Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1638/09.6IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 105º, DO R.G.I.T.
Sumário: No caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fisca, previsto e punido pelo artigo 105º, do R.G.I.T., aquele sujeito passivo que, tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No Processo Comum Singular n.º 1638/09.6IDLRA, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, por sentença datada de 9 de Junho de 2011, proferiu-se o seguinte veredicto:

a) julgou verificada a prática pela arguida, A...  UNIPESSOAL LDA, como co-autora material, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5.06, ocorrido em 14-12-2009;

b) julgou verificada a prática pelo arguido, B..., como co-autor material, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5.06, ocorrido em 14-12-2009;

c) DISPENSANDO-OS DE PENA.

2. A arguida A... ., Ldª recorreu da sentença, assim concluindo o seu recurso (em transcrição):
· A Douta Sentença enuncia os factos provados.
· Subsiste, claramente, erro na apreciação da prova produzida.
· Não se pode aceitar que os factos dados como provados o tenham sido correctamente, uma vez as declarações das testemunhas de acusação estarem em clara contradição com a prova documental junto aos autos.
· Mais grave, o facto de as testemunhas terem afirmado que a base do seu depoimento estava nos documentos dos autos.
· E que tais documentos apenas se referiam ao período em causa nos presentes autos, ou seja, último trimestre de 2008.
· Tal afirmação está despida de veracidade, pois como podemos verificar existem documentos que em nada dizem respeito ao recebimento do IVA no último trimestre de 2008, mas sim a recebimentos muito posteriores a 15 de Fevereiro de 2009.
· Quer as declarações foram valoradas como credíveis como também os documentos constantes dos autos.
· Existe assim contradição insanável entre prova documental e prova testemunha.
· É necessário fazer uma análise crítica aos documentos, até porque estes são a base dos presentes autos.
· As testemunhas podem “esquecer” e até nem estarem muito certas
das suas declarações.

· Já os documentos têm como suporte a contabilidade da arguida, informação dos clientes da arguida e outras.
· E a consonância, na Audiência de Discussão e Julgamento, entre prova documental e testemunhal não foi conseguida.
· Logo, da prova produzida no decurso da Audiência de Discussão e Julgamento, sempre com o devido respeito ao Douto Tribunal a quo, impunha-se, em nosso entender, decisão diversa.
· Parece-nos, em nosso modesto entendimento, ter havido insuficiência da matéria de facto provada e erro na apreciação da prova, verificando-se os vícios da alínea a) e c) do n.° 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
· Desta forma a Douta Sentença recorrida violou claramente as als. a) e c) do n.° 2 do art. 410° do Código de Processo Penal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência ser a Douta Sentença substituída por outra que absolva a arguida A..., Unipessoal, Lda».

3. O Ministério Público da 1ª instância respondeu a este recurso, defendendo a justeza do sentenciado, pedindo a final a negação de provimento a este recurso.

Conclui assim:

«1.A sentença recorrida não enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada nem de erro notório na apreciação da prova;

2.Não se pode confundir insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova dada como provada com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência;

3. Não existe qualquer contradição entre a prova documental junta aos autos e as declarações das testemunhas;

4. O tribunal “a quo” observou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127° do CPP;

5.A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra».

            4. Nesta Relação, o Exmº Procurador da República deu o seu PARECER, defendendo a improcedência do recurso, limitando-se a remeter para a resposta do Colega de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem em

· saber se existe, no sentenciado, algum vício do artigo 410º/2 do CPP, ligado à opção ou não pela tese do efectivo recebimento do IVA como pressuposto objectivo do crime de abuso de confiança fiscal;

· saber se há erro de julgamento que faça considerar que não há perfectibilização do crime acusado.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1. Na sentença recorrida, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição):

«1 – A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, colectada para o exercício da actividade de “compra, venda, aluguer e montagem de andaimes e estruturas metálicas”, com o CAE … , sendo sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal de periodicidade trimestral e também sujeito passivo de IRC, sujeito ao regime geral de tributação.

2 – O segundo arguido foi durante o ano de 2008 e continua a ser o único sócio gerente da primeira arguida e agia em nome e representação daquela.

3 – No último trimestre de 2008, a arguida “A...”, através do seu sócio gerente, arguido B…, no âmbito da sua actividade, executou vários serviços consentâneos com o seu objecto social.

4 – E fez-se pagar pelos serviços prestados, tendo ainda liquidado e recebido o IVA correspondente.

