata.

(…)

d) A ordem de reparação da viatura por parte do Requerente e o pagamento de €31.598,70 não passaram de uma simulação.».

Pretende, então, que seja dada essa matéria como provada, com base em prova documental e testemunhal que identifica.

Vejamos.

1. - Desde logo, deve dizer-se que a materialidade da al.ª d) aludida não tem dimensão factual concreta, mas antes, essencialmente, conclusiva/valorativa, fazendo apelo a uma valoração jurídica, com relevo para o desfecho do litígio.

Na verdade, por não factual, não podem ser as testemunhas a depor sobre se uma determinada ordem de reparação e certo pagamento consubstanciam uma simulação.

Se há, ou não, simulação (cfr. art.ºs 240.º e segs.) é clara matéria de direito, que, como tal, não pode ter assento na parte fáctica da sentença, onde apenas podem caber factos (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.), mas, uma vez estabelecidos os factos concretos, na fundamentação de direito, onde o Tribunal, na aproximação dos factos apurados às normas jurídicas aplicáveis, extrairá as conclusões de direito em que suportará o sentido da decisão.

Assim, por se tratar de enunciado destituído de dimensão fáctica, antes encerrando conclusão jurídica com relevo para o desfecho do litígio, improcede esta parcela da impugnação da Recorrente.

2. - Resta a aludida al.ª b), esta com suporte fáctico, pelo que importaria conhecer dessa parte da impugnação.

Todavia, cabe lembrar – como expressamente admitido, e bem, em sede de alegação recursiva da Apelante – que o incidente de liquidação é dependência do processo declarativo/principal (aquele onde foi proferida a decisão condenatória carecida de liquidação), destinando-se a quantificar o dano já apurado na sentença condenatória.

Assim sendo, o dano – enquanto tal – não pode ser, por regra, objeto de discussão na liquidação, por já demonstrado e, assim, tornado definitivo, na sentença a liquidar. A liquidação destina-se apenas à quantificação desse já demonstrado dano (cfr. art.º 609.º, n.º 2, do NCPCiv.), com vista ao apuramento do seu exato valor (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do CCiv.), e nada mais ([15]).

Ora, tem de reiterar-se que vem provado (aludida decisão da 2.ª instância, “facto 27”) que:

«A oficina (…) cobrará quantia diária, não concretamente apurada, a título de parqueamento da viatura ..., devida pelo menos desde 31.10.2012 até efetiva reparação da mesma».

E, na sequência, já há condenação (no processo declarativo/principal) «a pagar a quantia correspondente ao parqueamento da viatura, desde 31.12.2012 até efetiva reparação da mesma, a liquidar em sentença, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva legal para obrigações meramente civis» (dito acórdão do TRC).

Aquele facto e a substância desta condenação, uma vez tornados definitivos no processo principal, não poderão ser questionados na decorrente incidental liquidação.

Por isso, é seguro, na lógica da decisão condenatória proferida, que a oficina cobrará quantia diária, em montante – esse, sim – a apurar, a título de parqueamento da viatura e, bem assim, que a R./Recorrente tem a pagar a quantia correspondente a esse parqueamento (desde 31/12/2012 até à efetiva reparação), a que acrescem de juros de mora.

Apenas importará, pois, nesta perspetiva – sem prejuízo do que irá expor-se, oportunamente, em sede de matéria de direito –, de acordo com o objeto destes autos incidentais, liquidar a quantia (total) correspondente a esse tempo de parqueamento, mediante a determinação do montante diário cobrado pela oficina (em termos de exato valor).

Tudo o mais já se mostra decidido/sentenciado no processo declarativo/principal, onde ocorreu condenação (na reparação do concreto dano), pelo que qualquer matéria de facto alegada que extravase este âmbito é, por regra, irrelevante, por estar prejudicada a matéria/questão referente à existência do crédito (já demonstrado, embora em termos de projeção para o futuro).

Ora, a esta luz, saber se a oficina utiliza toda a via pública envolvente às suas instalações para parquear as viaturas que se destinam a ser reparadas, e o seu logradouro está repleto de sucata, torna-se irrelevante para o desfecho dos autos, por se reportar à existência (ou não) do crédito – pretende-se demonstrar que não há qualquer dano por não haver custo de parqueamento, visto a viatura, estando na rua (via pública) ou em espaço de logradouro destinado apenas a sucata, não ocupar espaço de oficina ou lugar de parqueamento pago/remunerado.