5 – Os arguidos enviaram à administração fiscal as declarações periódicas previstas no artº 29º, nº1, al. c) e no artº 41º, nº1, al.b), do CIVA mas não entregaram nos Cofres do Estado, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que diziam respeito, nem nos 90 dias posteriores àquele, a totalidade do imposto de IVA apurado nas mesmas, no montante global de € 24.109,29.

7 – Daquele montante, em Fevereiro de 2009, os arguidos entregaram à administração fiscal a quantia de € 4.500,00.

8 – O valor da dívida que então ficou deu lugar a processo de execução fiscal e no decurso desse processo vieram os arguidos a pagar a quantia de € 9.804,55.

9 – Pelo que, os arguidos ficaram a dever ao Estado a quantia global de € 9.804,64, referentes a IVA não entregue e relativo ao período 2008-12T.

10 – Os arguidos foram notificados nos termos da al.b), do nº4, do artº 105º do RGIT e não procederam, dentro do prazo de 30 dias a contar da notificação, ao pagamento das quantias referentes ao IVA e ao IRC referidas no itens 3º e 5º, prazo esse que terminou a 14.12.2009.

11 – Em vez de entregarem ao Estado aquela quantia, os arguidos fizeram-na deles e com ela optaram por gastá-la em proveito da empresa.

12 – Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, com a intenção concretizada de se apoderarem da mencionada quantia, sabendo no entanto que a mesma não lhes pertencia e que tinham a obrigação de entregar o referido imposto ao Estado no respectivo prazo legal.

13 – Sabiam também os arguidos que a sua descrita conduta era contrária à lei.

MAIS SE PROVOU:

14 – Actualmente, a sociedade arguida efectuou o pagamento integral dos montantes em dívida referidos em 9. e demais acréscimos legais, incluindo a coima devida.

15 – O arguido vive, em casa própria da esposa, com a esposa, funcionária da Liz Montagens Montagens no estrangeiro, que aufere cerca de € 1.200,00.

16 – O arguido refere que aufere da sua actividade cerca de € 485,00.

17 – O arguido suporta ainda a pensão de alimentos dos filhos no valor mensal de € 400,00, estando actualmente me atraso com 2 meses.

18 – A arguida em 2009 teve um volume de facturação anual de cerca de 500 mil euros e em 2010 deverá rondar o mesmo valor, sendo que o rendimento anual da sociedade corresponde a cerca de 8% do volume de facturação.

19 – A arguida tem um n.º de funcionários que varia entre o mínimo de 10 e o máximo de 14, na época mais forte.

20 – Os arguidos não têm antecedentes criminais».

2.3. Motivou assim o tribunal recorrido esta decisão de facto (inexistindo FACTOS NÃO PROVADOS):

«A convicção do Tribunal para a matéria de facto dada como provada, tendo sempre em atenção o disposto no artigo 127.º, do CPP, isto é, considerando o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, resultou quer das declarações do arguido e da prova testemunhal produzida quer da prova documental constante dos autos.

Assim, temos que atentou o Tribunal nas declarações do arguido que assumiu a prática dos factos imputados, designadamente assumindo a não entrega dos montantes em causa ao Estado e de que optou por efectuar os pagamentos a funcionários, à SS e outros pagamentos também às Finanças, dando prioridade à continuação da sua actividade.

Mais esclareceu sobre os esforços envidados para regularizar as dívidas nas finanças, tendo actualmente a sociedade procedido já à regularização de todos os montantes relativos ao trimestre em causa nos presentes autos (confirmado aliás pela prova documental junta aos autos e que aqui se dá por reproduzida).

Depois importa ainda referir os depoimentos das testemunhas ouvidas. Nesta parte atentou o Tribunal no depoimento das testemunhas C... e D..., inspectores tributários, os quais depuseram de forma séria, desinteressada e coerente relativamente à não entrega pelos arguidos dos montantes que aqueles receberam a título de IVA e que optaram por não entregar aos cofres do Estado, tendo inclusive o apuramento de tais valores resultado da própria declaração de IVA relativa ao 4º trimestre de 2008 apresentada pelos arguidos (cfr. fls. 61 e 62), não tendo todavia feito acompanhar a mesma do respectivo meio de pagamento nem tendo liquidado tais valores posteriormente nos 90 dias, nem nos 30 dias após a notificação (se bem que actualmente tais valores se mostrem já liquidados, conforme resultou das declarações do arguido e prova documental junta pela sociedade arguida).

Foi também ouvida a testemunha E..., contabilista da arguida, o qual pese embora a relação que tem com o arguido depôs de forma séria e isenta aos factos dos quais teria conhecimento pessoal, relatando assim as dificuldades económicas do arguido em fazer face a todas as despesas, daí a não entrega dos meios de pagamento com a respectiva declaração que enviou e onde a própria arguida declarou como montante de IVA apurado a favor do Estado o montante de € 24.109,29. Note-se que relativamente ao facto de declarar que apenas recebeu efectivamente cerca de € 11.000,00, não só não logrou a testemunha demonstrar qualquer suporte designadamente documental das afirmações que efectuou, como não abalou de forma convincente o facto de a própria sociedade arguida ter apresentado a declaração de IVA relativamente a tal trimestre onde declarou o montante a favor do Estado de € 24.109,29, pelo que nesta parte não convenceu o seu depoimento.

O Tribunal atentou ainda nas declarações do arguido quanto às suas condições sócio-económicas e pessoais e da sociedade arguida.

Análise crítica dos elementos documentais juntos aos autos.

Para prova dos antecedentes criminais atendi ao teor dos certificados de registo criminal de fls. 302 e 303, emitidos a 15.04.2011 e 02.05.2011».


*

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem a arguida (pessoa colectiva) recorrer da sentença condenatória.

Alega que o faz de facto e de direito.

3.2. IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.2.1. Pretende a recorrente impugnar a matéria dada como provada.

E fá-lo invocando erro de julgamento e vícios do artigo 410º/2 do CPP.

3.2.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;

- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.2.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, B...Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. B...Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá ainda dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

3.2.4. Ora, analisando a decisão recorrida, vislumbramos esses vícios oficiosos.

Expliquemos porquê.

Quer a recorrente provar que as declarações das testemunhas entram em contradição com a prova documental inserta nos autos.

Entende que os documentos em causa não se referem só ao último trimestre de 2008, período visado, mas a data posterior (recebimentos posteriores a 15/2/2009).

Se assim é, então a questão é apenas de prova de IVA efectivamente recebido neste período e não de prova de não entrega – cfr. artigo 18º da Motivação - de IVA liquidado.

Assinala-se que a sentença recorrida, no texto da sua motivação de facto, afasta este argumento.

Recordemo-la, a propósito do depoimento da testemunha E...:

«Note-se que relativamente ao facto de declarar que apenas recebeu efectivamente cerca de € 11.000,00, não só não logrou a testemunha demonstrar qualquer suporte designadamente documental das afirmações que efectuou como não abalou de forma convincente o facto de a própria sociedade arguida ter apresentado a declaração de IVA relativamente a tal trimestre onde declarou o montante a favor do Estado de € 24.109,29, pelo que nesta parte não convenceu o seu depoimento».

Analisado o documento de fls 82, verifica-se que a recorrente soma apenas o valor de IVA (tido por) recebido até 15/2/2009 (a declaração deveria ter sido entregue até essa data, nos termos da lei) – e aí chega ao valor de € 11.434,41.

Mas a verdade é que a arguida apresentou a declaração de IVA relativamente a tal trimestre onde apôs o valor de € 24.109,29 – cfr. fls 61-62 -, tendo apenas entregue a quantia de € 14.304,65 (4.500 MAIS 9.804,65).

Quem tem razão?

Ou seja, teremos de verificar ou não qual o IVA efectivamente recebido durante o período que medeia entre 1/10/2008 e 15/2/2009 e já que não podemos nem devemos sair do 4º trimestre de 2008?

A nossa resposta é afirmativa.

3.2.5. Sobre o IVA, convém lembrar que:

- O IVA aqui em causa e não entregue, como era obrigação da arguida, consubstancia o apuramento do imposto liquidado e recebido pela A..., deduzido dos valores daquele IVA suportado na aquisição de bens e serviços, tudo devidamente apurado com o auxílio da respectiva contabilidade.

- O Imposto sobre o Valor Acrescentado opera pelo método do crédito de imposto, ou seja, o Sujeito Passivo assume a qualidade de devedor do Estado pelo valor do imposto liquidado nas factura/vendas a dinheiro que emite aos seus clientes, pelos serviços prestados ou pela venda de produtos realizados num determinado período (imposto liquidado ou imposto a favor do Estado) e em contrapartida é credor do Estado pelo imposto suportado nos seus inputs, no mesmo período (imposto suportado ou imposto a favor do Sujeito Passivo) - por consequência, o IVA a entregar ao Estado será a diferença entre aquele débito e este crédito.