Assim, esta factualidade não se destina a contribuir para a quantificação do crédito (determinação do seu montante), mas somente visa afastar a existência daquele dano/custo (negando-o), o qual, porém, já foi tornado assente de forma definitiva (nos moldes em que tal ocorreu).

Com efeito, se o próprio crédito (ou o correspondente dano a indemnizar) não pode ser objeto de discussão na liquidação, é certo que a Apelante, com esta esgrimida factualidade, pretende eximir-se da indemnização (e não influir no seu quantum), ao concluir que, «Por consequência, não poderá (…) ser condenada no pagamento do parqueamento, na via pública, da viatura do recorrido» (cfr. conclusão 34.ª aperfeiçoada, com itálico aditado). Ora, só pode dizer-se, a este respeito, que já foi «condenada no pagamento do parqueamento» (nos específicos moldes em que tal ocorreu), âmbito em que não pode voltar-se atrás, sob pena de violação do caso julgado já formado (cfr. art.ºs 613.º, n.º 1, 619.º, n.º 1, e 621.º, todos do NCPCiv.).

Termos em que prejudicada fica, por manifesta irrelevância/inutilidade, a apreciação desta vertente impugnatória.

Em suma, é de manter inalterado o quadro fáctico da sentença, improcedendo as conclusões da Apelante em contrário.

D) Da alteração da decisão de direito

A Apelante pugna, em qualquer caso, pela revogação da sentença recorrida, com a sua absolvição no âmbito da liquidação, para o que invoca, designadamente, com relação à «avaliação do “tema” do parqueamento» (cfr. conclusão 60.ª), que «o recorrido nunca teve real intenção de proceder à reparação da viatura – nem de pagar parqueamento» (conclusão 53.ª), nunca tendo sido esse o seu «objetivo real» (conclusão 48.ª), sendo demonstrativo disso mesmo «o facto de a viatura nunca ter sido alvo de qualquer intervenção ou reparação (…), como resultou demonstrado em juízo», perante o «ponto 13. dos factos assentes» (conclusão 49.ª), de acordo com o «confirmado em audiência de discussão e julgamento pelo proprietário da oficina, o qual referiu que (…) o mesmo não foi reparado» (conclusão 51.ª).

Ora, se os factos apurados não permitem ter por demonstrada a invocada simulação (quanto à ordem de reparação da viatura e ao respetivo pagamento), nem que a oficina excluísse, em qualquer caso, a prática de cobrança de parqueamento aos seus clientes, já se mostra, todavia, líquido, por claramente provado, com evidente relevo para a sorte dos autos incidentais, que «Em Junho de 2020 a viatura do Requerente já tinha sido retirada das instalações da Oficina», o que ocorreu «sem ter sido reparada» (ponto 13 dos factos provados).

E isto, não obstante a oficina imputar um tempo de parqueamento até «12.11.2020» (quando é certo que a viatura em junho anterior já ali não se encontrava, por ter sido retirada) – cfr. ponto 12 dos factos provados.

E que consequências extrair deste facto do ponto 13 (de si atendível, designadamente à luz do disposto no art.º 611.º do NCPCiv., para que a decisão corresponda à situação existente/atual)?

É que desse facto resulta que o A./Requerente optou, afinal, por retirar a viatura das instalações da dita oficina, sem realização de qualquer reparação.

Isto é, a “reparação efetiva” a que aludia o mencionado acórdão do TRC – decisão condenatória, com projeção para o futuro, em termos de pressuposição/dependência face a um evento futuro e não certo (incerteza quanto ao tempo/momento e quanto ao efetivo acontecer), o da dita reparação, que não chegou a ter lugar – não se verificou, tendo sido frustrada/impedida por decisão unilateral do A./Requerente (lesado).

A esta luz, e com todo o respeito devido, a conduta do A./Requerente surge, afinal, como claramente inconsequente.

Como comprovado, ele não procedeu – por opção sua, superveniente – à «efetiva reparação» da viatura.

Daí que tenha de concluir-se não ter sido cumprida a condição estabelecida – ou o pressuposto configurado, em termos projetivos – no dito aresto do TRC.: a da «efetiva reparação da mesma».

Na verdade, só faria sentido que a viatura fosse colocada em oficina, ocupando espaço de parqueamento, para a sua reparação. E só faria sentido que ali permanecesse, durante anos, a ocupar esse espaço de parqueamento, para sua «efetiva reparação».

Doutro modo, para quê colocar uma viatura em oficina, com custos diários de parqueamento, se não se pretendia a sua reparação?