- O apuramento do IVA a entregar ao Estado faz-se de acordo com o preceituado nos artigos 19.° a 26.°, tendo o Sujeito Passivo a obrigação de entregar nos Serviços de Cobrança do IVA o imposto exigível e apurado nos termos do n.° 1 do art.° 27.°, enviando àquele Serviço a declaração periódica no prazo previsto no n.° 1 do art.° 41º, acompanhada do respectivo meio de pagamento.

No nosso caso, a arguida não cumpriu o disposto do n.° 1 do art.° 27.°, isto é, não entregou o montante do imposto exigível no prazo fixado por lei.

Liquidando a arguida imposto nas facturas e/ou documentos equivalentes emitidos aos seus clientes, estes na posse de tais documentos, estão em condições de proceder à dedução do mesmo, o que traduz de imediato num duplo prejuízo para o Estado: a primeira liquida e não entrega o imposto, quando o segundo procede à sua dedução imediata.

Se, eventualmente, um dos clientes da arguida ficar em situação de poder pedir o reembolso do IVA suportado, para além da dedução que efectuou, ainda vai ser reembolsada pela Administração Fiscal de valores que nunca entraram ou não entraram no prazo legalmente fixado nos cofres do Estado.

Analisado a prova documental, constatamos que a administração fiscal opinou que «considerando os registos e documentos contabilísticos da sociedade arguida, fica-se com a certeza absoluta que aquela Sociedade recebeu dos seus clientes, relativamente ao período em causa nos autos, a quase totalidade do IVA liquidado no período de 0812T».

É AQUI que discordamos da conclusão.

A verdade é que desse montante de cerca de € 24.000, a arguida não recebeu tudo no período até 15/2/2009.

Dos autos resulta que muitas facturas foram cobradas em data posterior a essa.

Mexerá isso com a essência do crime em apreço?

3.2.6. Está em causa o crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 105º do RGIT.

De facto, a Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 15/2001, in DR -I Série -A, n.º 180, de 04-08-2001) instituiu um novo regime - Regime Geral das infracções Tributárias (RGIT) - unificando todas as infracções tributárias, incluindo as fiscais aduaneiras.

            Tal Lei revogou - artigo 2.º, alíneas a) e b) - com excepção do artigo 58º, o anterior Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, alterado pelo Decreto -Lei n.º 394/93, de 24-11 e Decreto-Lei n.º 140/95, de 14-06, bem como o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10.

Como vimos, o RJIFNA, em 1990, unificou os crimes fiscais, em 1995 enxertou os crimes contra a segurança social e agora o RGIT integrou os crimes aduaneiros que se continham no regime especial avulso do Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10, que substituíra o Decreto-Lei n.º 424/86, de 27-12, o qual sucedera ao Decreto-Lei n.º 187/83, de 13-05 e ao vetusto Contencioso Aduaneiro, constante do Decreto-Lei n.º 31664, de 22-11-1941.

Tal diploma sofreu várias alterações ao longo dos anos, com a redacção sucessivamente revista pela Lei n.º 109-B/2001, de 27-12-2001 (artigo 51.º), Decreto-Lei n.º 229/2002, de 31-10 (artigo 3.º), Lei n.º 107-B/2003, de 31-12 (artigo 45.º), Lei n.º 55-B/2004, de 30-12 (artigo 42.º), Lei n.º 39-A/2005, de 29-07 (artigo 19.º), Lei n.º 60-A/2005, de 30-12 (artigo 60.º), Lei n.º 53-A/2006, de 29-12 (artigos 95.º e 96.º), Lei n.º 22-A/2007, de 29-06 (artigos 8.º e 9.º), Decreto-lei n.º 307-A/2007, de 31-08 (artigo 3.º), Lei n.º 67-A/2007, DR I-A, Suplemento, de 31-12-2007 (artigos 86.º, 87.º e 88.º) e Lei n.º 64-A/2008, in DR I-A, Suplemento, de 31-12-2008 (artigos 113.º, 114.º e 115.º).

A Lei n.º 15/2001 aprovou:

- o Regime Geral das Infracções Tributárias, constante de Anexo ao diploma (Capítulo I);

- a reformulação da organização judiciária tributária, com alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e da Lei das Finanças Locais (Capítulo II); e,

- o reforço das garantias do contribuinte e a simplificação processual, com alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, à Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12 e Código do IRC (Capítulo III).

Estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 15/2001:

1 – É aprovado o Regime Geral das Infracções Tributárias anexo à presente lei e que dela faz parte integrante.

2 – O regime das contra-ordenações contra a segurança social consta de legislação especial.

Estabelece por seu turno o artigo 1.º do Regime Geral publicado em anexo com a epígrafe «Âmbito de aplicação»

1 – O Regime Geral das Infracções Tributárias aplica-se às infracções das normas reguladoras:

a) Das prestações tributárias;

b) Dos regimes tributários, aduaneiros e fiscais, independentemente de regulamentarem ou não prestações tributárias;

c) Dos benefícios fiscais e franquias aduaneiras;

d) Das contribuições e prestações relativas ao sistema de solidariedade e segurança social, sem prejuízo do regime das contra-ordenações que consta de legislação especial.

Segundo a sistemática do Regime Geral, há que atender à Parte III, com a epígrafe -Das infracções tributárias em especial.

Aí incluem-se no Título I - Crimes tributários - as seguintes categorias:

Capítulo I - Crimes tributários comuns (artigos 87º a 91º)

Capítulo II - Crimes aduaneiros (artigos 92º a 102º)

Capítulo III - Crimes fiscais (artigos 103.º a 105.º)

Capítulo IV – Crimes contra a segurança social (artigos 106.º e 107.º).

No Título II dedicado às “Contra-ordenações tributárias”, incluem-se o Capítulo I - Contra-ordenações aduaneiras (artigos 108.º a 112.º) – e Capítulo II - Contra-ordenações fiscais (artigos 113.º a 127.º).

Com interesse para a questão que nos ocupa, passa a transcrever-se parte do artigo 11.º, que estabelece:

Para efeitos do disposto na lei consideram-se:

a) Prestação tributária: os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social

b) Serviço tributário: serviço da administração tributária ou da administração da segurança social com competência territorial para proceder à instauração dos processos tributários;

c) Órgãos da administração tributária: todas as entidades e agentes da administração a quem caiba levar cabo quaisquer actos relativos à prestação tributária, tal como definida na alínea a);

d) Valor elevado e valor consideravelmente elevado: os definidos nas alíneas a) e b) do artigo 202.º do Código Penal.

As alterações mais significativas no que tange aos preceitos ora em causa são as decorrentes de:

- Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que alterou valores: do n.º 2 do artigo 103.º (de 7 500 para 15 000 euros) e do n.º 6 do artigo 105.º (de € 1 000 para 2 000); Lei 53-A/2006, de 29-12, que alterou o n.º 4 do artigo 105.º, criando uma nova condição de punibilidade; Lei n.º 64-A/2008, de 30-12, que introduziu no n.º 1 do artigo 105.º o elemento valor.

No crime de abuso de confiança fiscal, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) e definido no artigo 11.º, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (Anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o artigo 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime – para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei, prevista no n.º 1, o objecto é “alargado” pela definição extensiva do n.º 2 e do n.º 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.

Nesta infracção, estão em causa créditos de impostos ou de tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado -Administração Fiscal, enquanto sujeito activo da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável – cfr. artigos 18.º (sujeitos da relação jurídica tributária), 20.º (substituição tributária), 28.º (responsabilidade em caso de substituição tributária) e 34.º (retenção na fonte) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001.

Pressupõe este delito uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado -Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.

O artigo 105º tem em vista situações de substituição tributária, estando nós perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.

Assenta este crime numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.

Objecto de previsão específica do abuso de confiança fiscal é no artigo 105.º o que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as “extensões” do conceito de prestação tributária constantes dos n.º s 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.º s 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário e tratando-se de deduções não são extensíveis ao crime homónimo da segurança social em que a prestação tem sempre a mesma natureza).

O artigo 105.º, na abrangência do que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, aplica-se a todos os tributos e impostos, com excepção das contribuições devidas à segurança social, aplicando-se a estas o artigo 107º.

Em síntese, diremos que:

· sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT;

· é um crime doloso, aferido este nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal;

· No que diz respeito ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado;

· é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.

No n.º 7, o legislador opta claramente pelo critério da declaração individualizada, assente que o delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período, tal se retirando do enunciado do n.º1 dos artigo 105º do RGIT – esta entrega deve ser feita até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art.º 5º/2 e 3 do DL nº 102/80; art.º 18º do DL nº 140-D/86, cfr. nota em “Infracções Fiscais Não Aduaneiras” de Alfredo José de Sousa, Almedina, 1998, p. 129).

Nesse normativo, deixa-se escrito o seguinte:

«7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».

Ora, se assim é, então é esse o critério para aferir os valores do n.º 5, com efeitos qualificativos da própria moldura penal abstracta.

3.2.7. Além disso, pela alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Outubro, apenas é hoje criminalizada a não entrega, à administração tributária, de prestações [deduzidas nos termos da lei e que estavam legalmente obrigados a entregar] de valor superior a € 7.500.