O certo é que, por iniciativa/decisão do A./Requerente, o veículo esteve anos em oficina, sob invocação da sua pretendida reparação, imputando-se os custos de parqueamento à R./Recorrente.

Mas eis que, incompreensivelmente, depois de muito dispendiosa fatura de custos de parqueamento, a viatura é retirada da oficina sem reparação alguma.

Com o que perde todo o sentido/razoabilidade e proporcionalidade – como parece óbvio – a prolongada e dispendiosa permanência da viatura em oficina.

Se o lesado não pretendia a reparação, não faria sentido algum colocar a viatura em oficina, imputando os custos de parqueamento à contraparte.

Se inicialmente pretendia a reparação, então não faria qualquer sentido desistir dela muitos anos depois, quando já havia sido faturada elevadíssima quantia de custos de parqueamento.

Como quer que fosse, sempre seria uma decisão exclusiva do lesado, a desembocar numa total inconsequência, que só a si próprio é, obviamente, imputável (cfr. art.º 570.º, n.º 1, do CCiv., em termos de culpa do lesado idónea a excluir a indemnização).

Ao assim proceder, o A./lesado deu causa a este custo (ou ao agravamento do respetivo dano), já que acabou por optar pela não reparação.

Perante a decisão de não reparação perde sentido a permanência da viatura durante anos em oficina, não podendo responsabilizar-se a R. pelos respetivos custos.

Se não prevaleceria a opção de reparação da viatura, não faria, então, qualquer sentido, sendo incompreensível, mantê-la em oficina, com custos elevados de parqueamento, que não podem, como parece lógico, numa tal situação, ser imputados à R..

E nem se diga, aqui chegados, que deste modo se incumpre o determinado pelo TRC, no seu anterior acórdão (a decisão condenatória, de que depende a incidental fase de liquidação).

É que a lógica de tal aresto era sempre – obviamente – a da intencionada «efectiva reparação» (da viatura sinistrada), condição ou pressuposto que, embora projetado, não viria a ser cumprido, por motivo apenas imputável ao lesado/A./Requerente, o qual, contra todas as expetativas, não levou a cabo a reparação do veículo.

Termos em que sempre surgiria como abusivo – até na modalidade do venire (cfr. art.º 334.º, n.º 1, do CCiv.) – pretender uma indemnização dependente de uma reparação (de veículo automóvel) que o mesmo demandante inviabilizou/obstruiu: primeiro pede-se uma indemnização pelo custo de parqueamento de viatura mantida em oficina para reparação; depois, quando se venceu elevado custo de parqueamento, retira-se a viatura da mesma oficina sem qualquer reparação ([16]).

Obviamente, perante tal inviabilização da reparação, perde toda a razoabilidade/proporcionalidade a permanência da viatura em oficina, por tão longo tempo, com custos de parqueamento.

Estes, pois, não podem ser imputados à R./Recorrente e objeto de indemnização, por haver culpa do lesado a determinar este dano (ou este agravamento do dano originário), em termos tais que deve excluir a indemnização, deixando incumprido, do mesmo modo, o pressuposto/condição definido (para o futuro), em termos essenciais/imprescindíveis, no aresto do TRC.

Em suma, a liquidação tem de improceder, com a decorrente absolvição da R./Recorrente.

Procede, pois, a apelação, impondo-se a revogação da decisão em crise.

 

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Ao relegar para ulterior fase/incidente de liquidação o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, onde já não se discute a existência do crédito.

2. - Por isso, tornada definitiva a decisão carecida de liquidação, não releva na fase de liquidação o apuramento de factos tendentes a pôr em dúvida a existência do crédito, nem a respetiva sindicância recursiva.

3. - A boa-fé objetiva, com acolhimento na figura do abuso do direito, postula a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável e transparente, sempre reportada ao correto agir, ao viver honesto, à atuação como pessoa de bem.

4. - Estando em causa a liquidação de quantia correspondente ao custo de parqueamento de veículo automóvel em oficina, desde determinada data até efetiva reparação da viatura, na lógica da respetiva condenação, com projeção para o futuro, a reparação efetiva surge como pressuposto ou condição da responsabilização da contraparte (no pagamento dos custos de parqueamento a apurar), visto somente fazer sentido a manutenção do veículo no espaço pago da oficina com vista à sua reparação.

5. - Se, porém, o lesado, ao fim de vários anos de permanência do veículo na oficina, com elevado custo de parqueamento, que pretende imputar à contraparte, retira a viatura e impede a respetiva reparação, tal obriga a concluir ter ele inviabilizado o cumprimento da condição estabelecida – ou do pressuposto configurado, em termos projetivos – na decisão condenatória, sendo a sua conduta culposa idónea a excluir a indemnização (art.º 570.º, n.º 1, do CCiv.).