Assim sendo, constituem assim elementos objectivos do tipo desde 2001:

· a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária;

· que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).
Já configuram condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.° 4 do art.° 105.°, as seguintes:
· tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação;
· a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (em sentido diferente, configurando as circunstâncias do nº 4 como elementos integrantes do tipo de crime, e não como condição objectiva de punibilidade, Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.40)
Finalmente, como elemento subjectivo típico, torna-se necessário o conhecimento e vontade de praticar tais actos, sabendo que os mesmos constituíam a prática de um crime.
Para se consumar o crime, basta, agora, a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas, que no entanto, insiste-se, não se confunde com qualquer intenção de apropriação.
Posição que tem igualmente vindo a ser defendida pela jurisprudência.

De facto, neste delito, após a entrada em vigor do RGIT, basta a não entrega dos montantes deduzidos para que se verifique a apropriação, sendo criminalmente punível tal prévia apropriação e consequente não entrega (mesmo que não se prove que o agente se tenha apropriado pessoalmente desses montantes, tendo antes pago despesas sociais com dinheiro que não lhe pertencia).

O artigo 105º fala em «não entrega».

Enquanto no abuso de confiança do artigo 205º do CP se exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, o abuso de confiança fiscal basta-se com a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou parafiscal.

A não entrega traduz-se numa apropriação, num fazer sua a coisa alheia.

A nova redacção do artigo 105º - que suprimiu o termo «apropriação» - regressa à redacção da norma do artigo 24º/1 do RJIFNA anterior à alteração introduzida pelo DL 394/93 de 24/11.

Nestes termos, o tipo de ilícito prescinde hoje do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.

3.2.8. Contudo, se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13).

Recorramos, neste jaez, à doutrina explanada no Acórdão desta Relação de 15/12/2010 (Pº 24/06.4IDGRD.C1):

«Sublinhe-se que a intenção de apropriação, actualmente não exigida, não é sobreponível ao recebimento das quantias.
Sendo esta a estrutura típica do crime de abuso de confiança, algumas dúvidas tem provocado a sua configuração quando estão em causa as condutas que envolvem o IVA.

Importa por isso atentar sobre a estrutura deste imposto e da sua forma de liquidação, tendo em conta que é sobre ele que incide o recurso.

O IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) tem como sujeitos passivos as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral, tendo como objectivo tributar todo o consumo em bens materiais e serviços. Abrange, na sua incidência, todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho e repercute-se no consumidor final.

A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase, e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas facturas de aquisição. Daí que, na fase retalhista, este mecanismo represente uma repercussão do imposto para a frente, correspondente a uma taxa tributada e efectuada de uma só vez.

Trata-se de um imposto de auto-lançamento, ou auto-liquidação, por a mesma caber ao próprio contribuinte. Normalmente, aplica-se a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduzindo-se a esse montante o imposto suportado por ela através de aquisições durante esse mesmo período; é o designado método do crédito do imposto; outras vezes, excepcionalmente, adopta-se o método subtractivo directo, que consiste em se aplicar a taxa apenas à diferença entre o valor da alienação e o valor da aquisição dos bens e serviços.

Incumbe ao contribuinte enviar, mensalmente ou trimestralmente, consoante o regime, ao Serviço de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade desse mês precedente, já acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (Arts. 16º, 22º, 26º, 36º e 40º, do Código do IVA).

Assim, o imposto de um determinado período é pagável até ao último dia do segundo mês seguinte ao apuramento do valor do respectivo imposto, nas empresas cujo volume anual de negócios exceda ou não o valor mencionado no CIVA.

O IVA é devido, logo que liquidado, isto é, logo que a transacção a ele sujeita se efectiva e se realiza - cf. artigos 16º a 40º, do C.I.V.A.

Como se diz no Ac. do STA de 10-12-20808, processo n. 0579/08, (também no Ac STA nº 542/08 da mesma data e na mais recente jurisprudência daquele Tribunal, nomeadamente nos acórdãos de 28/5/2008, 11/2/2009, 2/12/2009 e de 21/4/2010, proferidos nos recursos n.ºs 279/08, 578/08, 887/09 e 85/10.) «sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60º e seguintes [do código do IVA], os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados.), independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada. O regime do art. 71.º, n.ºs 8 e 9, relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços. Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (arts. 19.º a 25.º do CIVA)».

Mas se esta é a obrigação, outra questão é a patologia que o seu não cumprimento acarreta.

Se não há dúvidas dogmáticas e jurisprudenciais no que respeita a esta estrutura, já no que respeita às consequências do não pagamento do IVA, algumas divergências têm sido evidenciadas, nomeadamente quando está em causa o tipo de patologia dessas condutas por referência ao RGIT, nomeadamente saber se estamos em presença de uma contra-ordenação ou de um crime de abuso de confiança fiscal.

Ora há que interpretar globalmente o sistema sancionatório fiscal, quer contradordenacional quer criminal, para de uma forma harmónica se entender quais as patologias em causa.

Ora além do já citado crime de abuso de confiança estabelece-se no artigo 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, no seu n.º 1 que «A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido» (sublinhado nosso).

Conforme é referido no Ac. do STA referido, «A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão «a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido». Porém, este art. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, está expressamente revogado pela alínea c) do art. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho. Por outro lado, as referências à «prestação tributária que nos termos da lei deduziu» e à «prestação tributária deduzida nos termos da lei», que se utilizam no art. 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão «imposto devido», que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global».

Daí que se conclua, no referido Acórdão, que «não tendo havido recebimento do imposto anterior à entrega à administração tributária da declaração periódica está afastada a possibilidade de preenchimento da hipótese do art. 114.º, n.º 2, do RGIT (que se reporta à conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo)».

Ora sendo esta jurisprudência aquela que vem sendo seguida pelo STA no que respeita ao regime contraordenacional, não fará qualquer sentido – nem isso decorre do tipo de crime – exigir uma interpretação mais ampla no que respeita à conduta criminal que configurasse o tipo de crime sustentado na mera não entrega de quantias putativamente recebidas. Exige-se, por isso, que se demonstre o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado.

Isso mesmo já decorria da jurisprudência estabelecida no Acórdão do STJ de 21/5/2006 que, por outras palavras, dizia o mesmo: «No RJIFNA exigia-se a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT basta-se a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal», sublinhado nosso.

Ou seja o dever legal de entregar as prestações devidas (por dedução) pressupõe sempre que estas tenham sido efectivamente recebidas.

Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal».

No plano doutrinário, a posição que exclui a tipicidade relativamente à omissão de entrega da diferença entre o IVA liquidado e o imposto a favor do sujeito passivo quando este não tenha sido recebido é sufragada sem voz divergente.

Para além de Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais. Análise dogmática e Reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra, 2006, páginas 124-126, veja-se a avisada posição de Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra, 2ª edição, 2007, pág. 168 e Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, págs. 257-266, e também a de Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra, 2011, págs. 51-64 e 101-106.

Em anotação fortemente crítica ao Acórdão da Relação de Guimarães de 20/11/2006, Isabel Marques da Silva considera que, pese embora o IVA liquidado seja exigível independentemente do seu recebimento, salvo nas empreitadas e sub-empreitadas de obras públicas, as consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros.

A esse propósito, opina tal jurista (Nullum Crimen…, págs. 262-263):

«Está […] por demonstrar o modo como o nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias se poderá ter como aplicável ao IVA, uma vez que neste imposto a prestação tributária deduzida, a que foi objecto do exercício do direito à dedução, é precisamente a que não tem de ser entregue nos cofres do Estado. Pela nossa parte, não vemos, pois, como seja possível fazer caber a não entrega das prestações tributárias de IVA no nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias. O mesmo não se diga já do nº2 do mesmo preceito legal, que o Tribunal parece ignorar. Como dissemos já, o nº2 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias procede a uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. Mas apenas deste, como resulta expressamente do preceito. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto».

Para a outra tese (apelidemo-la de 2ª), o IVA é devido logo que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que ele respeita se realize, não dependendo a efectiva cobrança do imposto aos clientes.

Já decidiu o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 (Pº 0842659) que «o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem», adiantando ainda que o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.

Refere-se nesse aresto que:

«O pagamento do IVA não poderá resultar de um acto voluntário do contribuinte; antes tem de ser visto como uma imposição legal, com protecção penal, a que não são alheios todos os princípios enunciados.

Por outro lado – e ao contrário do que defendem os arguidos no seu recurso – o pagamento do IVA não está, nem pode estar dependente do pagamento do devedor seguinte; isto é, o IVA é devido, logo que liquidado, isto é, logo que a transacção a ele sujeita se efectiva e se realiza: dos Arts. 16º a 40º, do C.I.V.A. e da configuração do IVA., resulta que a declaração das operações efectuadas e o montante final liquidado (encontrado, e que serve simultaneamente de reconhecimento da obrigação de pagamento) não depende da efectiva cobrança do imposto aos clientes.