6. - Um tal comportamento do lesado sempre surgiria como clamorosamente contraditório e, como tal, manifestamente abusivo e oposto aos ditames da boa-fé objetiva (art.º 334.º, n.º 1, do CCiv.), ao pretender uma indemnização dependente de uma reparação (de veículo automóvel) que o mesmo impediu: primeiro pediu indemnização pelo custo de parqueamento de viatura mantida em oficina para reparação; depois, quando se venceu elevado custo de parqueamento, retirou a viatura da oficina sem qualquer reparação.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, com absolvição da R./Recorrente do pedido incidental de liquidação.

Custas da apelação a cargo do A./Apelado.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.
Coimbra, 09/11/2021

Vítor Amaral (Relator)

         Luís Cravo

         Fernando Monteiro


([1]) Aperfeiçoadas – após despacho de convite do Relator – e que se deixam transcritas (com destaques retirados).
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Autos incidentais de liquidação instaurados posteriormente a 01/09/2013 (cfr. art.ºs 1.º, 5.º, 7.º, n.º 1, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 15).
([4]) Assim o Ac. STJ, de 14/01/2010, Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), com sumário disponível em www.dgsi.pt.
([5]) Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 23/05/2006, Proc. 06A1090 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.
([6]) De si, logicamente, existentes, posto que a sua inexistência determina já o vício de falta/ausência/omissão de fundamentação.

([7]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do dito art.º 668.º (atual art.º 615.º do NCPCiv.) ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr. art.º 208.º, n.º 1, CRPort., e art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv. aplicável). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos  sobre o Processo Civil”, pág. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas – cfr. Código de Processo Civil, pág. 297 – esclarece que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
([8]) A nulidade da sentença, não sendo cominada pela lei como insanável, tem de ser invocada pelas partes, não sendo de conhecimento oficioso – assim, por todos, o Ac. STJ, de 07/07/1999, Proc. 99B536 (Cons. Simões Freire), tal como o anterior Ac. STJ, de 07/12/1995, Proc. 086843 (Cons. Sá Couto), ambos com sumário em www.dgsi.pt.
([9]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([10]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([11]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.

([12]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([13]) A convocada questão da determinação/fixação do valor/custo diário de parqueamento é, desde logo, uma questão de facto, tendo sido respondida, de algum modo (bem ou mal, o que poderá importar no plano da sindicância da decisão relativa à matéria de facto), no quadro dos factos dados como provados da causa, onde (facto 12) se refere que a oficina «imputa» a quantia diária de € 10,00 a título de parqueamento e que o A./Requerente procedeu ao pagamento com referência a esse montante, com o acréscimo do IVA. Questão de direito já seria a da eventual redução equitativa do montante em discussão (por via do caráter excessivo/abusivo daquela quantia diária), tal como a da invocada simulação, que o Tribunal recorrido afastou (embora reportando-a, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, à inexistência de «qualquer elemento que permita inferir que se trata de um documento [fatura] elaborado simulada ou falsamente, não tendo em vista ser cobrado»), tudo, pois, já no plano de meritis.
([14]) Estando ainda comprovado o seguinte: «2. Do acórdão, supra referido, resulta que foi acrescentado um novo facto sob o 27. “A oficina ..., Lda cobrará quantia diária, não concretamente apurada, a título de parqueamento da viatura ..., devida pelo menos desde 31.10.2012 até efetiva reparação da mesma.” (cf. acórdão junto a fls. 386 verso)
 
([15]) Como defendido, inter alia, no Ac. TRL de 06/06/2013, Proc. 6730/07.9TMSNT.L2-6, relatado pelo aqui Relator, disponível em www.dgsi.pt, «Ao relegar para ulterior fase de liquidação de sentença o apuramento do valor que o credor tem a receber, o Tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação, onde não se discute, por isso, a existência do crédito».
([16]) Trata-se, pois, de um comportamento gravemente contraditório, por um lado, e lesivo para a contraparte, por outro, atentatório, como tal, de forma clamorosa, dos ditames da boa-fé objetiva, que postula a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável e transparente, sempre reportada «ao correto agir, ao viver honesto», à atuação «como pessoa de bem» – cfr., por todos, José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-Fé, Almedina, Coimbra, 2017, ps. 21, 169 e 192, bem como P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, p. 398.