De outra forma, estaríamos a criar uma figura bizarra, inexistente em Direito, que seria uma espécie de excepção do não cumprimento do contrato por terceiro…

Alegar que não é passível de pagamento de IVA uma operação comercial porque o comprador dos respectivos bens não a pagou ainda ao sujeito passivo é introduzir um elemento inaceitável, imprevisto e absolutamente inconsequente: o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem.

Assim sendo, é irrelevante que a sentença mencione que alguns dos valores de IVA foram cobrados e outros não: porque todos eles foram liquidados e declarados, o seu pagamento é exigível, findo o respectivo prazo».

Deste modo, e para esta tese que não comungamos, torna-se absolutamente irrelevante para a perfectibilização do delito que os serviços tenham sido cobrados ou não, durante o período a que respeita o imposto em falta[2].

Sufragamos assim a 1ª tese, a qual nos parece mais consentânea com a tipologia e características do concreto Imposto de que falamos – o IVA.

3.2.9. Aqui chegados, importa dizer que a sentença entra, se não mesmo em erro notório na apreciação da prova (na medida em que o tribunal dá como provado que tudo foi recebido e fundamenta depois a convicção na ausência de prova documental ao escrever que inexiste «qualquer suporte documental» desse não recebimento, quando é certo que essa mesma prova documental invocado demonstra precisamente o seu contrário)., em flagrante contradição da fundamentação[3], na medida em que considera que não há prova documental de que houve montante de IVA que não foi efectivamente entregue à arguida (a tal tese dos cerca de € 11.000 – dos € 24.109,29 liquidados – que de facto foi entregue), quando é certo que os elementos documentais provam à evidência o contrário (cfr. fls 327 – desde «Note-se» até «depoimento» - e quadro constante de fls 82, de onde se retira que há recibos emitidos em data posterior a 15/2/2009, logo, IVA recebido pela arguida dos clientes após tal data).

Contudo, não temos nós dados seguros para confirmar qual o montante exacto de IVA efectivamente recebido pela arguida no período em causa, mercê até de algumas incongruências e contradições entre o quadro de fls 82 e o de 231, não coincidindo certas datas de facturas e recibos.

Haverá que fazer, assim, o cruzamento da prova testemunhal – que para este efeito se tiver por conveniente - com a abundante documentação existente, a fim de apurar:

1º- o cotejo efectivo de quais as quantias efectivamente recebidas e não entregues nesse período de tempo (apurando se estas são superiores ao valores actualmente estabelecidos na lei – 7.500,00 € - como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal);

2º- o montante efectivamente pago pela arguida até ao momento do cumprimento da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º/4b) do RGIT (apurando se nos € 14.304,55 tidos como pagos – factos 7 e 8 – estavam compreendidos os juros e a coima sobre a quantia de IVA efectivamente recebida pela arguida no período de 1/10/2008 a 15/2/2009.

Esta operação terá que ser efectuada pelo Tribunal que realizou o julgamento, apreciando devidamente as provas documentais existentes – facturas, recibos e quadros - e cruzando-as com o depoimento das testemunhas que entender ouvir de novo.

3.3. Por este motivo, só há que decretar o reenvio parcial do processo para novo julgamento (artigo 426º/1 do CPP), com vista a determinar o que atrás se definiu.

E TAL SE FARÁ, sem necessidade de ouvir as gravações do julgamento, pois entendemos que o vício oficioso de que ora se conhece é anterior à indagação de algum eventual erro de julgamento.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 5ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra em, conhecendo do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 426º do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, destinado apenas a determinar:

1º- o cotejo efectivo de quais as quantias efectivamente recebidas e não entregues no período de tempo que dista de 1/10/2008 a 15/2/2009 (apurando se estas são superiores ao valores actualmente estabelecidos na lei – 7.500,00 € - como concretizadores do crime de abuso de confiança fiscal);

2º- o montante efectivamente pago pela arguida até ao momento do cumprimento da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º/4b) do RGIT (apurando se nos € 14.304,55 tidos como pagos – factos 7 e 8 – estavam compreendidos os juros e a coima sobre a quantia de IVA efectivamente recebida pela arguida no período de 1/10/2008 a 15/2/2009.

Sem tributação.

Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. B...Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Uma palavra ao voto de vencido aposto no Acórdão da Relação de Guimarães de 9/6/2005, aderente à tese que não comungamos.

[3] O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.

Ou nas palavras de M.Simas Santos e M.Leal Henriques, “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al.b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.” - Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379